O desafio do início solitário da docência
Alguns estudos revelam que, geralmente, existe um individualismo constitutivo da cultura escolar (HARGREAVES, 1996; HARGREAVES; FULLAN, 2014). A organização do trabalho na escola pode vir a apresentar limitações de tempo, estruturas fragmentadas, falta de comunicação entre escola e comunidade, colocando as professoras1 nessa posição de trabalho individualista (BOLÍVAR; BOLÍVAR-RUANO, 2016).
Em relação às professoras iniciantes (HUBERMAN, 2007; MARCELO, 2007, 2009; TARDIF, 2010) essa situação parece ser ainda mais agravante, uma vez que ingressam na escola como docentes, geralmente sem um programa de acompanhamento e, logo, podem se deparar com um trabalho ilhado, sem ter com quem dialogar sobre a própria prática pedagógica. Por ser incomum esse acompanhamento da professora iniciante, o apoio que essa profissional recebe, por vezes, pode ficar reduzido a algo informal - uma conversa rápida pelos corredores ou uma pergunta respondida entre uma aula e outra - por parte das profissionais que atuam na mesma escola. Ingersoll e Smith (2003) demonstram, através de suas pesquisas, que um grande número dessas profissionais desiste da profissão logo nos cinco primeiros anos de docência.
A complexidade e a solidão que, frequentemente, vêm a cercear a primeira socialização da professora que começa o seu ofício podem ser resolvidas com o trabalho coletivo e com a garantia de um espaço e de um tempo instituídos de diálogo com as colegas da profissão. Algumas pesquisas (BRZOSKA et al., 1987; MARCELO, 2009; SMIT; DU TOIT, 2016) revelam a importância de uma professora que acompanhe a professora iniciante durante o início da docência, defendendo a implementação de planos de formação e apoio para as profissionais que se encontram no início da carreira, através da mentoria. Outras pesquisas (NEVE; DEVOS, 2016) destacam a importância da formação de comunidades de aprendizagens (HARGREAVES; FULLAN, 2014) também nesse início docente. Contudo, mesmo nesse contexto, consideramos escassos os trabalhos que discorrem sobre a relevância dessas comunidades de aprendizagem da perspectiva das próprias professoras iniciantes que pesquisam a própria prática pedagógica, associada a um exercício de escrita narrativa.
Este artigo está situado justamente no campo da escrita de narrativas compartilhadas durante o início da docência. Trataremos sobre um caso particular de uma professora iniciante, que pesquisou como se constituía professora no início da carreira, acompanhada por um coletivo de profissionais da educação externo ao seu ambiente escolar. As interlocuções entre a professora iniciante e o grupo que a acompanhava ocorreram por meio de narrativas escritas pela primeira e enviadas a esse coletivo que, por sua vez, respondia a essas narrativas. A perspectiva posta aqui, portanto, é a da professora iniciante que a partir dos atos de narrar-se, de narrar sua prática e as relações que no cotidiano escolar construía, de pesquisar narrativamente sua constituição docente e de partilhar essas narrativas com um grupo de interlocutoras, foi-se fazendo professora ao escolher expressar suas vivências narrativamente, junto com seus muitos outros (BAKHTIN, 2010a).
O ato de narrar e a narrativa do cotidiano
A partir de uma perspectiva bakhtiniana, discorreremos sobre o ato de narrar e sobre a sua materialidade. Estamos considerando as narrativas como um tipo relativamente estável de enunciados - um gênero do discurso - composto por conteúdo temático, estilo individual e construção composicional, sempre determinados pelas características de um campo da comunicação específico (BAKHTIN, 2010a), neste caso o campo do discurso do cotidiano escolar. O narrar e as narrativas de professoras são, assim, discursos do cotidiano, bem como materialidades destes.
