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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 01-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75681 

Dossiê - Educação, democracia e diferença

Quando o currículo se torna passarela para a diferença1

George Souza de Melo* 
http://orcid.org/0000-0003-0363-8897

Anna Luiza A. R. Martins de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-0620-3322

* Universidade Federal de Pernambuco. Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: georgedemelosdb@gmail.com. E-mail: alarmo@uol.com.br.


RESUMO

Viver de múltiplas formas (n)o currículo é o tema principal deste trabalho. A partir de quatro cenas narrativas sobre desfiles de moda realizados por alunos do ensino médio numa escola pública do Recife, tecemos as linhas principais do texto buscando recompor a forma como aquelas ações coletivas habitavam o currículo de maneira singular, afetando significativamente as experiências de gênero e sexualidade daquelas pessoas. Compreendemos currículo como significante que remete a um espaço-tempo enunciativo em constante (re)formulação a partir de processos de hibridização cultural. Pontuamos a importância das interpelações subjetivas para a composição de elementos “novos” e/ou “desconhecidos” no tecido curricular e como isso pode ser entendido enquanto uma abertura desse campo à passagem da diferença, que desloca e recria os ideais de educação a partir da significação de outras vivências.

Palavras-chave: Currículo; Diferença; Subjetivação; Gênero; Sexualidade

ABSTRACT

Living in multiple ways (in) the curriculum is the main theme of this work. From four narrative scenes about fashion shows held in a public school in Recife by high school students, we weave the main lines of the text, seeking to recompose the way those collective actions uniquely inhabit the curriculum, significantly affecting the experiences of gender and sexuality of those people. We understand curriculum as a signifier that refers to an enunciative space-time, in constant (re)formulation based on processes of cultural hybridization. We point out the importance of subjective interpellations for the composition of “new” and / or “unknown” elements in the curriculum and how this can be understood as an opening of this field to the passage of the difference that displaces and recreates the ideals of education from the meaning other experiences.

Keywords: Curriculum; Difference; Subjectivation; Gender; Sexuality

Introdução

Este trabalho desenvolve-se a partir da discussão de quatro cenas que são parte da pesquisa de mestrado de um dos autores (MELO, 2020) e que nos auxiliam na reflexão sobre as possibilidades de (re)imaginar o espaço-tempo curricular considerando o jogo da diferença. Tais possibilidades de (re)imaginação passam necessariamente, a nosso ver, pela consideração de vivências e performances corporais cotidianas que, geralmente, seguem despercebidas ou ignoradas pela gramática tradicional da pedagogia e que desafiam a pensar a educação a partir do estranho, do banal e do escorregadio (RANNIERY; MACEDO, 2018). Assim sendo, é nos relatos sobre os desfiles de moda realizados numa escola pública do Recife, por alunos do ensino médio, que encontramos as linhas principais para costurar este texto, buscando recompor a forma como aquelas ações coletivas habitavam o currículo de maneira completamente particular, afetando significativamente as experiências subjetivas daquelas pessoas.

A pesquisa se desenvolveu através de entrevistas/conversas com ex-alunos daquela escola que partilhavam a experiência de terem sido, ainda quando estudantes, pessoas que desafiavam, no ambiente escolar, as demarcações convencionalmente relacionadas aos corpos tidos como masculinos pela cultura e organização social tradicional. Suas vivências nos chamaram a atenção não tanto pelo estranhamento que corpos supostamente “dissidentes” provocam com suas performances cotidianas, mas principalmente, pela riqueza de encontrarmos um espaço-tempo curricular que se tornou densamente entrelaçado por essas manifestações.

Desde já, vale considerar que a noção de currículo que permeia o desenvolvimento de nossa reflexão é aquela compartilhada por um grupo de pesquisadores e pesquisadoras que, aportados/as na perspectiva pós-estruturalista do discurso, pensam-no como prática discursiva (LOPES; MACEDO, 2011; LOPES; OLIVEIRA A.; OLIVEIRA G, 2018). Assim, encaramos a cultura não propriamente como objeto de ensino, como muitas propostas teóricas - quer designadas como tradicionais, críticas ou pós-críticas - tendem a considerar. Assumimos ‘currículo’ como significante que remete a um espaço-tempo enunciativo em constante (re)formulação a partir de processos de hibridização cultural (MACEDO, 2006a; 2006b). Além disso, entendemos que o conhecimento não se detém na possibilidade de descrever algo do real ou do cultural, como que numa operação de reflexo. Cultura e conhecimento estão, ambos, em constante (re)significação, criando múltiplos loci de produção de sentidos no jogo do currículo, nunca totalmente fixados. Assim, é possível afirmar que o currículo é cultura. Não no sentido de ser alguma coisa que dispute lugar no rol das tradições culturais catalogáveis e reconhecíveis, mas na perspectiva de que é ele mesmo um espaço-tempo vivo em que são constantemente negociadas as possibilidades de tradução de qualquer sentido ou referente (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013).

