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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75674 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Saber docente e experiências com feminismos: reconfigurações curriculares insurgentes

Carmem Teresa Gabriel* 
http://orcid.org/0000-0001-9503-6740

Natália Rodrigues Mendes* 
http://orcid.org/0000-0001-5775-1604

* Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: carmenteresagabriel@gmail.com E-mail: nataliagaati@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo tem por objetivo explorar os processos de objetivação e de subjetivação dos/nos currículos escolares, na interface com temáticas produzidas nos campos discursivos dos feminismos que tendem a deslocar e ampliar o horizonte democrático no campo educacional. Assume a postura epistêmica pós-fundacional e investe nas categorias “saber docente”, “sujeito biográfico”, “conhecimento disciplinarizado”, com o propósito de compreender em meio às estratégias mobilizadas no “currículo nosso de cada dia” os efeitos de deslocamento na interface currículo-conhecimento. Dialoga com as contribuições teóricas dos estudos da diferença e dos estudos biográficos, para produção de uma leitura política de currículo que permita desestabilizar sentidos historicamente hegemonizados no campo educacional da ideia de “sujeito autônomo racional”, bem como problematizar o entendimento do termo objetividade marcado por concepções metafísicas de “neutralidade” e “verdade”. Como campo empírico, o artigo explora fragmentos da narrativa produzida por um professor de Sociologia do ensino médio cujas propostas curriculares estão fortemente atravessadas pela questão da diferença. A análise apontou um movimento permanente de reformulação de repertórios de planejamentos de aula com propósito de responder às interpelações que emergem em meio ao processo de ensino-aprendizagem na relação com os estudantes, deslocando contingencialmente o entendimento sobre os conhecimentos legitimados a serem ensinados em sua disciplina.

Palavras-chave: Currículo; Feminismos; Saber docente; Sujeito biográfico; Pós-fundacionismo

ABSTRACT

This article aims to explore the objectification and subjectification processes of /in school curricula in the interface with themes produced in the discourse fields of feminisms that tend to displace and broaden the democratic horizon in the educational field. It assumes the post-foundational epistemic stance and invests in the categories 'teaching knowledge', 'biographical subject', 'disciplined knowledge' in order to understand, in the midst of the strategies mobilized in the 'our daily curriculum', the effects of displacement in the curriculum-knowledge interface. It dialogues with the theoretical contributions of difference studies and biographical studies to produce a political reading of the curriculum that allows destabilizing historically hegemonized meanings in the educational field of the idea of 'rational autonomous subject', as well as problematizing the understanding of the term objectivity marked by conceptions metaphysics of 'neutrality' and 'truth'. As an empirical field, the article explores fragments of the narrative produced by a high school sociology professor whose curricular proposals are strongly crossed by the issue of difference. The analysis pointed, a permanent movement of reformulation of repertoires of lesson plans with the purpose of responding to the questions that emerge in the process of teaching-learning in the relationship with students, contingently displacing the understanding about the legitimate knowledge to be taught in his school discipline.

Keywords: Curriculum; Feminisms; Teaching knowledge; Biographical subject; Post-foundationalism

O mundo que os conservadores querem destruir, o mundo gay e lésbico, o mundo trans, o mundo feminista, já é muito poderoso. Eles não têm nenhuma chance de destruí-lo. E eles realmente sabem que não apenas é muito poderoso, como está se tornando mais poderoso, está se tornando mais aceito, e quanto mais aceito é, com mais raiva eles ficam. Mas o que vemos agora, nesse conservadorismo sexual contemporâneo, ou o que podemos entender como política sexual reacionária, é um esforço para nos levar de volta a um mundo que nunca mais voltará. E é nisso que eu acredito. Então não devemos nos preocupar com a reversão de todos os nossos passos. Eles estão tentando, mas eles não vão vencer... (JUDITH BUTLER, 2017).

Este artigo se inscreve no conjunto de estudos do campo do currículo que dialogam com as questões da diferença e tem como foco a interface com processos de objetivação- processos de subjetivação. Partimos do entendimento de que esses processos não se apresentam isolados, “mas operam como vasos comunicantes sendo, pois, movimentos concomitantes desencadeados contingencialmente em função de contextos específicos nos quais são mobilizados” (GABRIEL, 2018, p. 5). Como procuraremos deixar claro ao longo de nossa argumentação, a postura epistêmica aqui assumida traduz o diálogo com as teorizações pós-fundacionais (MARCHART, 2009; RETAMOZO, 2009, LACLAU; MOUFFE, 2004). Em particular, com o que elas contribuem para continuarmos pensando politicamente o currículo.

A porta escolhida para entrarmos nesse debate consiste no investimento teórico para a compreensão de categorias como “sujeito” e “conhecimento disciplinarizado” (GABRIEL; FERREIRA, 2012), bem como o que elas permitem analisar sobre as formas de habitar e produzir currículo do lugar da docência. Neste texto, nossa proposta é refletir sobre essas categorias a partir de um recorte temático específico.

Trata-se do que o antropólogo Sérgio Carrara classificou como “conflituoso processo de cidadanização de diferentes sujeitos sociais, cujas identidades articulam-se, seja na linguagem do gênero , seja na da sexualidade ou orientação sexual.” (CARRARA, 2015, p. 324). O autor se refere ao movimento de lutas por direitos civis e proteção social empreendidas pelos ativismos LGBTQIA+ e pelos campos discursivos de ação dos feminismos plurais (ALVAREZ, 2014) e a incorporação de suas demandas pelos Estados Nacionais. Esse recorte não foi aleatório.