Compreendemos que tanto o narrar quanto a narrativa olham "como um Jano bifronte, em duas direções opostas: para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a singularidade irrepetível da vida que se vive" (BAKHTIN, 2010b, p. 43). As narrativas pedagógicas revelam as singularidades irrepetíveis - que acontecem todos os dias na escola -, que pertencem e compõem uma unidade objetiva do domínio da cultura. Aspectos que compõem a cultura escolar como, por exemplo, questões do currículo, da didática, da avaliação, da instituição escola, entre outros, são constituídos e organizados também pelas singularidades que ocorrem no cotidiano. Em um movimento de revelar essas singularidades, a expressão (o ato de narrar) vai organizando a vivência (VOLÓCHINOV, 2017), o trabalho da professora e, correntemente, questionando e reorganizando a unidade objetiva do domínio da cultura, o instituído da cultura escolar.
Ao escrever narrativamente sobre algum acontecimento vivido na escola, a professora o faz de um lugar exotópico (BAKHTIN, 2010a). O momento da escrita ocupa outro espaço e outro tempo, nos quais assimila, através dessa expressão, o valor, o espaço e o tempo (BAKHTIN, 2018) vividos anteriormente de uma outra distância, relacionando-se com o acontecimento passado de uma maneira diferente. Esse relacionamento é outro porque o ato de expressar-se lhe dá excedentes de sua visão2 (BAKHTIN, 2010a) acerca da narradora, das relações e do acontecimento narrado. Os excedentes de visão, possibilitados por esses outros valores, espaços e tempos nos quais se coloca a professora que narra, potencializam a construção de novas memórias de futuro3, que reorientam a professora em relação a sua prática pedagógica e às relações que estabelece no cotidiano escolar junto a seus vários interlocutores (SIMAS, 2018; SIMAS; PRADO; DOMINGO, 2018).
As narrativas "incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata" (BAKHTIN, 2010a, p. 263). Na transformação do gênero primário oral (o vivido nas escolas) em gênero secundário escrito (as narrativas), cuja expressão pressupõe uma extralocalização4 de quem narra, "os enunciados narrativos são propícios à produção singular de um conteúdo não esperado ou planejado (...) [já que excedentes de visão são possíveis, surgindo a] possibilidade de produzir conhecimento novo no próprio acontecimento da escrita" (SERODIO; PRADO, 2015, p. 107).
Além da importância de falarmos sobre o espaço e o tempo extralocalizado que ocupamos ao produzir esse gênero discursivo que é a narrativa, é preciso que falemos dos muitos outros que a compõem. Partimos da premissa de que a consciência, que é verbalmente constituída, é produto da relação entre muitas consciências (entre o tu e o eu) e adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado nas relações sociais (VOLÓCHINOV, 2017).
Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro. Os atos mais importantes, que constituem a autoconsciência, são determinados pela relação com outra consciência (com o tu) (BAKHTIN, 2010a, p. 341).
Diante disso, concordamos com a afirmação de Volóchinov (2017) de que quanto maior for a coletividade, maior será a complexidade do mundo interior do eu. Compreendemos, então, o sujeito como ser dialógico, que se constitui com o outro por meio das linguagens, e olhamos para as narrativas de uma perspectiva da interação: o outro e o eu. É o outro, desde o momento do meu nascimento, que diz quem eu sou, me dá um nome e indica que se eu choro estou avisando que preciso de algo, por exemplo. O narrar e a narrativa, como expressão e materialidade construídas nas interações, carregam muitos outros.
A escrita é sempre dirigida para alguém ou para um grupo de pessoas, mesmo quando esse interlocutor é a própria pessoa que escreveu o texto. A narrativa é repleta de vozes não somente pelo fato da narradora escrever para interlocutoras, mas, também, porque quando se narra um acontecimento, narra-se a partir do que se interpretou do que expressaram os sujeitos participantes desse acontecimento. Caso o sujeito que narra se coloque numa posição de ser respondente aos outros do acontecimento, numa posição de não-indiferença (BAKHTIN, 2010b) em relação ao ocorrido e às pessoas, a narrativa será composta por muitas vozes em igualdade de valor, vozes plenivalentes (BAKHTIN, 2015).
