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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75686 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Democracia e diferença em tramas político-curriculares contemporâneas: o Escola Sem Homofobia em análise

José Rafael Barbosa Rodrigues* 
http://orcid.org/0000-0001-5893-885X

Josenilda Maria Maués da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-4480-2331

*Universidade Federal do Pará. Belém, Pará, Brasil. E-mail: rafaelrodrigues92@outlook.com – E-mail: josimaues@gmail.com


RESUMO

No texto, apresentamos uma aproximação analítica sobre discursos contemporâneos em torno da diferença sexual em suas referências à educação e, mais especificamente, ao currículo. Objetivamos expor o discurso da diversidade sexual como um dispositivo de controle e regulação da vida e de produção de subjetividades específicas que tenta fechar, de uma vez por todas, os flancos da radicalidade democrática da diferença, mas também, como um espaço onde a vida pode insurgir-se e produzir outros possíveis na educação. O material empírico utilizado para esse exame foi o caderno de conteúdos do Projeto Escola Sem Homofobia, documento produzido no contexto das políticas anti-homofobia assumidas pelo Estado na contemporaneidade. Em sua articulação teórico-metodológica, a análise é realizada em bases pós-estruturalistas recorrendo ao pensamento da Diferença, de Michel Foucault, em suas articulações político-discursivas. Os resultados apontam para o fato de que, embora o programa Escola Sem Homofobia esteja centrado em um discurso pautado na diversidade sexual de tônica neoliberal, é possível encontrar fissuras onde a diferença vibra e possibilita a visualização de linhas de resistência e fuga, indiciando outras referências ético-políticas para a experiência e tratamento da sexualidade nos currículos, compilando colisões para um horizonte democrático na educação. Ainda que exista uma tentativa de determinação final da experiência da sexualidade nas políticas anti-homofobia, pautadas pela fixação de identidades, esse se torna um projeto impossível, frente a pujança da diferença.

Palavras-chave: Currículo; Escola Sem Homofobia; Diferença; Democracia

ABSTRACT

In this work, we show an analytical approach to contemporary discourses on sexual difference in their references to education and more specifically to the curriculum. We aim to expose the discourse of sexual diversity, as a device for controlling and regulating life and the production of specific subjectivities that tries to close, once and for all, the flanks of the democratic radicality of difference, but also as a space where life can rise up and produce other possibilities in education. The empirical material used for this exam was the content book of the School Without Homophobia Project, document produced in the context of anti-homophobia policies, assumed by the State in present days. In its theoretical-methodological articulation the analysis is carried out post-structuralist bases using Michel Foucault's thought of difference in his political-discursive articulations. The results point to the fact that, although the School Without Homophobia program is centred on a discourse based on identity and in the diversity of tonic neoliberal, it is possible to find cracks where the difference vibrates and allows the visualization of resistance and escape lines, indicting other ethical-political references to the experience and treatment of sexuality in curriculum, compiling collisions for a democratic horizon in education. Although there is an attempt to determine the final experience sexuality in anti-homophobia policies guided by the fixation of identities, this becomes an impossible project, given the strength of the difference.

Keywords: Curriculum; School Without Homophobia; Difference; Democracy

Introdução

A partir do final dos anos 1980 do século XX, impulsionado pelo contexto de redemocratização do país, os movimentos sociais ligados aos marcadores “identitários” passaram a se organizar em torno de demandas políticas pelo reconhecimento das diversidades e diferenças que constituem a pluralidade étnico-racial, sexual e de gênero constitutivas das subjetividades humanas. Nos mais diferentes campos de luta, os movimentos e ativismos demandaram, por um lado, o reconhecimento de seus direitos e, por outro, a reparação dos processos históricos de preconceito, violência e discriminação. Assim, foram articuladas variadas negociações e tensionamentos para desencadear um conjunto de estratégias que assegurassem essas reparações por igualdade e pelo reconhecimento das desigualdades produzidas historicamente.

A denúncia histórica contra o processo de invisibilidade, preconceito e violência contra a população LGBTQIA+ foi um destes disparadores das discussões sobre o reconhecimento de direitos e das diferenças sexuais como pauta assumida pelos governos. Nesse contexto, a parceria entre movimentos sociais, especialmente os de “minorias culturais”, e o Estado, conduziu a formulação e implementação de políticas sociais para essa população na educação, cultura e saúde.

Acompanhadas pela defesa da democratização da sociedade, essas demandas políticas e identitárias, sobretudo a partir dos anos 1990, foram contingencialmente incorporadas em decisões de cunho curricular, tais como a adoção de temas transversais ligados à “pluralidade cultural” e “orientação sexual” nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997).

Em 2003, com a vitória de Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), a agenda anti-homofobia ganhou importante notoriedade com a definição, no Plano Plurianual do Governo, do Programa Brasil Sem Homofobia, que foi direcionado como política central para o combate das desigualdades de gênero e sexualidade, bem como de enfrentamento do preconceito e discriminação da então denominada população LGBT, a partir de sua execução em 2004.

No cerne do Brasil Sem Homofobia, esteve, a partir da ação V, “Direito à Educação: promovendo valores de respeito à paz e à não discriminação por orientação sexual” (CONSELHO..., 2004 , p. 22), , a estratégia de desenvolver diretrizes que pudessem orientar os sistemas de ensino à promoção de ações para a não discriminação por orientação sexual nos espaços educativos, como a escola (BRASIL, 2004). Em 2009, financiado pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECADI), surgiu o Projeto “Escola Sem Homofobia” (ESH).

Direcionado às escolas, o projeto visava, por meio de mudanças nas práticas escolares e no currículo, promover um ambiente propício à igualdade e ao respeito à diversidade no cotidiano escolar, tendo como principal meta o reconhecimento das diferenças morais, culturais e sociais da sociedade brasileira, e o comprometimento com os direitos humanos e a inclusão das pessoas LGBT (CADERNO..., 2009).

