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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75337 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Juventude negra, Ensino Médio e democracia: a luta pela escola

Luciano Nascimento Corsino* 
http://orcid.org/0000-0002-2591-5472

Dirce Djanira Pacheco e Zan** 
http://orcid.org/0000-0002-3663-2232

*Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul. Rolante, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: luciano.corsino@rolante.ifrs.edu.br

**Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: dircezan@unicamp.br


RESUMO

O presente trabalho apresenta dados etnográficos de uma pesquisa de doutorado realizada em escola pública na zona norte de São Paulo. Na realidade pesquisada, as garotas negras tiveram um papel importante na organização e manutenção do movimento de ocupação ocorrido no final de 2015. Neste artigo, pretendemos evidenciar como a presença da cultura negra no currículo escolar de uma instituição de Ensino Médio, junto a outras políticas de valorização e reconhecimento dessa cultura, pode ter contribuído para a articulação dessas jovens na decisão sobre o movimento. A ocupação se deu em meio a uma movimentação maior ocorrida no estado de São Paulo em 2015, tendo como principais objetivos: a) resistir à reforma do Ensino Médio anunciada pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e b) reivindicar uma escola mais democrática, que reconheça as diferenças e possibilite a participação das jovens nos processos de decisão. A pesquisa realizada nessa unidade escolar tem como fundamentação teórica os estudos da sociologia da educação e os estudos antirracistas. Realizou-se, através de observações e entrevistas semiestruturadas com estudantes e docentes antes, durante e após o período de ocupação. Percebe-se que apesar das dificuldades, como perseguições à docentes e estudantes que participaram e apoiaram o movimento, o processo de ocupação contribuiu para a constituição de saberes fundamentais para a construção de um pensamento democrático, antirracista e feminista na instituição.

Palavras-chave: Estudantes secundaristas; Ensino Médio; Antirracismo; Ocupações de escolas; Movimento estudantil

ABSTRACT

This work presents ethnographic data from a doctoral research conducted in a public school in the north area of the city of São Paulo. In the researched reality, black girls played an important role in the organization and maintenance of the occupation movement that occurred at the end of 2015. In this article, we intend to show how the presence of black culture in the school curriculum of a High School institution, along with other policies for valuing and recognizing this culture, may have contributed to the articulation of these young in the decision about the movement. The occupation took place in the midst of a greater movement in the state of São Paulo in 2015, with the main objectives: a) resisting the reform of High School announced by the São Paulo State Department of Education and b) claiming a more democratic school, that recognizes the differences and enables the participation of young in decision-making processes. The research conducted in this school unit is based on the studies of sociology of education and anti-racist studies. It was carried out through observations and semi-structured interviews with students and teachers before, during and after the occupation period. It is noticed that despite the difficulties, such as persecutions of teachers and students who participated in the movement, the occupation process contributed to the constitution of fundamental knowledge for the construction of a democratic, anti-racist and feminist thought in the institution.

Keywords: High school students. High Shool. Anti-racism; Schools’ occupations. Students’ movement

Introdução

O Ensino Médio foi definido como etapa final da Educação Básica brasileira desde a Constituição Federal de 1988. Entretanto, foi ao final dos anos de 1990 e início do século XXI que se vislumbrou um avanço significativo na expansão de sua oferta (CORTI, 2016). Importante ressaltar que nesse período essa expansão se deu majoritariamente através da rede pública estadual.

Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar) de 2004 a 2014 apontam que durante essa década houve uma maior presença e possibilidade de permanência das(os) jovens na escola, considerando a população brasileira que estava entre 15 e 29 anos de idade. Tais condições se efetivaram em razão de uma articulação de políticas públicas e sociais do governo federal, tais como a ampliação da oferta formal de emprego, a valorização do salário mínimo e o maior acesso da população a programas sociais como o Bolsa Família. Entretanto, como destacado por Spósito, Souza e Silva (2018), encontramos uma grande desigualdade nos percursos escolares e nos níveis de escolarização que esses diferentes sujeitos alcançaram.

No referido período, apenas 67,2% das(os) jovens entre 15 e 17 anos estavam no Ensino Médio. Nesse grupo, houve um aumento em 10,6% da presença de jovens pertencentes às famílias que estão entre os 20% mais pobres da população brasileira. As dificuldades para a permanência no sistema de ensino seguem articuladas à urgência do trabalho: em 2014, 16,3% das(os) jovens desse grupo precisavam articular estudo e trabalho e 5,7% deles apenas trabalhava. Metade desse grupo (50,4%) trabalhava sem vínculos formais e 36,9% tinham uma jornada igual ou superior a 40h/semana de trabalho.