A narradora que opta por essa posição de narrar não somente o que viveu, mas narrar buscando responder ao que viveu e ao que compreendeu do que os outros expressaram com o corpo todo no acontecimento vivido, tem a própria narrativa ampliada pelas narrativas desses outros sujeitos. Narrar o já vivido, sempre na relação com outros e respondendo também a eles, potencializa a construção de compreensões e saberes sobre o próprio trabalho (no contexto deste artigo), o que orienta as ações futuras da professora narradora na relação com o cotidiano e os outros com quem trabalha.
A pesquisa narrativa ampliada por muitos outros
Com intuito de construir compreensões para a questão "Como me constituo professora no início da docência?", bem como de se desenvolver profissionalmente quando começava a ser professora, para que seus atos fossem responsivos (BAKHTIN, 2010b) a cada uma das crianças de sua turma; a professora iniciante tomou a decisão de pesquisar esse período da sua carreira, em diálogo com muitos outros.
Tornou-se professora-pesquisadora5 (FREIRE, 2005; DICKEL, 2007; ZEICHNER, 2007), já que "no cotidiano da escola tem um compromisso com a sistematização de seus saberes e conhecimentos, produzindo novas relações, mobilizando mudanças" (CUNHA; PRADO, 2007, p. 66).
Junto ao início da docência também começou a escrever narrativas sobre a própria prática pedagógica e as relações que estabelecia no cotidiano escolar - fosse com seus pares, com as crianças, com o conteúdo e/ou com o restante da comunidade escolar. Como mencionado anteriormente, além de escrevê-las, a professora compartilhava as narrativas com um grupo de interlocutoras. Neste caso de acompanhamento coletivo, o grupo era composto por profissionais da área da educação - a saber: professoras da educação básica, professoras universitárias, coordenadoras e formadoras de profissionais da área (todas pertencentes a um grupo de pesquisa de uma faculdade de educação de uma universidade pública) -, que atuavam em diferentes instituições, públicas e privadas. A particularidade desse grupo está no fato de que não compartilhavam presencialmente o mesmo cotidiano escolar, mas a partir das narrativas da professora, uma vez que cada pessoa do grupo trabalhava em instituições (na maioria das vezes escolas) diferentes.
A professora enviava as narrativas ao grupo, as integrantes do grupo as liam e as respondiam também por meio de e-mails. Esse movimento de escrever narrativas sobre o cotidiano escolar, compartilha-las com esse coletivo e estabelecer um diálogo sobre a prática pedagógica ocorreu durante os três primeiros anos de docência da professora, nos quais atuou com dois segundos anos e um primeiro ano do ensino fundamental, nessa ordem cronológica, de uma escola pública do interior do estado de São Paulo.
Para desenvolver essa pesquisa, a professora-pesquisadora utilizou-se da metodologia narrativa de pesquisa em educação (SERODIO; PRADO, 2015). A narrativa aparecia como a materialidade a ser interpretada; como o texto da pesquisa (a tese), que era escrito narrativamente; e como o modo de produção de conhecimentos, que também era narrativo (SIMAS, 2018).
A escrita é um procedimento modelizante specie specifica do homem, segundo o qual o ser humano, usando os meios mais diversos, servindo-se do seu próprio corpo ou de meios físicos externos, organiza espacialmente e temporalmente as próprias vivências e a realidade que o cerca, conferindo-lhe sentidos e construindo mundos diversos (PONZIO, 2015, p. 23-24).
No ato de narrar, a professora organizava o espaço e o tempo do vivido anteriormente e, ao pensá-los no tempo e no espaço presentes, reorganizava e vislumbrava novas memórias de futuro, modelizando a si como professora e ao seu trabalho. Por isso, o modo de produção de conhecimentos era narrativo, ao narrar pesquisando, buscando ser responsiva na interação outro-eu, tinha excedentes de visão e construía conhecimentos e compreensões.