O Projeto Escola Sem Homofobia, assim como o Programa Brasil Sem Homofobia e todo o arsenal político anti-homofobia, desde sua origem, sofreu constantes ataques, o que ocasionou seu desmonte e a descontinuidade dessas políticas. Após ataques das forças conservadoras no Congresso Nacional, o ESH foi vetado. Em outras palavras, o ESH não chegou a ser “implementado” nas escolas; não chegou diretamente como deveria chegar - como um material pedagógico-curricular - mas, de fato, produziu e ainda tem produzido frequentes articulações discursivas, sendo um dos fatores decisivos para os resultados das eleições de 2018, conforme demonstraremos nas considerações finais do texto.

O objetivo do presente texto é problematizar em que medida a entrada destas demandas políticas por reconhecimento das identidades, pautadas pela articulação discursiva da diversidade e democracia, tencionam a desconstrução de hierarquias de gênero e sexualidade construídas historicamente e reforçam a permanência de essencialíssimos, reproduzindo essas hierarquizações e precarizando o caminho para ensejos democráticos na educação. O texto busca, portanto, estabelecer relações entre os discursos da diversidade-identidade e de possibilidades que apostem na radicalidade democrática da afirmação da diferença sexual para pensar as relações de desejo, corpo, e amor, na educação.

Em especial, incursiona em uma análise destas relações estabelecidas entre agendas políticas estatais, o currículo e os processos de subjetivação. Movimenta, para isso, os agenciamentos políticos estabelecidos para as agendas anti-homofobia, na configuração educacional no Brasil, notadamente, o Caderno de Conteúdos do Projeto Escola Sem Homofobia, sendo esse documento o material empírico central. Especificamente, o texto busca compreender a relação entre os discursos produzidos no interior do Escola Sem Homofobia e a produção de sujeitos/subjetividades sexuais: “[...] como objetos relativos à governamentalidade, isto é, como um instrumento relativo ao governo, ou, mais precisamente, como uma peça importante do aparato disciplinar e biopolítico relativo ao governo dos corpos de crianças e jovens” (CÉSAR, 2010, p. 226).

Com esse intento, aposta na força das construções discursivas e acionamentos de práticas que interditam, regulam e formam relações muito específicas entre os sujeitos e suas sexualidades, suas condutas e seus modos de vida. Trata-se aqui, metodologicamente, de um investimento foucaultiano voltado para “[...]mobilizar reflexões que nos ajudem a pensar sobre as novas formas de governo no mundo contemporâneo, isto é, sobre essa nova governamentalidade, a biopolítica neoliberal” (CÉSAR, 2010, 228).

Na perspectiva discursiva de Foucault (1989; 2002; 2014), é possível identificar os variados dispositivos de governamentalidade programados para a subjetivação dos sujeitos e das experiências políticas-estéticas que são demandadas pelas forças políticas. Sob essa clave identificamos, ainda, que o discurso, como nos lembra Foucault (2014), não é o que oculta ou manifesta o desejo, mas o próprio objeto de desejo. A experiência sexual das políticas, tal como o Escola Sem Homofobia, enquanto uma prática discursiva, é o próprio objeto de desejo-sexual, produzido na contingência política agora demandada pela economia e pelas disputas e antagonismos socioculturais de nosso tempo. Não são apenas os aspectos que traduzem as lutas, “[...] mas aquilo porque se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2014, p. 10).

Neste texto não nos ocuparemos de denunciar o que funcionou ou não no Escola Sem Homofobia, mas tentar encontrar os modos que fazem ele ter sido planejado como foi, suas reverberações e, consequentemente, seus efeitos de subjetivação, a fim de demonstrar que podem funcionar de outras formas, produzir outras vidas, outras existências. Se no currículo escolar somos (re) produzidos, é lá também que resistimos. Se o currículo fala de nossa subjetividade, lá se fala também da subjetivação. Trata-se, assim, de um exercício teórico e analítico da educação na contemporaneidade, dos dispositivos de poder que produzem sujeitos e nos tornam o que somos. E, antes de tudo, um investimento político-estético que afirma a diferença sexual, para prover outras significações para escola e para o currículo, disputando demandas que se coloquem em contingências políticas para a atualidade.

Na primeira parte do texto, apresentamos uma análise sobre a composição do Escola Sem Homofobia e do discurso da diversidade sexual, de tônica neoliberal , assumido no interior do documento. Posteriormente, buscamos mostrar como mesmo em meio a esses discursos que tentam regular a sexualidade, é possível encontrar fissuras e forças afirmativas da diferença sexual, capaz de produzir outros possíveis para educação e para o currículo. Por fim, serão feitas algumas considerações gerais sobre as políticas anti-homofobia assumidas pelo Estado e suas implicações e efeitos do ponto de vista da política de modo geral, em tempos de avanço conservador.

O Escola sem Homofobia e o discurso da diversidade sexual: linhas de subjetivação no currículo

Desde os anos 1990, resultando de lutas históricas do movimento LGBT pelo reconhecimento de direitos e contra as formas de discriminação e preconceito, um agenda anti-homofobia foi construída, atravessando a educação e a escola, como um espaço estratégico de resistência para a superação das violências por sexualidade ou gênero.

No campo educativo, especialmente no curricular, uma agenda de políticas que dizem sobre a sexualidade e as relações de gênero, orientação sexual, diversidade sexual, identidade de gênero, dentre outros temas, tem sido implementada pelo Estado brasileiro. Os discursos e enunciações que permeiam a relação entre a educação e a inclusão do “sujeito de direitos” dizem de uma política preocupada em incluir o “outro” da diversidade sexual, aquele que por expressar-se performaticamente de uma outra forma que não a heterossexual, é massacrado existencialmente em meio a aparatos discursivos que o marginalizam e tolhem, ao mesmo tempo em que corpos resistem pelas brechas do poder e por outros modos de vida.

