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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75661 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

O desaparecimento social das diferenças nas políticas de exceção: vidas e memórias de crianças e mulheres para a reinvenção de uma educação democrática1

Raquel Gonçalves Salgado* 
http://orcid.org/0000-0002-8730-3025

Leonardo Lemos de Souza** 
http://orcid.org/0000-0002-3331-1847

* Universidade Federal de Rondonópolis. Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil. E-mail: ramidan@terra.com.br

**Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: leonardo.lemos@unesp.br


RESUMO

A democracia tem sido tema recorrente no Brasil da última década, devido à emergência de narrativas e movimentos conservadores que interditam o debate público sobre assuntos que trazem as diferenças para o campo social, como é o caso do racismo e das violências de gênero e sexuais, além de fazerem apelos à reedição de políticas de exceção vigentes na ditadura cívico-militar no Brasil. Desse modo, o objetivo principal deste artigo é analisar os sentidos de democracia e educação a partir de incursões no passado da ditadura militar, como forma de problematizar as políticas de exceção vigentes no Brasil do presente. Para tanto, pretende-se discutir: (1) as necropolíticas que incidiram sobre as vidas de crianças e mulheres na ditadura militar, a partir de depoimentos sobre torturas praticadas por agentes do Estado, extraídos do relatório da Comissão Nacional da Verdade, e suas relações com necropolíticas do Brasil atual que remetem ao racismo e às violências de gênero, com base em críticas às noções de proteção e desenvolvimento em seus efeitos colonizadores; e (2) o desaparecimento social como política de extermínio da memória e suas repercussões nefastas na educação. Por fim, busca-se salientar o processo devastador das diferenças, sejam de gênero, sexuais, raciais, étnicas e etárias, implementado por políticas de exceção do passado e do presente, e como uma educação democrática, que se posicione na contramão dessas políticas, pode ser resistência à barbárie.

Palavras-chave: Feminismos; Infâncias; Ditadura militar; Democracia; Educação

ABSTRACT

Democracy has been a recurring theme in Brazil for the past decade, due to the emergence of conservative narratives and movements impairing public debate on issues that bring differences to the social field, such as racism and gender/ sexual violence, in addition to calling for the re-edition of the ongoing exception policies in the Brazilian civic-military dictatorship. Thus, the main objective of this paper is to analyze the meanings of democracy and education based on incursions into the past of the military dictatorship, as a way of problematizing the current exception policies in Brazil at present. To this end, it is intended to discuss: (1) the necropolitics that affected the lives of children and women in the military dictatorship, based on testimonies about torture by State agents, extracted from the report of the National Truth Commission, and their relations with necropolitics in the current Brazil that refer to racism and gender-based violence, grounded on criticisms to the notions of protection and development in their colonizing effects; and (2) the social disappearance as a policy of exterminating memory and its harmful repercussions on education. Finally, it is aimed to highlight the devastating process of differences, whether gender, sexual, racial, ethnic and age, implemented by past and present exception policies, and how a democratic education, which stands against these policies, may be resistance to barbarism.

Keywords: Feminism; Childhoods; Military dictatorship; Democracy; Education

Introdução

O Brasil da última década, mais precisamente a segunda do século XXI, é cenário farto de elementos que nos convocam a refletir e nos posicionarmos criticamente diante de assuntos que supúnhamos ter resolvido: a democracia é um deles. Nas paisagens deste Brasil atual, narrativas e movimentos políticos conservadores fazem apelos reiterativos à retomada de um status quo supostamente perdido, regulado por famílias zelosas pela vigilância e proteção da inocência das crianças e blindadas pelos códigos sociais e culturais que balizam os estatutos de vida e sujeito, bem como compõem a gramática da primazia branca, masculinista, heteronormativa, cristã e burguesa. São narrativas que soam como a melodia de uma toada que, de forma uníssona, vem acompanhada por clamores de retorno ao Estado repressor e austero da ditadura cívico-militar no país, expondo, em plena luz do dia de nosso século, as muitas feridas abertas das vidas e dos corpos que sangraram no passado e, ao romperem o cerco do esquecimento, fazem ressoar os seus gritos por justiça no tempo presente das políticas de desaparecimento e extermínio que nutrem as entranhas do Estado neoliberal brasileiro.

A democracia é, sem dúvida, uma das narrativas mais disputadas no país. Como se fosse uma espécie de antídoto ou álibi passível de amenizar tensões e conflitos ou salvaguardar interesses em jogo, a democracia aparece como a palavra-discurso com força de conciliação e consenso. Entretanto, essas armadilhas retóricas, produzidas desde o início do processo de “transição democrática” pós-ditadura militar, a partir da segunda metade da década de 1980, estão muito aquém de responder às profundas mazelas históricas de nossa sociedade, marcadas pelos terrores da escravidão, do estado de exceção ditatorial e dos processos de colonização ainda vigentes, que crescem até o céu, tal como o “amontoado de ruínas”, mencionado por Walter Benjamin (1985, p. 226) quando alude ao anjo da história diante da catástrofe acumulada pelo progresso.

Pretendemos, neste artigo, embrenhar-nos neste terreno movediço que é o da democracia no Brasil, discutindo os seus sentidos e relações com a educação, a partir de uma incursão no passado da ditadura cívico-militar no Brasil como forma de problematizar as políticas de exceção vigentes no Brasil do presente. De modo mais específico, enveredamos por essa discussão assumindo os seguintes vieses:

a) as necropolíticas que incidiram sobre as vidas de crianças e mulheres na ditadura militar, a partir de excertos de depoimentos sobre torturas praticadas por agentes do Estado, extraídos do relatório da Comissão Nacional da Verdade, e suas relações com necropolíticas do Brasil atual, que remetem ao racismo e às violências de gênero;

b) o desaparecimento social como política de extermínio da memória e suas repercussões nefastas na educação.