As questões que envolvem a interface currículo-demandas de diferença, em particular as que são formuladas no âmbito de movimentos sociais - tais como esses de que nos fala Carrara (2015) -, vêm sendo estudadas no campo curricular, de forma recorrente, há mais de duas décadas. Mais recentemente, na atual conjuntura política nacional, elas têm ocupado um lugar de destaque nos debates políticos e curriculares, redimensionando as relações de força entre os grupos de interesse diretamente envolvidos nessas lutas.

Com efeito, nos últimos anos temos testemunhado uma forte reação conservadora às sucessivas conquistas, no campo educacional, dessas chamadas minorias. Referimo-nos, por exemplo, à retirada, em 2014, dos trechos sobre “gênero”, “sexualidade” e “orientação sexual” do texto final do Plano Nacional de Educação (PNE) (CARRARA, 2015). Sem dúvida, entre os diferentes braços de atuação dessas forças conservadoras, o ataque sistemático à profissão docente, os esforços em desqualificar a ciência, equiparando conhecimento à opinião, além das constantes tentativas de silenciar o debate sobre gênero e sexualidade nos currículos, revelam o lugar politicamente estratégico da docência, do conhecimento científico e do currículo nas disputas travadas em nossa contemporaneidade. Como afirma Paraíso (2019) ao fazer referência ao combate de certos grupos de interesse atualmente no poder à ciência:

O programa reacionário em curso manipula informações, faz desacreditar nos dados e nas teorias, desqualifica temas, espalha fake news. Com esses procedimentos, busca fechar o processo de significação. Trata-se de um investimento feito para que suas opiniões, suas notícias falsas, suas mentiras e seus achismos sejam recebidos e multiplicados como verdadeiros (PARAÍSO, 2019, p. 1420).

No entanto, e apesar dos investimentos que estes grupos conservadores vêm fazendo no sentido de controlar os conhecimentos que devem ser ensinados nas escolas, pesquisas recentes com professoras da educação básica (PARAÍSO, 2019) preocupadas com os processos de subjetivação e com a diferença vêm chamando a atenção para (re)composições curriculares fortemente ancoradas em “conhecimentos produzidos pelos estudos feministas, de gênero e queer nas últimas décadas” (PARAÍSO, 2019, p. 1417).

O que está em jogo nos debates em torno dessa temática é a disputa por sentidos de “democratização da educação” ou de “escola pública democrática”. Aceitando a provocação de Judith Butler (2017), quando entrevistada pelo canal do Youtube TV Boitempo, expressa na citação escolhida como epígrafe deste texto, entendemos que as demandas de diferença formuladas por esses movimentos sociais que interpelam a instituição escolar se inscrevem em um movimento irreversível e potente. Por mais que forças conservadores e retrógradas que participam dessas lutas, em nosso presente, tentem freá-lo, elas estão fadadas ao fracasso, reduzidas a ocupar o lugar de uma resistência inglória que cresce proporcionalmente ao fortalecimento político de outros coletivos até então considerados marginais e subalternos.

Resultado de lutas históricas e intensas, esse fortalecimento das chamadas “minorias” se faz hoje, segundo Butler (2017), pelo seu reconhecimento e pela sua aceitação cada vez mais ampliada e irrestrita por diferentes grupos sociais, produzindo efeitos de esgarçamento de uma normatividade, até época recente, hegemônica. As diferentes crises, entre elas a da "escola pública democrática" ou ainda "da educação democrática de qualidade", que marcam nossa contemporaneidade, podem ser assim lidas como a irrupção da contingência, isto é, da força do político, deixando exposto a olho nu a multiplicidade de significações possíveis e disponíveis na cena política atual. Afinal, em qual horizonte democrático inscrever qual interface currículo-diferença?

A postura epistêmica aqui assumida nos autoriza a pensar que não há uma única e definitiva resposta para esse questionamento. Sentidos de horizonte, democracia, currículo e diferença, não são dados previamente, tampouco fixados para todo o sempre. Eles são disputados por diferentes grupos de interesse que participam de seus processos de significação em contextos discursivos específicos. Interessa-nos, mais particularmente, focalizar como as lutas pela significação desses termos se configuram no contexto escolar; Que estratégias estão sendo mobilizadas por aqueles que habitam esses "currículos nossos de cada dia" do lugar da docência para o enfrentamento com essa questão.

Este texto vem, pois, somar-se a esses esforços, a partir da análise de processos de significação mobilizados na relação estabelecida com os conhecimentos disciplinarizados por docentes que atuam na educação básica. Como mencionado anteriormente, nossa entrada no debate se faz por meio do que Sônia Alvarez (2014) nomeia “campos discursivos de ação dos feminismos,” como substituto para a noção de “movimentos feministas”. Trata-se de uma nova linguagem conceitual e aparelho interpretativo para pensar sobre os feminismos no Brasil e na América Latina. Ler a produção dos feminismos a partir dessa chave nos permite olhar para estes campos discursivos para além das organizações estruturadas em torno de uma determinada finalidade, incorporando atoras/res coletivos e individuais, lugares políticos, culturais e sociais. Do ponto de vista da reflexão aqui proposta, essa perspectiva defendida por Alvarez é potente porque nos permite pensar a escola e os currículos escolares como imersos nestes campos discursivos, os de ação dos feminismos, não apenas no sentido de que os debates produzidos neles interpelam as escolas e os currículos escolares, mas também porque entendemos que recomposições curriculares que vêm acontecendo nas escolas, da mesma forma, interpelam esses campos discursivos.