Por gênero e sexualidade, entende-se, nesta pesquisa, os dispositivos produzidos histórico e culturalmente pelos variados discursos que buscam controlar e docilizar os corpos, nas teias do saber/poder (FOUCAULT, 1989). Logo, as “orientações” e as diversidades sexuais, bem como as relações e identidades de gênero, figuram como discursos produzidos nas articulações políticas entre os variados grupos sociais para dizer de uma “verdade” sobre o corpo sobre o sexo, ora cumprindo um papel normativo que as reduzem ao papel biológico dado aos sujeitos, ora como as diferenças construídas também discursivamente pela sociedade e pelas instituições (LOURO, 2008; BUTLER, 2008).

No bojo da política nacional de combate à discriminação por orientação sexual na escola, com especial foco na produção de diretrizes que orientem os Sistemas de Ensino, e com o objetivo de atender às demandas do Programa Federal “Brasil Sem Homofobia”, o projeto “Escola Sem Homofobia”, também conhecido como “kit anti-homofobia”, foi o projeto mais polêmico dentre os materiais produzidos pelas políticas anti-homofobia na primeira década do século XX.

Ironicamente apelidado de “Kit Gay”, o material foi fortemente atacado pelas forças conservadoras e neoconservadoras que atuavam no Congresso Nacional e em outros espaços naquele momento, e que hoje se encontram no poder. Em 2011, a Presidenta Dilma Rousseff vetou o Kit, com a justificativa de que não poderia tomar partido em um assunto polêmico. Notadamente, o governo cedeu aos grupos conservadores em nome de uma governabilidade política, considerando que naquele momento o avanço dos grupos políticos e econômicos que ameaçam hoje a democracia já estavam em incubação. Como apontou Junqueira (2018), trata-se dos mesmos grupos responsáveis pelas articulações político-discursivas da “ideologia de gênero”, que ameaçam ainda mais os direitos humanos e sexuais da população LGBTQI+, bem como aprofundam as desigualdades de acesso à saúde e educação para esta população.

Composto por vídeos e cartilhas, dentre outros materiais com abordagem da sexualidade homoafetiva, o kit seria distribuído para cerca de seis mil escolas públicas do Brasil, por meio do Programa Mais Educação. Com o objetivo de articular o combate à homofobia e à discriminação por orientação sexual nos espaços escolares, o projeto resultou de um convênio entre o Ministério da Educação - MEC, que utilizou recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, com a organização não governamental “Comunicação em Sexualidade” - ECOS. O Escola Sem Homofobia foi um programa que buscou contribuir para a implementação de ações positivas em favor de ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos e do respeito à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero no ambiente escolar.

O Caderno de Conteúdos do Escola Sem Homofobia faz referência a esse quadro político:

A inclusão de uma política de direitos LGBT numa política de direitos humanos é consequência das diversas instâncias de diálogo e negociação entre o governo e a sociedade civil. Avanços importantes aconteceram com os Planos de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo,1994) e da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing 1995), pelo reconhecimento dos direitos sexuais e direitos reprodutivos como direitos humanos. O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2008), a I Conferência Nacional de Políticas Públicas para a População LGBT (2008), o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (2009), o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT (2009) e a criação do Conselho Nacional LGBT (2010), são respostas inequívocas do compromisso do governo brasileiro com a igualdade e a justiça social para todas as pessoas (CADERNO..., 2009, p.11).

Notadamente, o léxico que compõe as enunciações do Escola Sem Homofobia aciona a democracia, a igualdade, a justiça, os direitos humanos, conceitos e temas muito caros aos movimentos sociais. Ao acionarmos a linguagem em sua força constitutiva admitimos que o uso desses conceitos produz alguma coisa. Produz certas realidades, certas experiências políticas, certas poéticas de existência. Neste campo discursivo que vem sendo reconhecido, as práticas de sujeição da sexualidade dessa população estão sendo produzidas e redefinidas. A homofobia, por exemplo, tem sido objeto de constantes investidas discursivas para a compreensão desse fenômeno e as possibilidades de seu enfrentamento.

Não é pretensão deste texto proferir a negação dos avanços apresentados por essas políticas para o reconhecimento de direitos historicamente negados aos abjetos da sexualidade: os que experimentam outras performatividades de corpo, gênero e sexualidade - gays, lésbicas, transgêneros, transexuais, travestis, bissexuais; grupos marginalizados dentro e fora do espaço escolar, pelos padrões heteronormativos. Contudo, conforme alerta Mouffe (2003, p.22), “A luta pela igualdade que esteve na pauta da socialdemocracia precisa ser enfrentada de uma maneira mais abrangente, levando em conta a multiplicidade de relações sociais nas quais a desigualdade existe e deveria ser desafiada”.

Foucault (1989), em sua História da Sexualidade, fala sobre o plano histórico que versa sobre a sexualidade, sobre o discurso que passou a ser proferido sobre o sexo, e a importância deste último para os mecanismos de poder que nos assujeitam e nos constroem, e, da mesma maneira, sobre as formas de resistência do corpo que é construído por estes dispositivos. O modo como se exerce poder sobre uma determinada população, como já anunciado pelo filósofo, dá-se pela verdade dita sobre esse corpo e sobre a sexualidade. Fundadas nas relações de poder-saber e nos regimes de verdade, são produzidas discursivamente normalidades e anormalidades sobre estas performances, seja de gênero ou de sexualidade.