É a partir dessa perspectiva que interpretamos o currículo como “espaço-tempo de fronteira no qual interagem diferentes tradições culturais e em que se pode viver de múltiplas formas” (MACEDO, 2006a, p. 286). Entendemos “tradições culturais” na mesma direção que Lopes (2015) conferiu às tradições curriculares, como sendo “decorrentes de atos de poder que freiam a significação e o livre fluxo do sentido. São registros sujeitos às lutas políticas que instituem a significação. Tradições constantemente recriadas, traduzidas de diferentes formas” (LOPES, 2015, p. 460). Não são, então, regras racionais ou sedimentações históricas estabilizadas e capazes de definir de uma vez por todas as possibilidades de conhecimento. Dessa forma, enfatizamos a concepção de currículo como o lugar do indecidível, do imprevisto, de atos de criação que possibilitam a irrupção de subjetividades (MACEDO, 2012, p. 733). Esse local de criação é acirradamente disputado pelas normatizações que são, ao mesmo tempo, produtoras e efeitos das identidades que procuram dar conta de uma inteligibilidade do real a partir de estancamentos e cristalizações nos fluxos de significação contínuos. Tais articulações de significados são como pontos nodais (LACLAU; MOUFFE, 2015) que forjam identidades específicas na dinâmica social e, a depender de como se articulam, podem gerar hegemonias mais ou menos estáveis, mais ou menos rígidas, de modo a coibir com mais força ou a abrir caminho para a emergência de múltiplas possibilidades de diferença que não cessam de ser produzidas e mobilizadas. Assim, o currículo é esse espaço-tempo em que a subjetivação é quase imperativa. Educação, nesse sentido, também não deixa de ser um velho nome para os próprios processos de subjetivação.

Assim, ‘viver de múltiplas formas (n)o currículo’ é, certamente, um mote principal para o que pretendemos pensar neste trabalho. Aproveitando as experiências discursivamente construídas nas cenas apresentadas pontuaremos, então, a importância das interpelações subjetivas para a composição de elementos “novos” e/ou “desconhecidos” nos tecidos do espaço-tempo curricular, e como isso pode ser entendido enquanto uma abertura desse campo à passagem da diferença que desloca e recria os ideais de currículo e educação a partir da significação de outras vivências.

Sobre interpelações subjetivas e possibilidades de ‘montação’ no/do currículo

Cena 1: Começo ensolarado da semana, como só em Recife se pode encontrar. No ônibus do centro da cidade, em direção à escola, reminiscências do caminho tão habitual dos estágios curriculares de outrora, motivos suficientes para se chegar até esta pesquisa, agora, em fase de conclusão. Na chegada, à primeira vista, parece que quase nada havia mudado em suas cores, paredes, corredores e, principalmente, no antigo costume de entrar pelo portãozinho do subsolo que fica pelo lado esquerdo. Tudo praticamente igual, apesar de todos os alunos e alunas já não serem aqueles e aquelas de anos atrás. No entanto, até esses/as de agora não dão ares muito diferentes daqueles/as. Vamos diretamente ao encontro de quem interessava: os professores e professoras frequentemente citados/as nas conversas com os ex-alunos daquela escola. Com dois deles sentamo-nos, como fazíamos sempre, perto da barraquinha de lanches na calçada, praticamente deserta, própria daquela despovoada região central da cidade, marcada pela falta de cuidado e segurança por parte dos poderes locais. Ainda hoje, aquela escola “ilhada” entre instituições públicas e dezenas de edifícios que mesclam o abandono e o serviço burocrático de várias empresas parece ser talvez o único respiro de movimento vital, de pulsação do novo e, certamente, de abraços, sorrisos e experimentações educativas que resistem àquele marasmo social. Foram essas experimentações educativas tão próprias que ganharam o acento em nossa conversa quando questionados sobre os projetos da escola, tão vivamente pontuados pelos ex-alunos como fundamentais para suas experiências pessoais com gênero e sexualidade. A relação de um deles - Ariel - com esses professores e seus desfiles de moda temáticos foram aspectos evocados no papo, sobre os quais o professor Paulo prontamente comentou: “E o legal daqui é isso, é que é uma coisa natural. Eu o incentivei a partir do momento em que a escola fez ele me mostrar os seus desenhos de roupa. Aí eu fiquei fascinado. E eu disse a ele na hora: você tem que ser estilista. Então, eu peguei e lancei um desafio a ele, que foi o primeiro desfile dele”.

Cena 2: Depois de conversarmos muito, via WhatsApp, nos encontramos na biblioteca da universidade, assim como ocorreria em outras entrevistas combinadas a partir dali. O ritmo acalmado dos corpos naquele ambiente de leitura, propositalmente escolhido, contrastava com a exaltação recorrente das palavras postas para dar conta daquelas experiências escolares. “E na época, também, Ariel fez um desfile que foi - meu deus! - o abre-alas! ‘Me respeita que as bichas vão entrar agora’, entendeu? E foi um marco na minha vida também porque eu já vinha nesse processo [de descobrir-se]. Eu descobri, neste período que eu comecei a trabalhar com Ariel, que eu tinha um desejo de participar de uma atividade como essa com o meu corpo, entendeu? Foi daí também, desse momento, que eu comecei a tipo, meu corpo... ‘eu amo meu corpo’. Então, para os demais, pouco vai importar o que eles vão achar, entendeu? Foi a partir daí que eu tive uma segurança assim que, quando terminou, eu queria de novo. Foi fantástico! Foi uma autoafirmação muito grande. Foi tanto trabalho. A gente trabalhou tanto na época” - disparou Juno, logo quando o tema dos desfiles na escola surgiu na pauta de nossa conversa.

