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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 02-Dic-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77538 

DOSSIÊ - Processos de privatização da educação em países latino-americanos

Arranjos de Desenvolvimento da Educação: da parceria público-privada à disputa pelo fundo público educacional

Daniela de Oliveira Pires* 
http://orcid.org/0000-0002-6671-9195

Elma Júlia Gonçalves de Carvalho** 
http://orcid.org/0000-0003-4770-4649

*Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: danielaopires77@gmail.com

**Universidade Estadual de Maringá. Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: elmajulia@hotmail.com


RESUMO

Neste artigo, considerando a redefinição do papel do Estado e o redimensionamento das relações entre o público e o privado, a partir dos anos de 1990, objetivamos abordar a nova forma de regramento do regime de colaboração entre os entes federados envolvendo a proposição de Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs). Para tanto, será apresentado o Projeto de Lei nº 5.182/19 (BRASIL, 2019), a fim de explicitar as novas estratégias de disputas do fundo público para a educação. Na análise, descrevemos a qualificação das entidades do terceiro setor, o investimento público na educação básica no Brasil, os mecanismos de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada com ou sem fins de lucro e a particularidade da proposta dos ADEs. A metodologia utilizada se baseou tanto na pesquisa quantitativa, na análise documental e legislativa, como na pesquisa qualitativa. O estudo revelou que a institucionalização e o estímulo aos ADEs correspondem a um processo de construção de políticas educacionais para a educação básica, articulado aos interesses privados com ou sem fins de lucro.

Palavras-chave: Reforma do Estado; Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs); Fundo público; Parceria público-privada; Entidades do terceiro setor

ABSTRACT

In this article, considering the redefinition of the role of the State and the re-dimensioning of the relations between the public and the private spheres from the 1990s onwards, we aim to approach the new regulation form of the collaboration regime between federated entities and the proposal of Education Development Arrangements (EDAs). For this reason, the Bill No. 5.182/19 (BRASIL, 2019) is presented in order to explain the new dispute strategies of the public fund for education. Along the analysis, we describe the qualification of entities in the third sector, public investment in basic education in Brazil, the transfer mechanisms of public resources to private initiative with or without profit purposes, and the particularity of the EDAs proposal. The methodology was based on quantitative research, documentary and legislative analysis, as well as qualitative research. The study revealed that the institutionalization and encouragement of EDAs correspond to a process of construction of educational policies for basic education, linked to private interests with or without profit motives.

Keywords: State reform; Education Development Arrangements (EDAs); Public fund; Public-private partnership; Third sector entities

Introdução

Este artigo analisa os Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs), proposta elaborada pelo movimento empresarial Todos Pela Educação, aprovada e normatizada pela Resolução do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) nº 1, de 23 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012b). A proposta dos ADEs reconfigura o regime de colaboração ainda não institucionalizado, sobretudo, ao propor um formato de colaboração horizontal entre os municípios na organização dos sistemas de ensino em parceria com fundações e associações de empresas que atuam no setor educacional.

O processo de regulamentação do formato colaborativo de “novo” tipo (ARGOLLO; MOTTA, 2015) se insere no contexto de reforma do Estado brasileiro, em curso desde os anos 1990. O projeto de reforma, por meio do Plano Diretor do Aparelho do Estado (PDRAE) (BRASIL, 1995), abriu espaço para mudanças organizacionais e administrativas no âmbito da gestão pública e para a adoção de novas estratégias de aproximação da esfera do público e do privado. Diversos instrumentos normativos (emendas constitucionais, leis complementares, decretos etc.) têm sido aprovados na perspectiva de fomentar a regulamentação e ampliação da relação entre Estado e sociedade civil, aqui entendida como as entidades privadas sem fins lucrativos de tipo associativo ou fundacional. Essa relação acaba alterando as características de gestão e autorizando as mais variadas formas de parcerias público-privadas, a depender da configuração jurídica de tais entidades. Exemplo disso são os contratos administrativos, convênios, acordos de cooperação e contrato de gestão.

Sendo assim, podemos considerar que o setor privado tem influenciado tanto na elaboração quanto na execução das políticas públicas como, por exemplo, a proposta dos ADEs. Para tanto, observa-se que o formato dos ADEs impulsiona um processo de alteração na noção do próprio federalismo cooperativo e de equilíbrio, que, segundo o art. 211 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2012a [1988]), caracteriza-se pela repartição de responsabilidades, descentralização na organização político-administrativa, com a pactuação das ações entre os entes federados, porém, sem a mediação de entidades privadas que vêm influenciando a política educacional com a inserção de valores e práticas vinculadas ao mercado.

Considerando que o regime de colaboração pressupõe uma política de financiamento da União e tal parceria envolve novas estratégias encobertas de disputas do fundo público para a educação, este artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, será apresentada uma breve compilação das principais legislações que normatizam a relação público-privada na educação, por meio do reconhecimento das entidades do terceiro setor. Na segunda parte, serão abordados mecanismos que possibilitam a transferência dos recursos públicos para as entidades do terceiro setor. Na terceira parte, serão apresentados alguns dados empíricos acerca da evolução do investimento público na educação básica entre os anos de 2003 a 2019, demonstrando os valores desembolsados e comparando as transferências diretas de recursos da União aos municípios e às instituições privadas sem fins lucrativos. Na quarta parte, com foco no Projeto de Lei (PL) nº 5.182, de 2019 (BRASIL, 2019), que dispõe sobre os ADEs, será apresentada a hipótese de que tais arranjos envolvem novas estratégias das Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil (OSC) na disputa pelo fundo público.