Apostando na reflexão sobre os processos de “signifixação" dos currículos escolares, nossa intenção é, especificamente, pensar como temáticas produzidas nos campos discursivos dos feminismos vêm permitindo a docentes desenvolverem novos olhares sobre os conhecimentos fixados nos currículos em suas disciplinas, problematizando conhecimentos que elas identificam como marcados pela branquidade, pelo eurocentrismo e pela masculinidade, à luz desses debates.

Interessa-nos não apenas explorar os imponderáveis do cotidiano escolar, mas entender de que forma eles produzem efeitos sobre os processos de objetivação dos conhecimentos escolares legitimados como objeto de ensino-aprendizagem, produzindo assim deslocamentos no próprio sentido do que tem sido nomeado, no campo acadêmico, como “currículo escolar” e “saber docente”.

Para tal, selecionamos como campo empírico fragmentos da narrativa produzida por um professor de Sociologia do ensino médio cujas propostas curriculares estão fortemente assentadas em temáticas produzidas no campo discursivo dos feminismos. Foi possível perceber um movimento permanente de reformulação de repertórios de conhecimentos com o propósito de responder às interpelações que emergem em meio ao processo de ensino-aprendizagem na relação com os estudantes, suscitando um movimento permanente de reflexão sobre os conhecimentos legitimados a serem ensinados em sua disciplina.

Antes, porém, de passarmos a explorar empiricamente nossas apostas teóricas com o intuito de compreender como esse professor entrevistado responde ao que vai lhe acontecendo ao longo de sua trajetória profissional, no tocante aos seus planejamentos curriculares de forma a deslocarem e ampliarem o horizonte democrático no campo educacional, apresentaremos de forma sucinta o entendimento de “currículo”, “conhecimento e “sujeito”, buscando colocar em evidência a potencialidade analítica da categoria “saber docente” a partir de uma releitura pós-fundacional.

“Saber docente”: apostas políticas-epistemológicas no debate curricular

Tendo em vista o recorte privilegiado, optamos por explorar a articulação entre sujeito-conhecimento no processo de produção curricular a partir da categoria “saber docente” ressignificada na pauta pós-fundacional (GABRIEL, 2018). Entendemos que essa categoria sintetiza os processos de subjetivação e objetivação mobilizados em contextos formativos, em particular no contexto escolar, do lugar da docência, oferecendo pistas para explorar esse lugar como um espaço potencialmente produtor de subjetividades politicas rebeldes. Essa compreensão de docência opera com a ideia de um sujeito-docente percebido como simultaneamente sujeito do conhecimento, de desejo e de demandas, articulado narrativamente a partir da ideia de “sujeito biográfico”. O desafio consiste justamente, como se interroga Hernández (2014), em trabalhar com linhas investigativas que

(...) possibilitem transitarmos de sistemas de pensamentos baseados em fundamentos transcendentais e metafísicos que explicam a origem do homem, da ciência ou do conhecimento para outras formas de inteligibilidade que sustentam a ausência de fundamentos últimos. (HERNANDEZ, 2014, p.1198).

Temos apostado na noção “sujeito biográfico” como uma estratégia possível e potente para realizarmos este movimento de deslocamento de formas de inteligibilidade. Operar com esse entendimento de sujeito abre caminhos para a desestabilização de sentidos historicamente hegemonizados no campo educacional, como o de “sujeito autônomo racional” forjado na modernidade. Com efeito, essa noção permite investir em processos de subjetivação que incorporam a crítica ao entendimento de um “homem-sujeito desde sempre aí” (VEIGA-NETO, 2004, p.133), isto é, à crença na ideia de sujeito como um ser dotado de uma autonomia baseada na razão, concebida como fundamento metafísico e absoluto, como uma parte, pois, inerente à uma pseudo “natureza humana”. Essas interpretações de “sujeito” e “humanidade” estão na base do humanismo que tem atravessado os processos de produção do conhecimento na área das ciências humanas e sociais, em particular, no campo da educação.

A expressão “morte do Sujeito” emerge justamente no seio dessa crítica, responsável, segundo autores como Laclau (1996), por desestabilizar a norma da humanidade hegemonizada e universalizada pelo humanismo, como acima mencionado, e trazer para o centro dos debates epistemológicos a questão da multiplicidade dos processos de subjetivação. Nessa mesma linha argumentativa, Biesta (2013) afirma que o sujeito "parece ter se deslocado do centro do universo para o centro das discussões contemporâneas e do interesse prático e político" (BIESTA, 2013, p. 55). Se, de um lado, o deslocamento dessa norma abre caminhos teóricos potentes para combater a exclusão da cadeia de equivalências definidora de humanidade, daqueles que, segundo Honig (1993), "não vivem ou são incapazes de viver de acordo com essa norma" (apud BIESTA, 2013, p. 22), de outro lado, ele coloca um problema político-teórico para o campo educacional cujo enfrentamento tem sido objeto de debates internos intensos. Como pensar o sujeito do conhecimento, o sujeito da Educação, após essas críticas ao fundamento metafísico que sustenta a ideia de autonomia racional? Como pensar a educação quando se problematiza sua função precípua de contribuir para o desenvolvimento "desse potencial racional para que [as pessoas] possam se tornar autônomas, individualistas e autodirigidas?" (BIESTA, 2013, p. 19).