Cena 3: Pouco depois da hora do almoço, Luke já esperava no local que havíamos combinado. A biblioteca mais parecia-nos um oásis em meio ao calor, barulho e movimento do centro da cidade. Gravador ligado, Luke logo também relatou a importância daqueles momentos de aparição: “Quando eu via Ariel no desfile e [quando], no final, ele entrava com um salto scarpin clássico, baixinho, preto. E aí todo mundo - nossa! - vibrava, aquela coisa: ícone da escola! E, ah está de salto! E aí eu ficava: meu Deus, como é isso? Como é sentir o que ele está sentindo aí? E aconteceu que na escola, no último desfile, ele teve o nome como designer, estilista, desenhou e projetou as roupas e eu o de que costurei tudo e fiz o projeto andar. E aí acabou que eu e ele ficamos à frente. Foi incrível porque eu costurei todas as roupas e não costurei a minha. Eu tinha que terminar as das outras pessoas, mas não deu tempo de fazer a minha. Aí, ele disse: ‘tu vais ter que entrar de algum jeito’. Ele me deu um salto quinze, plataforma. E aí foi uma euforia quando aquilo aconteceu porque primeiro veio Ariel, salto altão, daquele jeito, com a roupa e tal. Depois, veio uma outra menina. E quando eu entrei, estava de salto, um short, uma jaqueta sem blusa e a galera... [faz sinal de exaltação com as mãos]. Foi maravilhoso! Eu achei que ia ter críticas, só que eu não recebi crítica, não. E teve muito isso de roupas que quebravam gênero”.

Cena 4: Aproveitando sua folga do trabalho, encontramos Ariel perto da reitoria e logo o impacto visual por sua apresentação estética nos toma. O pavoneio de seus passos a caminho da biblioteca já adiantava, performaticamente, muito do que seria narrado sobre o significado dos desfiles na sua constituição pessoal: “Eu sempre gostei muito de assistir tudo, reparando em figurino, reparando em cenário. E quando eu fui vendo, foi uma coisa muito rápida, tipo de [refere-se ao professor Paulo] ver eu desenhando e me pedir para fazer trabalho e tal. E eu ficava: “mas eu nem sei desenhar”, entende? Aí quando fui fazendo as coisas, a ficha foi caindo. Eu acho até que se tu conversares com mainha, ela vai falar de um eu, que tu não vais acreditar que sou eu. Ela vai falar que eu sou uma pessoa calada, que eu sofria por não ter amizade na escola e que quando eu dei esse start, eu fiz amizade com todo mundo. Me tornei uma pessoa popular por eu ser quem eu sou. Por eu ser comunicativo, por eu ser engraçado. Por eu vestir diferente, por eu gostar de me maquiar, entende? E foi tudo de uma vez só. Cheguei em casa com um kit da Mary Kay: “mainha, vou me maquiar!” Tipo, virou uma chavinha do nada e eu comecei a ver tudo com outros olhares, tá ligado? Antes eu não pensava em nada sobre o meu futuro. Para mim, eu não sabia de nada que eu queria fazer na faculdade. Todo mundo tinha um dom para alguma coisa. Eu era mais uma pessoa que ia estudar para algum vestibular. E quando eu virei essa chave, eu passei a ver tudo isso como, tipo: “tá, agora eu tenho que pensar em alguma coisa porque eu tenho que ser alguma coisa”, tá ligado?

Parece-nos que a interpelação é um primeiro ponto fundamental nos relatos produzidos. Sua potência na relação educativa alinhava os retalhos das quatro cenas apresentadas e nos leva a refletir sobre a importância de ações muitas vezes banais no cotidiano escolar, mas que podem ser disparadoras de performances e vivências realmente significativas no processo de (des/re)constituição subjetiva daqueles/as que ali estão entrelaçados/as. A fala do professor Paulo, que é central na primeira cena, desencadeia diretamente a articulação de experiências que envolvem tanto a preparação e o espetáculo dos desfiles de moda compartilhados pelos alunos quanto, por conseguinte, a própria inflexão no entendimento de Ariel acerca de si mesmo. Essa inflexão é percebida, principalmente, quando o mesmo se refere ao seu momento de “virar a chavinha”, o claro signo de um momento de assunção subjetiva radical. Não faz sentido tentar afirmar, obviamente, que o desafio proposto pelo professor tenha sido o único responsável pelo movimento subjetivo do estudante. Mas, na força do relato produzido, percebe-se que a interpelação na relação professor-estudante foi um fator importante para impulsionar atos de criação, não somente de roupas, acessórios e gestos, mas também de formas de existência. Não somente de Ariel, mas a partir do espaço cênico constituído naquele contexto curricular, de outros estudantes que puderam experimentar o jogo com outros signos de gênero e sexualidade através da produção e participação nos desfiles. Foi a ‘produção’ ou mesmo a montação de uma zona curricular marcadamente favorável às manifestações daqueles corpos, a partir de suas mais ousadas experimentações artísticas.