Alguns elementos das regulações entre a esfera do público e do privado: das Organizações Sociais às Organizações da Sociedade Civil

Ao analisar a legislação ordinária que regulamenta a relação público-privada na educação, é imperioso ressaltar que ela é parte constitutiva do contexto de reforma do Estado brasileiro a partir dos anos 1990, resultando na reconfiguração do papel do Estado no que tange à promoção do direito à educação, estabelecendo a categoria do setor público não estatal. O setor público não estatal passa a ser materializado pelas chamadas entidades do terceiro setor, reconhecidas como parceiras do poder público e regulamentadas pelas legislações ordinárias, que estabelecem, respectivamente, Organizações Sociais (BRASIL, 1998), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) (BRASIL, 1999) e, mais recentemente, a Organizações da Sociedade Civil, instituída pelo Marco Regulatório do Terceiro Setor (BRASIL, 2015a).

Essas qualidades jurídicas especiais também passam a assegurar vantagens, pois tais qualidades passam a gozar de benefícios especiais não extensíveis às demais pessoas jurídicas privadas, benefícios tributários e vantagens administrativas diversas. Organizações como as supracitadas, ao promoverem atividades de interesse público, contam com uma série de benefícios que devem ser mais bem compreendidos, principalmente no que diz respeito a transferências de recursos, bens e serviços públicos, conforme a legislação que trata das Organizações Sociais, uma vez que no art. 12 declara que pode ser destinatária de recursos orçamentários e bens públicos que viabilizem a realização do “contrato de gestão” (BRASIL, 1998).

De acordo com a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999 (BRASIL, 1999), em seus art. 9º e 10º, o termo de parceria designa o ajuste ou o acordo estabelecido entre o poder público e as OSCIPs, destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público por estas desempenhadas, determinadas no art. 10, § 2° e incisos seguintes. Conforme Di Pietro (1999, p. 201), “[...] não há dúvidas de que as organizações sociais se constituem em um instrumento de privatização do qual o governo se utiliza para diminuir o tamanho do aparelhamento da Administração Pública”.

Em 2014, foi aprovado o Marco Regulatório do Terceiro Setor, tendo como principal objetivo disciplinar as parcerias celebradas entre o poder público e as entidades privadas sem fins lucrativos, conceituadas no referido instrumento legal como Organizações da Sociedade Civil. Cabe ressaltar que a relação público-privada está pautada em valores preconizados pela lógica empresarial, tais como a competitividade e a produtividade. Porém, para institucionalizá-los concretamente no âmbito das escolas públicas, foi necessário um “arcabouço normativo” que os legitime e que também possa vir a proporcionar de igual forma mecanismos que confiram a possibilidade de acesso ao fundo público educacional, conforme parece ser a intencionalidade do Projeto de Lei nº 5.182, de 2019 (BRASIL, 2019), que dispõe sobre os ADEs, analisado na parte final deste artigo. A seguir abordaremos algumas formas já existentes de repasse de recursos públicos para o setor privado na consecução de ações no campo educacional.

Mecanismos de transferência de recursos públicos para a iniciativa privada

Na busca de demonstrar a hipótese de que os ADEs se configuram em uma nova estratégia de disputa do fundo público, inicialmente cabe ressaltar que a Constituição Federal (BRASIL, 2012a [1988]) prevê a possibilidade de renúncia à tributação por parte dos entes federados (União, estados e municípios) (BRASIL, 2012a [1988], art. 150, § 6º). De acordo com Santos Filho (2016, p. 24), “[...] os incentivos fiscais se prestam exatamente à concessão de benefícios para o fomento, ao desenvolvimento de certas atividades da iniciativa privada, principalmente as associadas à utilidade pública, ou mesmo à própria vedação de tributar imposta ao ente fiscal”.

Com base em dados do tesouro nacional sobre os incentivos e subsídios concedidos anualmente pelo governo federal brasileiro, o diagnóstico do Banco Mundial (2018) sobre os principais desafios de desenvolvimento econômico e social do Brasil, dentre os quais o desequilíbrio fiscal, destaca: “[...] atualmente cerca de 6,2% do PIB em incentivos e subsídios fiscais de vários tipos, dos quais 4,3% em isenções fiscais e 1,9% em subsídios fiscais e crédito subsidiado”. E, ainda, que desses “[...] subsídios e isenções fiscais, cerca de três quartos beneficiam diretamente as empresas do setor privado” (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 13). A transferência direta de recursos para empresas privadas é ilustrada pelo Banco Mundial no Gráfico 1, a seguir:

FONTE: Banco Mundial (2018, p. 13).