Em diálogo com Foucault, Biesta (2013) tem se debruçado sobre esses questionamentos e proposto uma formulação que nos parece heuristicamente potente para continuarmos a pensar o sujeito do conhecimento sem reatualizarmos a crença no sujeito racional autônomo, tampouco abrir mão da possibilidade de pensar o lugar e a importância da dimensão racional na prática educacional. Afinal, como nos lembra Biesta (2013), para Foucault " o fim do homem [ou a morte do sujeito] não é o desaparecimento final do homem “como tal”, mas apenas o fim de uma determinada articulação moderna de subjetividade humana"(BIESTA, 2013, p. 62). Articulação essa que não deixa espaço para pensar a singularidade e a unicidade dos indivíduos na medida em que seu foco está posto na definição da natureza humana, como vimos, pautada em uma perspectiva essencialista.

A problematização dessa articulação moderna de subjetividade na pauta pós-fundacional abre caminhos não apenas para deslocar um sentido particular de sujeito/subjetividade, mas para a própria pertinência da questão que está na base desde entendimento. Ao invés de se perguntar o que é o sujeito humano, trata-se agora de se interrogar como o sujeito, percebido como um ser singular e histórico, "torna-se presença" (BIESTA, 2013) em determinados processos de subjetivação?

É, pois, nesse mesmo movimento teórico que se inscreve a aposta no “sujeito biográfico”, podendo ser vista como uma estratégia que tem permitido investir no entendimento do significante “sujeito” após as críticas ao humanismo transcendental no âmbito da perspectiva pós-fundacional. Essa proposta de articulação implica em desafixar sentidos cristalizados de “sujeito do conhecimento”, sujeito político e /ou personagem social, e buscar outras saídas teóricas no campo do currículo para explorar - por meio dos aportes metodológicos dos estudos (auto)biográficos - as possibilidades de articulação entre “formular demandas” e “tornar-se presença” em contextos de formação.

Em relação ao conhecimento disciplinarizado, temos explorado as diferentes dimensões de seu processo de produção e socialização, considerados como processos de objetivação desse conhecimento. Como pensar essas operações após a radicalização da crítica aos objetivismos essencialistas? Como afirmar a possibilidade de operar em nossas análises com a ideia de “conhecimento objetivo” ou “objetivado” sem que isso corresponda necessariamente à reafirmação de um sentido particular de conhecimento que o considera como algo exterior ao sujeito que o produz, ensina ou aprende, ou seja, como algo coisificado, podendo ser quantificado, acumulado e mensurado?

Entendemos que, embora sob rasura (HALL, 2000), o significante “conhecimento” continua ocupando um lugar incontornável na agenda política educacional contemporânea. De modo semelhante, temos apostado em outra produção de sentido para o termo “objetividade” que não aquele investido pela modernidade iluminista, marcado por concepções metafísicas de “neutralidade” e “verdade”. Operamos, assim, com a compreensão desses processos de objetivação como sendo eles uma operação intelectual que se inscreve na lógica do político, movimentando duas categorias de análise - hegemonia e antagonismo - incontornáveis nas lutas pela significação. (GABRIEL, 2018). O processo de hegemonização caracteriza o processo de fechamento contingencial dos processos de significação que é igualmente marcado pela irrupção do antagonismo, cuja razão de ser é reafirmar a impossibilidade de qualquer fechamento definitivo. Afinal, "inclusão e exclusão - percebidos como movimentos permanentes e provisórios - são fundantes de qualquer objetividade.” (GABRIEL, 2018, p. 10). Dito de outra forma, "as práticas articulatórias hegemônicas definem sua identidade por oposição às práticas articulatórias antagônicas. O antagonismo descobre os limites de toda objetividade, pois esta nunca está plenamente constituída." (GIACAGLIA, 2006, p.107). Nessa perspectiva, “contingência”, “provisoriedade” e “articulação”, em meio ao jogo político de inclusão e exclusão, seriam marcas indeléveis de um “padrão” de objetividade pós-fundacional, afastando radicalmente, portanto, essa possibilidade de definição de qualquer argumentação baseada na consolidação de uma clivagem entre objetividade do conhecimento e dinâmica político-ideológica.

A compreensão dos processos de subjetivação da docência e de objetivação do conhecimento, tal como aqui defendida, está em sintonia com a ideia de currículo a partir do entrecruzamento de dois fluxos de sentidos: o da diferença e o da biografia.

A primeira articulação currículo-diferença nos remete à percepção da questão da multiplicidade como instituinte do currículo habitado por esse sujeito-docente. A diferença aqui é substantiva. Ao invés de adjetivar conhecimentos e sujeitos, ela é percebida como produtora dos mesmos. Um currículo da diferença é um currículo aberto às múltiplas possibilidades de sentidos. Os fechamentos nele produzidos são sempre contingenciais e provisórios. Os sujeitos que nele habitam são sujeitos inacabados. Não existem professores previamente identificados como tais antes do ato educativo, tampouco possuem eles uma identidade profissional fixa, engessada. Nessa perspectiva, nos tornamos professores na relação que estabelecemos cotidianamente com o conhecimento, com o outro, com o mundo. O currículo da diferença se inscreve entre o político e a política, entre insurgências e estabilizações.

Como espaço-biográfico (GABRIEL, 2016), por sua vez, o currículo permite igualmente explorar essa condição ambivalente do sujeito contemporâneo, desestabilizar alguns binarismos engessados - público /privado; coletivo/individual; indivíduo/sociedade; agente/estrutura - e abrir terreno para trazer para acena dos estudos curriculares o indivíduo que “caminha na paisagem”, parafraseando Delory- Momberger (2012). Importa sublinhar ainda que a compreensão do sujeito contemporâneo em toda sua complexidade pressupõe situá-lo nos "ares de nosso tempo". Nossa "condição biográfica", como afirma Delory-Momberger (2012), não é apenas uma possibilidade do sujeito singular "tonar-se presença", mas também uma condição do sujeito assujeitar-se às novas formas de regulação social em nossa contemporaneidade. É a partir do reconhecimento dessa condição que podemos pensar as narrativas do eu e do nós como subversão e/ou controle de uma lógica cultural hegemônica.