‘Montação e/ou montaria’ são termos bastante usuais entre pessoas que compartilham de algum modo a cena e a arte drag. Referem-se ao ato de se vestir e se produzir daquela persona que se queira apresentar. No entanto, existe ali, sobretudo, “uma função social cênica, seja de entretenimento ou de política que não se basta no autoprazer e no divertimento corriqueiro” (AMANAJÁS, 2015, p. 21). É a essa função política que nos remetemos quando fazemos referência à ‘montação e trazemo-la ao currículo pela operação do seu caráter performático, capaz de (des/re)alinhar ideais e possibilidades da educação. Pelo jogo da produção de moda, análogo ao da montação, aqueles sujeitos habitaram o currículo de maneira singular. Corpos normalizadamente lidos como masculinos no horizonte social hegemônico, desfilaram na passarela curricular corporificações outras que desafiam os cenários e figurinos das expressões de gênero e sexualidade que, comumente, são reiterados pela gramática da masculinidade. Assim sendo, as performances desenvolvidas a partir da interpelação do professor parecem constituir o currículo como um campo de segurança (RANNIERY, 2018) para aqueles sujeitos, que só pôde sê-lo com a contribuição de um saber estético, prático e performático relativo à moda que, até então, não era prescrito nas programações curriculares, mas que foi extremamente fecundo desde a sua integração às atividades.

A interpelação surgida nesse evento (extra-)curricular, portanto, é parte significativa de um conjunto mais amplo de interpelações, que atravessam as próprias dinâmicas de subjetivação desses sujeitos, as quais se desenvolvem com nuances particulares na vida de cada um deles. Somos, de algum modo, a constante re(l)ação entre o outro que exerce algum poder sobre nossas vidas, seja esse outro nomeado da forma como quisermos, através de regras e convenções mais ou menos estáveis e a nossa própria negociação vital e reflexiva dessas regras e normas que nos interpelam (BUTLER, 2015a). Nesse sentido, a sujeição “consiste precisamente nessa dependência fundamental de um discurso que nunca escolhemos, mas que, paradoxalmente, inicia e sustenta nossa ação” (BUTLER, 2017, p. 10). É um processo ambivalente de tanto se subordinar ao poder, quanto se tornar um sujeito. E esse poder, no caso de nossa pesquisa, materializa-se na regulação normalizadora de roteiros performáticos específicos, com gênero e sexualidade.

A subjetivação emerge sempre, portanto, de um movimento de regulação que opera através de uma dupla direcionalidade. Não há imposição unilateral a determinar o que seja sujeito, nem da parte de uma estrutura normativa e social que supostamente o produz de um determinado modo, nem do personalismo de uma autonomia ontológica por parte de um sujeito essencial e a-histórico que produz tudo por sua agência. Mas, especificamente, no bojo da própria relação paradoxal da sujeição. É na ‘volta’, no ‘vir-a-ser’ ou no ‘virar a chavinha’, se quisermos usar a expressão de Ariel, entre o normatizar e o normatizado, entre o poder e aquele si contra o qual se age com poder, que o sujeito irrompe. É na ‘vira’, no ‘entrelugar’ onde a passagem parece se fazer presente (BHABHA, 2005, p. 24), que emerge a possibilidade de subjetivação. E é por isso que “não há sujeito, em sentido estrito, que faça essa volta. Pelo contrário, essa volta parece funcionar como inauguração topológica do sujeito, um momento fundador cujo status ontológico se mantém permanentemente incerto” (BUTLER, 2017, p. 11).

Assim, ‘virar a chavinha’ é uma passagem importante no seu (auto)reconhecimento, especialmente a partir e naquela vivência curricular. Isso nos dá pistas de que se pode estar criando a si mesmo na tensão com todo esse emaranhado de regulações que atravessam o currículo. E o que é isso senão processo de subjetivação, potência do fazer educacional imanada de atos de (auto)criação que se constituem como forças fundamentais na (re)imaginação de horizontes democráticos que alarguem as estratégias de existência? Operações performáticas de realinhamento dos parâmetros do próprio campo de aparecimento que, no caso das experiências daqueles alunos, tinha muita influência de regulações acerca de gênero e sexualidade.

Nesse sentido, gênero e sexualidade são marcadores sociais de diferença que mobilizam articulações de sentido e são capazes de produzir aqueles que podem ser identificados no campo de representação hegemônica ou no que Butler (2015a; 2018) chama de “condições de possibilidades de aparecer” ou “reconhecibilidade”. Essas identificações tanto podem corroborar expectativas das normas de representação, como também podem frustrar o que se espera delas, criando aqueles que são considerados como os ‘fora’ da norma ou simplesmente estranhos à norma. Tais marcações sociais da diferença costuraram, e continuam a costurar, as mais diversas práticas enunciativas que nos compõem, e são momentos discursivos decisivos na origem e no policiamento de nossas vidas sexualizadas e generificadas. Essa costura não se dá somente numa representação linguística mas, principalmente, através da corporificação das normas efetivadas pela performatividade, repetição contínua de atos que reiteram o discurso produtor de identidades de gênero (BUTLER, 1999). Assim, a enunciação contínua de certos códigos sobre gênero e sexualidade possibilita o estabelecimento e a naturalização de repertórios que legitimam tipos identitários como essenciais. E determinam quais vidas são verdadeiras e quais não são.

