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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75585 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Reaprendizagens sobre democracia e Educação na diferença: a perspectiva das redes de mulheres afro-latinas1

Claudia Miranda* 
http://orcid.org/0000-0001-6105-6356

Aline Cristina Oliveira do Carmo* 
http://orcid.org/0000-0002-4999-5243

Célia Regina Cristo de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-8870-5288

*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Brasil. E-mail: mirandaunirio@gmail.com. E-mail: alinec.oliveira1984@gmail.com. E-mail: celiachristus@gmail.com


RESUMO

A questão que nos convoca para uma análise sobre como podemos insuflar uma mudança significativa na relação entre democracia e educação desde a diferença, passa pela inclusão de visões construídas a partir da politização de mulheres afro-latinas. Consideramos o papel das redes de lideranças tomando o Brasil como ponto de partida, ancoradas nas experiências em países como Uruguai, Cuba, Argentina e Colômbia. A perspectiva descolonizadora, que encontramos em suas proposições, realocam nossas impressões sobre os lugares definidos, a partir dos processos de racialização e, consequentemente, de estigmas e preconceitos produzidos na interseccionalidade. Entendemos que as alternativas que podemos encontrar no fomento de novos pactos sociais devem estar alinhadas com as demandas das bases, levando em conta os segmentos impactados pelos projetos genocidas, como ocorre com as populações femininas e negras. A partir de suas dinâmicas de intervenção, defende-se a proposição de pedagogias outsiders produzidas no âmbito dessas coletividades.

Palavras-chave: Reaprendizagens; Educação; Redes de mulheres afro-latinas; Pactos sociais; Pedagogias outsiders

ABSTRACT

The question that calls us for an analysis on how we can instigate a significant change, in the relationship between democracy and education, from difference, involves the inclusion of visions built from the politicization of afro-latin women. We consider the role of leadership networks taking Brazil as a starting point, and anchored in experiences in countries like Uruguay, Cuba, Argentina and Colombia. The decolonizing perspective, which we find in their propositions, reallocates our impressions of the defined places, based on the processes of racialization and, consequently, of stigma and prejudice produced in intersectionality. We understand that the alternatives, which we can find in the promotion of new social pacts, must be aligned with the demands of the bases, taking into account the segments impacted by the genocidal projects, as it happens with the female and black populations. Based on their intervention dynamics, the proposition of “outsider pedagogies” produced within the scope of these collectives is defended.

Keywords: Relearnings; Education; Afro-latin women's networks; Social pacts; “Outsider pedagogies”

Introdução

Ataques, criminalização dos territórios periféricos e descaso com a saúde das populações mais pobres, são algumas das questões preocupantes para o campo da Educação e para a proposição de políticas educacionais inspiradas em um projeto republicano de país. Em um cenário global marcado pelo abandono dos estratos mais vulneráveis e pelos efeitos do capitalismo em decadência, nos vimos diante de novos fenômenos, por ora, reconhecidos pelo acirramento do genocídio. Ao mesmo tempo, esses são fenômenos com tentáculos e que se apresentam dentro da chave da necropolítica (MBEMBE, 2018), entendida como formas contemporâneas de subjugar a vida ao poder da morte.

Nos países da América Latina (AL) e Caribe, essas violências são formas que funcionam com algo semelhante a um novo apartheid, dessa vez descartando as vidas dos (as) racializados (as) sem medir consequências, como podemos ver nas estatísticas recentes sobre letalidade e crise sanitária. Para uma melhor percepção dessa problemática, pode-se adotar uma lente de aumento e observar, por dentro, camadas sobrepostas. Nelas, a história das mulheres, quando examinada na perspectiva interseccional - que envolve questões de raça, gênero, classe e sexualidade -, pode nos reorientar no entendimento da condição das afrodescendentes. A partir dessas diferentes camadas, mulheres negras são impactadas por mecanismos de subalternização que têm a ver com esquemas potentes de dominação.

Daí partimos, em busca de contrapontos sobre as diferenças convertidas em desigualdades, e orientadas por outras educações e por perspectivas delineadas nas bases comunitárias. Defendemos alternativas emergentes, que impulsionam movimentações na contramão, saídas que definimos, por ora, como “pedagogias outsiders” (grifos nossos). São as redes e os coletivos de pensadoras e ativistas negras o locus de aprendizagens descolonizadoras. Concordamos que é libertador educar as novas gerações e os setores empobrecidos no pensamento criativo e nas forças transformadoras, como defendeu Orlando Fals Borda (1925-2008).

Ao tomarmos esses ideários de emancipação social como escopo também no campo da pesquisa, tem sido urgente assumirmos amplos mosaicos interpretativos para melhor compreender o papel dos estudos sobre eles realizados no campo da Educação. Uma abordagem sentipensante adotada nos termos da Investigação Ação Participante (IAP) exige de nós, os setores engajados com a agenda descolonizadora, um “movimento sankofa” (grifos nossos), que nos permite olhar para os processos experienciados coletivamente em territórios marginalizados e (re) aprender sobre outras educações. A IAP sugere que conheçamos as necessidades da comunidade e, em seguida, reunamos esforços para garantir rupturas e transformar a realidade.