GRÁFICO 1 “A BOLSA EMPRESÁRIO”: ISENÇÕES TRIBUTÁRIAS, CRÉDITO SUBSIDIADO E TRANSFERÊNCIAS DIRETAS BENEFICIAM O SETOR PRIVADO 

Embora os posicionamentos do Banco sobre os possíveis caminhos das reformas possam ser bastante discutíveis, não podemos desconsiderar nesses dados, obtidos a partir do Ministério da Fazenda brasileiro, o número significativo de destinação de recursos públicos para grupos privados, especialmente se considerarmos a reforma do aparelho do Estado em curso desde a década de 1990, bem como os interesses em disputa na concessão de benefícios fiscais ao setor privado. Assim, outro aspecto que deve ser levado em conta em relação ao desequilíbrio fiscal decorre da atuação do Estado em favor da reprodução da dinâmica capitalista.

Nesses termos, em tempos de redefinição da atuação estatal e de evidente fortalecimento dos interesses privado-mercantis em detrimento dos interesses públicos no seio do Estado (SGUISSARDI, 2014), pesquisas realizadas no campo da educação básica pública sobre os gastos orçamentários nos permitem dimensionar o montante de recursos transferidos aos municípios, assim como ao setor privado. Adrião e Domiciano (2018), tendo por base o demonstrativo das receitas vinculadas em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)1, destacam a ampliação do volume de repasse de recursos do governo federal ao setor privado, conforme reproduzido na Tabela 1, a seguir.

TABELA 1 GASTO TOTAL E PERCENTUAL DIRECIONADO AO SETOR PRIVADO DAS DESPESAS DO GOVERNO FEDERAL COM MANUTENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO ENSINO 

Ano de exercício Gasto total em MDE* Gasto direcionado ao setor privado** Gasto direcionado aos municípios Percentual do gasto total em MDE destinado ao setor privado Percentual do gasto total em MDE destinado aos municípios
2002 10.797.567 2.906.968 1.754.501 26,92% 16,25%
2006 14.801.195 3.213.959 2.345.004 21,71% 15,84%
2010 14.824.678 2.686.112 627.689 18,12% 4,23%
2014 35.639.626 8.514.455 5.508.955 23,89% 15,46%

FONTE: Adrião e Domiciano (2018).

Na análise, as autoras indagam sobre a destinação de recursos públicos federal para o setor privado como parte de um processo que indica a evidente transformação da educação básica pública em um campo de negócios. Com esse entendimento, a seguir, visa-se explicitar os indicadores de investimentos públicos na educação básica brasileira, com base em dados do sistema de informação sobre orçamento público federal - SIGA Brasil, do Senado Federal (BRASIL, 2020a), devido à indisponibilidade de dados atualizados sobre as despesas em MDE do governo federal, bem como a tendência de matrículas, a partir de dados do Censo da educação básica (BRASIL, 2020b).

O investimento público na educação básica brasileira

Acompanhando a trajetória dos investimentos públicos em educação no Brasil, pesquisas têm revelado o aumento expressivo de recursos destinados à educação básica. De acordo com Reis (2015, p. 183), segundo o Painel do Cidadão sobre o Orçamento da União (SIGA Brasil), no período de 2003 a 2014, “[...] houve um crescimento das despesas nas subfunções correlacionadas à educação básica, quando comparadas às despesas da União em todas as funções. Tal crescimento foi verificado especialmente a partir do ano de 2007”. Em termos percentuais, conforme nos indica o autor:

Em 2003 os recursos destinados à educação básica representavam, em termos proporcionais, 0,38% das despesas da União (todas as funções) e em 2014 passaram a representar 1,26% das despesas da União, um crescimento de 231,58%. Do ponto de vista financeiro, as despesas da União com a Educação Básica saltaram de R$ 6,302 bilhões, em 2003, para R$ 28,771 bilhões, em 2014, um crescimento de 356,52% (REIS, 2015, p. 183).

Ao abordar a evolução do gasto federal, Mendes (2015), com base na mesma fonte de dados, destaca que a educação desponta como o item de despesa que mais cresceu. Segundo o autor, “[...] em 2004 os desembolsos para o setor equivaliam a 4% da receita líquida do Tesouro, tendo passado a 9,3% em 2014. Um salto nada desprezível de 130%” (MENDES, 2015, p. 1), conforme a Tabela 2, elaborada pelo autor.

TABELA 2 DESPESAS DO GOVERNO FEDERAL (2004-2014) 

  2004 2006 2008 2010 2011 2012 2013 2014 Variação 2004-14
Abono Salarial e Seguro Desemprego 2,7 33 3,5 3,8 4,2 4,4 4,5 5,3 96%
LOAS e RMV 2,1 2,6 2J 2,9 3,0 3,3 3,4 3,8 78%
Bolsa Familia 1,4 1,3 1,8 1,7 2,0 2,3 2,4 2,6 90%
Beneficios Previdenciários 35,7 36,7 34,2 32,7 34,4 35,9 36,0 38,9 9%
Saúde 9,1 8,6 8,2 7,9 8,4 8,8 8,4 9,3 2%
Educação 4,0 4,2 4,6 5,9 6,6 7,6 7,8 93 130%
Pessoal (exceto saúde e educação) 22,2 22,3 21,4 20,3 20,6 19,8 18,8 19,7 -11%
Investimento (exceto saúde e educação) 2,1 2,8 3,9 4,7 4,1 3,8 3,7 4,3 107%
                   
Memo: Receita Líquida (RS bilhões) valor nominal 352 451 584 779 818 881 991 1.014  

FONTE: Mendes (2015, p. 1).