Esse tipo de reflexão é crucial para não perdermos de vista as injunções políticas de nosso presente e simultaneamente não confundir o retorno do "indivíduo", entendido como sujeito único e singular pela maneira como responde ao outro, um sujeito de demandas, com o retorno do individualismo normativo ou de uma celebração dos particularismos identitários. Afinal, assim como o sujeito, a sua biografia também é política, isto é:

(...) ela é compreensível não por causa de uma racionalidade consciente ou prática reflexiva, mas sim pela articulação entre experiências significações, espaços e tempos incomensuráveis que atribuem sentido ao estabelecer cadeias de significação nas quais diversos elementos são incluídos e outros excluídos por razões contingentes. (HERNANDEZ, 2014, p. 1206).

Nesse mesmo movimento teórico, Miller (2014), ao discutir o papel da teorização do currículo como elemento incontornável do debate educacional nos Estados Unidos e no mundo, sugere formas de investigação autobiográfica como maneira de atentar para os aspectos autoreflexivos e temporais da interpretação dos sujeitos sobre suas experiências educacionais. Para essa autora, currículo é visto como “processo, uma ação, um envolvimento com e no mundo” (MILLER, 2014, p. 2047), que segundo William Pinar (2004, 2011) “convida professores e alunos a ter “conversas complicadas”” (apud MILLER, 2014, p. 2048) experienciadas de forma multifacetada e multiperspectivada. Em diálogo com Pinar, essa autora afirma que o método currere proposto por ele:

(...) é simultaneamente posicionado como autobiográfico, político, histórico e intelectual, e não envolve só normas, livros didáticos e objetivos dos distritos escolares, mas convida professores e alunos a ter “conversas complicadas”(PINAR, 2004, 2011), vividas como e através do projeto multifacetado e multiperspectivado de entendimento (MILLER, 2014, p. 2047).

Como ação, processo e envolvimento no mundo, o currículo se constituiu “como tudo que habita, permeia e ocorre tanto dentro quanto fora da sala de aula” (MILLER, 2014, p. 2051). A autora nomeia “comunidades sem consenso” os espaços, processos e relações sempre mutáveis, contingentes que constituem os currículos. Essa concepção desmonta qualquer possibilidade de previsão dos efeitos e afetos dos processos educativos.

Percebido como um espaço de entrecruzamento de lugares, tempos e experiências coletivas e individuais, esse currículo - entrelugar de subjetivação/profissionalização docente - autoriza a olhar para o sujeito - docente -, a despeito do momento de sua trajetória de vida profissional, como um “sujeito em projeto”, inacabado e aberto a múltiplos fechamentos contingenciais que o identificam a uma profissão específica cujo sentido é igualmente resultante de operações hegemônicas em meio às lutas pela sua definição. Nessa perspectiva, interessa menos compreender o que significa “ser professor” do que os mecanismos ou jogos de linguagem por meio dos quais “vamos nos tornando em permanência professor” em contextos discursivos que se instituem como campos de estruturação da docência.

Nosso propósito aqui é mais operacionalizar a categoria “saber docente” como chave de leitura no quadro de inteligibilidade pós-fundacional para a análise pretendida do que nos aprofundarmos sobre a trajetória de sua construção ou de seus usos no campo educacional. A sua natureza plural e heterogênea nos parece potente para nos ajudar a compreender os entrecruzamentos dos processos de objetivação e de subjetivação. Definir “saber docente” implica inscrevê-lo em uma cadeia equivalencial de sentidos na qual participam termos como: ciência, teoria, prática, experiência, valores, competências, conteúdos disciplinares, conteúdos pedagógicos, cultura. Entre esses significantes, optamos por focalizar o “saber da experiência” para entendermos as estratégias mobilizadas na narrativa produzida pelo professor entrevistado.

Essa opção se justifica. A expressão “saber da experiência” tem desempenhado um papel importante nas últimas décadas, em pesquisas do campo educacional, como caminho fecundo para introduzir no debate questões relacionadas a processos de subjetivação. Experiência entendida não como o saber conquistado por meio das práticas pedagógicas cotidianas, mas como saber que se adquire na forma como os docentes respondem ao que lhes acontece durante sua trajetória profissional. Isso permite investir no entendimento de “saber da experiência” como sendo saberes “formados de todos os demais”, porém retraduzidos, “polidos” e submetidos às certezas construídas na prática e no vivido” (NUNES, 2001, p. 34).

Importa sublinhar a função articuladora exercida pelo significante “experiência” nos processos de objetivação e subjetivação do saber docente. Ele funciona como um ponto nodal capaz de, simultaneamente, articular diferentes saberes e produzir um antagonismo que se constrói em torno de outra cadeia definidora do que seria o "não-saber docente". Trata-se, assim, de investirmos em algumas configurações desse jogo de exclusão e inclusão em detrimento de outras. Como explicitado em outra oportunidade (GABRIEL, 2018), interessa pensar o termo “experiência” menos como lócus de produção do saber dos docentes do que como uma função discursiva estratégica que desestabiliza as fronteiras hegemônicas que o define, colocando no jogo outras possíveis definições de racionalidade e de subjetividade.