Desta feita, as políticas curriculares, a exemplo do Escola Sem Homofobia, produzem sentidos e incorporam práticas de subjetivação que incidem em relações éticas e estéticas; poéticas de existências, que se dão de forma antagônica em diferentes dimensões e agrupam variadas demandas e enunciados, como observado nos excertos:

O problema que temos à nossa frente é o de como lidar com a diversidade sexual, seja na escola, seja na sociedade em geral. Noutras palavras, como podemos aprender (e também ensinar) que, na verdade, são múltiplas as formas de vivenciar os afetos e a sexualidade? Isso implica dizer também que a heterossexualidade, ainda considerada como o padrão, continua a ser vista como a “única” maneira “correta” de expressão do erotismo e da união conjugal. Por isso não é nada fácil para alguém admitir que não é heterossexual, isto é, que é homossexual ou bissexual. Quem sente um forte desejo por alguém do mesmo sexo (ou por ambos) se vê acuado pelo clima adverso que a/o condena como imoral ou pervertida/o, como anormal e até mesmo como doente mental (CADERNO..., 2009, p. 29).

São praticamente infinitas as variedades de estilo de comportamento, de identidades - entendidas como a imagem que se tem de si mesma/o e das/dos outras/os - e de atração afetiva e erótica. Essa pluralidade é a pedra de toque do universo colorido e amplo da diversidade sexual (CADERNO..., 2009, p. 29).

Os excertos acima, ainda que coloquem em xeque os padrões da heterossexualidade e adotem uma visão pluralista de sexualidade, atestam a exigência em “lidar” com a Diversidade Sexual na escola e na sociedade, tratando-se de uma demanda política, vista como uma “identidade”, por vezes colocada como uma condição elementar da sexualidade humana: condição em que as diferenças sexuais são vistas como identidades e, ainda que plurais, finitas e nomeáveis. A conduta sexual fica, assim, condicionada à pluralidade de práticas sexuais. Diversidade é a celebração das diferenças. Seguindo esta lógica, é necessário “respeitar” a diversidade, “tolerar” a diversidade, “aceitar” a diversidade, promover a diversidade, compreender que a diversidade é parte de nós. Nós somos diversos, plurais.

No entanto, ao acionar a diversidade, não são colocadas em questão as relações que produzem as diferenças sexuais, os processos e dinâmicas culturais, as políticas e poéticas de existência que regulam os corpos e as vidas. A forma como o discurso da diversidade é assumido nos fragmentos e excertos diz de uma forma de lidar com as sexualidades, com os desejos, com as performances sexuais, assumidas pela política oficial produzida pelo Estado e suas múltiplas capilaridades de poder. De outro modo, a diversidade tem sido assumida como uma prática sexual, uma interdição, uma verdade sobre o sexo dos sujeitos. Usando Foucault (1989), trata-se de um discurso verdadeiro sobre o sexo. Para o filósofo,

A “sexualidade” é o correlato dessa prática discursiva desenvolvida lentamente. As características fundamentais dessa sexualidade não traduzem uma representação mais ou menos confundida pela ideologia, ou um desconhecimento induzido pelas interdições; correspondem às exigências funcionais do discurso que deve produzir sua verdade (FOUCAULT, 1989, p. 67).

Fica manifesto, então, que a formação discursiva que gravita em torno da “diversidade sexual” e da “identidade” está, de um modo ou de outro, funcionando como um dispositivo de sexualidade. A Diversidade Sexual, desse modo, assume um caráter de acontecimento discursivo, por apresentar-se como uma série homogênea descontínua, uma em relação à outra. O uso recorrente da Diversidade Sexual, enquanto experiência sexual, nas políticas educacionais, nos textos teóricos que têm subsidiado as discussões do enfrentamento à homofobia, bem como a própria política requerida pelo movimento LGBTQIA+, incide na forma como esse acontecimento tem sido absorvido como um discurso. O acontecimento discursivo da Diversidade Sexual tem um lugar, uma posição, “[...] e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material” (FOUCAULT, 2014, p. 54).

Evidenciar as identidades e dar-lhes “visibilidade” no discurso do Escola Sem Homofobia, funciona como uma forma de enfrentamento da violência contra LGBTs. A noção de diversidade sexual, então, fica condicionada a uma política que deseja romper com os processos repressivos para com aqueles e aquelas que fogem da norma heterossexual. O ato de enunciar uma visibilidade das identidades culturais, embora registre sua pluralidade, não encaminha para a desconstrução do que é considerado e legitimado como “normal”. Não coloca em xeque as relações de produção das diferenças.

Se por um lado essa ideia de uma política representacional serve como um meio político para produzir visibilidade e legitimidade a determinados indivíduos, como os LGBTs, nos excertos do Escola Sem Homofobia, como texto que os localiza como sujeitos políticos, por outro lado, pode ser, também, utilizada como uma forma de normatização dessa população, agindo como uma “[...] função normativa de uma linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria” (BUTLER, 2008, p. 18).

Encontramos, assim, uma gama de conceitos que têm muito a dizer sobre que sujeito se quer forjar: o sujeito da igualdade, respeito, da justiça, universalidade, dos valores morais, o cidadão. Do mesmo modo, é possível compreender que é num investimento da Diversidade, ou melhor, do respeito à Diversidade, que é possível acabar com a violência contra homossexuais, lésbicas e transexuais, assumindo essa racionalidade. Como é possível verificar:

O ideal é que, em contrapartida, se desenvolvam, na escola, ações em que o leque de possibilidades seja aberto e abrangente em relação à diversidade humana, em geral, e à diversidade sexual, em particular. Isso poderia levar à indagação sobre o fato de não existir uma única palavra positiva para designar socialmente as/os LGBTs (CADERNO..., 2009, p. 36).

Especialistas vêm mapeando violências, preconceitos e discriminações envolvendo todas/os que participam da escola e propondo uma cultura de convivência com a diversidade sexual que pode se valer da informação, mas que deve se utilizar, principalmente, do debate e do questionamento para o enfrentamento dos discursos e das práticas de discriminação e violência por preconceito de gênero e orientação sexual, conjunto de atitudes denominado homofobia (CADERNO..., 2009, p. 49).

Um caminho para se chegar a uma escola sem homofobia, que respeite as diversas orientações sexuais e identidades de gênero, é elaborar planos de ação que focalizem, de forma institucional, as discriminações contra a diversidade sexual no cotidiano escolar (CADERNO..., 2009, p. 97).