Os pilares do pensamento das outsider within (forasteiras de dentro; estrangeiras de dentro) foram explorados com base no pressuposto de Patricia Hill Collins (2016) e para este trabalho funciona como guión. Tomamos como um ponto chave a defesa apresentada por Sueli Carneiro no discurso sobre os horizontes possíveis para o enfrentamento das inúmeras problemáticas que nos atingem como um país pluridiverso:

Os que vislumbram o futuro acreditam, ainda, que se as condições históricas nos conduziram a um país em que a cor da pele ou a racialidade das pessoas tornou-se fator gerador de desigualdades, essas condições não estão inscritas no DNA nacional, pois são produto da ação ou inação de seres humanos e por isso mesmo podem ser transformadas, intencionalmente, pela ação dos seres humanos de hoje (CARNEIRO, 2019, p. 294).

Nossa tarefa (re) educadora, portanto, inclui a avaliação das condições atuais dos estratos representados como “diferentes”, observando a produção de narrativas que favoreceram (favorecem) posições hierárquicas e lugares sociais subalternizantes. A ênfase de Carneiro reforça nossa avaliação sobre a importante presença das organizações negras e, sobretudo, das pensadoras que atuaram (e atuam) na contramão do instituído, indo além da gestão pública em suas propostas de intervenção social, como é o caso do Geledés (Instituto da Mulher Negra fundado por Sueli Carneiro e por outras intelectuais ativistas, no ano de 1988, em São Paulo). Na mesma direção, a CRIOLA (Rio de Janeiro) é referência nesse processo e se compromete, dentre tantas urgências, com a construção de uma sociedade onde os valores de justiça, equidade e solidariedade são prioritários (SILVA, 2018). Assim como Carneiro (no Geledés), Lúcia Maria Xavier de Castro (Lúcia Xavier) está na linha de frente e ressalta:

Somos responsáveis por muitas frentes, referenciamos, praticamente, desde o final da década de 90 até hoje, produção no que tange o tema da saúde para a população negra, além de sermos responsáveis por criação de frentes, presentes até hoje, em relação ao HIV/AIDS (CASTRO, 2020, p. 7).

Na plataforma das instituições de intelectuais-ativistas negras, CRIOLA é reconhecida por apresentar uma agenda onde aponta caminhos para políticas públicas de segurança, organização, saúde da mulher negra e da sociedade mais ampla. Sua internacionalização acompanha o movimento pós-Durban: “Essa Conferência trouxe muitos elementos, ela nos fez ter a capacidade de olhar mais adiante e, também, de nos articularmos” (CASTRO, 2020, p. 11). Na história da CRIOLA, a interconexão nacional e internacional indica alguns caminhos adotados para a consolidação de seu projeto que, na visão de Ana Beatriz da Silva, é político-pedagógico: “[...] entendemos que essas experiências apontam para um pensamento outro, que promove a afirmação da diversidade. Uma história de inserção que fomenta a desconstrução de uma visão unívoca de existência e conformação de subjetividades de populações diaspóricas” (SILVA, 2018, p.116).

Silva desenvolveu um estudo comparando as propostas das organizações “Coisa de Mulher” e da “CRIOLA” e suas abordagens educacionais: “Acreditamos que a educação promovida por essas organizações de mulheres negras, abarcam proposições capazes de disputar currículos estabelecidos e promovem ‘desestabilização epistêmica’” (SILVA, 2018, p.117). Sob tais influências, podemos afirmar que as pesquisas em nosso campo podem ampliar seu escopo e agregar experiências desenvolvidas na base, justamente onde atuam as organizações do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras. Acrescentamos, nesse quadro de possibilidades, a urgência de novos estudos que contemplem as relações de gênero e as alternativas para maior mobilidade socioeducacional de meninas, jovens e mulheres vítimas dos estigmas já discutidos nos estudos de Carneiro (2005). As relações de gênero funcionariam como uma importante chave, dentro da perspectiva da necropolítica.

Sabe-se que o feminicídio é perpetrado geralmente por homens, em situações nas quais as mulheres têm menos poder e envolve abusos no domicílio, ameaças e intimidação. No Brasil, entre 2009 e 2011, segundo o relatório de Leila Posenato Garcia et al.(2013) realizado para o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), 61% dos óbitos foram de mulheres negras, sendo também as principais vítimas em todas as regiões (com a exceção da região Sul). O relatório destaca a elevada proporção de óbitos no Nordeste (87%), Norte (83%) e Centro-Oeste (68%). Todas as vítimas possuíam escolaridade baixa. A sua presença, no âmbito do trabalho doméstico, denuncia os efeitos de um processo avassalador promovido pela aventura colonial, no território definido (em suas narrativas) como América Latina. Guardadas as devidas proporções, são as mesmas formas de fixação que recebem nos países que apresentam realidades multiculturais. Como exemplo, chamam a atenção os efeitos desse fenômeno, capaz de naturalizar a invenção das diferenças, em sociedades como a uruguaia, cubana, argentina e colombiana. Ou seja: em contextos nos quais o ethos da servidão criou raízes, para manter hierarquias sociais e explorar segmentos racializados.