Concordando que “o que conta como experiência não é nem autoevidente, nem definido, é sempre contestável, portanto sempre político” (SCOTT, 1999, p. 20), passamos, a seguir, à apresentação, por meio da análise de fragmentos discursivos, de uma possibilidade de leitura política da produção de currículo insurgente a partir dessa categoria.

Tornar-se presença: recomposições curriculares insurgentes

O desafio do uso metodológico dos enfoques biográficos, tal como entendido na abordagem discursiva pós-fundacional, consiste em “outorgar o papel principal ao sujeito que narra, confiando em sua capacidade para construir os acontecimentos” (HERNANDEZ, 2014, p. 1205) e, simultaneamente, reconhecer que o social não se esgota nesta autorreferencialidade. O enfrentamento desse desafio resultou na análise que se segue. Optamos por deixar ver em nossa escrita a intertextualidade tecida entre as nossas interpretações e as diferentes marcas dos processos de subjetivação que o professor Antônio mobiliza na condição de sujeito biográfico; Sujeito do conhecimento quando sua identidade de professor de sociologia pesa mais forte, sujeito do desejo, quando os marcadores de sexualidade entram em ação para dar conta do currículo vivido no seu cotidiano profissional; Sujeito de demanda, quando compreende a dimensão política de sua prática docente para a produção de subjetividades rebeldes desestabilizadoras da normatividade hegemônica.

Pela narrativa de Antônio, fica evidente que a diferença não é um objeto do processo de ensino-aprendizagem previamente estabelecido e planejado da disciplina de sociologia. A diferença é o que permite esse processo acontecer. Ela é interpelativa, atravessa os corpos dos sujeitos - docentes e estudantes - que habitam aquele currículo. Os imponderáveis que interpelam os currículos produzem novas conformações em seus planejamentos, novas alianças com os sujeitos do espaço curricular e confrontam Antônio com sua própria condição de gênero e sua sexualidade, fazendo desses elementos incontornáveis da “conversa complicada” que constitui os currículos.

Nesse movimento, atentar para os processos de construção de masculinidades assume um lugar central na reflexão que esse professor desenvolve sobre as dinâmicas curriculares. Em suas palavras:

Uma coisa que me marcou numa escola onde eu dei aula, era o lugar que alguns meninos ocupavam e a relação que eles estabeleciam com algumas meninas no sentido de conseguir até mesmo que elas fizessem os trabalhos deles. Eram meninos que tinham perfil de pequenos machos alfa no espaço escolar. Não somente uma liderança para outros meninos, mas que conseguiam convencer as meninas... e aí envolvia todo um jogo adolescente, um pouco de sedução, um pouco de expectativas afetivas e sexuais que eles não correspondiam. Mas que produzia uma certa relação de dependência que se expressava no fato de que os trabalhos entregues nunca eram com a letra deles. Então, a partir deste episódio completamente banal de uma dinâmica em sala de aula que eu fui começando a perceber como algumas coisas se reproduzem, como essas relações de gênero e como essa construção de masculinidade se apresenta muito cedo na dinâmica escolar e tem um caráter meio invisível. Então assim... por certo, não era só comigo que aquele menino não fazia efetivamente os trabalhos.

Antônio interpreta esse episódio como indicativo da construção de masculinidades particulares daquela experiência escolar, que ele entende que eram reforçadas por práticas da instituição que, apesar de progressista, contribuía com a naturalização de determinadas posições de gênero. Nesse processo, ele vai refletir sobre os marcadores de classe que conformam o perfil dos estudantes da instituição e que ele compreende como limitadores do acesso a certos debates dos campos discursivos dos feminismos.

Certos debates estão muito concentrados na classe média. O debate sobre feminismos, por exemplo, ou outros debates, um núcleo duro na classe média e polos nas classes populares. Então esse debate não estava colocado pra essas meninas sobre autonomia e, no contexto de uma escola que tinha uma série de práticas que reproduziam um certo lugar das meninas, sem que isso necessariamente estivesse explícito no discurso oficial. Oficialmente era uma escola bastante igualitária, bastante progressista. Mas tinha uma série de práticas que naturalizavam essas relações de gênero nas salas de aulas. Representação de turma, eram basicamente meninos. Não necessariamente tinham meninos mais qualificados pra esse processo. Mas nas dinâmicas internas das eleições eram meninos basicamente que iam pras representações.

A partir dessas percepções, Antônio busca estratégias para conversar com as meninas sobre o episódio com as avaliações. No entanto, ao fazer esse movimento, ele esbarra nas limitações do seu próprio posicionamento de gênero: “qual lugar que eu tenho pra conversar com as meninas sobre autonomia?”. Ele busca então unir forças com a professora de Física, também sensível àquelas questões: “Essa professora por si só já é ímpar, porque é uma professora de Física. Muito marcada pelas experiências de ser uma mulher numa área como a Física, que é muito masculina”. E desenvolve com ela um trabalho buscando problematizar essas questões junto às meninas.

Essas experiências curriculares vão apontando para os limites e aberturas da relação do docente com os estudantes, posicionando e condicionando as abordagens curriculares que ele vai produzir dali em diante. Para Antônio, seu pertencimento ao “universo de uma identidade masculina” lhe confere uma abertura para conversar sobre determinados assuntos com os meninos que são interditos às professoras.

Em algum momento, eu comecei a perceber que eu tinha um acesso maior aos meninos pra conversar sobre certas coisas (...) existe um universo de uma identidade masculina que me permitia circular, conversar certas coisas com os meninos e acessar certas coisas com eles que talvez não fossem acessíveis para as professoras ou, enfim, outros sujeitos. Então a partir dessa percepção, eu acho que a minha relação com o feminismo serviu de inspiração pra me ajudar a pensar a relação com os meninos.