Assim, o Ensino Médio segue sendo palco de “desigualdades persistentes”, ou seja, a ampliação do alunado ao longo das últimas décadas, mesmo com certa regularização de fluxo escolar, foi acompanhada pela manutenção da estratificação educacional. Para Spósito, Souza e Silva (2018), isso se deu pelas marcas das desigualdades sociais, como explicitado, mas também raciais e de gênero. Quanto ao gênero, as mulheres foram as principais beneficiárias do lento avanço na democratização das oportunidades educacionais. Quanto à raça, se para jovens brancos e amarelos a maior dificuldade é ingressar no ensino superior, para as(os) jovens negras(os) e indígenas, o principal obstáculo em sua escolarização segue sendo a finalização da Educação Básica. (SENKEVICS; CARVALHO, 2020).

No período de 2016 a 2018, podemos verificar um crescimento do acesso à educação pela população negra, no entanto, em taxas ainda muito inferiores às da população branca. Nesse mesmo período, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), houve uma diminuição na proporção de pessoas pretas e pardas que estavam em descompasso entre idade e série. A conclusão do Ensino Médio entre os jovens de 20 a 22 anos havia aumentado entre negros (58,1%), mas ainda se mantinha inferior à da população branca (76,8%) nessa mesma faixa etária. Entretanto, já haviam indícios, no ano de 2018, do retrocesso que estamos vivendo em relação à escolarização das e dos jovens em nosso país e que se agravam no quadro da severa crise sanitária pela qual passamos. Sobre ela, diferentes autores apontam para o aprofundamento das desigualdades social e econômica brasileiras nesse momento de pandemia (NERI, 2020; CADÓ; BORSARI, 2020).

Em especial, no que se refere à temática racial, é possível afirmarmos que o processo de aproximação do Estado brasileiro às demandas e anseios dessa população, que vinha ocorrendo desde os anos de 1990, com maior força na primeira década desse século, está sob forte ameaça (ZAN; KRAWCZYK, 2020; LIMA, 2010). Em artigo recente, Lima (2020) destaca que as várias medidas das políticas públicas desde então, embora não tenham reduzido de forma imediata as desigualdades, criaram um espaço importante na esfera do governo federal para ações voltadas à desigualdade racial. Segundo a autora, com a eleição do governo federal e dos legislativos federal e estadual, a pauta racial não saiu da pauta do governo, entretanto ela se faz presente agora de forma regressiva e comprometida com a desconstrução dos poucos avanços e do recrudescimento da exclusão e marginalização desses sujeitos.

De certo modo, podemos afirmar que no momento da realização da pesquisa que deu origem a este texto, as e os jovens estudantes do Ensino Médio entenderam que o processo recentemente conquistado de lenta e gradual democratização do sistema educacional estava em risco, o que culminou nas ocupações das escolas em São Paulo

O contexto das ocupações no estado de São Paulo

Em 2015, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEE/SP) apresentava dados sobre uma perda, no período de 1998 a 2015, de 2 milhões de estudantes na rede pública do estado. Ao mesmo tempo, divulgava dados do ano anterior em que estabelecia uma relação direta entre a melhoria do desempenho de estudantes (cerca de 9,4% acima da média) e a oferta de ciclo único nas escolas, ou seja, escolas exclusivas para o Ensino Fundamental e outras que atendiam somente estudantes do Ensino Médio. Estava então montada a argumentação que, na visão da secretaria, justificava a proposta de reforma apresentada. O projeto incluía o fechamento de escolas no estado e transferência de 311 mil estudantes; muitos deles passariam a frequentar instituições distantes até 1,5 km de sua residência.

Para Girotto (2017), a SEE/SP desconsiderou em seu diagnóstico que uma parte considerável das escolas que eram indicadas para serem fechadas em 2015 eram definidas como escolas de passagem, ou seja, não atendiam a jovens moradores de seu entorno, mas a muitos que vinham trabalhar na região da instituição em que estavam matriculados. Nesse sentido, segundo o autor, não se pode avaliar a partir de índice de natalidade da região as escolas que poderiam ou não serem fechadas. A reforma proposta pelo estado de São Paulo, de certo modo, se alinha a um projeto em curso há alguns anos, de influência da lógica gerencial e tecnicista da educação nacional e paulista.

Naquele mesmo ano de 2015, o sindicato de professores da rede pública de São Paulo, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP), denunciou que no início do ano letivo, 3.323 classes foram fechadas, o que levou à demissão de professores e à superlotação de classes. Nesse ano, houve uma longa greve de professores na rede e a maior evasão de profissionais: cerca de 26.000 docentes, entre efetivos(as) e temporários(as), abandonaram a rede estadual de ensino. Foi nesse contexto que eclodiu o movimento de ocupações, com repercussão nacional (CORTI; CORROCHANO; SILVA, 2016).

O movimento que começou ainda nas redes sociais, explodiu em mobilização também nas ruas e nas escolas. No dia 10 de novembro, a primeira escola foi ocupada e logo chegou-se ao total de 213 escolas públicas ocupadas em todo o estado (JANUÁRIO et al., 2016).