Ao investigar mobilizações coletivas antirracistas em Cuba, Bárbara Oliveira Souza localizou “um crescimento da mobilização e do discurso que contrapõe a narrativa de que a Revolução solucionou o racismo no país, em comparação com décadas anteriores” (SOUZA, 2015, p. 344). O coletivo de mulheres “Afro-cubanas” se fortaleceu no debate sobre relações raciais e gênero em espaços comunitários e acadêmicos e sua trajetória é importante no diagnóstico sobre as desvantagens de gênero. Mulheres afro-latinas, afrocaribenhas e da diáspora africana, são as mais sacrificadas pelo impacto que sofrem com a violência do racismo sistêmico e com as desigualdades de gênero.

Nas pesquisas de Karina Batthyány Dighiero e Sol Scavino Solari (2018), as autoras examinam como a feminização dos cuidados é produto da construção social de gênero em torno do sexo feminino. Nas conclusões, indicam que as mulheres são as principais cuidadoras e, ainda, como o trabalho de cuidados não remunerado (em saúde), no Uruguai, corresponde a 1/3 do agregado do setor de saúde no Produto Interno Bruto. Em linhas mais gerais, as mulheres assumem os custos da perda de sua autonomia e de limitações no desfrute de direitos. Esse tipo de ocupação, não remunerada, é um prejuízo para sujeitas que são representadas como responsáveis pelo cuidado. Na análise do trabalho não remunerado, incluíram a realização de tarefas domésticas, de assistência, apoio a outras famílias e tarefas de voluntariado. Com esses aportes metodológicos, afirmam que a pesquisa “tornou visível a contribuição de famílias e mulheres às sociedades como um todo e às economias nacionais” (DIGHIERO; SOLARI, 2018, p.2). No caso cubano, conforme a Pesquisa Nacional sobre Igualdade de Gênero (ENIG, 2016), as mulheres passam 14 horas a mais nas tarefas domésticas do que os homens. Na atualidade, o que se vê é um processo de envelhecimento (que se acelera) de sua população, com mais de 20,4% das pessoas com mais de 60 anos de idade.

Ao considerarmos os resultados da investigação de Dighiero e Solari (2018), chama atenção o volume de trabalho das famílias (com os pais, avôs e avós) e as consequências para as cubanas. Rosa Campoalegre aponta alguns importantes aspectos no caminho para mudanças efetivas na sociedade cubana: “O imperativo é diversificar e articular essas políticas de cuidado, assumindo as políticas de transformação cultural como eixo transversal” (2020, p.1). Campoalegre acrescenta que “adicionar o desafio de delimitar entre trabalho doméstico e trabalho remunerado ou não remunerado, confundi-los, contribui para a reprodução das desigualdades de gênero” (2020, p.1). Notadamente, são aspectos que denunciam a falta de ruptura com os efeitos da servidão na vida cotidiana de mulheres uruguaias e cubanas.

Ao mesmo tempo, importa recuperar o que Hill Collins denuncia sobre o quantitativo de mulheres afro-americanas no trabalho doméstico: “Em 1940, quase 60% das trabalhadoras afro-americanas eram trabalhadoras domésticas. A primeira vez que essa categoria ocupacional não se apresentou como o maior segmento da força de trabalho feminina negra foi no Censo de 1970” (COLLINS, 2016, p. 99-100). O trabalho precário seria, portanto, outra importante chave para entendermos as questões que nos mobilizam para interpretarmos nossas chances de repactuar em nossas respectivas sociedades, sem deixar de considerar que em todos esses contextos a pobreza tem cor.

A pesquisadora Silvia Federici participou da Wages for Housework [Campanha por um salário para o trabalho doméstico] e o seu estudo sobre mulheres e acumulação primitiva oferece novas interconexões para entendermos as espessuras do problema da invenção das hierarquias e, nesse âmbito, a condição das populações racializadas. Federici indica que a caça às bruxas se deu também no continente africano, com destaque para Nigéria e África do Sul, sendo esse um instrumento de divisão em contextos nos quais o comércio de pessoas escravizadas funcionou. Assim, a caça às bruxas “tem sido acompanhada pela perda de posição social das mulheres, provocadas pela expansão do capitalismo e pela intensificação das lutas pelos recursos naturais, que nos últimos anos vem se agravando pela imposição da agenda neoliberal” (FEDERICI, 2017, p. 416).

Ainda sobre a realidade uruguaia, o Atlas Sociodemográfico y de la Desigualdad del Uruguay tem um papel de destaque para conhecermos processos de organização de movimentos de base: “La información del Censo 2011 permitió contabilizar algo más de 255 mil personas que se declararon afrodescendientes. En términos porcentuales, este valor implica el 8,1% de la población total con información relevada […]” (CABELLA; NATHAN; TENENBAUM, 2013, p. 16). Conforme a pesquisa realizada por Silvia Thais Corrêa Cezar Gonsalves Rosa e Waldemir Rosa, foi somente nesse censo que se incorporou a pergunta sobre a ascendência racial e isso possibilitou a produção de estimativas mais precisas do tamanho da população afro-uruguaia. Indicam ainda que “no Uruguai ocorre o fenômeno da racialização da pobreza e da exclusão social” (ROSA; ROSA, 2019, p.122). Esses dados nos ajudam a entender melhor como se produz desigualdades pela exclusão de segmentos racializados e nos ajudam a encaminhar nossas interpretações sobre as múltiplas filiações das mulheres mais afetadas por esses desdobramentos da violência do capitalismo, dos patriarcados e da racialização da pobreza.