No entanto, assim como na relação de subjetivação, entendemos que o movimento regulatório nunca é unilateral e se constitui sob investidas e reações, de tal modo que é necessário compreender que, também num âmbito maior, “os esquemas normativos são interrompidos um pelo outro, emergem e desaparecem dependendo de operações mais amplas de poder, e, com muita frequência, se deparam com versões espectrais daquilo que alegam conhecer” (BUTLER, 2015b, p. 17). Isso quer dizer que há um forte componente de fracasso acompanhando toda instância normativa no sentido de que uma identidade ou nomeação ou representação “nunca é total ou de que o próprio reconhecimento gera o não-reconhecível como exterior que o estabiliza” (MACEDO, 2017, p. 546).

Portanto, aquele espaço-tempo curricular e, também, aqueles sujeitos que a ele se referem, não são entidades pré-estabelecidas nem dadas, mas se constituem mutuamente pela relação que os atravessa. O processo de subjetivação daqueles corpos é significativamente marcado pelas expectativas sociais de gênero e sexualidade, no qual eles investem práticas que tensionam e desafiam os marcos regulatórios da masculinidade, através das experiências de montar desfiles, costurar e usar peças de roupa que ‘quebram o gênero’, como disse Luke na terceira cena. Ou seja, com o uso de saltos altos, shorts curtos e partes do corpo à mostra, esses meninos colocavam em questão a própria expectativa social sobre “ser menino” que sempre lhes foi relegada. E mais do que isso, parece que queriam ensinar, na cadência da passarela, os passos com os quais se pode desfilar todo o caráter ficcional daquelas expectativas sociais.

Igualmente, essas experiências apontam para a porosidade do currículo, mesmo quando marcado pelas fantasias de totalidade e de prescrição com as quais habitualmente costumamos projetá-lo. São experiências que tomam de assalto aquele espaço-tempo e passam a constituí-lo, também, a partir de suas características e demandas, embora isso signifique uma disputa a depender das limitações já previamente fortalecidas. Na verdade, como apresentado nas cenas da nossa pesquisa, isso se dará sempre num contexto de disputa, ainda que com poucas tensões. Será continuamente uma negociação porque envolve tentativas contingentes de fixação da identidade curricular e a pulsão da diferença que é imparável e desafia.

Essa relação também ganha contornos relevantes quando pensamos na potência da diferença no que se refere à própria possibilidade de uma reflexão sobre democracia e currículo. Isso porque, para além de uma alusão prescritiva do que deva ser um currículo democrático, o que notamos é a própria diferença forjando algo de democrático a partir de suas performances fora do script. A condição de diferente que exige o seu reconhecimento social enquanto agência educativa e produtora de saber contribui para a criação daquilo que Ranniery (2018, p. 215) chama de “currículos que suportam a vida”.

O jogo democrático, nesse sentido, é projetado como horizonte na passagem da diferença no currículo, passagem que o transforma - mesmo que de forma parcial e contingente - em um lugar seguro para viver, não independentemente das diversas formas de vida mas, justamente, em razão da multiplicidade incontável que entorna a vida. ‘Habitar’ o currículo é um imperativo fundamental no fazer democrático que intentamos esboçar e isso se efetiva entre as regulações variadas que determinam ou não o aparecimento das pessoas. Tais regulações podem ser entendidas analogamente como os balizadores das condições de precariedade (BUTLER, 2018) que subjazem a vida social e política. Desta forma, fazer democracia é manejar e (dis)torcer e regulações (basicamente, perturbar a distribuição diferencial da condição precária) para que, reiteradamente, mais pessoas apareçam. É alargar esse campo de aparecimento no qual habita quem é lido/a como vivível.

No caso específico que estamos tratando, gênero e sexualidade atuaram para que aqueles alunos dessem o ‘truque’ na dinâmica de condição diferencial do aparecimento em que estavam submersos. É com essas ferramentas que eles ‘montam’ as performances, (dis)torcem as regulações e tecem o seu aparecimento no currículo. Como bases, pós e brilhos, os marcadores sociais de gênero e sexualidade contornam a ‘montação’ de modo a produzir os aparecimentos de uma forma e não de outra. Tudo para que possam produzir uma vida vivível no currículo ao passo que, também, o próprio currículo venha a se constituir como algo possível para mais pessoas. Isso porque, como já acenamos, nada está dado de antemão: nem currículo, nem pessoas. O que assume ares de ‘passável é o que foi continuamente reiterado como normal e natural - é a ‘montação’ fruto de muito contorno esfumado.

Nossas questões nos levam a sugerir, então, que sigamos além das tentativas de prescrição definitiva daquilo que poderia ser o melhor currículo - o qual, talvez, mesmo partindo de um ideal de democracia, flerte com a essencialização de diferenças em nome da tolerância e/ou da inclusão - e entendamos que o currículo torna-se democrático enquanto produz condições para a passagem segura e visível de existências, em meio a negociação infindável de regulações sociais. Assim, se quisermos interrogá-lo quanto à sua intensidade democrática, devemos supor que o currículo será muito mais democrático quanto mais for marcado pelo atravessamento das diferenças possíveis. E não há regra quanto a isso porque não há sujeito dado de antemão. Há somente um apelo inegociável para o encontro e a coexistência.