O movimento iniciado em São Paulo e que posteriormente se expandiu por diferentes partes do país, de certo modo expressava a resistência a um projeto conservador que se apresentava para o Ensino Médio. As disputas quanto ao projeto para esse nível de ensino estão postas há alguns anos, mas foi no contexto do recrudescimento político vivido desde o golpe de 2016 que um “discurso empoeirado” (SILVA, 2018) de concepção técnica e instrumental do currículo tem se fortalecido, o que certamente foi percebido pelos jovens estudantes que passaram a reagir. O documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) no final de 2019 indica uma redução do tempo e do conteúdo da formação geral e a flexibilização na forma de oferta desse nível de ensino, como aspectos centrais da proposta atual. Estamos diante de um embate que é histórico e que neste momento em que se fortalecem projetos conservadores para a o país e a educação (ZAN; KRAWCZYK, 2019), as orientações curriculares se articulam aos interesses de uma formação pragmática, técnica e profissional, muito distante do projeto de formação humana explicitado no texto constitucional e reivindicada pelos estudantes durante o movimento das ocupações.

Para Groppo (2018, p. 110), é importante compreender o movimento das ocupações no contexto de lutas sociais e mobilizações mais amplas que vinham ocorrendo no país desde 2012/2013. Segundo o autor, o movimento das ocupações das escolas lembra o movimento estudantil classicamente abordado nas ciências sociais, por tratar de questões mais amplas da vida social e política de nosso país, ao mesmo tempo que se distancia dele, “...já que não se organizou e se efetivou desde as entidades estudantis formalizadas...”, exceto pela presença de um grêmio estudantil ou por apoiar um diretório central de estudantes.

Nesse contexto de lutas mais amplas é que também compreendemos a aprovação da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) . Esse fato contribuiu para a ampliação da crítica ao currículo centrado em conhecimentos eurocêntricos. Segundo Régis e Basílio (2018), ao estudar um conjunto de teses e dissertações produzidas sobre o tema da implementação da Lei, é possível constatar que ainda há muitas dificuldades para que nas escolas se realize, com propriedade, o ensino da História e Cultura Africanas. Entretanto, os estudos apontam para uma intensificação de ações e projetos nas escolas com o objetivo de concretização dessa política.

Mesmo com o crescimento dos estudos sobre educação das relações étnico-raciais e de gênero na escola nos últimos anos (SILVA, 2018; AUAD, 2004), há de se considerar que a democratização das relações no ambiente escolar requer, como primeiro passo, conhecê-lo. A escola pública brasileira ainda não é conhecida, principalmente naquilo que concerne ao seu cotidiano, marcado por complexas relações de poder, que muitas vezes fogem da compreensão de seus(suas) atores e deixam de ser evidenciadas por meio de múltiplos silenciamentos que ocorrem no interior de um processo de negação e não reconhecimento de determinados sujeitos como pertencentes àquele espaço (AUAD, 2004; CAVALLEIRO, 2000).

Ao mesmo tempo, torna-se necessário considerar aquilo que a pesquisadora Maria Victória Benevides chamou a atenção durante palestra de abertura em um evento sobre Educação em Direitos Humanos na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, no ano 2000. Segundo Auad (2003), Benevides enfatiza que uma escola não se apresenta como democrática sem que suas práticas cotidianas sejam democráticas. Esse fato revela uma diferença central entre uma educação democrática e uma educação para a democracia: enquanto a primeira abrange regras e discursos democráticos, a segunda está preocupada em promover a democracia em suas relações cotidianas, perspectiva sem a qual não é possível atingir uma educação livre de discriminações raciais, de gênero e de classe.

O debate sobre a escola democrática não deve desconsiderar o modo como os(as) jovens se relacionam com ela. Se por um lado, as diversas apropriações teórico-metodológicas sobre a juventude têm permitido um olhar mais amplo tanto sobre o seu próprio conceito quanto sobre a sua relação com o cotidiano escolar, por outro, a juventude tem sido cada vez mais percebida como uma categoria que age por meio de uma inter-relação com diversas categorias identitárias (CASTRO, 2004; SANTOS, G.; SANTOS, M.; BORGES, 2011; CORSINO, 2019).

As fontes da pesquisa

Para este estudo foi utilizada a metodologia da pesquisa etnográfica. Os dados deste trabalho são resultados parciais de uma pesquisa de doutorado (CORSINO, 2019) realizada no ano de 2015 em duas escolas de Ensino Médio na zona norte da cidade de São Paulo, que contou com um total de 20 entrevistas com estudantes e 7 com docentes.

Para o desenvolvimento do presente artigo, foi escolhida uma das escolas, a que passou por um processo de ocupação ao final do ano letivo, e os resultados foram construídos por meio de análise das entrevistas realizadas com 2 professoras que participaram e contribuíram com as atividades da ocupação e com 3 estudantes secundaristas, além das observações anotadas em diário de campo. Tanto as entrevistas quanto as observações foram utilizadas como fonte para a análise dos dados.

No primeiro momento, foi realizada uma releitura do diário de campo e das entrevistas, com foco no processo de ocupação, com o objetivo de definir quais dados seriam mais relevantes para este estudo, seguido de um olhar direcionado pela fundamentação teórica. Posteriormente, foi possível relembrar detalhes e perceber aspectos importantes que não chamaram a atenção no primeiro momento, o que permitiu cruzar os dados e perceber as semelhanças entre eventos que não haviam sido identificados (BEAUD; WEBER, 2007).