A pesquisa tinha um cunho auto/hetero/biográfico6 (SIMAS, 2018) - se formos buscar a etimologia do radical hetero encontraremos que é um termo de composição que traz a ideia de outro, de diferente, remete ao não semelhante, ao diverso -, justamente por ser ampliada pelas narrativas dos outros da professora, fossem eles o grupo de interlocutoras, as crianças ou as colegas da escola. Essas vozes apareciam na narrativa da professora-pesquisadora, ora porque ela trazia a sua interpretação das narrativas desses outros em seu texto, ora porque escrevia em busca de também responder a eles. Não se trata do que ocorria dentro, "mas na fronteira entre a [sua] consciência e a consciência do outro, no limiar (...) cada vivência interior está na fronteira, encontra-se com outra, e nesse encontro tenso está toda a sua essência" (BAKHTIN, 2010a, p. 341, com destaque em itálico do autor).
Apesar da pesquisa em questão comportar diversos aspectos da temática do início da docência, neste artigo objetivamos interpretar os processos interlocutivos, que se produziram entre a professora-pesquisadora e esse grupo de interlocutoras, através das narrativas compartilhadas.
Narrativas compartilhadas no início da docência
Quais são os índices das trocas e das relações de alteridade que são dados na língua? Sempre segundo Benveniste, a condição linguística de todo discurso é dada por um conjunto de três pessoas: eu/tu/ele. Há sempre um eu que enuncia e o faz dirigindo-se a alguém que ele designa como seu interlocutor - o tu. Ele fala a um tu de alguém ou de alguma coisa, quer dizer, de um ele. Mesmo quando falo de mim mesmo, eu me constituo em objeto da minha fala e este objeto está, como qualquer outro, no lugar de um ele (AMORIM, 2004, p. 97-98, com destaque em itálico da autora).
Como em todo discurso, nas narrativas da professora havia um eu, um tu e um ele. Durante o processo de pesquisar a própria prática pedagógica narrativamente e com muitos outros, a professora se colocava no lugar do eu, do tu e do ele. O eu se manifestava quando narradora dos acontecimentos do cotidiano e também da tese; o tu se presentificava quando interlocutora do grupo de interlocutoras e dos outros que, em seus enunciados, eram locutores (crianças e comunidade escolar); era ela quando dizia do próprio fazer pedagógico e das suas relações através da escrita.
Julgamos importante a citação que trouxemos de Amorim, que se refere à forma como a linguística lida com a presença de três pessoas (1ª, 2ª e 3ª) nas designações do discurso, para tratar dos lugares que nos colocamos no processo interlocutivo. No entanto, ao escolhermos trazê-la neste artigo, faz-se preciso destacar que da perspectiva bakhtiniana com a qual trabalhamos, não falamos "de" um ele, mas sim "com" um ele. Ao trazer as vozes dos outros em plena igualdade de valor (BAKHTIN, 2015) dentro da narrativa, não tentamos objetificá-las - apesar de termos consciência de objetivar seus textos -, mas tentamos respondê-las, estamos em busca de falar "com" eles e não "deles". Nesses movimentos de ser eu, tu e ele ainda é importante dizer que não é porque o sujeito está no lugar de tu, quando ouvinte, que está numa posição passiva. Toda compreensão do enunciado é ativamente responsiva, "é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante" (BAKHTIN, 2010a, p. 271).
A professora não perguntava somente a si sobre como se constituía docente naquele período, o perguntava também aos outros. Conforme partilhava suas questões, suas interpretações sobre os acontecimentos do cotidiano e as relações que ia construindo, recebia respostas que, por sua vez, requeriam compreensões ativas. Essas respostas (aqui optamos por nos deter às respostas do grupo de interlocutoras) lhe mostravam aspectos de si, das relações e dos acontecimentos narrados que não havia percebido antes das interlocuções com o grupo. O enunciado do outro, em resposta ao dela, evidenciava excedentes de visão (BAKHTIN, 2010a) que ele possuía da professora e do narrado por ela.