No movimento afro-uruguaio, pode-se observar o impacto de uma situação particular de mudanças políticas expressivas. Nos anos de 1970, as negociações para se realizar o “Diagnóstico socioeconómico y cultural de la Mujer Afrouruguaya” ajudaram a revelar problemas graves sobre um segmento invisibilizado. Conforme aponta Laura Cecília López, os dados evidenciaram que 50% das mulheres entrevistadas nesse diagnóstico “estavam ocupadas no emprego doméstico, ganhando salários muito baixos, sem conseguirem resolver a própria sobrevivência e a da família” (LÓPEZ, 2013, p.48). Também, a metade das mulheres entrevistadas não tinha chegado a cursar o ensino médio. Desse universo, apenas 4% chegaram ao ensino superior. Os aspectos acima foram incorporados pelo fato de, na região da AL, o Uruguai figurar como uma sociedade onde as chances de acesso aos bancos universitários é um importante indicador da situação de maior igualdade de oportunidades. Mesmo assim, evidencia-se uma problemática socio-racial preocupante, assim como ocorre em Cuba, tendo em vista o itinerário das reivindicações de políticas públicas de inclusão.

Sobre o movimento social afro-cubano, Bárbara Oliveira Souza menciona aspectos da mobilização para o debate sobre o plano para a Década Internacional dos Afrodescendentes: “As mobilizações e a realização de atividades, como essa, fortalecem a narrativa desses movimentos e possibilitam problematizar em situações cotidianas outras perspectivas discursivas sobre o tema racial” (SOUZA, 2015, p. 323). Assim, um dos obstáculos observados é a inoperância do Estado para tratar o tema das desigualdades raciais. Adverte que, também no caso das afro-cubanas, tanto gênero como raça são marcadores sociais que desfavorecem e dificultam a transformação e reconhecimento dos obstáculos interseccionais. Recupera achados da luta dos movimentos sociais engajados na agenda antirracista:

Ademais dos coletivos que pautam a questão das mulheres negras contemporaneamente, houve uma das organizações sociais pioneiras no debate racial e de gênero, na década de 1990, que após alguns anos de fundação foi desativada por recomendação do Partido Comunista de Cuba. Denominada Magín, essa organização foi muito importante para a ampliação do debate sobre o feminismo negro, apesar de não ser exclusivamente voltada para o tema racial (SOUZA, 2015, p. 330).

Ainda que Cuba tenha vivido o silenciamento das questões raciais pela rigidez do sistema social, elas estiveram (estão) em ebulição e impactando a gestão pública positivamente. Podemos afirmar que existe, na atualidade, mais espaço para a problematização exigida em contextos atravessados pelas desigualdades. Por esses aspectos, importa considerarmos o sufocamento de temas como as desigualdades de gênero e as limitações vividas pelas afro-cubanas.

Também no campo educacional é imperativo assumirmos, como uma demanda descolonizadora, dados que nos auxiliem no mapeamento das posições que meninas, jovens e mulheres negras ocupam, para apoiarmos maiores alinhamentos e propostas para a recuperação de direitos perdidos em inúmeros países. Ainda segundo Hill Collins:

[...] existe uma longa e rica tradição de um pensamento feminista negro. Grande parte deste pensamento tem sido produzido de forma oral por mulheres negras comuns, em seus papéis de mães, professoras, músicas e pastoras. Desde o movimento dos direitos civis e do feminismo, as ideias de mulheres negras têm sido cada vez mais documentadas e está atingindo um público mais amplo (COLLINS, 2016, p. 102).

Na região da AL, é tarefa sine qua non promovermos novos deslocamentos e incidir na ampliação de lentes para novos estudos etnográficos em educação comparada e observarmos as possibilidades de avanços, bem como maior mobilidade socioeducacional. Um marco histórico para indagarmos as políticas sociais é a Década Internacional para Afrodescendentes proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2013), que começou no dia 1º de janeiro de 2015 e terminará em 31 de dezembro de 2024, com o tema “afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. Foi inaugurada após o debate geral da sexagésima nona sessão da Assembleia Geral da ONU e apresenta um diagnóstico alarmante sobre os efeitos da manutenção do racismo e os seus desdobramentos, sobretudo, para as mulheres da diáspora africana. Ao mesmo tempo, se constitui como uma plataforma operacional que impulsiona políticas para reduzir injustiças, racismo e discriminação, e promover a diversidade cultural a partir da valorização de heranças comuns advindas das interações produzidas pela história da servidão. Por tudo isso, faz sentido observarmos e avaliarmos as performances comunitárias desenvolvidas nos projetos e iniciativas que incluem práxis insurgentes e descolonizadoras.