Cumpre destacar que os(as) participantes da pesquisa foram preservados e no momento das entrevistas e nas transcrições do diário de campo eles(as) foram orientados(as) a escolher um nome fictício. Para este artigo, foram escolhidas as entrevistas das professoras Bah e Antonieta e dos(as) estudantes Reginaldo, Gustavo e Laís.

Bah é professora de Artes, uma mulher branca, com trinta anos de idade, heterossexual. Apesar de ela não ter sido entrevistada durante o período de observação das aulas, foi convidada para falar no período posterior à ocupação, por ter contribuído ativamente com as atividades realizadas pelo(as) estudantes. Bah leciona no turno da tarde e as observações durante o ano letivo eram realizadas de manhã, período em que se concentravam as turmas de Ensino Médio.

Antonieta é uma professora de vinte e nove anos de idade, trabalha há pouco mais de quatro anos, é formada em Sociologia, não possui pós-graduação, mas realizou intercâmbio em uma universidade espanhola durante a graduação, já tentou e continua concorrendo vaga para realizar o curso de mestrado em Educação. Heterossexual, é frequentadora da religião de Umbanda e foi escolhida para participar da pesquisa devido à frequência enorme de comentários dos/as estudantes, que sempre faziam questão de exaltar suas aulas e apontar que gostavam da forma como eram conduzidas. Antonieta se identifica como mulher negra e ressalta que o reconhecimento enquanto mulher negra é um processo difícil, mas que sua família a ajudou bastante, em especial seu avô, que era militante do movimento negro em uma cidade no interior de São Paulo.

Quanto aos(às) discentes, Laís é uma menina lésbica de dezessete anos, que se identifica como negra, de cor parda. Reginaldo é um jovem de dezesseis anos heterossexual que se identifica como branco. Gustavo é um jovem de quinze anos heterossexual que se identifica como negro. Seus relatos foram escolhidos para compor o presente texto, pois suas contribuições foram importantes para a análise do cotidiano da ocupação e suas entrevistas se deram de forma “aprofundadas” (BEAUD; WEBER, 2007).

Para a escolha das entrevistas, Beaud e Weber (2007) mostram que o(a) pesquisador(a) precisa se atentar a três tipos usuais. As “informativas” são rasas, os(as) informantes falam em primeira pessoa e geralmente abordam apenas pontos de vista das instituições onde trabalham ou estudam, estas são as que mais podem ser descartadas. Nas entrevistas mais “pessoais”, o(a) entrevistado(a) não se soltou muito e fala mais em seu próprio nome. As “aprofundadas” são as que mais parecem ter importância e são fundamentais para a pesquisa, elas podem ser longas ou curtas e devem ser transcritas integralmente para posterior análise.

Nesse sentido, selecionou-se as entrevistas que mais se aproximaram daquilo que Beaud e Weber (2007) definiram como “aprofundadas”, considerando sua relevância para a abordagem do processo de ocupação na escola investigada e sua relação com o cotidiano dos(as) jovens secundaristas na instituição.

Os dados coletados, tanto em entrevista quanto em observação, foram exaustivamente lidos e analisados. Esse processo, segundo Gil (2010), é importante para que o(a)pesquisador(a) possa se familiarizar com o material. Durante a análise, os dados foram cruzados, comparados e confrontados, fato que enriqueceu os resultados esperados para uma análise interseccional em pesquisa etnográfica (CAVALLEIRO, 2013).

Educação e relações étnico-raciais e de gênero na escola 2

Durante as observações realizadas desde fevereiro do ano letivo de 2015, foi possível perceber que o trabalho pedagógico da professora Antonieta, sobretudo no que diz respeito à Educação para as Relações Étnico-Raciais e de gênero, tomava lugar de destaque (CORSINO, 2019).

A professora de sociologia era conhecida na escola pelo seu envolvimento e pelo modo como abordava os conteúdos rumo à implementação do ensino da cultura afro-brasileira em suas turmas de Ensino Médio. O trabalho da professora supera aquilo que é conhecido como “currículo turista” (SANTOMÉ, 1998) ou “micareta racial” (ALMEIDA, 2020), isto é, atividades que são desenvolvidas apenas no dia da consciência negra de forma superficial.

Ao contrário do que foi observado no trabalho desenvolvido na maioria dos componentes curriculares da escola durante o ano letivo, o trabalho pedagógico da professora Antonieta ocupava um lugar de resistência e de diálogo com as(os) jovens estudantes e comunidade. Estudantes que eram reconhecidos como péssimas(os) alunas(os) diziam adorar a aula de sociologia, uma das únicas que faziam questão de entrar e participar de modo ativo.