Revelaremos, a seguir, por meio de trechos de narrativas escritas pela professora-pesquisadora e das respostas de uma outra professora que participava do grupo, o movimento que ocorria nessas interlocuções. Iniciaremos com uma resposta dessa professora integrante do grupo de interlocutoras, a quem nos referiremos por suas iniciais, M.F.:
São seres pequeninos e as possibilidades são grandes! É sempre bom conversar muito com eles... assim vamos entendendo, aos poucos, algumas lógicas a princípio inconcebíveis! (...) Há uma demanda por atenção que também muitas vezes não damos conta na dinâmica "um-para-muitos", é preciso cavar espaços e organizar o "um-para-um"... um de cada vez... em alguns momentos... É difícil mesmo. Mas a sensibilidade de vocês7 ensinará um montão a todas nós, vocês vão ver! (e-mail da M.F.).
Destacamos em negrito no e-mail de M.F. trechos nos quais ela menciona a necessidade de ser professora não somente respondendo à demanda que vem do coletivo de crianças, mas ainda respondendo às necessidades de cada uma das crianças que compõe a turma. Orientada pelo princípio do trabalho compartilhado por M.F., a professora iniciante começa a se questionar em relação ao trabalho que desenvolvia.
Estou com tanto medo de falhar com elas [com as crianças], acredito que muitas coisas podem mudar em dois meses, crianças podem aprender muito nesse tempo, mas eu não sei como possibilitar espaços para as aprendizagens individuais de cada uma delas, M.F. havia dito da necessidade de trabalhar/ser um-para-um. Como organizar a sala para isso se ninguém me escuta lá dentro? (...) Percebo que elas não têm autonomia para trabalharem sozinhas enquanto estou ajudando alguém. Como serei para cada uma delas? Não tenho a mínima ideia! Portanto, também não tenho ideia de como conseguirei atingir meus objetivos, potencializar aprendizagens para todas elas... Quinta-feira saí de lá com a sensação de que falhei, falhei com elas e, pior, saí sem saber como reverter isso, sem saber como ser para cada uma delas naquele ambiente em que todas gritam pela minha atenção a todo minuto! (Trecho da narrativa "Sobre um dia ruim").
Na narrativa da professora iniciante percebemos que o princípio (compartilhado por M.F. e revelado nas partes destacadas da narrativa) de ser para cada uma das crianças, agir respondendo a cada uma, era algo que ela passou a perseguir, fazendo que se questionasse em relação a própria prática. A professora-pesquisadora percebia, compreendia e avaliava o enunciado alheio no contexto da sua vivência produzida na expressão (VOLÓCHINOV, 2017) às crianças, às interlocutoras e a ela mesma enquanto professora iniciante. Esses movimentos de perceber, compreender e avaliar o discurso da professora M.F., passam a orientar ativamente muitos momentos do discurso da professora iniciante. Afinal, após o momento da empatia (BAKHTIN, 2010b), em que a professora-pesquisadora recebeu o enunciado de sua colega, a primeira voltou a si mesma já de um outro modo, refletindo sobre o trabalho também a partir de outro princípio, o que M.F. lhe revelou como importante para si. A troca de textos entre as duas professoras possibilitou que compreensões sobre o ser professora daquela se ampliasse na conversa com esta.
As narrativas seguintes mostram que a professora iniciante, provocada por essa interlocução, responde ativamente à M.F. e às crianças ao planejar a aula levando em conta não somente o grupo, mas cada uma das crianças em suas singularidades. Alternativas para trabalhar a partir das necessidades de cada criança, o que propor para o grupo todo, a criação de espaços e tempos em que as crianças se ajudem são temas (destacados em negrito a seguir) que passam a aparecer nas narrativas da professora.
Muito bem, cheguei lá morrendo de medo do que poderia acontecer no dia de hoje. O que aconteceu foi o seguinte: elas fizeram as atividades com entusiasmo, transformei uma atividade de interpretação em um jogo e todas escutaram e participaram, pegaram diversas fichas do fichário de português8com uma vontade que dava gosto de ver, descemos para brincar e todas brincaram juntas e sem brigas e vimos um arco-íris maravilhoso no fim do dia (Trecho da narrativa "Mas e se um dia eu não conseguir voltar à margem onde eu queria estar?").