O primeiro eixo organiza-se em torno de críticas sobre a noção de proteção associada historicamente e culturalmente a crianças e mulheres e como, no caso específico da infância, consolida-se como uma de suas mais importantes prerrogativas e requisitos para o seu desenvolvimento. Os efeitos políticos da retórica da proteção para esses sujeitos perdem-se quando suas vidas são marcadas socialmente para não atenderem ou se conformarem aos regimes de visibilidade e inteligibilidade que demarcam ideais de infância e feminilidade. Mais do que a perda da prerrogativa da proteção, acionam-se sobre as vidas dessas crianças e mulheres necropolíticas que promovem a suspensão de seus direitos à vida e ao luto público. Nessa pauta de críticas às noções de proteção e desenvolvimento, em seus efeitos de colonização da vida, o debate de gênero ganha importância pela via da interseccionalidade , no qual marcadores sociais, como raça, classe social, sexualidade e idade, articulam-se na composição dos sentidos de infância e feminilidade e nos modos como as violências do Estado são mobilizadas contra as crianças e as mulheres para quem as políticas de proteção perdem validade.

O segundo eixo volta-se à discussão sobre a produção do desaparecimento social como uma política de exceção que incide sobre a memória coletiva, no sentido de operar o esquecimento forçado e a inviabilidade do luto público. De forma distinta das lembranças de experiências pretéritas, as memórias são assumidas aqui como narrativas do presente, que se voltam para os apelos do passado de modo a libertá-lo do esquecimento, não no sentido de descrevê-lo como de fato ocorreu (BENJAMIN, 1985), mas na forma como ele responde às inquietações do presente. Produzir “buracos” na narrativa desenvolvimentista e totalitária da vida e da história, como nos sugere Peter Pál Pelbart (2011), é o percurso analítico que se pretende adotar ao recorrer às memórias da ditadura e tensioná-las com as violências postas em curso pelo Estado de exceção do presente, no sentido de realçar os dispositivos de esquecimento e apagamento do luto público como uma necropolítica que incide sobre a memória.

Em síntese, o que se pretende salientar é o processo aviltante e devastador das diferenças, em todas as suas formas de alteridade, sejam de gênero, sexuais, raciais, étnicas e etárias, posto em prática pela ditadura cívico-militar, mas tampouco inaugurado por esse regime, e ainda vigente no Brasil do século XXI, caracterizado como democracia. Quais são o peso e os desafios que a educação tem diante das políticas de devastação das diferenças, transformando-as nas ruínas que são deixadas para trás?

Gênero, proteção e desenvolvimento: que vidas importam?

Uma análise dos efeitos das políticas desenvolvimentistas e de proteção que historicamente são dirigidas às crianças e às mulheres tem demonstrado os efeitos excludentes e normatizadores de vidas que fogem aos modelos hegemônicos de infância e feminilidade. Pretendemos aqui discutir como esses efeitos, na forma do biopoder (FOUCAULT, 1988), aliados às perspectivas feministas e queer (BURMAN, 2008; PRECIADO, 2013; BUTLER, 2016; 2018), podem se materializar nas relações sociais e educativas. Por outro lado, buscamos abordar como essas perspectivas podem nos oferecer ferramentas para pensar a educação como espaço social privilegiado e potente de rompimento com ações de aniquilamento da diferença em seus mais diversos aspectos.

Um exemplo dessas políticas vincula-se aos movimentos anti-gênero, fortemente inspirados na cruzada contra os estudos de gênero e o seu debate nas escolas, denominados por esses grupos de “ideologia de gênero”. Tais movimentos materializam-se em proibições e retaliações à educação sexual e à inserção de conteúdos curriculares em escolas e planos nacional, estaduais e municipais de educação que contemplavam temas relacionados às diversidades de gênero e sexualidades (JUNQUEIRA, 2018). Além disso, manifestaram-se de diferentes maneiras ao longo das últimas décadas, porém não são movimentos inaugurados no tempo presente. Inspirados em ações ultraconservadoras de defensores dos modelos patriarcais e sexistas das relações de gênero e da família organizada em torno de um homem e mulher cisgêneros, esses movimentos também marcaram presença durante a ditadura militar que, fundamentada em ideias integralistas e católicas conservadoras dos anos de 1930, cultivou as imagens da homossexualidade e da feminilidade dissidente como ameaças e perigos à segurança nacional, à moral da família tradicional e aos “bons costumes”, visão esta que legitimou as violências praticadas contra as pessoas LGBTQIA+ e as mulheres identificadas como “subversivas” nesse período (BRASIL, 2014b).

A narrativa anti-gênero localiza toda e qualquer apresentação e/ou discussão sobre as diferenças de gêneros e sexualidades como perigosa à manutenção dos valores familiares do patriarcado. Com profundas relações com movimentos religiosos cristãos, essa narrativa ganha força nos últimos anos (JUNQUEIRA, 2018) como um contraponto aos movimentos de conquistas pelos direitos das mulheres e de pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais e demais dissidências) que haviam se mobilizado historicamente em combater as desigualdades e a exclusão, ancoradas no discurso da anormalidade, da patologia e da abjeção.