Repactuar com pedagogias outsiders

A Négritude é um locus para a diáspora africana e pôde abrir, como um movimento pan-africanista, na Europa, alguns atalhos em contextos áridos levando-nos, de algum modo, a maiores possibilidades de acreditar em vinculações com cosmovisões africanas e afrodescendentes. Também nos levou a maiores possibilidades de estabelecer cooperação e a caminhar em consonância com os movimentos subsequentes. Assim, localiza-se um referencial transnacional que serviu para repensarmos as estratégias de luta. Do mesmo modo, a grande movimentação de feministas negras dos Estados Unidos (EUA) chegou ao Sul e influenciou dinâmicas outras, gerando novas leituras conjunturais acerca das afrodescendências. A nosso ver, produziram, em um movimento continuum, “pedagogias outsiders” (grifo nossos) impulsionadas por uma reação inevitável em contextos marcadamente desiguais. Concordamos com Patrícia Hill Collins quando afirma que a experiência de mulheres negras como outsiders within pode ajudar toda uma sociedade a se reinventar:

[...] uma variedade de indivíduos pode aprender com as experiências das mulheres negras como outsiders within: os homens negros, a classe trabalhadora, as mulheres brancas, outras pessoas de cor, minorias religiosas e sexuais e todos os indivíduos que, mesmo tendo vindo de um estrato social que os proveu com benefícios do insiderism, nunca se sentiram confortáveis com as suposições deste último consideradas como certas (COLLINS, 2016, p. 122).

Em sua visão: “muitas intelectuais negras, especialmente aquelas em contato com sua marginalidade em contextos acadêmicos, exploram esse ponto de vista produzindo análises distintas quanto às questões de raça, classe e gênero” (COLLINS, 2016, p.100). A perspectiva descolonizadora, que encontramos nas “proposições outsiders within” (grifos nossos) é inegável. Ao mesmo tempo, faz sentido alinharmo-nos com Audre Lorde (2017) para examinar os lugares definidos a partir dos processos de diferenciação. Isso porque entendemos que as alternativas, que devemos adotar e insuflar novos pactos sociais, devem apresentar interconexões com as demandas dos movimentos sociais e das populações alvo dos projetos genocidas em curso, em larga escala. Destaca-se o que examina Lorde, acerca das práticas de insurgência feminina e negra: “La supervivencia es aprender a asimilar nuestras diferencias y a convertirlas en potencialidades. Porque las herramientas del amo nunca desmontan la casa del amo” (LORDE, 2017, p.106).

Com essas pistas, fomenta-se novas perguntas sobre o papel das diferenças na vida de mulheres afrodescendentes, tomando o Brasil como ponto de referência, mas ancoradas nas experiências das redes organizadas no âmbito da AL e Caribe. Podemos afirmar que as posições marginais, em ambientes acadêmicos, foram mencionadas no pronunciamento feito por Lorde e no centro de sua explanação está a proposta de “definir y luchar por un mundo en el que todas podamos florecer” (LORDE, 2017, p.105). Com as inspirações que oferece, nos reconecta para abrigarmos a ideia central de Patricia Hill Collins (2016) sobre as “forasteiras de dentro” (ou “estrangeiras de dentro”). Em “Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro”, Hill Collins define as vantagens de “ser de fora” incluindo habilidades para a sobrevivência daquelas mulheres que historicamente “não podem florescer”. Tanto Lorde (2017) como Hill Collins (2016) nos orientam na travessia que vimos realizando, ao longo da última década, em projetos de cooperação com movimentos pedagógicos e redes afro-latinas.

A trajetória educacional de mulheres que se lançaram com o suporte da formação nessas instâncias, nos mobiliza a pensar sobre interseções possíveis diante das diferenças de raça, de sexualidade e de classe. Qualquer debate sobre questões pessoais ou políticas, não tem mais sentido sem as suas perspectivas. Ratificamos que a questão que nos convoca para uma interpretação sobre como podemos insuflar uma mudança significativa da relação entre democracia e educação, desde a diferença, passa pela tese de Lorde (2017, p.103) sobre as visões construídas por sujeitas negras no mundo. Aprendemos com ela que, assim como nos Estados Unidos (EUA), também no Brasil, e nos países aqui citados, racismo, sexismo e LGBTfobia, são inseparáveis. É fundamental observarmos as fissuras nas quais realizaremos outros deslocamentos político-pedagógicos, de ideais de igualdade e justiça, no exercício de reimaginar o horizonte democrático. Ou seja, as inúmeras pesquisas implicadas com os grupos estigmatizados têm uma importante tarefa, que é recuperar significados que nos reorientem nessa travessia.

Em seu trabalho “Interseccionalidade e Desigualdades Raciais e de Gênero na Produção de Conhecimento entre as Mulheres Negras”, Sônia Beatriz dos Santos (2017, p.115) analisa a interseccionalidade como um conceito produzido por intelectuais da diáspora africana que privilegia suas contribuições para a produção de conhecimentos sobre as intersecções das desigualdades raciais e de gênero. A autora conclui com destaque para a relevância de se identificar e confrontar as premissas racistas, sexistas e heterossexistas que têm limitado as possibilidades de mulheres negras serem consideradas e respeitadas como ‘sujeitas” (SANTOS, 2017, p.116).

A agenda antirracista, no Brasil, é uma das mais importantes dentre as referências para o mundo, e nomes como os de Sueli Carneiro, Lucia Xavier - entre outras intelectuais-ativistas negras -, fazem parte de um grupo que se inspira em pensadoras como Patrícia Hill Collins, Audre Lorde e Lélia González. O feminismo afro-latino-americano proposto por González é mais uma chave dessa remontagem que propomos, na agenda de repactuação, no Brasil e na AL. No dia 24 de agosto de 1984, em discurso proferido na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Lélia González (2018) dá o seguinte alerta: “Nós todos temos que nos unir nessa luta irmanados, respeitando as diferenças que nos separam, porque uma mulher não é igual a um homem, um negro não é igual a um branco. Mas não vamos reproduzir o que o capitalismo faz conosco: transformar a diferença em desigualdade” (GONZÁLEZ, 2018, p. 229).