No decorrer de uma “conversa complicada” durante uma aula, Antônio é interpelado por um aluno que lhe questiona sobre sua orientação sexual.

Em algum momento eles sempre perguntam alguma coisa sobre a minha vida íntima. Então eu nunca tive nenhuma dificuldade de falar: “meu namorado e tal”... Nunca disse: “Oi! Eu sou gay”. Mas se alguém pergunta: “O que fez no fim de semana? Eu respondo: “Eu saí com o meu namorado”. E aí, ao fazer isso, foi curioso nessa primeira escola, numa turma de nono ano... tinha um grupo de alunos que sentavam no fundão e eles claramente estavam testando a minha virilidade. Eu sabia que se eu não cortasse, eles iam transformar a minha vida num inferno. Porque alunos também fazem bullying com seus professores. Principalmente com certas pautas. Sexualidade é uma delas. O que eles queriam saber era aquilo. Quando eu contei pra eles em público, eles perderam a ferramenta que eles tinham pra tentar criar um constrangimento. A partir desse processo, muitos meninos vieram conversar comigo.

Falar abertamente sobre sua sexualidade abriu caminho para os mais diversos arranjos. Entre eles, Antônio identifica o estabelecimento de uma ponte entre ele e os “meninos gays”, a partir daquele episódio: “Eu acho que consigo ter uma ponte mais próxima com os meninos. E em especial, nessa discussão, com os meninos gays”.

Antônio reflete sobre o processo de inserção na escola onde leciona atualmente - cujo perfil é composto majoritariamente por estudantes brancos de classe média - e as questões que emergem nesse novo contexto. Ao comparar as experiências curriculares anteriores com as experiências na nova escola, Antônio identifica um domínio maior de alguns debates do campo discursivo dos feminismos por parte dos estudantes da nova instituição. Abordar algumas temáticas nesse novo espaço não gera as mesmas reações apaixonadas que ele identificava nas antigas escolas, como foi no caso do estudante que, sentindo sua fé afrontada pelas abordagens do professor em sala de aula, pediu pra ser liberado de frequentar as aulas de Sociologia.

Um dia um estudante me chamou para conversar, para dizer que as minhas aulas afrontavam a fé dele. Ele disse que estaria presente nas provas, mas não queria mais assistir as minhas aulas. Eu fiquei pra morrer com aquilo, mas aceitei. Achei muito digno que ele tenha tido autonomia pra chegar pra mim e falar isso. E não assistiu mais as minhas aulas. Só aparecia para as provas. Entregava os trabalhos. As provas eram ótimas. Os trabalhos eram ótimos. Mas ele não ia mais às aulas. E eu reencontrei esse menino anos depois. Uns três anos depois na Cantareira em Niterói. Eu saí do trabalho depois de uma reunião de professores (...) quando um jovem me para pra conversar. Só que eu não reconheci quem era de cara. Ele falou: “você não lembra de mim?”, “Não. Desculpa.” (risos). Só que quando ele falou da história, da turma dele, aí eu falei... eu olhei pra ele e pensei: “Esse menino está mudado”. Descobri que ele estava fazendo Antropologia e hoje era uma menino gay e tinha saído da igreja. Eu acabei achando isso engraçado, porque talvez por isso o incômodo com as aulas.

Esse episódio com o estudante o leva a questionar o lugar do afeto nos currículos, quando determinadas abordagens em sala de aula produzem deslocamentos nos sujeitos que mexem “em feridas que a gente também não consegue dar conta em sala de aula. Isso é uma coisa que alguns retornos em sala de aula me fazem pensar”. Antônio cita o exemplo da temática da violência de gênero, que faz parte do seu repertório curricular. Ao se dar conta de que a violência doméstica é uma realidade na vida de muitos de seus alunos e alunas, ele reformula seu planejamento de forma a introduzir esse tema a partir de um outro viés.

Ele chama atenção também para a diferença do contexto histórico que marca o momento de inserção na nova escola, que traz de forma bastante latente as marcas do processo de polarização política perceptível na sociedade brasileira nos últimos anos e que ele identifica em algumas dinâmicas com seus estudantes em sala de aula.

A recomposição dos planejamentos a partir de outros diálogos com o campo discursivo dos feminismos na nova instituição serão motivados, portanto, não apenas por percepções a respeito do capital cultural pregresso dos estudantes, pelo fato de exercer a docência em turmas do terceiro ano do ensino médio, nas quais as temáticas de gênero e racismo não fazem parte do programa, mas, também e principalmente, pelas interpelações curriculares que emergem no cotidiano escolar e que provocam Antônio a repensar suas abordagens.

Neste processo, a perspectiva interseccional é assumida como estratégia política para seguir operando com marcadores da diferença que ele considera estruturantes, fazendo-os atravessarem todos os temas abordados em sala de aula:

Essas categorias acabaram sendo formadoras da minha percepção do mundo. Enfim, eu tento introduzi-las nos diferentes temas... Então, por exemplo, a gente discutiu nesse semestre Globalização. E aí pra pensar Globalização, a gente acabou chegando ao tema migração. E aí do tema migração a gente foi discutir o tráfico de mulheres. O que possibilitou num tema que a princípio não é exatamente um tema que vai discutir desigualdade de gênero, mas como esses marcadores são estruturantes, colocar esse debate sobre o tráfico de mulheres. Quais são essas mulheres traficadas; qual o perfil efetivo dessas mulheres mais propensas ao tráfico, num debate sobre Globalização e sobre migração...E aí tem sido interessante porque, como pra esse perfil de estudante com o qual eu tenho trabalhado, apresentar gênero não é uma novidade, fazer os recortes interseccionais é.