Coexistência, aqui, não como uma forma de tentar neutralizar o antagonismo potencial que há nas relações, tal como Mouffe (2019) aponta sobre a política pluralista democrático-liberal, mas como uma condição de vida marcada pelo conflito agonístico, que pode ser rico e fértil no plano da diferença. “O confronto agonístico é diferente do antagonístico, não porque ele permite um possível consenso, mas porque o oponente não é considerado um inimigo a ser destruído, mas um adversário cuja existência é percebida como legítima” (MOUFFE, 2019, p. 140).

Mesmo que a perspectiva agonística reconheça a impossibilidade de uma reconciliação plena e definitiva na política pluralista, defendemos que é possível pensar e animar a vivência do currículo como “um novo modo de vida mais radicalmente democrático e mais substancialmente interdependente” (BUTLER, 2018, p. 238). Numa passarela aberta para criações, experimentações e descobertas - como um circuito recorrente de negociações - dores e alegrias, desejos e medos, dúvidas e elaborações podem ser experimentadas coletivamente no jogo da multiplicidade que nos atravessa. Nesse tipo de perspectiva não há garantias mas, em seu lugar, há provocação permanente que instiga a busca de um jogo curricular que “mantém a democracia como um horizonte aberto” (RANNIERY; MACEDO, 2018, p. 26).

Aprendendo a construir caminhos e a equilibrar passos

A performance curricular das experiências destacadas nas cenas pode facilmente frustrar as expectativas que são, muitas vezes, criadas quando analisamos as existências consideradas “dissidentes” nos espaços escolares. Isso porque estamos acostumadas com um conjunto considerável de relatos pessoais, sociais e acadêmicos de violência, opressão e exclusão que denunciam a realidade com a qual as pessoas LGBTI+ precisam lidar em suas trajetórias escolares. Situações como essas são extremamente recorrentes e precisam, de fato, ser continuamente denunciadas e desafiadas pelas pesquisas e produções acadêmicas eticamente comprometidas com os horizontes de luta por liberdade, justiça e democratização permanente da educação. No entanto, os trabalhos que temos desenvolvido nessa área nos apontam a importância de reconhecer que as vivências “dissidentes” de gênero e sexualidade na educação escolar não estão, inexoravelmente, destinadas as serem aniquiladas por uma política de “terra arrasada” (OLIVEIRA; SANTOS, 2019; OLIVEIRA; SANTOS, 2018), mas que podem construir alternativas viáveis e produtivas a partir de uma “política do vivível” (RANNIERY; MACEDO, 2018).

Somos pessoas forjadas, desde antes do nascimento, sob normas de gênero e sexualidade convencionadas a partir de diversos contextos. Essa operação normativa impõe performances, direciona desejos e tenta condicionar as dinâmicas do prazer. A ativação desses códigos através de expressões como “é um menino”, “é uma menina” ou, simplesmente, da marcação de um quadrado em um documento de registro civil (BUTLER, 2018), por exemplo, é o que institui, de algum modo, a operação de todo um repertório de representações de sexualidade e gênero no sentido de uma padronização performativa. Repertório que se apresenta como caminho a ser trilhado e como critério para o policiamento e mobilização dos corpos. Somos cobrados por esses padrões que nos atravessam desde muito antes de tomarmos consciência de nós e do mundo.

A (re)produção dos padrões normalizados de performance apresenta-se, nesse sentido, como uma das tarefas centrais do currículo em algumas perspectivas e projetos de educação (OLIVEIRA A., OLIVEIRA G., 2018). O espaço-tempo curricular é atravessado por inúmeras normatizações que buscam controlar as práticas de ensino, os conteúdos, as formas de comportamento dos sujeitos, as políticas de formação, a delimitação dos territórios, ou seja, que buscam estabelecer as possibilidades e limites do universo da educação escolar. Essas normatizações também referenciam as performances de gênero (masculino e feminino) aceitáveis socialmente, que devem ser incorporados pelas alunas e alunos, assim como por docentes e gestão, constituindo a efetivação de identidades sociais específicas, mais ou menos regulares. Esses aspectos são discutidos em diversos estudos (ABRAMOVAY, 2004; AUAD, 2004; BORTOLINI, 2015; CÉSAR, 2009; FERRARI, 2007; FREITAS, 2004; JUNQUEIRA, 2013; LOURO, 1997; 1999; 2001; NETO, 2015) que tratam das experiências que envolvem as relações entre gênero, sexualidade e educação. Essas determinações, entretanto, tornam-se um problema quando sujeitos atuantes nos espaços escolares explicitamente se distanciam das regras que constituem os gêneros e, mesmo sob o peso de ameaças e violências, suas vidas transgridem a condição normativa.

Evidencia-se, desse modo, que a normatização tem uma dupla e, aparentemente, paradoxal funcionalidade: ao mesmo tempo em que produz um certo modelo de subjetividade, o padrão normativo também busca impedir a emergência de dinâmicas subjetivas que desafiem os limites e o funcionamento da ordem estabelecida. O sujeito das normas é um sujeito ilusório e estéril. A subjetivação acontece entre o que se possibilita e o que não se conforma, no ‘entrelugar desse embate, conforme já refletimos no tópico anterior. Entre as condições que possibilitam a legibilidade ou ilegibilidade social, os sujeitos, principalmente aqueles/as considerados/as “dissidentes” sexuais e de gênero, vão se constituindo e constituindo seu espaço-tempo, inclusive no currículo. Desenvolvendo formas de se tornar reconhecíveis e forjando o agenciamento do novo através de performances próprias.