A mesma fonte também evidencia a participação da educação no orçamento efetivo da União no período de 2015 a 2019, conforme valor pago em real indexado pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), segundo a Tabela 3, a seguir.

TABELA 3 PARTICIPAÇÃO DA EDUCAÇÃO NO ORÇAMENTO EFETIVO DA UNIÃO - VALOR PAGO (2015-2019) 

Ano Educação - valor pago
em real
% no orçamento efetivo
da União
2015 121, bi 6,09
2016 123,9 bi 6,09
2017 122,2 bi 5,97
2018 109,8 bi 5,19
2019 106,9 bi 5,06
Δ2015/2019 -14,1 bi -1,03
Δ%2015/2019 -11,35%  

FONTE: Elaborada pelas autoras com base nos demonstrativos (2015-2019) obtidos no Senado Federal (Portal Orçamento - SIGA Brasil) (BRASIL, 2020a).

Os números nos revelam que os recursos destinados à educação aumentaram em 2016. Porém, a partir de 2017, houve um decréscimo, especialmente se considerarmos a queda na arrecadação de impostos e aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016), que, ao estabelecer um novo regime fiscal, institui o congelamento dos gastos públicos durante 20 anos, permitindo apenas a reposição das perdas inflacionárias. Considerando os valores pagos (R$ 1,00), comparando 2015 a 2019, há uma variação negativa de 14 bilhões e 100 milhões de reais, ou seja, uma redução de 11,35%, com perspectiva de manutenção dessa tendência negativa.

A Tabela 4 mostra um quadro comparativo relacionado às transferências diretas2 do orçamento efetivo da União, esfera fiscal e da seguridade social à educação, destinadas aos municípios e às instituições privadas sem fins de lucro.

TABELA 4 TRANSFERÊNCIAS DIRETAS DA UNIÃO À EDUCAÇÃO 

Ano Aplicação direta Transferências
diretas da União a municípios
Transferências diretas da União
à instituição
privada sem fins lucrativos
2015 79,9 bi 18,9 bi 2,0 bi
2016 81,3 bi 18,7 bi 1,4 bi
2017 80,9 bi 16,4 bi 640,6 mi
2018 74,5 bi 18 bi 668 mi
2019 72 bi 16,9 bi 522 mi
Δ2015/2019 -7,9 bi - 2 bi - 1.478 bi
Δ%2015/2019 9, 9 % aprox. - 10,6 % aprox. - 26,1 aprox.

FONTE: Elaborada pelas autoras com base no Painel Cidadão: SIGA Brasil (BRASIL, 2020a).

Nota: Valor pago em real e indexado pelo IPCA até o mês de abril* (Dados atualizados até 17 de maio de 2020).

Considerando as transferências efetuadas no período de 2015 a 2019, os dados demonstram que as transferências aumentaram no período de 2015 a 2016. No entanto, sobressai que, a partir de 2017, houve uma mudança com o decréscimo nas transferências diretas aos municípios e, especialmente, de forma bastante acentuada, nas transferências diretas à instituição privada sem fins de lucro, que não têm vínculo com a administração pública. Cabe lembrar que “[...] as duas principais estruturas jurídicas presentes na legislação brasileira que permitem o recebimento de recursos público por parte das instituições privadas sem fins de lucros são as OS e as OSCIP” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2017, p. 41).

No Gráfico 2, com base em dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apresentamos as estimativas do investimento público direto na educação no período de 2000 a 2015 em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) per capita. O percentual do investimento público em educação em relação ao PIB está atualizado de acordo com os novos valores divulgados em março de 2017 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

FONTE: Brasil (2015b).

GRÁFICO 2 INVESTIMENTO PÚBLICO EM RELAÇÃO AO PIB NO BRASIL: REALIZADO, PROJETADO E COMPLEMENTAÇÃO DA UNIÃO (2000-2024) 

Como se verifica no Gráfico 2, os recursos destinados pelo orçamento da União para a área da educação comprovam que no período de 2000 a 2015 houve um aumento em termos proporcionais de 4,6%, em 2000, para 6,2% do PIB, em 2015, com projeção para 10%, em 2024, conforme Meta 20 do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2015a). No entanto, a lacuna deixada no texto que aprova o PNE, ao não vincular os 10% do PIB nacional para a educação pública, abre brecha para a concessão de recursos públicos às instituições privadas com ou sem fins de lucros.

Com base nesses indicadores, podemos considerar que, se, por um lado, identifica-se um crescimento do investimento público direto na educação, por outro, no mesmo período, é possível, a partir de pesquisas (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2017; ADRIÃO; DOMICIANO, 2018), observar a ampliação do repasse de fundos públicos para o setor privado com ou sem fins lucrativos para realizarem serviços educacionais na educação básica. Outro dado que importa ressaltar na discussão relaciona-se à compra dos denominados “sistemas de educação” vendidos pelas empresas privadas aos municípios.