Durante conversa com estudantes, eles(as) relataram que a escola elegeu três dias e meio para atividades relacionadas à semana da consciência negra. A professora Antonieta foi a grande responsável pela organização do evento. Na entrevista concedida durante a pesquisa de campo, ela ressalta a importância de uma atividade como a que foi desenvolvida na escola. Para a professora, houve grande participação das(os) estudantes, que tiveram uma grande oportunidade de refletir sobre a questão racial e de gênero durante as atividades do evento

Então assim, a semana foi incrível, é, foi toda estruturada com ele, né? A única coisa que eu fiz foi ficar na hora do intervalo, porque as oficinas, a Gisele deu oficina de, da boneca Abayomi, tinha oficina de turbante, tinha uma roda de conversa sobre estética, tinha uma roda de discussão sobre genocídio da juventude negra, onde a gente analisava algumas letras de rap, principalmente do Racionais e Facção Central, e tinha ah, e eles queriam porque queriam falar a questão da religião, eles queriam falar sobre intolerância religiosa, então funcionou, é, foram quatro dias né? Três dias e meio, acho que foram três dias, cada dia tinha as suas oficinas, uma na parte da manhã, uma antes do intervalo e outra depois. E eles poderiam se inscrever nessas oficinas, né?. (Trecho da entrevista com a professora Antonieta para a tese de doutorado de CORSINO, 2019).

Em um momento durante a observação, percebeu-se que haviam poucos(as) docentes ajudando a organizar o pátio e as salas de aula, enquanto uma grande parte estava na sala dos(as) professores(as) conversando. Alguns(mas) professores(as) que participaram da organização estavam dialogando e então, após aproximação do pesquisador, elas(es) falaram que na escola “a Antonieta é a professora que puxa as coisas, faz atividades diferenciadas, organiza as atividades”, referindo-se tanto às aulas durante o ano letivo quanto às atividades específicas como a semana da consciência negra.

Pelo que eles(as) estavam conversando, foi possível compreender que apenas três professores(as) organizavam tudo, os(as) outros(as) não se envolviam, como foi possível constatar na sala dos(as) professores(as), onde permaneceram sentados(as) conversando sobre assuntos pessoais durante a organização das salas para o evento. Conforme descrito pela professora Antonieta:

[...] eram cinco professores tomando conta dos alunos enquanto os outros ficavam literalmente na sala dos professores, me desculpa, mas é uma coisa que me revolta. Eles não tiveram nem a capacidade de subir pra ver o que estava acontecendo. Quando eu desci na sala dos professores eles estavam vendo lingerie. A escola toda mobilizada na semana da consciência negra, os alunos com uma discussão política, social, econômica, tomando uma consciência, além de consciência de classe, uma consciência racial, as meninas se posicionando em relação a questão de gênero, e aí o resto dos professores lá embaixo vendo lingerie ou sei lá o que. Então pra mim foi absurdo. (Trecho da entrevista com a professora Antonieta para a tese de doutorado de CORSINO, 2019).

A professora Antonieta questiona a postura dos(as) professores(as) que não participaram da organização nem antes e nem depois do evento. Esse fato reforça a ideia corrente de que história e cultura afro-brasileira tem sido abordada no interior da escola apenas por aqueles(as) professores(as) que já possuem alguma familiaridade com o tema ou que o fazem por militância, o que nos parece importante, mas que não deveria ser a única motivação. Já aqueles(as) que não possuem nenhuma aproximação com o tema, não se veem em condições ou até mesmo sequer conhecem a necessidade de abordagem desse tema e muitas vezes acham que apenas as disciplinas de história e sociologia devem abordá-lo.

Dentre as atividades realizadas no primeiro dia que ocorriam de forma simultânea nas salas de aula, aconteceram sessões de cine debates, com apresentação de um filme e documentários como: “Vista a minha pele”, “Por uma outra globalização”, “A que horas ela volta?” e outros. Chamou a atenção do pesquisador o fato de que estava presente em uma das salas de aula uma média de 40 jovens com uma maioria de meninas negras, o número máximo de vagas divulgado anteriormente nos cartazes espalhados pela escola.

Em contraste com o cotidiano das aulas de variadas disciplinas observadas durante o ano letivo - nas quais o número de estudantes em cada aula variava entre 8 e 15 e apresentavam-se desestimulados(as) diante das atividades propostas -, as aulas de Sociologia eram marcadas pela presença de um maior número de estudantes, que entravam com disposição para participação da mesma. No entanto, foi possível observar que a semana da consciência negra se deu de forma ainda mais proveitosa, do ponto de vista de participação quantitativa e qualitativa das(os) jovens do que todo o período letivo.

A adesão à atividade foi impressionante, tanto naquilo que se refere à quantidade de estudantes presentes, quanto na participação entusiasmada nos momentos debatendo sobre os documentários e filmes. As(os) estudantes pareciam empolgadas(os), não estavam ali por nota ou obrigação, como demonstravam durante suas presenças nas aulas regulares, e durante os debates faziam relação com o que estudaram nas aulas de Sociologia.