Os excertos supracitados do caderno de conteúdo do Escola Sem Homofobia expõem em suas superfícies aquilo que desejam produzir na escola: uma forma de lidar com a diversidade sexual, constituindo uma cultura de convivência entre as diversidades. Uma escola que tenha em seu núcleo o respeito para com as diversas orientações sexuais e identidades de gênero. Uma educação que ainda vê o “outro” distante, aquele que não sou eu.

A fabricação de identidades “legítimas”, adequadas aos padrões prescritos nos enunciados, não estaria aprisionando a Diferença que pode emergir dos corpos? A condução de certas práticas sexuais no Escola Sem Homofobia indica que, para que sejam aceitos, respeitados ou, ainda, para que seus direitos sejam efetivamente garantidos, os sujeitos de que fala precisam elaborar consigo mesmos, enquanto relação ética, uma roupagem estética e performática de suas experiências de gênero e sexualidade que se alinhe ao aceitável, dentro da própria lógica da diversidade em suas conexões e afastamentos em relação ao padrão heteronormativo ainda referente quando nos situamos no campo da identidade.

Diante disso, o discurso da Diversidade Sexual contido no ESH, que imprime sentidos e significações da condição humana da sexualidade, do lugar do currículo nos processos de subjetivação, está inserido em uma lógica político-econômica peculiar ao tempo histórico que estamos atravessando: a lógica neoliberal de regulação da vida e dos corpos.

A esse respeito, Sierra (2013), ao descrever a relação que se tem estabelecido entre o discurso da diversidade sexual e os dispositivos de biopolíticas no campo da elaboração de políticas educacionais, indica que, nessa nova configuração, essas práticas discursivas acabam por produzir dispositivos e mecanismos de governamentalidade dos modos de vida, capturando as diferenças sexuais. Para o autor, os movimentos sociais contemporâneos, sobretudo os grupos provenientes das chamadas “minorias culturais”, atuam a partir de dinâmicas organizadas pela requisição das suas demandas, a partir do reconhecimento de suas características específicas ou pela representação de suas identidades. A educação, por exemplo, é um campo em disputa e de lutas sociais onde vários grupos minoritários demandam representação, seja na produção do conhecimento escolar, seja por sua inclusão na escola.

Brown (2018), nessa linha, demarca que a economização neoliberal das subjetividades e da política, na contemporaneidade, está notadamente ensejada por uma produção discursiva de conversão da vida em capital humano, como afirma:

Enquanto o neoliberalismo busca manifestamente emancipar os indivíduos das redes de regulamentação e intervenção estatais, ele envolve e vincula esses mesmos indivíduos em toda esfera e instituição neoliberalizada da qual participam. Apontando a conduta empreendedora em todos os lugares, ele constrange o sujeito a vestir-se à moda do capital em todos os lugares (BROWN, 2018, p.7).

A descrição de Brown (2018) sobre a forma como o neoliberalismo tem participado/determinado a regulação da vida e das subjetividades, por meio de uma economização disfarçada de emancipação do sujeito, parece-nos bastante atual para explicar as recentes políticas anti-homofobia pautadas pela governamentalidade: se por um lado essas políticas estão preocupadas com a emancipação do sujeito, elas podem afirmar práticas de subjetivação específicas, que buscam cercear a diferença.

Para Mouffe (2003, p.20), compreender a democracia moderna com pluralismo político, traz consistentes consequências, pois “[...] podemos entender por que tal democracia exige a criação de identidades coletivas em torno de posições claramente diferenciadas, assim como a possibilidade de escolha entre alternativas reais”. Para a autora, é justamente a radicalização da tomada de posições que configura a disputa democrática na formação de experiências sejam individuais ou coletivas de identidade.

Diante das contribuições de Mouffe (2003), a ideia de diversidade-identidade presentes no Escola Sem Homofobia não rompe com a hegemonia da democracia liberal presente nos discursos políticos contemporâneos. Por outro lado, “Está claro que a ausência de uma vida democrática dinâmica, com uma real confrontação entre uma diversidade de identidades políticas democráticas, prepara o terreno para outras formas de identificação de natureza étnica, religiosa ou nacionalista” (MOUFFE, 2003, p. 20).

Sobre a relação entre democracia e os projetos neoliberais de sociedade e política, Brown (2018) tem apontado que a democracia que passa pela economização estatal típica da racionalidade neoliberal transforma as práticas produzidas no interior dessa concepção de democracia em relação à produção de subjetividades: “Eles perdem sua validade política e ganham outra, econômica: a liberdade é reduzida ao direito ao empreendedorismo e sua crueldade, e a igualdade dá lugar a mundos ubiquamente competitivos de perdedores e vencedores” (BROWN, 2018, p.8).

De modo geral, esta racionalidade neoliberal de democracia e de subjetivação está profundamente associada com a produção de políticas sociais estatais, entre elas, as educacionais e curriculares, a exemplo das concepções de diversidade sexual e identidade encontrados nos enunciados do Projeto Escola Sem Homofobia.

Diante disso, o problema a ser enfrentado acaba sendo o de compreender o que essas políticas, a exemplo do Escola Sem Homofobia, podem produzir enquanto projeto de formação humana. Sobre essa relação, Brown (2018) destaca:

Formalmente liberados da interferência legal em suas escolhas e decisões, os sujeitos permanecem, em todos os níveis, identificados e integrados aos imperativos e prédicas do capital. Assim, enquanto a cidadania neoliberal deixa o indivíduo livre para cuidar de si mesmo, ela também o compromete, discursivamente, com o bem-estar geral - demandando sua fidelidade e potencial sacrifício em nome da saúde nacional ou do crescimento econômico. (BROWN, 2018, p.10)

A aposta em significantes políticos-estéticos pautados pela lógica neoliberal de diversidade tenta fechar as possibilidades de afirmação da inevitável e pujante diferença que transborda a definição de qualquer documento curricular. Contudo, as fissuras que afirmam a diferença são imprevisíveis e inconstantes, sobrando espaço para a postulação de outros possíveis, como exploraremos a seguir.