Observando essa tendência, de destinação de recursos públicos para a iniciativa privada com ou sem fins de lucros, importa-nos trazer alguns dados sobre as matrículas na educação básica. Dados relativos à matrícula total na educação básica regular, disponíveis nas Sinopses Estatísticas do Censo Escolar, demonstram que em 2019 “[...] foram registradas 47,9 milhões de matrículas nas 180,6 mil escolas de educação básica no Brasil”, sendo que a “[...] a rede municipal é a principal responsável pela oferta dos anos iniciais do ensino fundamental (67,6% das matrículas), e nos anos finais”, há um “[...] equilíbrio entre as redes municipais (42,8%) e estaduais (41,5%)” (BRASIL, 2020b, p. 5-6), conforme Tabela 5, a seguir.

TABELA 5 NÚMERO DE ESCOLAS DE EDUCAÇÃO BÁSICA POR DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA NO BRASIL (2015-2019) 

ANO DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA
Total Pública Federal Estadual Municipal Privada
2015 48.796.512 39.738.780 376.230 16.548.708 22.813.842 9.057.732
2016 48.817.479 39.834.378 392.565 16.595.631 22.846.182 8.983.101
2017 48.608.093 39.721.032 396.482 16.222.814 23.101.736 8.887.061
2018 48.455.867 39.460.618 411.078 15.946.416 23.103.124 8.995.249
2019 47.874.246 38.739.461 404.807 15.307.033 23.027.621 9.134.785

FONTE: Brasil (2020b, p. 19).

Os números nos revelam que a maior parte das matrículas da educação básica está sob a responsabilidade dos municípios, ente da federação que demonstra maior fragilidade financeira e administrativa. Conforme Adrião e Domiciano (2018), a esfera municipal é a:

[...] menos aparelhada técnica e financeiramente para essa tarefa, mas que vivenciam, mais diretamente, as pressões da sociedade por assegurar a efetivação de direitos à educação. Cumpre lembrar que os municípios, como os demais entes federados, desde 2001, encontram-se subordinados à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a qual, ao fixar os gastos governamentais com pessoal em no máximo 60%, induz à transferência de parte considerável das atividades educacionais para o setor privado [...] (ADRIÃO; DOMICIANO, 2018, p. 5).

Na interpretação das autoras, “[...] esses condicionantes explicam, em parte, a generalização de programas e políticas que se apoiam no setor privado, lucrativo ou não lucrativo, como ‘solução’ para a oferta e gestão educacional em âmbito subnacional” (ADRIÃO; DOMICIANO, 2018, p. 5).

Dentre as políticas mais recentes de “austeridade” fiscal, podemos citar a aprovação da EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016 (BRASIL, 2016), que, ao instituir um Novo Regime Fiscal (NRF), estabelece o congelamento dos gastos públicos durante 20 anos nas chamadas despesas primárias do governo, permitindo apenas a reposição das perdas inflacionárias. Isso, por um lado, restringe investimentos na garantia dos direitos sociais, com a educação, pois

[...] compromete o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação, em especial a relacionada à destinação do percentual de 10% do PIB para a educação (AMARAL, 2016), mas também põe em risco os direitos sociais assegurados na Constituição Federal. No caso da educação pública [...] há risco de que a vinculação constitucional de utilização de um percentual de impostos pelos entes federados na manutenção e desenvolvimento do ensino, que no caso da União é de 18%, não seja mais cumprida (SANTOS FILHO, 2016, p. 244).

E, por outro, pode favorecer ainda mais a tendência de expansão do setor privado-mercantil no âmbito das administrações municipais (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2017), especialmente por meio de parceiras público-privadas. Outra forte tendência apontada é que “As mudanças aprovadas na EC 95/2016 vão alterar profundamente o orçamento público e as formas das disputas e negociações pelo fundo público” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2017, p. 83). Em relação à reconhecida fragilidade dos municípios, Abicalil (2013) nos aponta para outra questão que merece um olhar atento. Segundo ele:

[...] Diferentemente da União e dos estados, que têm a obrigação de manter suas próprias instituições de educação básica e superior, de maneira distinta, as competências municipais apresentam a manutenção de programas, abrindo leituras para uma gama de possibilidades de organização da oferta educacional pública na educação infantil e no ensino fundamental. A Emenda Constitucional n. 53, de 2006, ocupou-se de inserir a cooperação da União, mas não alterou a distinção entre manter programas e manter instituições de ensino. O texto reconhece sub-repticiamente que há municípios em condições tão precárias que não alcançariam a conformação de uma rede própria, obrigatoriamente, em consonância com o princípio da coordenação e da cooperação federativas e da colaboração entre sistemas de ensino (ABICALIL, 2013, p. 821, grifo no original).

Nesse sentido, os novos contornos do regime de colaboração, envolvendo a cooperação horizontal entre municípios, em parceria com fundações e associações de empresas privadas, bem como o caminho trilhado para sua regulamentação são temas que requerem cada vez mais uma maior atenção.