Vários exemplos podem ser mencionados. Desde os mais atuais, como o movimento “Escola sem Partido”, com a finalidade de esvaziar de criticidade os conteúdos escolares, excluindo o diálogo entre perspectivas distintas e criando uma única narrativa sobre a história, que anula as vozes dissonantes dos interesses da manutenção do conservadorismo patriarcal, até os que remontam aos princípios da ditadura cívico-militar no Brasil, com o movimento em defesa da família, aliado ao discurso anticomunista, que tinha como foco a necessidade de se manter os modelos patriarcais, calcados na ideia da subordinação da mulher e dos filhos aos homens chefes da família (GALINDO et al, 2017). A proteção desses modelos e, por sua vez, das figuras que o compõem, segundo o roteiro estabelecido dessas hierarquias, garante e impulsiona a sociedade rumo ao desenvolvimento-progresso.

Como uma das facetas do biopoder, tais práticas de anulação e extermínio das singularidades seguem o roteiro da gestão e controle dos corpos de mulheres e crianças, buscando referenciar os modelos que se quer predominantes: os exemplos da mulher que atende às normatividades do feminino e da maternidade - na função de cuidado e reprodução; na submissão ao homem para a perpetuação da família; e no exemplo de criança, que deve seguir o roteiro de gênero segundo a genitália com que nasce, estabelecendo quais habilidades e competências que meninos e meninas devem adquirir ou fazer emergir para amar, trabalhar e viver em sociedade.

Outros determinantes entram em jogo, como a cor da pele e a classe social. Eles também atuam como disparadores dos lugares previstos para cada criança e mulher negras pobres na sociedade: a abjeção social pela cor da pele insere-as em um rol de atributos, como animalidade, indisciplina, marginalidade, promiscuidade, falta de higiene e outros, que ameaça a sociedade branca e, ao mesmo tempo, a faz funcionar para manter o status quo e o modus operandi de uma classe dominante e os privilégios da branquitude.

A análise de Anete Abramovicz (2020) sobre o biopoder nas formas de extermínio racial de crianças negras no Brasil sinaliza esse mecanismo imperativo da hegemonia da raça branca e seus efeitos sobre os corpos de crianças e mulheres negras, marcado pela submissão desses corpos a regimes de escravidão (atualizados na forma de trabalho precário), que se faz sentir nas vidas da maioria da população negra do Brasil. As mulheres e crianças negras servem ao Estado como mão de obra que precisa ser desqualificada para gerar a superioridade branca e, concomitante a isso, produz-se a percepção dessas pessoas como abjetas (bestializadas, minimizadas e subjugadas), cujos corpos, experiências, histórias, memórias e vidas passam a ser alvos de rechaço no tecido social, a ponto de serem objetos de políticas de extermínio.

Paul Beatriz Preciado (2013), no debate do contexto do movimento familista na França, em confronto a uma certa ideologia de gênero, argumenta sobre a aliança de pais e familiares em defesa de uma narrativa que, ao contrário de proteger crianças em sua autodeterminação de gênero e sexual, as condena, garantindo a proteção da existência do modelo patriarcal e heterossexual. O protagonismo sobre seus corpos e desejos é anulado.

Erica Burman (2008), na esteira dessas análises, identifica como, em diferentes contextos, a narrativa do desenvolvimento (econômico e social) articula-se com a ciência psicológica, e produz exclusões ao não considerar as singularidades e condições culturais e materiais de existência de crianças e mulheres no mundo. Agencia, nesse aspecto, a perspectiva feminista como uma crítica da narrativa desenvolvimentista em psicologia, oriunda dos discursos sobre uma infância e suas cuidadoras/educadoras, que tem como referências sujeitos idealizados e abstratos, descolados das vidas concretas de crianças e mulheres. Burman (2008) alia-se, ainda, às críticas sobre o discurso do progresso, que abarca crianças e mulheres de diferentes contextos, nomeadas como fora da norma e, portanto, que passam a ser invalidadas como cidadãs, caso não se adequem às políticas de controle (nas práticas psicoterápicas, nas políticas de desenvolvimento social e educacional, por exemplo). Crianças e mulheres que não atendem ao modelo ocidental, branco, heterossexual e patriarcal de viver em sociedade, passam a ser alvos de medidas coercitivas e de correção para se enquadrarem na narrativa desse modelo, caso contrário, são passíveis de extermínio. Em suas análises, as políticas não atendem às singularidades e às diferenças nos modos de ser e viver dessas pessoas, de modo a produzir mais exclusão e vulnerabilidade.

Em Preciado (2013) e em Burman (2008), as políticas de proteção (institucionalizadas - familiar, escolar, assistencial, sanitária) da heterossexualidade, do patriarcado e da branquitude entram em jogo na vigilância e controle dos corpos e desejos de mulheres e crianças. Uma das estratégias dessas políticas é negar e aniquilar qualquer forma de afirmação de protagonismo de mulheres e crianças sobre suas existências.

No cenário atual, têm sido recorrentes narrativas com o propósito de promover o extermínio das diferenças, das singularidades de vidas que, desviantes, ameaçam os modos de vida hegemônicos. Na ditadura militar vivida no Brasil, durante vinte e um anos (de 1964 a 1985), escolheu-se a tortura como dispositivo para conter, corrigir e eliminar as ameaças ao regime e às ideias que o sustentavam: a família patriarcal, a moral cristã, o capitalismo e o liberalismo. A tortura foi uma estratégia de combate e correção do desvio. A morte e as violências física e psicológica foram as estratégias utilizadas para eliminar o que poderia contaminar o modo de ser e viver operante, inteligível e legitimado.