A diferença que brota em meio ao discurso: radicalizar a democracia, investir em outros modos de vida no currículo e na educação

O currículo, essa “caminhada para nos tornarmos o que somos”, indica efeitos alcançados na escola que nem sempre estão explicitados nos planos e nas propostas, não sendo, por isso, claramente percebidos pela comunidade escolar (CADERNO..., 2009, p.61)

O excerto em destaque, ainda que não totalmente livre da concepção de currículo enquanto prescrição, anuncia o inevitável: o currículo é lugar de construção de subjetividades. Como destacado na seção anterior, o Escola Sem Homofobia está fortemente marcado por uma articulação político-estética pautada pela governamentalidade neoliberal, pela identidade enquanto essência, e pela diversidade sexual, em uma operação que estanca a fluidez e a força da diferença e da democracia. Contudo, a abordagem teórica aqui adotada impede que busquemos uma leitura única e inevitável sobre os sentidos da política e do currículo.

O que é o currículo se não aquele lugar de força e de coalisão onde jorra energia e vida? Ele produz, ele pulveriza a alma, condena o corpo, e descreve a vontade: “Um currículo está sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, de corpos organizados, de identidades majoritárias”. No entanto, um currículo-vida “[...] está sempre cheio de possibilidades de rompimento das linhas do ser; de contágios que podem nascer e se mover por caminhos insuspeitados” (PARAÍSO, 2008, p.278).

Não seria possível, então, a partir da leitura feita do Escola Sem Homofobia, encontrar linhas de fragmentação do discurso curricular na própria prática de subjetivação em análise? Seria possível escavar no documento do Escola Sem Homofobia uma ética-estética da diferença, que aposte na potência criadora da vida e que se alinhe a uma perspectiva mais aberta de democracia?

Com Foucault (2002), esquadrinhar as formações discursivas significa, também, entender que as unidades enunciativas que formam os discursos “[...] podem coincidir às vezes com frases, às vezes com proposições; mas são feitas às vezes de fragmentos de frases, séries ou quadros de signos, jogo de proposições ou formulações equivalentes” (p. 120). Desse modo, o campo de dispersão de uma função enunciativa e os modos pelos quais ela aparece são como unidades diversas, abertas à interpretação e releituras que operam outras possibilidades de formação de subjetividades. Para Foucault (2002, p.124),

A análise enunciativa é, pois, uma análise histórica, mas que se mantém fora de qualquer interpretação: às coisas ditas, não pergunta o que escondem, o que nelas estava dito e o não-dito que involuntariamente recobrem, a abundância de pensamentos, imagens ou fantasmas que as habitam; mas, ao contrário, de que modo existem, o que significa para elas o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de permanecerem para uma reutilização eventual; o que é para elas o fato de terem aparecido - e nenhuma outra em seu lugar.

Assim, não existe uma leitura última e fechada da política curricular que não esteja relacionada com a agência e as múltiplas interpretações dos sujeitos em contextos distintos. Esse aspecto é central para potencializar as análises sobre os currículos escolares, seja na dimensão prescritiva documental, seja na dimensão da prática, uma vez que a disputa pela produção de sentidos do currículo está inteiramente demarcada por processos de antagonismos de demandas entre os diversos grupos sociais e econômicos de nossa sociedade, como é perceptível nos fragmentos abaixo:

Como já buscamos destacar, toda escola segue um currículo. Consciente ou inconscientemente, aquelas/es que atuam no contexto escolar estão diretamente envolvidas/os na elaboração do currículo e, portanto, na formação das identidades humanas. No ambiente escolar atual, os debates referentes às possibilidades de atuação do currículo para o enfrentamento dos discursos e das práticas de discriminação e violência decorrentes de preconceito de gênero e orientação sexual talvez sejam os mais polêmicos, por envolverem muito mais que conceitos científicos. Muitas vezes, as referências são conceitos dogmáticos, especulativos, preconceituosos e naturalizantes que levam à elaboração de um currículo que ignora ou trata com superficialidade ou desconsidera questões relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero (CADERNO..., 2009, p. 74).

Assumir compromissos com mudanças não é tarefa simples, mas um bom começo pode ser a não aceitação de ideias, posturas e condutas difundidas em vários ambientes - entre eles o escolar. Há uma amplitude temática que exige buscar outros encadeamentose outras perspectivas de pensamento para arriscar desmanchar certos conceitos arraigados, principalmente na área da educação. Uma forma de sistematizar ou organizar o currículo pensando na transversalidade é incluir explicitamente os temas, elaborando-se projetos que possibilitem vislumbrar a continuidade e o aprofundamento das discussões na escolarização das/dos estudantes (CADERNO..., 2009, p. 76).

Como integrar, então, ao conhecimento escolar processos de aprendizagem para o enfrentamento desses discursos e práticas que estão sendo vividos intensamente pela sociedade, pelas comunidades, pelas famílias, pelas/os estudantes e educadoras/es em seu cotidiano? Como responder às questões urgentes sobre a vida humana em meio à cultura homofóbica da escola? Como trabalhar a realidade e as transformações nas atitudes pessoais, que exigem tanto o ensino e a aprendizagem dessas dimensões (conhecimento da realidade e atitudes)? (CADERNO..., 2009, p. 74).