Ontem durante a produção de texto não precisei ficar andando pela sala chamando a atenção de uma ou outra. Sentei-me do lado do Caio9e depois do lado do Jefferson e os ajudei. A Turma dos Leões continuou criando o texto sobre como seria ser um robô. As crianças que têm dificuldades para escrever - que não apresentam uma hipótese de escrita alfabética - receberam ajuda de outros colegas e também o fizeram. Mariah intervém junto aos outros, ajudou Mário em sua produção de uma forma inacreditável, deixando-o pensar e dando condições para que pudesse escrever, ao término de sua intervenção me disse: 'Eu estou aprendendo a ser professora te observando, prô' (Trecho da narrativa "É preciso olhar com atenção").
O encontro de palavras entre M.F. e a professora iniciante também veio a constituir a organização de um trabalho pedagógico que tivesse como princípio a importância do trabalho não somente com o coletivo da turma, mas que respondesse às necessidades de cada criança. As ações narradas pela professora respondem à M.F., mas principalmente a cada criança da turma.
Provocada pelo enunciado da sua colega do grupo de interlocutoras, a professora-pesquisadora, ao expressar-se narrativamente (como observamos no primeiro trecho de narrativa "Sobre um dia ruim"), respondendo a si e a M.F., começa um movimento de, a partir do presente, se relacionar de outras maneiras com o tempo e o espaço passados, questionando seus próprios atos. Já, os trechos das narrativas "Mas e se um dia eu não conseguir voltar à margem onde eu queria estar" e "É preciso olhar com atenção" nos revelam que essas novas compreensões sobre o passado possibilitaram que a professora reorganizasse sua prática, propondo outros modos de ser e fazer com as crianças. Percebemos que cada ideia é internamente dialógica "e está aberta à inspiração de outras; em todo caso, não se concentra simplesmente em seu objeto, mas é acompanhada de uma eterna atenção em outro homem" (BAKHTIN, 2015, p. 36).
Em resposta a outra narrativa, M.F. escreve novamente à professora, reiterando o princípio compartilhado anteriormente:
Fico aqui duvidando um pouco desta ideia de que se "acostumou". Não que este risco não exista! Mas li seu texto, atentando para um montão de coisas que foi dizendo que conseguiu organizar em sua rotina com as crianças (revisão de textos, uso do livro da vida, correspondência, etc) e pensando que organizar o trabalho considerando os princípios que regem estas práticas no diálogo com as apostilas (com tudo que elas trazem junto, porque as atividades da apostila são o de menos, né?) é um trampo danado... Planejar a rotina considerando as necessidades de cada um é um outro trabalhão grandão e que talvez, agora, mais segura (nem por isso "mais acostumada") possa aventurar-se com maior agilidade, enxergando melhor os momentos e as possibilidades de lidar com eles... (e-mail da M.F.).