Nesse sentido, aquelas (re)formulações curriculares operadas pelas atividades de desenho, costura e desfile de roupas, constituem muito mais uma (re)significação da legibilidade daquelas pessoas e daquilo que se considera “educativo” e/ou “curricular” do que algum tipo de enfrentamento a situações específicas de violência possivelmente vividas ali. O currículo como um espaço-tempo de múltiplas vivências entrelaçadas (MACEDO, 2006a), como apresentamos no início do texto, poderia então ser entendido como um lugar seguro em que, contrariamente ao que se vivencia no âmbito social mais amplo, aqueles corpos primariamente lidos como masculinos podiam fazer uso de outros signos e artefatos, geralmente idealizados e naturalizados por uma gramática supostamente feminina. Além disso, poderiam também burlar essa clausura binária e se arriscar em vivências que não deixam as identificações tão “legíveis” socialmente, experimentando a possibilidade de viver em trânsito, como é o caso do próprio Ariel que, na conversa, se identificou como uma pessoa transgênera não-binária .

É nesse sentido que preferimos apostar que “o currículo seja um espaço-tempo no qual não há identidades constituídas, mas relações que a todo tempo constituem identificações” (LOPES, 2017, p. 124). Isso porque as identidades são sempre esforços de estancamento desse movimento contínuo e incessante de produção de sentido sobre as coisas, são tentativas de criar estabilidade e inteligibilidade sobre a realidade. O que chamamos de “realidade” é sempre um nome, um conceito, uma identidade que representa essa pausa, esse ponto nodal (LACLAU; MOUFFE, 2015) e/ou o conjunto deles produzido para que a existência tenha sentido.

A identidade, portanto, é sempre precária, tendo em vista sua impossibilidade de fechar por completo as possibilidades de significação. Assim, faz sentido pensar em ‘montação’ de si e do próprio currículo, uma vez que no jogo discursivo de produção de todas as coisas, que é radicalmente político, nada está dado por completo. Os esforços de construir tanto a legibilidade curricular quanto a subjetiva envolve sempre relações de identificação que, de alguma forma, são também tentativas de organizar a multiplicidade que nos envolve, de lidar com o campo do indecidível. Aquilo que chamamos de “ser das coisas”, “ser do mundo” ou, simplesmente, “ser”, e que serve, desde os gregos, como a referência fundamental de ideia clássica de identidade, nada mais é do que a nossa crença na duração, na regularidade, e a nossa necessidade psicológica de permanência (MOSÉ, 2018). Vivemos, de algum modo, sob a necessidade de segurança e isso nos leva a produzir um mundo que “não é mutável e flutuante no devir, mas um que é [ser]” (NIETZSCHE, 2013, p. 291).

Para além das operações normativas que forjam identidades, torna-se importante reconhecer e investigar as dinâmicas de articulações e disputas que constituem as regulações de si e das coisas no mundo. Trata-se de ressaltar, como vimos discutindo, que nenhuma prescrição curricular consegue dar conta do fazer educacional em todas as suas possibilidades nem, tampouco, nenhum sujeito se integra ao currículo como alguém pronto, acabado e irretocável. O currículo e as subjetividades vão se constituindo ao sabor das interpelações que partem deles mesmos e de outras esferas sociais que afetam o processo educacional. É interessante retomar a expressão do professor Paulo ao dizer: “a partir do momento em que a escola fez ele me mostrar os desenhos”. Ele não se refere, simplesmente, ao conhecimento que as pessoas da escola tinham em relação às habilidades de Ariel. Também indica a dinâmica de produção daquele espaço-tempo curricular como marcado pela abertura para novas possibilidades, não como mero mecanismo de vigilância e reprodução da regularidade social.

A oportunidade de expressar-se através dos desfiles, de expurgar determinados medos produzidos na experiência do diferir performático marcada, muitas vezes, por insultos, piadas ofensivas e “brincadeiras” violentas (OLIVEIRA, SANTOS, 2019; OLIVEIRA; SANTOS, 2018), possibilitou àqueles jovens não somente que alcançassem o patamar de uma identidade social legível e conquistassem um lugar de reconhecimento (como relatado nas cenas 2, 3 e 4), mas, também, lhes permitiu aprender a manejar as ferramentas e estratégias da arte do diferir, da identificação, da criação de contextos vivíveis. Ferramentas e estratégias essas imprescindíveis para a conquista e a construção da vivência democrática. Mais ainda, lhes permitiu exercitar o olhar crítico sobre um território curricular não isento de regulações heterocisnormativas e os ensinou sobre a precariedade das normas e a importância de sua desnaturalização. Desmontou a ficção dos corpos artificialmente formatados com gênero e sexualidade e lhes abriu a possibilidade de explorar as brechas, fraturas e pontos de escape dessa estrutura.

Ainda algumas palavras

Nesta última parte de nosso texto, vale ressaltar que as experiências relatadas, que serviram de ponto de partida para a nossa análise, nos dão elementos ricos para pensar as possibilidades de uma educação aberta à diferença, animada pelo horizonte - sempre móvel - de uma “democracia por-vir” (DERRIDA, 2005). Fortalecem a perspectiva de que a performance conjunta de corpos em espaços públicos como estratégia de “exigência corpórea por um conjunto mais suportável de condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas de condição precária” (BUTLER, 2018, p. 17) também é válida para pensarmos as ações e práticas curriculares.