Assim, cabe destacar que, em meio à ausência de uma regulamentação do regime de colaboração garantida por lei complementar, os arranjos foram lançados como uma política nacional objetivando apoiar a cooperação e articulação entre os entes federados por meio da gestão territorial da educação. Porém, além de se configurar como um “novo” formato colaborativo (ARGOLLO; MOTTA, 2015), ou seja, envolvendo a ação coordenada das instituições públicas responsáveis pela educação nos municípios em parceria com institutos e fundações ligadas a empresas privadas, a proposta emerge em um contexto no qual se observa um aumento considerável das atribuições municipais com os serviços educacionais. Acrescido de uma série de alterações na legislação brasileira na celebração de parcerias e repasses de verbas do Estado para as organizações da sociedade civil. Essas condições objetivas criam um ambiente favorável para as parcerias público-privadas, para a origem de diferentes estratégias de expansão do mercado privado sobre o espaço público (CARVALHO, 2019) e para novas estratégias na disputa do fundo público para a educação.

Arranjos de Desenvolvimento da Educação: o PL nº 5.182/2019 e a estratégia das entidades do terceiro setor para o recebimento de recursos de assistência financeira da União

Desde o ano de 2009, várias instituições vêm assumindo o compromisso de apoiar as secretarias municipais de educação de diferentes lugares do país na implantação de um modelo estratégico de cooperação, especialmente os ADEs, indicando a materialidade de um projeto que, de nossa perspectiva, tem por objetivo construir um modelo de cooperação em rede entre os municípios, envolvendo novas relações entre público e privado (CARVALHO, 2018).

Lembrando que o novo modelo se insere no contexto de institucionalização de novas formas de cooperação entre os entes federados, incluindo a “[...] contribuição transversal dos institutos e fundações” (CRUZ, 2012, p. 147), ligados a empresas privadas e organizações diversas. O entendimento geral é de que, na perspectiva de influenciar o sistema nacional de educação, tais arranjos supostamente seriam um instrumento de gestão pública para fortalecer e implementar o regime de colaboração, cuja finalidade seria a melhoria da qualidade social da educação brasileira.

No entanto, embora o § 1º, do art. 2º, da Resolução nº 1 do CNE/CEB, de 23 de janeiro de 2012, defina que: “Essa forma de colaboração poderá ser aberta à participação de instituições privadas e não governamentais, mediante convênios ou termos de cooperação, sem que isso represente a transferência de recursos públicos para estas instituições e organizações” (BRASIL, 2012b, p. 2), consideramos que, mais do que um instrumento de colaboração territorial basicamente horizontal instituída entre entes federados, essa forma de colaboração público-privada configura uma nova estratégia de busca de disputa do fundo público, bem como de incluir as instituições filantrópicas, privadas e regulamentadas como de “interesse público” na política de financiamento da educação.

Ao abordar as novas formas de disputa do fundo público, argumentamos que as propostas dos arranjos coincidem com a aprovação de dispositivos que asseguram o aporte institucional do Estado para a cooperação entre os entes federados assentada na instituição das parcerias público-privadas. Notadamente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007, prevê que a parcela da complementação da União “[...] a ser fixada anualmente pela Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade”, limitada ao percentual de “até 10% (dez por cento)”, poderá “ser distribuída para os Fundos por meio de programas direcionados para a melhoria da qualidade da educação básica” (BRASIL, 2007, art. 7º). No parágrafo único, inciso I, do mesmo artigo, consta que, para a distribuição da parcela de recursos da complementação, levar-se-á em consideração: “[...] a apresentação de projetos em regime de colaboração por Estado e respectivos Municípios ou por consórcios municipais” (BRASIL, 2007, p. 3). Conforme informado pelo Ministério da Educação, sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), em 2018, a complementação da União ao Fundeb será de R$ 14 bilhões.

[...] considerando os períodos de 2016, 2017 e 2018, a complementação do Fundeb aumentou R$ 1,5 bilhão - de R$ 12,54 bilhões em 2016 para R$ 13,9 bilhões em 2017 e R$ 14,05 bilhões este ano de 2018. Por Lei, a complementação da União é de 10% das receitas estaduais projetadas para o ano. A memória de cálculo do valor previsto na Lei Orçamentária Anual de 2018 considerou as receitas estaduais de 2018 projetadas a partir da arrecadação/projeção de 2017, levando-se em conta o realizado até junho, e receitas federais constantes do PLOA 2018, um montante de R$ 140,5 bilhões - recursos do Fundeb (BRASIL, 2018a, p. 1).

Para o exercício de 2019, a estimativa da receita total do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) era de “R$ 156,3 bilhões”:

Desse valor, R$ 143,4 bilhões correspondem ao total das contribuições de Estados, Distrito Federal e Municípios, e R$ 14,3 bilhões à complementação da União ao Fundo [...]. Essa previsão representa um aumento de R$ 7,1 bilhões ou 4,8% para 2019 em relação à estimativa de receita para 2018. Os valores para 2018 foram estimados pela Portaria Interministerial 6/2018, publicada em 27 de dezembro, que avaliou a receita total do Fundo para 2018 em R$ 149,2 bilhões, sendo R$ 136,9 bilhões das contribuições de Estados, Distrito Federal e Municípios, e R$ 13,6 bilhões da complementação da União (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE MUNICÍPIOS, 2019).