Após as produções fílmicas, os(as) docentes que mediavam os debates faziam questionamentos para que as(os) estudantes passassem a refletir e estabelecer relações entre o conteúdo dos vídeos e o cotidiano delas(es). Outro ponto que chamou a atenção foi o fato de que a diretora da escola estava presente em uma das atividades, ela gostou de um documentário sobre a questões raciais e disse aos/às docentes que estavam presentes (Geografia, Sociologia e Filosofia) que eles(as) deveriam aproveitar que esse debate foi iniciado e no próximo ano trabalharem a questão da identidade.

Prontamente, a professora Antonieta respondeu: “Na verdade esse é um trabalho que eu faço todos os anos, desde que eu cheguei nessa escola”, demonstrando que faltava à diretora conhecimento sobre como o trabalho estava sendo desenvolvido naquela escola, ou pelo menos na disciplina de Sociologia. Ela não respondeu à provocação e pareceu concordar com a observação feita pela professora.

Apesar da variação de temas nos documentários, como intolerância religiosa, pobreza e outros, percebeu-se que o foco estava nas discussões sobre a estética da população negra combinada com o empoderamento feminino. Suscitados principalmente por documentários como “Vista minha pele” (2004) e “Espelho, espelho meu” (2013), eram temas que insistiam em aparecer durante os debates, que atravessavam a questão das identidades, e sobre os quais não faltavam exemplos de situações envolvendo as(os) jovens estudantes. Tanto na escola quanto fora dela, suas experiências racializadas surgiam em todos os momentos como um grito de socorro.

Houve, também, um teatro e um concurso de beleza afro. Este último foi um momento muito interessante que possibilitou a reflexão sobre a estética afro-brasileira, além de permitir às(aos) estudantes negras(os) que pudessem estabelecer relação entre sua própria estética e o que é considerado belo em nossa sociedade. Trata-se de um importante momento de empoderamento dos jovens negras(os) na escola, que contribuiu para o processo de construção de uma identidade positiva.

Os eventos citados revelaram a escola como um local em que as variações sobre a beleza negra emergiam; muitas meninas assumiam o cabelo crespo, por exemplo, e isso, muitas vezes, soava como um insulto, como se elas fossem “abusadas” em assumir seu cabelo e mostrar para todas(os) a sua beleza. As atividades realizadas nestes três dias confrontavam uma ordem estabelecida, confrontavam um padrão de beleza socialmente aceito atualmente.

Durante o ano letivo nessa escola, percebeu-se que a presença corporal dos(as)estudantes, a presença preta, a pobre, a feminina, a que desvia de uma ordem heteronormativa, incomodava. Essa presença, por si só, era resistência, resistência a uma forma institucionalizada de racismo, sexismo, homo-lesbo-transfobia e, portanto, uma estética pautada numa perspectiva de descolonização dos espaços escolares.

A ocupação como resposta às relações cotidianas de opressão

Após alguns dias do término do evento da consciência negra, a escola foi ocupada e a pesquisa de campo teve continuação no interior da ocupação. Após conversar com alguns(mas) estudantes, combinou-se um dia para a realização de uma roda de conversa em que foram debatidos quatro temas principais: racismo, violência contra a mulher, homossexualidade e redução da maioridade penal. No entanto, neste trabalho, elegeu-se tratar dos debates sobre a questão racial e de gênero, com ênfase naquilo que eles vivenciavam no cotidiano escolar.

É importante ressaltar que tratava-se de um momento extremamente complexo, havia uma tensão muito grande no ambiente, pois ao mesmo tempo que realizava-se o debate, era preciso ficar atento às demandas esperadas e inesperadas como, por exemplo, a chegada repentina de policiais que transitavam no entorno da escola, moradores(as) contrários(as) à ocupação que apareciam para tentar quebrar os cadeados e/ou até mesmo os(as) colegas e estudantes que chegavam e saíam a todo o momento para fazer os revezamentos .

Em meio ao clima de tensão que tomava conta do ambiente, a atividade foi iniciada com a apresentação do documentário “Cores e botas (2010)”. Tratou-se de uma estratégia para introduzir a temática racial e de gênero e, assim, despertar o interesse de participação das(os) jovens. Então, perguntou-se o que elas(es) entenderam sobre o documentário e, sem dificuldades, um jovem prontamente se posicionou:

éhh, eu percebi nesse vídeo sobre o racismo né, porque é uma criança negra e muito fã da Xuxa, eu percebi e eu acho que o sonho dela é ser paquita né, ela foi fazer um teste na escola e só tinha ela, ela era uma negra e todos os brancos passaram, menos ela, o que eu entendi foi isso (Reginaldo, branco, heterossexual, 16 anos).

O debate sobre o documentário prosseguiu sem posições contraditórias, todas(os) elas(es) concordaram com a ideia de que o objetivo central do vídeo era mostrar uma situação em que uma criança estava sendo vítima de racismo na escola, que, por sua vez, mantinha um padrão feminino europeu na escolha das atividades.