Recentemente, o movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos da América, de caráter disruptivo, tem sido disparador de ações semelhantes em outras partes do mundo. A violência de motivo racial é uma forma de tortura diária a que diversas crianças, jovens e mulheres no Brasil e no mundo são submetidos. O caso do menino negro, Miguel, de 5 anos de idade, deixado sem supervisão pela patroa da mãe, enquanto esta passeava com o seu cachorro por ordem da patroa, ocasionando a sua morte ao cair da altura de 35 metros de um prédio, é emblemático para refletirmos sobre a demarcação social vigente entre as vidas que importam e as que podem ou devem desaparecer. Miguel e sua mãe representam milhões de mulheres e crianças negras submetidas a relações raciais marcadas pela desigualdade. O fato de a mãe estar trabalhando em plena pandemia de COVID-19, doença causada pelo coronavírus SARS-COV-2, e sem poder deixar seu filho em um lugar seguro, a faz levá-lo ao local de trabalho para continuar a garantir sua subsistência. O modo como a patroa negligencia a vida de Miguel e da sua mãe foi uma forma de submetê-los a riscos e violências passíveis e autorizadas na sociedade para pessoas negras e pobres.

Os dispositivos disciplinares que incidem sobre os corpos de crianças e mulheres (anátomo-política) aliam-se a biopolíticas na geração de práticas de extermínio e de controle de uma população cujas vidas parecem não ser passíveis de luto público. A tortura e o desaparecimento efetivam-se mediante a ausência de acesso à saúde, ao trabalho, à educação de qualidade e com dignidade. Tais dispositivos e biopolíticas podem ser compreendidos como ações planificadas para o gerenciamento, a vigilância e a programação de vidas - quais espaços essas vidas devem ocupar, que funções devem exercer, a quem devem servir -, em um desenrolar de movimentos e decisões sobre a gestão da vida e da morte (quem deve viver e quem deve morrer).

Seja por decisões de políticas de governo ou impulsionada por determinados grupos que dominam instituições educacionais aliadas a perspectivas anti-gênero e antidemocráticas, a educação tem sido afetada por esses movimentos. Assim, as perspectivas às quais nos aliamos neste artigo podem oferecer ferramentas para pensar como o desaparecimento de certos modos de vida no acesso e permanência na educação (básica e superior) significa a antinomia e a condenação de uma educação democrática em que as diferenças são disparadoras de alianças.

Judith Butler (2016) alerta-nos que as vidas são precárias por definição, dado que suas existências nunca estão garantidas - é necessário que se mobilizem ações e forças para sustentar essas vidas, para que elas sejam vivíveis. Por outro lado, a condição de precariedade é imposta a determinadas populações, que sofrem com as políticas intencionais de fragilização das redes sociais/institucionais de atenção à saúde, à educação, ao trabalho, inviabilizando suas existências. Para Butler (2016), tais políticas são, fundamentalmente, gerenciadas e produzidas pelo Estado-Nação, vulnerabilizando crianças e mulheres com violências cotidianas que impedem que suas vidas sejam reconhecidas socialmente e vividas dignamente. Ao mesmo tempo, é esse mesmo Estado que gerencia as políticas de proteção dessas vidas e do oferecimento da minimização das precariedades. Sob o discurso do progresso e do desenvolvimento, crianças e mulheres são submetidas a políticas de proteção que são processos violentos de anulação dos protagonismos, de desqualificação de suas capacidades e da negligência de suas necessidades materiais e simbólicas de existência.

O problema anunciado por Butler é fundamentalmente ético. É compreender as condições sob as quais certas pessoas são “reconhecíveis” e outras não o são, isto é, quais devem ser protegidas de violações e violências (BUTLER, 2016, p. 16) e quais não o serão. À condição de ser reconhecido precede a de reconhecimento; somos levados a pensar os enquadramentos assim postos, como formas analíticas dos processos desse reconhecimento de vidas vivíveis. O enquadramento, portanto, é um dos recursos oferecidos pela norma que torna inteligíveis alguns reconhecimentos.

Historicamente, a educação em escolas e universidades tem sido palco de disputas entre a manutenção de enquadramentos da masculinidade, da virilidade, do adultocentrismo, da ciência, da razão e o deslocamento para o reconhecimento das vidas que não se apresentam nesses enquadres, mas provocam fissuras em insistir em seus modos de existir. Movimentos sociais, como os feminismos e os movimentos de direitos humanos, têm importante papel na visibilidade das condições precárias de vida de mulheres e crianças, partilhadas com outros grupos sociais. Além disso, são inspiradores de uma educação democrática que priorize esse reconhecimento do compartilhamento, já que não se trata apenas de uma questão de conhecimento, mas de assumirmos o posicionamento ético de estabelecer uma perspectiva desviante da norma do enquadramento, para que diferentes expressões de vida possam coexistir e coabitar o mundo.

Crianças e mulheres, do ideal de proteção à suspensão do direito à vida

Crianças e mulheres, no sistema de pensamento ocidental, são concebidas como sujeitos infantilizados, com toda a carga semântica que esse adjetivo carrega, de dependência, menoridade, inferioridade, incompetência, atributos marcados pelas ausências e vazios que a mentalidade do progresso visa superar e preencher. Nesse jogo discursivo, infantilização e feminilização são dispositivos que se aplicam a pessoas, grupos, comunidades ou até mesmo nações, para significar uma condição primitiva, ainda não elaborada e progredida, no escalonamento do desenvolvimento (BURMAN, 2008). Não é à toa que, nos enquadres colonizadores dentro dos quais esses dispositivos são produzidos, crianças e mulheres compõem uma díade que opera na regulação e na gestão das vidas dessas pessoas a ponto de se tornar elemento estruturante de políticas. Nesse contexto biopolítico e diante da condição lacunar e vulnerável da infância e do feminino, a proteção apresenta-se como uma prática e requisito constante nas normas de reconhecimento que qualificam crianças e mulheres para serem destinatárias dessa prerrogativa.