No artigo 7º, § 7º do atual Plano Nacional de Educação, é preconizado que: “O fortalecimento do regime de colaboração entre os municípios dar-se-á, inclusive, mediante a adoção de Arranjos de Desenvolvimento da Educação” (BRASIL, 2014, p. 3), havendo o reconhecimento de que os arranjos podem ser um instrumento para colocar em prática o regime de colaboração. Recentemente, o PL nº 5.182, apresentado na Câmara dos Deputados em 24 de setembro de 2019 (BRASIL, 2019), de autoria da deputada Luísa Canziani do Partido Democrático Trabalhista do Paraná (PDT/PR), apoiado pela Frente Parlamentar Mista de Educação3, ao retomar o Projeto de Lei nº 2.417, de 2011, de autoria do deputado Alex Canziani do Partido Trabalhista Brasileiro do Paraná (PTB-PR), busca a institucionalização e o estímulo aos Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADEs). Para tanto, em seu art. 4º, o projeto prevê que:

A formalização de um Arranjo de Desenvolvimento da Educação se fará mediante a assinatura de acordo de cooperação entre os entes federados envolvidos e a assinatura por todos esses entes de termo de parceria com uma mesma entidade da sociedade civil, sem fins lucrativos, que atuará como agente de articulação e fomento das ações coordenadas no ADE (BRASIL, 2019, art. 4º).

A proposição prevê, também, criar “[...] condições para que os Municípios reunidos em ADE, em função de suas ações coordenadas recebam, de modo prioritário, assistência técnica e financeira da União, prevista na Constituição Federal” (BRASIL, 2019, p. 5). Para que os ADEs sejam habilitados a participar de programas de apoio do governo federal na implementação das ações coordenadas pactuadas, o PL propõe a alteração na Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, que dispõe sobre o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), para considerar como credenciadas as entidades da sociedade civil que fizerem parte dos arranjos. Nos termos do documento:

Art. 6º - O art. 30 da Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único: “Art. 30. Parágrafo único. É considerada como credenciada, para efeitos do disposto no inciso VI do ‘caput’, a entidade da sociedade civil que, como parceira, atuar como agente de articulação e fomento das ações coordenadas de Arranjo de Desenvolvimento Educacional (ADE), constituído nos termos da legislação específica (NR) (BRASIL, 2019, p. 3).

O referido PL tramita na Câmara dos Deputados em Regime de Tramitação Ordinária (art. 151, III, RICD) e está sujeito à apreciação conclusiva pelas Comissões (art. 24 II). A última ação legislativa foi a sua apensação ao PL-2417/2011, em 11 de dezembro de 2019. No entanto, a proposta nos revela a intenção de incluir as entidades da sociedade civil de “interesse público” como parceiras:

Art. 3º - Um Arranjo de Desenvolvimento da Educação (ADE) promoverá as ações coordenadas das instituições públicas responsáveis pela Educação pactuadas pelos entes federados nele envolvidos e de outras instituições, públicas e particulares, neles sediadas, com interesse manifesto em promover a melhoria da educação no território abrangido (BRASIL, 2019, p. 1-2).

Como também prevê, no art. 4º, § 2º, inciso IV, que:

§ 2º A entidade da sociedade civil referida no “caput” [sem fins lucrativos] poderá articular a assistência técnica e receber recursos de assistência financeira da União, com vistas à implementação das ações coordenadas pactuadas pelos entes envolvidos no ADE, nos termos do art. 5º , podendo, para tanto, firmar termo de parceria, termo de cooperação, termo de fomento, acordo de cooperação, convênios, contratos, acordos de qualquer natureza, receber auxílios, contribuições e subvenções sociais ou econômicas de outras entidades e órgãos do governo, observado o disposto no § 3º (BRASIL, 2019, p. 2, grifo nosso).

A proposta de institucionalização do regime de colaboração nos chama a atenção pela tentativa de possibilitar que as entidades da sociedade civil sem fins de lucro, ao atuarem como agentes de articulação e fomento das ações coordenadas no ADE, possam receber assistência financeira da União e auxílios, contribuições e subvenções de órgãos do governo. Considerando que muitas delas estão vinculadas a empresas que comercializam serviços educacionais, tal possibilidade parece reforçar a hipótese de esforço/tentativa por parte do setor empresarial para criar alternativas subjacentes para o acesso diretamente aos recursos públicos.

Considerações finais

Este artigo, tendo como base o PL nº 5.182/2019 (BRASIL, 2019), analisou a recente proposição legal sobre o regime de colaboração entre os entes federados a partir dos ADEs, que, alicerçados na relação público-privada, acabam por explicitar novos rearranjos sociais em torno da disputa pelo fundo público para a educação. A análise demonstrou que as instituições públicas não estatais são amplamente estimuladas a partir dos anos 1990, por meio da regulamentação das entidades do terceiro setor. Com isso, criam-se possibilidades de inserção de tais entidades na promoção da educação pública.