Uma conversa inesperada com os meninos em sala sobre o universo da indústria pornô, sobre a construção de expectativas quanto às performances sexuais masculinas e corpos femininos, produz efeitos e rearranjos nas elaborações curriculares do professor, trazendo de volta o tema das masculinidades para a conversa complicada dos currículos como forma de convidar os meninos a se envolverem com os debates travados em sala de aula.

A partir da introdução de debates sobre construção de masculinidades, o professor busca implicar os meninos nos processos sociais, políticos e econômicos que reproduzem desigualdades, violências e opressões, ao problematizar percepções que naturalizam a figura dos sujeitos brancos do sexo masculino “como se fossem a referência universal de ser humano” (RESTIER; SOUZA, 2019, p. 9), desprovidos de raça e de gênero.

A gente discute muito pouco a formação da masculinidade, que é agressiva. É agressiva entre os homens, né. É um debate que, do ponto de vista teórico, é superdifícil de ser feito, no sentido de que a ideia homogeneizadora de que o machismo produz apenas privilégios, acaba ocultando a ideia de que o privilégio também se distribui desigualmente entre os homens. E que essa experiência com o machismo mata homens; gera agressores, violentadores, não somente contra mulheres, mas na própria relação entre os homens. Conversar sobre isso com os meninos e introduzir essa perspectiva no debate interseccional nas aulas tem produzido algumas reflexões interessantes, porque em geral, nos debates sobre gênero, os meninos pareciam meio alheios, assim, com a ideia de que “isso não me diz respeito".

A narrativa sobre a experiência de Antônio com feminismos nos currículos aponta, portanto, para os processos sempre contingentes que constituem a produção dos saberes docentes, permanentemente interpelados pelas dinâmicas construídas nos contextos educacionais. Em meio a esses processos sempre abertos, Antônio busca “estratégias pra tentar pautar certas discussões” que lhe parecem relevantes.

Nessas experiências sempre abertas ao imprevisível, um aluno percebido por outros professores como um estudante que criava problemas durante as aulas se torna um aliado no momento em que, durante uma aula, eles estabelecem um diálogo a partir das matrizes teóricas propostas pelo estudante: “Quando eu consegui fazer um diálogo com autores da economia clássica ou mesmo a neoclássica que ele via em casa, acabou que ele virou um parceiro no processo das aulas e o líder desses meninos”. Em um outro momento, esse mesmo aluno e seus colegas têm suas percepções conservadoras de mundo desestabilizadas quando são interpelados a produzirem um seminário sobre desigualdade de gênero na aula de Sociologia.

Os meninos ficaram injuriados (ao serem sorteados com o tema “desigualdade de gênero” no seminário de Sociologia). Mas fizeram um bom trabalho. Não deixaram de apontar suas críticas aos estudos de gênero... Foi uma experiência interessante. Porque, mesmo com uma cara meio injuriada, eles não tinham como recusar o debate com os dados sobre desigualdade de gênero. A não ser que haja desonestidade intelectual, não tem como você ignorar esse recorte. E como era um trabalho a ser avaliado, mesmo que eles desejassem operar com a desonestidade intelectual, eles não poderiam. Confesso que foi uma experiência divertida. Ver meninos com discursos muito conservadores, com comportamentos machistas que as meninas frequentemente reclamavam, tendo que apresentar um trabalho sobre desigualdade de gênero. Enfim, foi uma experiência boa.

As reflexões de Antônio sobre suas experiências educacionais dão a dimensão das “comunidades sem consenso” (MILLER, 2014) que constituem os currículos escolares, cujos espaços, processos e relações, são sempre mutáveis e contingentes. Quase no fim da entrevista, Antônio questiona:

Qual vai ser o resultado disso? Não sei. Eu tenho desde estudantes que vão encampar uma postura militante e às vezes eu vou ter respostas deles reafirmando posicionamentos mais conservadores. Vai ter isso. Vai ter estudante que vai dizer pra mim: “Eu não quero assistir a sua aula porque a sua aula fere a minha fé.” E eu tenho que administrar isso.

Ainda que compreenda o caráter de imprevisibilidade como constitutivo dos currículos escolares, Antônio reafirma o lugar político e privilegiado da docência para a introdução de debates que abrem possibilidades para a criação de mundos possíveis.

Acho que existem muitas formas de fazer política ou de fazer militância. Eu entendo que estar em sala de aula... acho que pra docência como um todo, em especial na educação básica, tem diferentes formas de militância...Então, o que eu tenho percebido é que eu tenho tentado estratégias pra tentar pautar certas discussões que me parecem relevantes… Introduzir certos debates que o meu lugar privilegiado como professor de Sociologia me possibilita. Eu posso correr o risco de virar inimigo público, como muitos professores de Sociologia têm virado inimigos públicos no Estado; diante do Estado; em certos setores sociais. Mas, talvez a gente tenha virado inimigos públicos exatamente pela possibilidade que a gente tem de introduzir certos debates.

1Fazendo referência a “mulheres”, “travestis”, “transexuais femininos e masculinos”.

2Fazendo referência a “gays”, “lésbicas” e “bissexuais”.

3Essa entrevista é parte da produção empírica da pesquisa de doutorado de uma das autoras, já em fase de conclusão. Antônio é o nome fictício do professor cuja narrativa sobre experiências com feminismos nos currículos será analisada nesse artigo.

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 10 de Setembro de 2020

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