A proteção, como prática social, política ou direito, está intimamente vinculada à ontologia que valida e chancela o reconhecimento e a legitimidade de quem pode recebê-la, posto que muito mais do que proteger alguém, protege-se um ideal, um estatuto de sujeito, demarcado por normas de existência (BUTLER, 2016). Definidoras de prerrogativas e qualificativos para existir como pessoas, cidadãos e corpos, esse conjunto de normas, argumenta Judith Butler (2013; 2016), opera o escrutínio das vidas que são dignas de serem vividas e protegidas e das vidas para as quais se voltam o repúdio, o rechaço, a ameaça e a abjeção. Essas normas de reconhecimento que balizam o estatuto de sujeito, as quais, neste caso específico, referem-se aos estatutos de infância e feminilidade, são produzidas por um regime de inteligibilidade que lhes confere a validação necessária para ter o efeito de verdade e força substantiva, ou seja, de criar a ilusão de que a sua existência prescinde de toda e qualquer produção social.

Dessa forma, amparada nessa inteligibilidade, a norma aparece como natureza e, assim, multiplica seus efeitos de poder. No entanto, para garantir a eficácia da norma, em seu efeito de verdade e em sua demonstração como natureza, é preciso investir no seu avesso, não exatamente como aquilo que a contraria, mas o que aparece, na vida social, como o seu repúdio, a sua ameaça, a sua perigosa violação. A norma, para funcionar, precisa produzir o inimigo, a ideia do mal a ser combatido. Butler (2015, p. 20) caracteriza como abjeto esse investimento normativo na produção de seu “repúdio fundacional”, assim identificado por ser parte constitutiva da norma ao fazê-la funcionar no instante em que é acionado como a ameaça que ela deve combater e destruir em nome da manutenção da “vida”.

Não se protege o que é ameaçador e perigoso. Ao contrário, a proteção presta-se para a atenção e o resguardo da vida dentro da ordenação racionalizada de um mundo habitável por aqueles/as que se alinham às suas fronteiras. Escapar dessas fronteiras é correr riscos por habitar os territórios da abjeção; é estar exposto ao rechaço e ao repúdio; para além de perder o direito à proteção, é estar na mira da eliminação. Sobre esse aspecto, Achille Mbembe (2018) acentua a racionalidade da vida como o dispositivo que produz a ideia do outro (marcado pela diferença) como um atentado à vida, alvo da ação e do funcionamento da necropolítica, que reúne dispositivos contemporâneos de subjugação de vidas ao poder da morte. A necropolítica é, para Mbembe (2018, p. 41), própria do contexto da “ocupação colonial tardia”, em que são criados “mundos de morte”, nos quais populações estão sujeitas a condições que as imputam o estatuto de “mortos-vivos” (p. 71).

Com o olhar para o passado, tal qual o exercício do anjo da história na alusão de Benjamin (1985), no trabalho de vasculhar as ruínas, acessamos as memórias de dor e sofrimento de um dos mais sangrentos períodos da história social e política do Brasil, reunidos sob a égide de um regime ditatorial cívico-militar, que se caracterizou por instituir, durante vinte e um anos (de 1964 a 1985), um Estado de exceção marcado por graves violações dos direitos humanos, como prisões arbitrárias, torturas de diversos tipos (físicas e psicológicas), violências de gênero e sexuais, desaparecimentos forçados, execuções sumárias, decretação de atos institucionais de censura nos mais diversos campos da vida social (artes, cultura, produção de conhecimento, informações etc.), ocultação de corpos de pessoas assassinadas, entre outras atrocidades. O acesso a essas memórias dá-se pela via do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), regulamentada pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011 (BRASIL, 2011), da Casa Civil da Presidência da República, durante o governo da Presidenta Dilma Rousseff, com o propósito de validar o direito à memória. Essa Comissão atuou no período de 10 de maio de 2012 a 10 de dezembro de 2014, quando foi apresentada a versão final do relatório. Esse documento é composto por três volumes e visa à reconstrução e à análise histórica dos casos de graves violações dos direitos humanos, trazendo a público instalações, locais, instituições, agentes do Estado envolvidos nas práticas dessas violações, por meio de documentos, como inquéritos policiais, fotografias, depoimentos de vítimas, de seus familiares e de testemunhas, laudos cadavéricos, entre outros (BRASIL, 2014a).

Para o escopo deste artigo, temos como foco mulheres e crianças como os alvos das necropolíticas acionadas pelo Estado totalitário do regime ditatorial no Brasil. Sabe-se muito de pessoas, como intelectuais, professores, artistas, estudantes universitários, políticos, líderes sindicais e militares dissidentes ao regime, que tiveram suas vidas ceifadas ou desmanteladas pelas violações da ditadura. Muitas dessas pessoas tiveram visibilidade histórica, na condição de prisioneiros políticos, exilados, mortos e desaparecidos. Dentre essas pessoas, houve aquelas que não tiveram essa visibilidade, mesmo tendo sido alvos das violências praticadas pelo Estado totalitário, tais como as mulheres, as crianças, as pessoas LGBTQIA+, negras, indígenas e do campo. Apesar de o relatório da CNV demonstrar esforço em trazer a público essas violências marcadas por gênero, raça/etnia, sexualidade, idade, espaço geográfico, observa-se a necessidade de análises mais aprofundadas nessas intersecções, haja vista que, na maioria das vezes em que esses marcadores sociais aparecem, são abordados de forma tangencial. O que importa salientar é a devastação das diferenças, em todos os seus matizes (de gênero, sexuais, raciais, étnicas, etárias), que marcou a ditadura cívico-militar, durante os vinte e um anos de sua história.