Percebemos nessa interlocução que entre a palavra outra e a palavra que a compreende existiu uma relação de não-indiferença (BAKHTIN, 2010b), "uma relação de inevitável interação interna" (PONZIO, 2010, p. 38). M.F. foi não-indiferente à professora quando lhe possibilitou um excedente de visão: revelou os momentos em que a docente mostra não ter se acostumado com uma rotina escolar (primeiro destaque do trecho) que muitas vezes acaba por atropelá-las, dificultando a percepção das singularidades irrepetíveis que ocorrem no cotidiano escolar. M.F. escreveu esse e-mail em resposta ao trecho da narrativa que trazemos agora:
Hoje percebi que eu estava acostumada e o pior de tudo é que eu pensava não ter me acostumado. Com o quê? Com a dinâmica da minha escola, com o que fazem lá dentro, com tudo o que acreditam, com o que lá é certo e com o que é errado (...) percebo que a partir do momento que deixo de me sensibilizar com cada ato meu ou dos outros, deixo de me ocupar com as marcas que o meu agir dentro da escola produz nas relações por mim estabelecidas ou por mim mediadas (...) Achava que ao encontrar brechas que garantissem um trabalho que não fosse somente aquele que é exigido pela rede - o trabalho com as apostilas e o conteúdo que ali se encontra - eu estava agindo de um modo diferente daquele que abomino dentro da escola. Ao permitir que os alunos se correspondessem com crianças de outra escola, ao garantir momentos de produção e revisão de textos autorais, ao desenvolver com eles um projeto sobre um tema que lhes interessa, ao registrar acontecimentos relevantes em nosso livro da vida e ao buscar escutá-los atentamente, fui camuflando o que ainda faltava em minha aula e me esquecendo do que antes não concordava na escola (Trecho da narrativa "Acostumar-se: lugar onde também mora o perigo").
Bakhtin, ao se referir às obras de Dostoiévski, diz que nos diálogos dessas obras "o homem não apenas se revela exteriormente como se torna, pela primeira vez, aquilo que é, repetimos, não só para os outros, mas também para si mesmo" (BAKHTIN, 2015, p. 292-293). No último trecho de narrativa que trouxemos a professora dizia-se acostumada com uma dinâmica mecânica do cotidiano escolar, lamentando talvez não notar as singularidades dos acontecimentos e das relações que ali ocorrem, revelando-se para si e para o grupo. Contudo, ao expressar essa compreensão sobre si, dá margem para que outros lhe interpretem e lhe respondam ativamente. M.F., em seu texto, ao contrapor sua palavra à palavra alheia (VOLÓCHINOV, 2017), pode ter feito com que a professora se compreendesse de outra maneira. M.F. compreende ativamente e responsivamente - "toda compreensão responde, isto é, traduz o compreendido em um novo contexto, ou seja, em um contexto de resposta" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 179) - esta narrativa da professora iniciante. Ao compartilhar a compreensão de que a professora talvez não tivesse se acostumado, mas sim se apropriado mais do trabalho docente, M.F. possibilita que a professora-pesquisadora enxergue a si e ao seu trabalho de outras maneiras.
Os trechos das interlocuções entre a professora iniciante e M.F. indicam como aconteceram os movimentos de construção dos saberes docentes e das mudanças ocorridas na prática pedagógica da professora, a partir desse encontro de consciências. Ao ocupar os lugares de eu, tu e ela, nesse movimento interlocutivo, a professora iniciante orientava-se em relação às narrativas de seus outros (grupo de interlocutoras, crianças, colegas e ela mesma enquanto outra de si).
O encontro de consciências na expressão narrativa
Escrever narrativas sobre a própria prática e o cotidiano escolar, bem como pesquisar narrativamente são expressões que organizaram a vivência da professora-pesquisadora. "Não é a vivência que organiza a expressão, mas, ao contrário, a expressão organiza a vivência, dando-lhe sua primeira forma e definindo a sua direção" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 204). Ao escrever o sujeito organiza, de certo modo, a complexidade do que lhe é interno, os pensamentos e, nesse movimento, ao enunciá-los os objetiva, neste caso pela narrativa materializada. Ao narrar produz um lugar para perspectivar o vivido, dando-lhe uma primeira forma e definindo uma direção para a situação social (a busca por constituir-se docente com muitos outros). Essa narrativa, ao chegar ao outro, "é subjetivada no ato de compreensão responsiva, para gerar mais cedo ou mais tarde uma réplica responsiva" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 140).