Através do caráter ficcional da ‘montação’ das roupas e dos desfiles, os estudantes de nossa pesquisa desmascararam também a ficcionalidade das regulações sociais que agem sobre os corpos, sob modos específicos de poder, e produziram uma ação política de caráter radicalmente democratizante. Os desfiles, para aqueles alunos, além de terem sido uma oportunidade de conhecer aspectos de outras culturas, foram, primordialmente, espaço-tempo curriculares em que puderam descobrir mais sobre possibilidades estéticas e produzir visualidades de gênero que borram as fronteiras do marco heterocisnormativo. Visualidades que desafiaram a regulação hegemônica da masculinidade como, por exemplo, meninos usando saia e salto alto. Experiências sintetizadas em expressões que surgem nas cenas narrativas, como ‘quebrar gênero’ e ‘empoderamento’. No exercício dessa aparição pública, demonstraram que podem negociar estratégias de reconhecimento social na escola e nos espaços sociais.

Construir espaços em que se abrem possibilidades menos traumáticas para o seu aparecer é muito significativo para qualquer tipo de vivência precária, sobretudo para aquelas que envolvem o exercício conflituoso do gênero e da sexualidade. Burlar as expectativas que os limitam, pisar “de salto alto” na passarela do currículo, movimentando-o com expressões, voltas e passos desafiadores, na experiência desses ex-alunos, foi capaz de os impulsionar ao convívio social com menos medo e mais desejo de seguir. Com mais coragem para se arriscarem em novas descobertas e poderem se afirmar. Através de seus passos exuberantes que produziam uma profusão de cores, sorrisos e aclamações, mesmo sem tanta necessidade de enfretamento naquele contexto curricular, aqueles corpos “diferentes” exerceram (performativo) o seu direito de aparecer, como uma espécie de demanda para que suas experiências fossem cada vez mais possíveis e suas vidas vivíveis (BUTLER, 2018). Fizeram do currículo, portanto, a sua própria passarela.

1 Este texto é um desdobramento de resultados da dissertação de mestrado de George de Melo, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação de Anna Luiza de Oliveira e contou com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2 Vale pontuar que Butler (2018) elabora essas noções num cenário de análise que interroga movimentos organizados na luta política, naquilo que ela planteia como uma teoria performativa de assembleia. A despeito desse contexto teórico-analítico original, torcemos um pouco mais as noções em direção à especificidade dos nossos casos, pois julgamo-las propícias para a análise dessas corporificações “dissidentes”.

3 ‘Dar o truque’ ou simplesmente ‘o truque’ são expressões típicas do vocabulário LGBTI+ e se referem a “enganar”, “dar o golpe de vista”, ou a capacidade de resolver algum problema. É usado no processo de ‘montação’ drag quando se lança mão de técnicas não convencionais para a produção corporal. No nosso caso, utilizamos o ‘truque para indicar toda a destreza desenvolvida na relação daqueles alunos e sua ocupação curricular.

4 ‘Passabilidade é uma noção que trazemos como expressão de uma espécie de corolário performativo relacionado a determinados roteiros performáticos de gênero e sexualidade mais ou menos convencionados socialmente. ‘Ser passável’, assim, é forjar-se performaticamente dentro de alguma inteligibilidade social hegemônica. A “passabilidade está implicada num conjunto de atos que asseguram uma imagem substancial de gênero no registro de uma matriz heterossexual e cisgênera” (PONTES; SILVA, 2017, p. 407). Aqui, traduzimos o termo para indicar que, considerando o jogo de negociação inevitável das regulações sociais, podemos pensar tanto educadoras quanto estudantes, enquanto operadores no/do currículo, como sujeitos frequentemente desejantes de passabilidade, no sentido de se constituírem sob perspectivas de inteligibilidade social e política.

5 Para as pessoas que se identificam dessa forma, as categorias de gênero binárias, geralmente, não satisfazem suas formas de ser no mundo. Segundo Gabby Hartemann (2019, p. 100) podem ser “pessoas agêneras, bigêneras, genderqueer, transmasculinas, transfemininas, travestis, transvestigêneras, fluídas no gênero, transviades, sapatrans, entre múltiplas outras categorias que usamos hoje”.

6 De acordo com Mattos e Cidade (2016, p. 134), a cisheteronormatividade ou heterocisnormatividade, como usamos (só por escolha estética), é uma perspectiva “que tem a matriz heterossexual como base das relações de parentesco e a matriz cisgênera como organizadora das designações compulsórias e experiências das identidades de gênero; ambas produzindo efeitos que são naturalizados em nossa cultura, a partir da constituição de uma noção de normalidade em detrimento da condição de anormalidade, produzindo a abjeção e ocultamento de experiências transgressoras e subalternas”. O termo surge com objetivo de aprimorar o que até pouco tempo atrás se conceituava como somente “heteronormatividade”, referindo-se “a práticas culturais que forçam pressupostos de que a heterossexualidade é normal e natural para todas as pessoas” (MANNING, 2009, p. 414).

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 11 de Setembro de 2020

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