Os excertos, a seguir, advêm de depoimentos de mulheres extraídos do relatório da CNV, prisioneiras políticas durante a ditadura que sofreram torturas, sendo algumas delas violentadas ao terem seus filhos (crianças) usados como pivôs.

Nas narrativas dessas mulheres, são frequentes relatos de injúrias dos torturadores que remetem ao lugar abjeto que elas ocupam por terem se desviado dos papéis sociais de esposa e mãe ao entrarem no mundo político e, sobretudo, dissidente em relação ao regime em vigência. “Vacas” e “putas” são elas, as mulheres que não cumprem o rol de requisitos da mulher ideal, cujo lugar de existência é dentro da família na dedicação aos cuidados do marido e dos filhos, que ousam mudar o curso de uma história predestinada para transformá-la em luta política contra um sistema social que carrega em suas entranhas profundas desigualdades. Essas mulheres não são dignas de proteção e muitas, aos olhos do Estado repressor, deixaram de ser dignas da própria vida. Sobre elas a necropolítica é implacável. Seu corpo tem que sofrer, sangrar, sentir as dores do repúdio e da abominação sociais para que a normativa de gênero vigore com rigor. Para que essa necropolítica atue, essas mulheres têm que se tornar as “jabuticabas de asas”, o inominável, o bicho que não pode existir. O processo de produção do abjeto não apenas cria a monstruosidade, mas também interdita a possibilidade de ser, de imaginar e desejar para além da norma que o deflagra.

Em depoimento à CNV, Maria Aparecida Costa relata torturas que sofreu na Oban, entre dezembro de 1969 e janeiro de 1970:

O simples fato, eu acho, de você estar no meio de homens, só homens. Só homens que têm sobre você um olhar, como eu diria? É o olhar que te... Pelo fato de você ser mulher, também você percebe que há talvez, às vezes, uma raiva muito maior, eu não sei se é pela questão de achar “por que uma mulher está fazendo isso? Por que uma moça está fazendo isso?” E é uma forma, talvez, muito de querer te desqualificar de todas as maneiras. Inclusive, o mínimo que você ouve é que você é uma “vaca”. São as boas-vindas. (BRASIL, 2014a, p. 404, grifos dos autores).

Em 1º./6/1976, Maria Auxiliadora Lara Barcellos atirou-se nos trilhos de trem da estação de metrô Charlottenburg, em Berlim. Teve morte instantânea. Seu sofrimento ficou registrado:

Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro [...]. A Apologia da Violência. A luta pelo poder absoluto. A destruição do outro [...] O sacrifício dos bebês. Onde já se viu jabuticaba de asa, meu filho? Eu tinha comido um besouro. Ele zumbia dentro de mim furioso, para me lembrar que a imaginação incomoda muita gente. Parar de imaginar, parar de ser e de querer. Aceitar, resignar é bom, traz brisa fresca, café com leite, muita fartura. Aurora, lugar de mulher donzela é na barra do marido e lugar de puta safada é no puteiro, uai. Pra que é que nós estudamos aritmética no Exército? Para saber que dois mais dois são quatro e que não existe pecado sem ser expiado. Moça donzela você não quis, puta safada também não quer. Minha querida, esse bicho não existe. (BRASIL, 2014a, p. 423).

A tortura psicológica praticada contra mulheres envolvendo os seus filhos, escancarou uma das facetas mais cruéis da ditadura militar. A interdição e o uso da maternidade contra essas mulheres foram métodos eficazes e requintados de imputar-lhes dor e sofrimento ao atacar e arrancar o que é peculiar do feminino, a sua capacidade de carregar uma vida no ventre, como ressalta Maria Amélia de Almeida Teles em audiência pública da CNV (BRASIL, 2014a, p. 407). Aplicados sob diferentes formas, como abortos forçados e úteros destruídos em função das torturas, que também aconteciam na presença dos filhos, além das separações compulsórias entre mães e filhos, esses métodos faziam-nas lembrar que a maternidade não podia fazer parte de suas vidas, já que se afastaram dos desígnios normativos de ser mulher. Decreta-se, então, a morte da maternidade na vida dessas mulheres, mães prisioneiras do Estado de exceção, que devem pagar o preço da dissidência política com a destruição de suas entranhas e a eliminação de todo e qualquer indício, ainda que simbólico (como é o caso da fotografia proibida dos filhos de Hilda), de sua experiência materna.