Por meio do estudo, foi possível constatar, a partir de fontes distintas relacionadas a recursos destinados pelo orçamento da União para a área da educação (ADRIÃO; DOMICIANO, 2018; BRASIL, 2015b, 2020b), que o Estado brasileiro nas últimas décadas ampliou o investimento em educação básica. Sobressai, porém, que essa ampliação foi acompanhada pelo repasse de recursos para o setor privado sem fins lucrativos, superando inclusive os recursos direcionados ao setor público, conforme foi identificado em despesas em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) entre os anos de 2002 a 2014 (ADRIÃO; DOMICIANO, 2018). Tal postura acaba revelando que a esfera pública vem se configurando enquanto um lócus privilegiado, tanto do atendimento das demandas sociais, através da efetivação dos direitos sociais, como a educação pública, mas também da manutenção dos interesses dos setores privados mercantis, por meio do financiamento público.

A partir de 2017 houve uma queda acentuada do investimento público no setor educacional imposta, sobretudo, pela aprovação da EC nº 95/16, que instituiu um novo regime fiscal que limita por 20 anos os gastos públicos em educação e saúde, valendo, portanto, até 2036. A restrição financeira, associada à reconhecida fragilidade administrativa e financeira dos municípios, favorece a busca de cooperação entre os entes federados.

No entanto, considerando que os ADEs têm por centralidade a consolidação de parcerias das instituições públicas com fundações e associações derivadas de empresas privadas que atuam de modo cada vez mais sistemático na educação pública, os dados e observações permitem colocar em questão o seu reconhecimento como uma estratégia adequada para promover ações coordenadas das instituições públicas locais responsáveis pela educação.

A atuação de entidades da sociedade civil como agente de articulação das ações não nos parece o caminho mais apropriado a seguir, à medida que torna o campo educacional favorável para que tais entidades passem a influenciar na direção das políticas, imprimindo a lógica empresarial na definição dos fins educacionais e nos processos de gestão, particularmente vinculados à progressão de indicadores e aferição de resultados quantificáveis de aprendizagem como condição para atingir qualidade, mas também para a apropriação do fundo público para a execução das ações. Note-se que a proposição de alterações do Marco Regulatório do Terceiro Setor ou das Organizações da Sociedade Civil, conforme sugerida no PL nº 5.182/2019 (BRASIL, 2019), se aprovada, poderá vir a se tornar uma possibilidade de abertura oportuna ao setor privado sem fins de lucro para o recebimento de recursos públicos.

Por fim, é preciso ressaltar que o Estado é um campo de disputas de interesses entre os interesses públicos e privado-mercantis (SGUISSARDI, 2014). Desta perspectiva, é possível constatar que a relação público-privada na educação, por um lado, associada às demandas de expansão ampliada do capital, é parte constitutiva do movimento estruturante do Estado nacional e da constituição da esfera pública, aliada aos interesses dos grupos sociais hegemônicos e à prevalência da dinâmica capitalista e, por outro, verifica-se a necessidade de fortalecer cada vez mais a conscientização e a organização dos setores que seriam representativos dos interesses públicos e coletivos (sindicatos, confederações e sujeitos sociais) na luta em defesa de uma educação pública, socialmente referenciada, para todas e todos.

1“São consideradas como despesas com MDE, para fins de cálculo do limite constitucional com MDE, as despesas voltadas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais em todos os níveis, compreendendo as que se destinam: a) à remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação; b) à aquisição, manutenção, construção e conservação de instalações e equipamentos necessários ao ensino; c) ao uso e manutenção de bens e serviços vinculados ao ensino; d) aos levantamentos estatísticos, estudos e pesquisas visando precipuamente ao aprimoramento da qualidade e à expansão do ensino; e) à realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino; f) à concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas; g) à amortização e custeio de operações de crédito destinadas à MDE, h) à aquisição de material didático-escolar e manutenção de programas de transporte escolar” (BRASIL, 2017).

2“Uma parcela da arrecadação dos impostos federais é transferida diretamente para os estados e municípios por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que foram criados na reforma tributária de 1965/68. Conforme Prado (2006), esses fundos foram valorizados com a Constituição de 1988, que aumentou os percentuais de apropriação do IR e do IPI que eram de 5%, em 1968, e passaram a 21,5% (FPE) e 22,5% (FPM) (PRADO, 2006)” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO, 2017, p. 88).

3Conforme informações do Instituto Positivo (2019, p. 8, grifos no original): “Em abril de 2019, parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado federal se uniram com organizações da sociedade civil criando a Frente Parlamentar Mista da Educação, presidida pela deputada federal professora Dorinha Seabra. Trata-se de um grupo suprapartidário com o objetivo de debater e promover ações para o desenvolvimento da pauta educacional. Dentre os temas das dez comissões que compõem a Frente está o de Arranjos Federativos, coordenado pela deputada federal Luisa Canziani, que no contexto dessa comissão propôs o Projeto de Lei nº 5182/19 que tem como objetivo a institucionalização dos Arranjos de Desenvolvimento da Educação”.

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Recebido: 05 de Agosto de 2020; Aceito: 29 de Setembro de 2020

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