Em seguida, passou-se a conversar sobre a África; elas(es) foram questionados sobre o que sabem sobre esse continente e se a escola trabalhava a temática durante as aulas. De modo geral, o debate demonstrou que elas(es) a percebem como um lugar precário, pois todas(os) corroboram com a ideia de que o que elas(es) sabem sobre a África é apenas que se trata de um lugar em que falta moradia, alimentação, saúde, ou seja, o continente é tido como um lugar em que impera a miséria, a fome e a morte. Elas(os) apontam, em tom crítico, o fato de não estudarem a África enquanto conteúdo escolar, demonstrando que a escola é um ambiente em que a tensão e as disputas curriculares ocorrem constantemente e, neste caso, uma disputa pelo ensino de história e cultura africana no currículo escolar

A África em si é um continente, pra mim é um lugar que as pessoas passam fome, na minha opinião, por ser negros acho que as pessoas não se importam deles estarem passando fome, com a situação que eles estão passando (Reginaldo, branco, heterossexual, 16 anos).

Do mesmo modo, quando questionados sobre o que a escola trabalha sobre a África, foi consenso de que não há uma abordagem sistematizada sobre a temática, parece que os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e africana esbarram na ideia usualmente disseminada nas mais diversas instâncias de socialização, como pelas mídias, por exemplo, de que se trata de um lugar precário. As falas das(os) estudantes revelam a percepção coletiva de que “eles [os(as)professores(as)] trabalham muito pouco” (Lilian, negra, heterossexual, 18 anos), como complementa um dos jovens secundaristas

São coisas, tipo, geralmente óbvias, que é a situação precária e a dificuldade de acesso, várias coisas tio, muito gerais [...] Eles não têm uma estrutura, eles não têm uma estrutura exata de conhecimento sobre a África (Gustavo, negro, heterossexual, 15 anos).

Ao desconsiderar as identidades inseridas no cotidiano escolar, a escola age por meio de um padrão em que predomina uma supremacia branca, o que incorre no tratamento preconceituoso e na ausência de conteúdos relacionados à história e cultura afro-brasileira, fatores que podem ser responsáveis por produzir alunas(os) desestimulados e diminuir as possibilidades de uma aprendizagem significativa (MUNANGA, 2015).

Quando passamos para o tema “racismo cotidiano”, todos(as)eles(as) foram enfáticos ao confirmar que o racismo está presente tanto nas relações sociais corriqueiras, como no interior da escola. Um dos aspectos os quais chamou a atenção diz respeito à dimensão corporal é, eu acho que tem relação, também tem a aparência e pra ser exato também pela cor também, ‘não gosto da cor preta, cor negra’, então várias pessoas racistas são racistas, acho que é mais pela cor (Reginaldo, branco, heterossexual, 16 anos).

Como ressalta a pesquisadora Gevanilda Santos e suas colaboradoras, para além de todas as dificuldades próprias da juventude, as(os) jovens negras(os) têm encontrado mais um tipo de dificuldade que é a discriminação cotidiana por vezes, mais acentuada na escola e no trabalho. Na competição por uma vaga de trabalho, por exemplo, as(os) jovens negras(os) ainda possuem uma desvantagem, que são as exigências por uma “boa aparência” ou “ter um bom currículo” (SANTOS G; SANTOS M.; BORGES, 2011). Ou seja, é possível afirmar que juventude, raça, classe e gênero agem como categorias conectadas, num processo que agrava a opressão sofrida pelos(as) jovens negros(as) de classe trabalhadora (KERGOAT, 2010).

Ao relatar depoimentos de pessoas entrevistadas em um salão de cabeleireiros em sua tese de doutorado, Gomes (2003) aponta que essas pessoas, na maioria das vezes, acabam citando a escola como um espaço negativo na construção de identidades negras, sendo a cor da pele e o cabelo crespo características que agem com grande potencialidade nesse processo e são considerados como marcadores identitários de inferioridade que afetam, sobretudo, as mulheres negras.

Ao corroborar com Auad e Corsino (2016; 2018), os relatos das(os) jovens secundaristas indicam que a percepção corporal é uma das formas pelas quais tanto o racismo como o sexismo usualmente se manifestam no cotidiano escolar, ou seja, trata-se daquilo que Raewyn Connel (2016) chamou de “corporificação social”. Para a autora, corporificação social é um processo coletivo e refletivo sobre como os corpos se envolvem nas dinâmicas sociais e como as dinâmicas sociais influenciam os corpos.

Ela chama a atenção para a colonização como uma forma peculiar de reconfiguração dos corpos nas periferias globais. Nessa perspectiva, o corpo deve ser percebido como um produto histórico, determinado pelas dinâmicas sociais. A corporificação social é tida como forma de configurar as relações sociais com base na expressão corporal, de modo que seja atravessada por opressões de gênero, raça e classe. A repercussão dessa forma de percepção das construções corporais com base nas relações sociais calcadas nos processos de colonização aparece no relato da jovem secundarista Laís

pra quem me conhece tipo faz tempo eu tinha o cabelo grandão, o meu cabelo era igualzinho o da Paulina, cheio e cacheado pra caramba, assim, as pessoas olhavam pra mim e falavam olha o cabelo duro, essas coisas tipo eu nem ligava, eu tava pouco me lixando, mas com o tempo aquilo se torna uma coisa chata, acaba se tornando, eles acham que foi uma brincadeira, acaba se tornando ofensivo, a pessoa acaba ficando meio que depressiva por causa dos apelidos constrangedores e se a gente fizer isso na sala de aula na frente de outras pessoas é muito mais constrangedor [...] (Laís, negra, 17 anos, lésbica).