Hilda Martins da Silva, esposa de Virgílio Gomes da Silva, dirigente da ALN de São Paulo que se tornaria vítima de desaparecimento forçado. Hilda se preparava para deixar o país com seus filhos quando foi presa, em 30 de setembro de 1969, e foi mantida incomunicável no Presídio Tiradentes:

No Tiradentes, eu fiquei quatro meses incomunicável. Todo mundo tinha visita e eu não. [...] Aí um dia eu combinei com as meninas de falar para os meus filhos ficarem na esquina, porque na prisão tinha uma janela com grades bem pequenininhas e na frente tinha uma chapa bem grande que a gente não via nada para fora, na frente. Mas do lado dava para ver porque era meio afastada, assim, dava para ver. Aí eu combinei com elas de falar para os meus filhos ficarem do outro lado da rua para eu ver eles. Eles não iam me ver, mas eu veria eles. Aí eles pararam lá e eu fiz um canudinho com o jornal e balançava o jornal para eles saberem que eu estava lá vendo eles e eles abanando com a mão. [...] Antes disso, eu não tinha tido notícia nenhuma dos meus filhos, então uma companheira saiu e eu falei para ela ir em casa, [...] para saber se era verdade que os meus filhos estavam com a minha família, ou não, para ela me dar notícias. Aí ela [...] tirou fotografia e tudo, mostrando os meninos, e mandou a fotografia na prisão para eu ver. Aí eu vi eles pela foto. A primeira vez que eu... o primeiro contato que eu tive, foi a fotografia deles. [...] [Mas] aí a carcereira veio e disse que eu não podia ficar com a fotografia, porque eu estava incomunicável. Eu falei: “Por quê? A fotografia está me dando alguma notícia? Alguma coisa? O que que tem fotografia?”. E ela: “Não, você está incomunicável e não pode ficar com a fotografia”. Aí, as meninas todas que estavam lá ficaram por conta com ela, e ela me deixou as fotografias [...] (BRASIL, 2014a, p. 316-317, grifos dos autores).

Nem mesmo as crianças ficam incólumes das violações, é o que nos mostra o excerto abaixo. Por serem frutos dos ventres marcados pela abjeção e descendentes da resistência, essas crianças afastam-se da infância e perdem as suas prerrogativas, dentre as quais está a proteção do próprio Estado. Extirpadas da categoria social da infância, essas crianças passam a viver “infâncias nuas” (SALGADO, 2019, p. 386) que, na esteira do conceito de vida nua de Agamben (2002), expõem o limiar da infância e a sua suspensão, demarcando as crianças que são dignas de suas prerrogativas e as que ficam destituídas dos direitos, dos cuidados e da proteção por estarem fora dos enquadres da imagem social da criança ideal. Na suspensão dessas infâncias, tal como na vida nua, os atos de violação e tortura praticados pelos agentes do Estado não pesam como crimes.

Em 1970, após o assassinato de seu marido e sua prisão pela Oban , Damaris Lucena viu seus filhos Adilson, Denise e Ângela Telma ficarem sob a guarda do Estado:

Deixar meus filhos na mão daqueles animais, daqueles bichos. Ah, nem bicho faz aquilo. Aquilo são uns monstros. Jogaram meus filhos naquele Juizado de Menor. [...] As próprias empregadas, que cuidavam lá do, daquele Juizado de Menor, falavam que meus filhos eram filhos de terrorista. E eles, coitados, humilhavam, molhavam o colchão para os meninos não deitarem. Não, era uma coisa. Esse daqui [Adilson] foi levado não sei quantas vezes pela polícia, surravam ele, socavam meu filho, com nove anos. A polícia! A polícia de Atibaia surrava meu filho. O menino não tem nada a ver com isso. Olha, gente, foi... foi um momento muito difícil pra mim, ver meus filhos serem massacrados. Eu sabia, eu sabia que eles iam massacrar meus filhos para eles falarem. (BRASIL, 2014a, p. 410).

As memórias das tragédias que marcaram a ditadura militar no Brasil, bem como as de tantas outras em momentos históricos de predomínio do terror, como o da escravização de pessoas negras, muito nos têm a dizer e ensinar sobre democracia, cuja experiência coloca-nos diante da necessidade imperiosa de não esquecer. Essa necessidade é, por sua vez, um trabalho educativo de resistência à produção do esquecimento que opera como uma necropolítica com mira nas memórias do trágico para impedir que suas dores sejam sentidas e pranteadas, pois admiti-las é reconhecer as vidas violadas, exterminadas e desaparecidas como vidas dignas e plenas de direitos; é viver o seu luto público.

O desaparecimento social como necropolítica da memória

Lembrar o passado não é simplesmente recordar o que aconteceu ou se reportar a um tempo pretérito, anterior ao presente da lembrança, em conformidade ao curso da cronologia. Quando trazemos as memórias da ditadura militar no Brasil, o fazemos em um tempo presente que nos convoca a vasculhar esse passado para compreendê-lo, ou melhor, para ouvir as vozes do passado que ainda ressoam na atualidade. Jeanne Marie Gagnebin (2014) afirma a importância de os episódios esquecidos do passado poderem se interpelar mutuamente com a imprevisibilidade do presente, criando outra dimensão temporal que está longe de ser a imagem presentificada do passado rememorado. As diferenças produzidas são as ressonâncias das vozes passadas que vibram no presente e que, no caso específico da ditadura militar, ainda gritam por justiça, não apenas aquela das indenizações pessoais pelos danos causados, mas pela memória do trágico que jamais pode ser repetido, banalizado, muito menos aclamado.

O debate democrático requer uma política da memória que vá na contramão das políticas de esquecimento postas em curso no Brasil durante séculos, sobretudo a partir da anistia que deflagrou o fim da ditadura, com base em um pacto conciliatório promovido por militares que os isentou dos tribunais como moeda de troca para a libertação das pessoas condenadas pelo regime por ameaças à ordem pública e à segurança nacional. O esquecimento forçado tem sido o principal resultado dessa reconciliação, que perdura até os dias atuais. Pactua-se para sufocar as vozes do passado, para decretar a interdição da memória coletiva e do luto público. Apagam-se as mortes, as torturas, os desaparecimentos forçados, todas as violências praticadas, com as suas dores e sofrimentos. Institui-se no imaginário social a eliminação do trágico e, no seu lugar, constrói-se a retórica épica do desenvolvimento e do progresso como alavancas da sociedade brasileira durante a ditadura militar. Como faces de uma mesma moeda, o trágico e o épico complementam-se e sustentam-se mutuamente. O combate às memórias do trágico passa pela celebração do épico como forma de justificar a tragédia. Afinal, que vidas importam para a eficácia da engrenagem e o incremento do desenvolvimento da nação? Muito provavelmente, são aquelas que não causam fissuras aos ideais de vida e ao estatuto de sujeito adequados ao modus operandi do aparato estatal e de sua ordem social.