Na convocatória realizada por esta uma investigadora-professora universitária e ativista com deferência, no Movimento Negro (MN) e no Movimento de Mulheres Negras, encontramos mais pistas sobre como repactuar a sociedade e como ressignificar processos democráticos em contextos marcadamente pluridiversos. Ressalta que sua intervenção foi em nome do Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras, e que não estava sozinha, mas sim com o grupo do qual fazia parte. Lélia González estava aquilombada e comprometida com um discurso coletivo. Em outras palavras, a lição que aproveitamos, dessa opção, a nosso ver, pedagógica outsider, é que essa movimentação precisa ser em bloco e contínua. Tal como aprendemos, em diferentes carreiras universitárias, a missão das instituições de pesquisa, ensino e extensão deve alcançar o conjunto da sociedade, e uma consequência desse compromisso é democratizar as formas de acesso ao conhecimento dito de referência, além de valorizar diferentes saberes e conhecimentos das comunidades do entorno. Da perspectiva do movimento de mulheres afro-latinas, poderíamos considerar suas plataformas de intervenção com expressiva capilaridade, na politização de jovens que os sistemas educacionais teriam que absorver na sua totalidade e garantir mobilidade e formação ampla.

As redes afro-latinas como locus de (re) aprendizagens

A Plataforma Política de lideranças negras, frente à Década Internacional dos Afrodescendentes (2015), dá uma pista sobre a tessitura já realizada entre diferentes dinâmicas latino-americanas. Nos estudos de Laura Cecília López a antropóloga aponta que:

Observa-se a conformação de redes transnacionais de ativistas organizados em torno de causas coletivas antirracistas e antissexistas, que encontraram um cenário mundial favorável a partir da década de 1970 em circuitos de identificações através de diferentes realidades coloniais e pós-coloniais e de lutas pela redemocratização em vários países da América Latina (LOPÉZ, 2013, p. 46).

A Red de mujeres afrolatinoamericanas, afrocaribeñas y de la diáspora (RMAAD) apresenta, na sua declaração sobre a crise sanitária mundial, alguns aspectos que nos convocam:

La creación de la Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora tuvo por objeto articular esfuerzos para el combate de la opresión de género y raza por medio de la exposición de la condición de marginalidad vivida por las mujeres afrodescendientes en la región y la lucha contra los estereotipos y prejuicios que recaen históricamente sobre ellas, además de la promoción de la participación de las mujeres afrodescendientes en todas las esferas de la vida pública, especialmente en los espacios de toma de decisiones. A 28 años hemos crecido en incidencia y membresía, estamos en 23 países de diversas regiones como Región Andina, Cono Sur, Caribe, Centro América, La Diáspora, Norte América (RED…, 2020, p.1).

A RMAAD foi criada em 1992, visando articular esforços no continente latino-americano para interromper os processos do racismo e do sexismo. Com esse ideário, intenciona gerar rupturas que possam diminuir os efeitos desse fenômeno na vida de mulheres racializadas. Seu compromisso inclui maior visibilidade para a situação de marginalidade em que milhões de mulheres afrodescendentes vivem devido à discriminação sofrida por conta do seu pertencimento racial e ainda por conta dos efeitos da misoginia. Como plano estratégico para a AL, insiste com denúncias sobre as formas diversas de discriminação, de preconceitos e de subalternização. Suas integrantes estão comprometidas com o reconhecimento das identidades outras, com o respeito pela diversidade, com a horizontalidade, com as formas de participação democrática e inclusiva e liderança colegial, com a solidariedade, a igualdade, com o capital próprio, com o comprometimento e com a responsabilidade.

O trabalho de Glenda Joanna Wetherborn, sobre as formas de eliminação da vida racializada, complementa nossas percepções sobre como essa agenda é uma convocatória pelo compromisso assumido coletivamente. Sua formação é um aspecto central para entendermos o papel das redes de mulheres afro-latinas na região. Faz sentido trazer, aqui, alguns dados levantados por ela, no trabalho sobre o impacto da violência contra afrodescendentes nas Américas:

[…] la Comisión Interamericana de Derechos Humanos [CIDH] ha dado seguimiento a denuncias por discriminación estructural y desigualdades raciales que afectan las prácticas de aplicación de la ley y el sistema de justicia penal en los Estados Unidos, expresando particular preocupación por los continuos problemas de prejuicio racial utilizado en la vigilancia policial, el uso excesivo de la fuerza y un patrón de impunidad de los policiales y los departamentos policiales involucrados (WETHERBORN 2020, p.87).

A autora é partícipe da referida rede, e essa preocupação aparece em sua análise acerca das condições de vida em distintos países onde o estado pouco tem incidido para proteger as pessoas mais vulneráveis. Nascida na Guatemala, a ativista-investigadora e partícipe da RMAAD, faz um importante percurso na formação acadêmica. Trata-se de uma jornalista negra com ascendência jamaicana (afrodescendente creole), que se define como educadora popular, signatária do feminismo negro. Wetherborn é licenciada em Ciências da Comunicação e cursou Mestrado em Igualdade e Equidade no Desenvolvimento (Universidad Central de Cataluña).