Como evidenciado no primeiro excerto destacado, o ESH não coloca em combate uma das questões do atual cenário que envolve os problemas de preconceito e discriminação produzidos especialmente pela tradição judaico-cristã: a “identidade de gênero”. Junqueira (2018) demarca que a chamada “ideologia de gênero” surge a partir de uma ofensiva político-discursiva reacionária e de matriz religiosa, em especial por setores ultraconservadores da Igreja Católica, que buscam inculcar a ideia de que as transformações postas pelos estudos de gênero e pelos feminismos “[...] implicariam privar crianças do direito à família, transformar escolas em “campos de doutrinação do gender”, aniquilar a ordem simbólica, extinguir “a família” e a humanidade, entre outras “catástrofes” anunciadas pelo ativismo antigênero” (JUNQUEIRA, 2018, p. 486). Portanto, a gênese da “ideologia de gênero” cerca a precariedade do acesso aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos postos hoje no Brasil.

No entanto, em que pese essa fragilidade, os fragmentos imprimem um abalo nos sentidos dados ao currículo e nas formas como o currículo age para “nos tornarmos o que somos”, ou seja, em seus “efeitos” na escola e em nossas vidas. Em comum, os enunciados que significam o que é currículo dentro do Escola Sem Homofobia trabalham com um entendimento mais aberto do que ele possa ser. O currículo deseja, ele quer, ele produz, ele é política, ele faz de nós coisas, “Afinal, nele se entrecruzam domínio, regulação e governo; mas nele também pessoas, forças e objetos se encontram, conquistam, produzem, revitalizam”. (PARAÍSO, 2016, p. 1). Os excertos indiciam, portanto, uma experiência curricular que pode, de algum modo, aproximar-se de uma política da diferença; de uma política pós-binarismos, pós-identitária.

Por isso, como apontam os excertos, aqueles que atuam e estão no contexto escolar e aquilo que é feito no e pelo currículo, está, de um modo ou de outro, ligado à formação de subjetividades, ainda que no texto essas subjetividades sejam apontadas como “identidades humanas”. De algum modo, coisas são feitas pelo currículo, nele existem e por ele são produzidas relações de poder, de hierarquia e de formas de liberdade.

Os currículos, por sua vez, segundo o Caderno de Conteúdos do Escola Sem Homofobia (CADERNO..., 2009, p. 49), possibilitam práticas e experiências voltadas para o “enfrentamento dos discursos e das práticas de discriminação e violência”. E embora existam formas, “conceitos dogmáticos, especulativos, preconceituosos e naturalizantes” pode-se, também, buscar as forças: “outros encadeamentos e outras perspectivas de pensamento para arriscar desmanchar certos conceitos arraigados” (CADERNO..., 2009, p.74-76).

Interpelados por Paraíso (2010, p.588), questionamos:

Mas, se mesmo com os investimentos para controlar a diferença no currículo, tudo aí ainda vaza, por que não pensar o currículo por meio de suas bifurcações? Por que não experimentar no currículo o jogo da diferença? Por que não pensar o currículo por meio dos seus vazamentos, escapes, suas linhas de fugas, distorções e variações? Por que não priorizar a diferença em vez da identidade e seguir as ramificações que surgirem desse pensamento?

Mas se... “Existem vidas impossíveis de sentir, de tocar, de perceber. Vidas de outros, em outros lugares, em outros tempos. Fora da gente, de nós. Fora daqui. Sem alcance, sem captura” (SKLIAR, 2003), outras vidas são possíveis? Outras éticas-estéticas-performances são possíveis? Que liberdades são possíveis?

Estilhaçar a existência possível, a já dada, o já comum, o já feito, a mesmidade; afirmar a potência da vida, de outros corpos, outros habitares, outros habitantes; vergar a linguagem; aniquilar a existência mesma. No Escola Sem Homofobia, ainda que o problema dos efeitos da verdade moderna e da ciência seja o da aniquilação da vida, a força da arte como redentora da natureza humana abre a potência-resistência-criadora. É no âmbito da linguagem como operação constitutiva que ocorrem essas fissuras. É com a linguagem e pela linguagem que se afirma /cria a diferença.

Alargar a linguagem, criar vocábulos, dizer além daquilo que já foi dito, ou não dizer daquilo que não pode ser nomeado é, assim, a tarefa mais urgente que se pode ter para um enfrentamento da captura da Diferença Sexual no campo da educação, ou para se pensar uma investigação de práticas discursivas que diz da fabricação do sujeito de direitos, como a população LGBT.

Não se limitando ao conhecimento, mas, dentro dele, o currículo no Escola Sem Homofobia pode partir para “[...] o enfrentamento desses discursos e práticas que estão sendo vividos intensamente pela sociedade” (CADERNO..., 2009). Um currículo, então, é desejo, é vida, pois trata das “[...] questões urgentes sobre a vida humana” (CADERNO..., 2009). O que é mais urgente do que a própria vida? Daquilo que estamos nos tornando?

As relações entre a escola e o currículo e a produção de subjetividades são projetadas não apenas para as capturas de um dispositivo ou, mesmo, para os processos de assujeitamentos, mas, como essas relações de subjetivação, de resistência, de fuga, “[...] da constituição dos sujeitos em meio às relações entre sexualidade-verdade-subjetividade” (FERRARI, 2014, p. 102).

Então, se é a linguagem que diz do corpo, que constrói, que destrói performances e subjetividades, que produz a cultura e a realidade, imaginar uma linguagem sem margens, sem língua, mas com uma profundidade infinita, é tentar encontrar a liberdade e a Diferença que queremos para nossas vidas?

No limiar dos bons encontros com o desejo, com a experiência e com a diferença na educação básica, investir em outros modos de vida é forçar a mobilização de um pensamento que coloque em movimento o sedentarismo curricular-identitário recorrente nas atuais políticas educacionais, alocadas nas práticas discursivas de governamento da vida e na gerência do corpo e do desejo sexual. Apostando na positividade do currículo como resistência ética e estética, afirmar a vida e criar outros possíveis, é flagrar as linhas de fuga e das potências criadoras-experimentadoras do fetichismo curricular na produção política-performática da existência e dos modos de vida produzidos no, com e pelo acontecimento-fetiche.