A produção do esquecimento como apagamento e renúncia do trágico é uma necropolítica da memória que, ao trabalhar em favor do desaparecimento social das torturas, das vidas destruídas, dos assassinatos e dos corpos desvanecidos, deixa abertas as frestas para a reedição do terror. Estamos vivendo essas cenas no Brasil atual, da segunda década do século XXI, marcadas pelos apelos ao retorno da ditadura militar, ao fechamento do Congresso Nacional e do Senado Federal e à volta do AI-5, ato institucional decretado em 13 de dezembro de 1968, que autorizou censuras, demissões de servidores públicos, perseguições políticas, a suspensão do habeas corpus, a exclusão de apreciação jurídica de todos os atos abrangidos por ele, ou seja, a decretação da vida nua mediante o cometimento de crimes contra a vida sem a jurisprudência que assim os julgue.

Resistir a essa necropolítica requer uma política da memória que insista na luta contra a repetição do terror e no aparecimento social das vidas que viveram o trágico e das mortes que a tragédia provocou ou escondeu sob os escombros. Essa resistência passa pelo luto público, pelo reconhecimento social e coletivo das violências praticadas contra as vidas, para as quais foram interditados o pranto, o lamento, o sentimento de perda e a própria morte, por não terem sido chanceladas como vidas.

Considerações finais

O esquecimento das tragédias do passado da escravidão e da ditadura reverberam com força na indiferença do presente diante das violências de gênero e sexuais, das torturas e mortes de mulheres, homens e crianças negras/os e indígenas, de pessoas LGBTQIA+, de pessoas pobres das periferias urbanas e do campo, cujas vidas não importam para um estado de exceção que promove e se beneficia com os “mundos de morte” (MBEMBE, 2018, p. 71). A indiferença é deflagrada pela alteridade em ruínas, pelo não reconhecimento do outro em sua diferença digna e legítima, em sua potência de transformar o que já está dado. Além disso, a indiferença, por não reconhecer a dignidade e a legitimidade do outro, nega-lhe o apreço e o cuidado. Essas vidas perdidas, como afirma Butler (2016, p. 53, grifo da autora), “não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”. Nesse sentido, o cultivo da indiferença e a interdição do luto público caminham juntos, são facetas de uma mesma política de extermínio da memória do trágico.

Retomamos a questão posta inicialmente sobre os desafios que a educação tem diante das políticas de devastação das diferenças, presentes e promovidas também pelos movimentos conservadores anti-gênero, e da produção do esquecimento dos mortos e torturados do passado da ditadura. Compreender e interrogar o passado para estabelecer uma relação crítica com o presente, questionando e criando formas de resistência às políticas de aparecimento e desaparecimento social vigentes nesse tempo, pode ser uma das respostas possíveis. A democracia e a luta cotidiana pela sua defesa, para que seja uma experiência compartilhada na vida social, têm na educação um dos seus mais importantes pilares. Reativar o passado por meio da regeneração dos ares envenenados, que ainda contaminam o presente, é o que Isabelle Stengers (2017) nos propõe a fazer como forma de entendimento crítico dos vestígios, que ainda nos intoxicam, para que possamos re-habitar o mundo. É possível que este seja um modo de compreensão possível do passado e de sua relação com o presente, que inspire práticas educativas de resistência à repetição das políticas de exclusão e de exceção. Uma educação comprometida com a democracia não pode se curvar ao silenciamento das diferenças e ao esquecimento compulsório do trágico em nome da narrativa do progresso e do desenvolvimento. Uma educação democrática não pode negociar com as mordaças que produzem as abominações de gênero e sexuais por meio da insistência em calar o debate público sobre o sofrimento e a morte produzidos pelas necropolíticas do passado que se perpetuam no presente. Ao contrário, uma educação democrática alimenta-se das diferenças e do debate aberto às suas disputas, bem como torna o luto público possível como forma de enterrar os mortos do passado porque o presente precisa se nutrir de suas memórias para que o futuro seja construído como antídoto da barbárie.

Financiamento Auxílio do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX/CAPES -798/2018); Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - (Fapesp -17/14706-3); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2Perspectiva teórico-metodológica proposta por feministas negras, como crítica ao feminismo que assume a mulher branca e suas reivindicações e condições sociais como aplicáveis a todas as mulheres. O termo “interseccionalidade” foi originalmente cunhado pela jurista afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw, no final da década de 1980, com o propósito de dar visibilidade e consistência teórico-metodológica à impossibilidade de separar estruturalmente capitalismo, racismo e patriarcado, de modo a articular marcadores sociais de diferença em seus efeitos culturais, políticos e subjetivos. (AKOTIRENE, 2019).

3 Ação Libertadora Nacional, grupo de resistência contra a ditadura militar no Brasil, liderado por Carlos Marighella.

4Operação Bandeirantes, criada em 1969, pelo II Exército, em São Paulo, com o objetivo de combater organizações que faziam resistência política à ditadura militar na região da Grande São Paulo.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 14 de Setembro de 2020

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