Ter o corpo, especialmente a cor da pele e o cabelo, como referência na construção simbólica e institucional do racismo, é uma questão corriqueira no cotidiano escolar, tanto nas relações entre professores(as) e estudantes, como nas relações entre as(os) próprias(os) jovens. Gomes (2003) mostra que há espaços em que tanto o cabelo crespo como a cor da pele são ressignificados e se constituem como espaços de revalorização, tais como os movimentos sociais, salões étnicos e alguns contextos familiares.

Os relatos das(os) jovens, ao abordar o racismo cotidiano, evidenciam a ausência do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, o que revela, de certo modo, resultados da institucionalização do racismo, pois parece não haver ações coletivas para sua abordagem durante as aulas. Ao contrário, o trabalho acaba sendo concentrado em algumas professoras sensíveis ao tema, o que por um lado, produz grandes resultados, mas por outro, atinge apenas as turmas em que determinada professora atua. Para o jovem Gustavo, “[...] do horário da tarde são poucos professores que tratam desse assunto, já no horário da manhã como, por exemplo, eu, a Lilian já viu, o Wilson já vimos, já tivemos muitas palestras enfatizando com a Antonieta [...]”.

Parece que a professora Antonieta é conhecida pela sua representatividade nos temas relacionados à cultura afro-brasileira na escola. As(os) jovens fazem questão de mencioná-la como professora que aborda esse tema de modo recorrente, como insiste a jovem Lilian, ao se referir à professora como alguém que geralmente aborda essa questão durante as aulas: “é, sempre com a Antonieta”.

Considerações finais

A entrevista com a professora Antonieta revela que ela percebe a ocupação na escola como um grito de liberdade das(os) estudantes. Para ela, as(os) jovens estavam reivindicando um espaço que era delas(es), mas que a escola vinha negando de forma sistemática. Antonieta também chama a atenção para a tensão que se colocava durante o período de ocupação.

Sobre estudantes que, em sua maioria, eram menores de 18 anos (muitos de 14 a 16 anos de idade), assumiram um enorme desafio ao enfrentarem uma situação complexa em que a qualquer momento poderiam ser vítimas de professores(as) que eram contra o movimento, pessoas da comunidade e os próprios policiais, que estavam rondando a escola constantemente (CORSINO; ZAN, 2017).

A professora Antonieta relata que o fato de alguns(mas) docentes terem se posicionado favoravelmente ao movimento de ocupação foi determinante para que os(as) jovens estudantes se sentissem um pouco mais seguros(as) com a situação. Ela entende que um dos grandes motivos pelos quais ocorreu a ocupação foi o fato de que os(as) estudantes não tinham seu espaço garantido na escola. Para ela, a autonomia das(os) estudantes era negada constantemente nas relações cotidianas daquela escola e com a ocupação elas(es) puderem mostrar o contrário. Nesse sentido, Antonieta mostra que o objetivo da ocupação estava além do questionamento sobre a política de “Reorganização Escolar” proposta do governador do Estado de São Paulo naquele momento.

É importante ressaltar que as(os) estudantes que estavam participando daquele movimento são exatamente aquelas(es) que eram marcados por não querer estudar, faltar muito, não fazer as atividades, possuir notas ruins, terem reprovado um ou mais anos, e até mesmo estudantes evadidos(as) que retornaram àquele espaço especialmente para contribuir com o processo de ocupação. Somado a isso, há o fato de que a maioria das(os) estudantes participantes daquele movimento eram meninos e meninas negras, meninas lésbicas, bissexuais, todos e todas elas moradores(as) do morro, que certamente passavam por incontáveis momentos de discriminação por sua condição de classe, raça e gênero no cotidiano da escola e fora dela.

As(os) secundaristas eram conscientes de sua condição e dos processos de subalternização aos quais elas(es) estavam submetidas(os) tanto na escola, como na sociedade, de forma mais ampla. O que Antonieta e Bah não apontam explicitamente, mas que os resultados desta pesquisa indicam, é que dentre os motivos pelos quais algumas(uns) estudantes dessa escola resolveram realizar a ocupação, pode haver uma relação entre os processos sistemáticos de discriminação cotidiana e a negação do espaço escolar às(aos) jovens secundaristas.

1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

3A lei 10.639/03 torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas.

4A experiência dessa ocupação está registrada em Corsino e Zan (2017).

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Recebido: 21 de Julho de 2020; Aceito: 25 de Setembro de 2020

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