Esta relação estabelecida pelo sujeito consigo mesmo, está longe da relação estabelecida entre o sujeito, os saberes, o poder, as práticas discursivas, os regimes de verdade, as fabulações éticas e estéticas? Pelo contrário, o sujeito da modernidade é subjetivado pela relação que atravessa a sua constituição Ética, sem causar fraturas com outros dispositivos de governamentalidade e regulação da vida.

Mas, se criar outras vidas significa estabelecer outras relações consigo mesmo, transbordar a performatização estética gênero-sexual é latejar os encontros com o próprio corpo. É ser e viver aquilo que não se pode nomear; é criar possibilidades infinitas, éticas infinitas, corpos infinitos. É não se submeter a linguagem arbitrária; criar novos vocábulos; pulsar heterotopias. Afirmar a vida; criar outros possíveis. Outras vidas, outros tempos, outros lugares, outras linguagens, outros sujeitos. Outredade.

Considerações finais

Os elementos analíticos reunidos nesta investigação remetem ao raciocínio, talvez arriscado, acerca do modo pelo qual o Escola Sem Homofobia envolve-se na produção de sujeitos e experiências sexuais. Apontamos que os enunciados revelam uma experiência ainda assentada na diversidade sexual e na identidade enquanto essência, como estética de existência, e no respeito e tolerância para com este “outro” que não sou eu. Sem problematizar as próprias políticas de linguagem que nos produzem enquanto sujeitos de certas experiências, a política curricular não transborda os modos de vida normativos e as performances éticas e estéticas de ser/estar/viver. O recorrente alinhamento discursivo à diversidade sexual, desta forma, flagra uma prática discursiva que enreda, captura e sequestra a diferença, deixando pouco espaço para brotar as colisões ético-políticas de outras experiências de vida.

São nessas complexas e sinuosas relações estéticas e éticas, que os sujeitos estabelecem suas vidas, seus corpos, seus desejos, vontades, amores. Um interminável processo de assujeitamento e resistência, onde aprendemos a ser o que somos, bem como produzimos o “outro”, aquele que não sou eu. A Diferença.

São questões que mobilizam essa incursão: o que estamos nos tornando? O que somos nós? Que vidas estão sendo indicadas para os currículos e as escolas por diferentes agenciamentos políticos? Que outras relações consigo mesmo e com os outros são possíveis, do ponto de vista da experiência dos corpos no mundo? Que outros sujeitos e outras performances políticas, éticas e estéticas são possíveis? Para esse movimento, desconfiar dos discursos pedagógicos que atravessam políticas contemporâneas talvez seja uma pista importante para mobilizar as virtudes-forças necessárias para outros encontros performáticos-sexuais. Se o sujeito é produzido pelos dispositivos de governamentalidade que maquinam assujeitamentos e resistências cabe, também, dizer desses dispositivos como fissuras e como lacunas intermináveis e incessantes onde o saber-poder negocia o agenciamento coletivo e individual.

Se por um lado a agenda política anti-homofobia adotada no bojo da diversidade neoliberal continha armadilhas, a (in)existência destas políticas estão datadas em um período que não é mais o atual. Em 2011, todo o material do Escola Sem Homofobia que seria distribuído nas escolas públicas brasileiras é vetado pela Presidenta Dilma. Desde então, as políticas anti-homofobia e diversidade sexual, desenhadas desde os anos 1990, e com mais vigor a partir da eleição de Lula da Silva, foram descontinuadas e, atualmente, são inexistentes.

Cumpre questionar: a descontinuidade e, atualmente, a inexistência de políticas de enfrentamento a LGBTfobia seriam, então, tão perversas quanto a própria afirmação identitária de sexualidade? Se as políticas de diversidade sexual pautadas pela tônica neoliberal de regulação da vida, como o Escola Sem Homofobia, tivessem chegado às escolas estaríamos vivenciando um outro processo político-estético ou experimentando um obscurantismo ainda mais agudo na sociedade forma mais ampla?

O que se sabe, no entanto, é que apesar de não ter chegado nas escolas em forma de materiais e recursos didáticos, o ESH produziu antagonismos políticos na sociedade que reverberam até hoje. O golpe jurídico-parlamentar de 2016 contra Dilma Roussef e as eleições presidenciais de 2018, trouxeram à tona que o flerte com a lógica liberal de diversidade sexual experimentadas nos governos petistas não produziu convergências políticas suficientes para avançar no cerco democrático para a educação. Contraditoriamente, o discurso neoliberal de diversidade contribuiu, no Brasil, para o avanço de forças conservadoras e neoconservadoras que agora governam o país, mostrando o quanto as apostas nessa racionalidade política são perigosas para o avanço de uma sociedade democrática, como alerta Chantal Mouffe:

Há hoje uma necessidade urgente de restabelecer a centralidade da política e isso exige desenhar novas fronteiras políticas capazes de dar um real impulso à democracia. Essas novas fronteiras políticas precisam incorporar uma multiplicidade de demandas democráticas, mas não há como negar que umas das apostas decisivas para a política democrática é começar a oferecer alternativas ao neoliberalismo (MOUFFE, 2003, p. 21).

Defendemos, portanto, que não é possível prover linhas democráticas em tramas político-curriculares enquanto estas estiverem calcadas em essencialíssimos identitários, que flertam com a governamentalidade neoliberal. Ao contrário, a diferença sexual pode oferecer subsídios para tencionar as figurações performativas-estéticas desejantes no currículo a fim de indicar outras possibilidades de existência, e de educação.

1Para Michel Foucault, trata-se das (novas) formas de produção de subjetividades específicas e do exercício do poder a partir dos princípios do mercado. Ou seja, uma forma de conduta do sujeito por meio das tecnologias do eu, para uma construção ética e de assujeitamentos biopolíticos regulados pela economia.

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 21 de Setembro de 2020

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