Em 2018, a economista e política costarriquense Epsy Campbell Barr foi eleita vice-presidente do seu país, sendo a primeira mulher afro-latina em um alto cargo de governança. Reconhecida como uma pesquisadora e ativista dos direitos da mulher e da agenda por igualdade racial, Campbell Barr fez parte da construção da Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-caribenhas (1997-2001). A vice-presidente da Costa Rica tem uma trajetória marcada pela recriação da perspectiva comunitária para as populações racializadas e com a particularidade de ser afro-latina. Integrou a Aliança de Povos Afrodescendentes da América Latina e do Caribe (ARAAC) e fez parte do Parlamento Negro das Américas. Também coordenou o Fórum de Mulheres para a Integração Centro-americana (1996-2001) e é um dos nomes no grupo das fundadoras do Centro de Mulheres Afro-costarriquenses.

Tanto a formação de Glenda Joanna Wetherborn como a importante travessia político-ativista de Campbell Barr, nos indicam o legado dessas redes no âmbito da luta pela afro-existência feminina. No Uruguai, “através de seu trabalho, os ativistas de Mundo Afro propiciaram, durante a década de 1990, uma dimensão emergente na sociedade [...] em torno da consideração explícita da questão racial como problema social na esfera pública” (LÓPEZ, 2013, p.47).

Por sua vez, a Mizangas Mujeres Afrodescendientes (2006) se constitui como uma rede formada por uma maioria de universitárias e atua no âmbito da formação considerando a potencialidade de lideranças, para um trabalho de retomada de protagonismo social e comunitário. Com esse objetivo, se constitui pela ala jovem da Organizaciones Mundo Afro (OMA), sendo essa uma importante referência afro-uruguaia. No perfil de sua página web, Mizangas afirma que se constitui “para la incidencia política desde la interseccionalidad”. Apresenta uma sólida presença como rede partícipe do Movimento afro-uruguaio e contribuiu com a agenda política das afrouruguaias para a consolidação da Red Nacional de Mujeres Afrouruguayas (Red) NAMUA (2013). Esse espaço é, portanto, uma arena para a incidência política em todo o país.

Na Argentina, a Tertúlia de Mujeres Afrolatinoamericanas - TEMA (Buenos Aires) trabalha com um número expressivo de negras de diferentes origens e dentre os seus objetivos estão: “construir saberes, compartir sentires y experiencias sobre lo que significa ser una mujer afrodescendiente en la sociedad argentina”. Um dos exemplos se reflete na produção da investigadora brasileira Bruna Stamato. Em “Pela amefricanização do feminismo”, enfatizou:

Ao longo dos últimos anos, as comunidades afroargentinas e afrodescendentes de origem migrante têm amplificado cada vez mais sua luta por direitos, reconhecimento e contra a invisibilização e estigmatização. Muitas dessas lutas são desenvolvidas por associações e agrupações cujas líderes são, com freqüência, mulheres afrodescendentes. Hoje está se consolidando um movimento de mulheres afrodescendentes aqui, formado por mulheres que pensam sobre sua condição de gênero e constroem identidades e narrativas sobre si mesmas (STAMATO, 2018, p. 1).

Conforme matéria veiculada pelo Jornal Alma Preta, a Tertúlia de Mujeres Afrolatinoamericanas foi criada em 2015 e é o primeiro coletivo feminista negro da Argentina. Em entrevista para Megafonunla, Gladys Flores (2019) afirmou que “Las mujeres afro o negras estamos recogiendo un montón de frutos super interesante. Desde los 80' hubo asociaciones, pero más sobre la discriminación, desde el feminismo hará unos cinco años, que es el tiempo que llevamos con Tertulia”.

Em um estudo sobre Brasil e Colômbia, Danielle de Deus França Galvão Gomes Vaz (2017, p. 97) considera que “os investimentos em pesquisas comparadas, pesquisas sobre redes de educadoras/es, ainda são poucos, configurando assim, a relevância e o caráter inovador desta investigação, para o campo no qual se encontra - o campo da Educação”. No Rio de Janeiro, a Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras (RECEN), um fórum permanente que surge no ano de 2015 (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO), com a adesão de educadoras populares, professoras das redes públicas de ensino, ativistas e pesquisadoras nas universidades, aparece como uma rede semente. As motivações estão explicitadas em sua página de divulgação e a Red Hilos de Ananse (Bogotá) é sua impulsionadora. Chama atenção o número de partícipes nas cinco edições dos encontros (entre 2015 e 2019), no espaço da UNIRIO. Em “Redes etnoeducadoras y otras educaciones frente a la crisis global”, ressalta:

Trabajamos en diálogo con la Red Ananse y así, hemos promocionado formación autogestionada y garantizado mayores vínculos con las universidades públicas. También con las instituciones de mujeres negras de Brasil, hemos aprendido sobre la agencia genocida del Estado y sus impactos en la vida de las familias negras periféricas. Aprendemos sobre cómo explotamos otras grietas, en diálogo con las trabajadoras del servicio doméstico, jefas del hogar, las educadoras en periferias urbanas, en palenques, las que aguantan los dolores de las pérdidas diversas (REDE…, 2020, p. 29).

Evidencia-se a conexão com a experiência da Red de Maestros y Maestras tras los Hilos de Ananse (Bogotá), uma rede que atua desde 2003 com o foco em outro mosaicos teórico-epistemológicos, para influenciar a seleção curricular e para a formação em sentido amplo. O compromisso da rede colombiana gira em torno da revisão dos conteúdos a serem ensinados em uma realidade multicultural e em disputa de sentidos. Para o pesquisador e partícipe da Red Ananse, Luis Guillermo Meza Álvarez (2019, p. 126), a incidência depende de uma série de estratégias de mobilização incluindo os setores populares: “[...] tal incidência se realiza numa variedade de cenários e temas de ação política e social que socialmente estão organizados de maneira hierárquica: escola, universidade, movimento social afro-colombiano, sindicato de docentes, casa, família, etc”.

Os pilares de sua atuação aparecem refletidos na RECEN. Como desdobramento do fórum permanente, de formação auto-gestionada - que inclui profissionais das escolas e das universidades, bem como livre pensadoras que desenvolvem trabalhos em instâncias diversas dos movimentos sociais -, estão o projeto “Redes de professoras e dinâmicas organizacionais: propostas de pedagogias alternativas” (extensão) e o projeto de pesquisa “Pedagogias decoloniais no movimento outsider within: contribuições para o observatório de etnoeducadoras (es)”. As tessituras são feitas em um movimento transcultural e diaspórico, e pode-se captar práxis colaborativas e um continuum, defendido no amadrinharmento da Red Ananse para com a RECEN. Essa conexão está explicitada por Vaz, quando afirma que apresentam ideários onde “a denúncia, a busca de metodologias de trabalho acadêmico e pedagógico, as formulações e vertentes filosóficas, estão fortemente marcadas pela possibilidade de revisão de propostas curriculares e de percepção do legado de resistência negra” (VAZ, 2017, p.96). Notadamente, o “movimento outsider within” (grifos nossos) é uma referência ao pressuposto de Patricia Hill Collins, que compõe nosso quadro interpretativo, sobre pedagogias outsiders com as instituições e com as redes de ativistas-pensadoras afro-latinas.

À guisa de conclusão

Sob os riscos apresentados por ondas fascistas, diferentes setores da sociedade brasileira têm reivindicado a retomada de um projeto republicado de país que, consequentemente, abriga o ideário democrático. A perspectiva das pedagogias outsiders postulam novos deslocamentos em bloco e, assim, alinha-se com as práxis libertadoras, defendidas no âmbito das redes afro-latinas. Nosso interesse, ao longo dos últimos dez anos, tem sido analisar processos educativos promovidos por pensadoras, ativistas e profissionais comprometidas com as agendas descolonizadoras. Nas esferas que atuam no subterrâneo da sociedade, se veem desafiadas no ir e vir entre suas casas, suas relações sociais e o mundo do trabalho. Notadamente, encontrarmos fissuras para vislumbrarmos outras educações e alternativas de repactuação no Brasil e nos países da AL. Isso dependerá da garantia de arenas de diálogos e de ambiências mais porosas, onde o pluridiverso possa emergir.

As pedagogias outsiders são orientadoras por congregarem as instâncias públicas, os movimentos que ocorrem nas bases e as (os) profissionais que se comprometem com a revisão das estratégias de diminuição das injustiças sociais. Insuflar outras brechas oxigenantes pode ser o mote para repactuarmos as relações sociais em contextos áridos, marcadamente abalados pelo ethos da servidão. Sobre as lutas das redes das afro-latinas, aprende-se com movimentações outsiders, compreende-se suas denúncias sobre um quadro situacional de extrema violação de direitos e de diminuição de proteção social para as populações mais vulneráveis, sendo as mulheres racializadas as mais afetadas. A nosso ver, as (re) aprendizagens possíveis são aquelas que estão no trabalho coletivo desenvolvido nas redes que são redes de (re) aprendizagens sobre a afro-existência. Alinhamo-nos com suas filosofias, tendo em vista que sugerem caminhos de insurgência quando se apresentam em bloco, oferecendo um eixo paradigmático interpenetrado e abrigando significâncias múltiplas. Também nos reconectam por alertarem para os riscos das ferramentas do amo e, sendo assim, nos redirecionam com suas estratégias e dinâmicas comunitárias de vanguarda.

1 Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2Patrícia Hill Collins (2016) apresenta uma tese sobre a experiência de intelectuais negras que define como outsiders within e, nesse desenho, explorou as formas de autodefinição, de autoavaliação, a visão sobre a natureza interligada da opressão e, por último, a importância da cultura das mulheres afro-americanas. Esse desenho serve, então, para produzirmos um pensamento feminista negro, que reflete um olhar específico, em relação ao próprio self, à família e, também, à sociedade.

3Fundadora do Geledés - Instituto da Mulher Negra (1988), Sueli Carneiro é Doutora em Educação (USP) e uma das mais importantes pensadoras afro-brasileiras.

4Discurso de Sueli Carneiro em defesa das cotas raciais no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2010.

5Entre os anos de 2002 e 2006, foi deputada nacional na Costa Rica.

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Recebido: 08 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

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