No movimento de narrar, a professora iniciante buscava compreender o ocorrido no cotidiano escolar e, a partir desta compreensão, reorganizava-se, repensava e replanejava a própria prática, orientando-se pelo próprio ato de narrar. O movimento de ao narrar construir outras compreensões para o valor, o tempo e o espaço passados e, a partir delas, construir memórias de futuro, foi possível porque os outros possibilitavam diversos excedentes à professora-pesquisadora. Esses movimentos durante o início da docência, portanto, foram possíveis porque não eram solitários, inviabilizando uma posição de trabalho individualista (BOLÍVAR; BOLÍVAR-RUANO, 2016). Os atos de narrar e pesquisar a própria prática ocorriam na interação com suas interlocutoras próximas que, ao compreenderem responsivamente (BAKHTIN, 2010a) os enunciados da professora, lhe escreviam possibilitando uma réplica. Era isso o que ocorria nas interlocuções constantes, fossem elas com as crianças, com o grupo ou com as colegas da escola.
Relembremos Volóchinov (2017), quanto mais organizada e diversificada for a coletividade, maior será a complexidade do mundo interior do eu. Quando a vivência não é do nós, mas sim do eu, ela tende a autoeliminação, uma vez que perde a sua modelagem ideológica e, consequentemente, o seu grau de consciência. Afinal, somente quando ela "passa por todos os estágios da objetivação social e entra no campo de força da ciência, da arte, da moral, do direito, ela [a consciência] se torna uma força verdadeira" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 212).
Dessa maneira, através das narrativas que a professora escrevia no início da docência e do diálogo possível a partir da partilha delas, sua consciência ia tornando-se força real. Através do diálogo com muitas outras consciências, a professora transformava a si mesma, o trabalho, seus outros e a sua prática pedagógica no cotidiano escolar. Se a relação entre a coletividade (VOLÓCHINOV, 2017) e a consciência são diretamente proporcionais, quanto mais interlocuções organizadas e diversificadas a professora estabelecia, mais consciência sobre a própria prática lhe era possível. Sendo assim, a narrativa não foi somente o que possibilitava a professora esses espaço e tempo de reflexão, mas também o elo que lhe possibilitou as interlocuções com o grupo de interlocutoras.
No movimento de reflexão sobre si, a professora se apropriava cada vez mais dos saberes docentes que circulavam entre as participantes do processo interlocutivo. As narrativas produzidas a partir da reflexão provocada pelas palavras das interlocutoras, ou seja, escritas após o movimento de compartilhar narrativas e receber respostas, já tinham um outro grau de elaboração, de reflexão e de organização - possuíam uma outra qualidade. Isso porque eram compostas por mais vozes que as narrativas anteriores (escritas somente a partir do cotidiano escolar). Eram compostas pelas vozes dos sujeitos da escola (já que a professora escrevia a partir da interpretação que realizava dos atos das crianças e das pessoas que compunham a comunidade escolar), pela professora como outra de si e, ainda mais, pelo grupo de interlocutoras. A professora iniciante revelava, através do que trazia em seus escritos, que os enunciados das profissionais desse grupo de interlocutoras também eram compreendidos ativamente por ela.
Freire e Shor (2014), ao escreverem a respeito da relação educador-educando, revelam o que também ocorria com a professora iniciante em relação ao grupo de interlocutoras. “O educador refaz a sua ‘cognoscência” mediante a ‘cognoscência’ dos educandos” (FREIRE; SHOR, 2014, p. 161. Tradução livre). Cada vez que a professora recebia uma resposta de alguma profissional do grupo ela refazia a sua capacidade de conhecer os sujeitos do seu trabalho educativo. Quando compartilhavam os saberes e as narrativas dos acontecimentos do cotidiano escolar, suas práticas pedagógicas na relação com as crianças também eram alteradas qualitativamente (BOLÍVAR; BOLÍVAR-RUANO, 2016).
Por meio do acesso às interpretações do grupo, a professora ampliava a consciência de si mesma, das relações e do cotidiano do seu trabalho. Ao ampliar estas capacidades de perceber, compreender e avaliar (BAKHTIN, 2010a), as singularidades irrepetíveis (BAKHTIN, 2010b) que aconteciam na escola passavam, ainda, a orientar de maneira mais intensa a prática pedagógica da professora iniciante. As singularidades vividas eram percebidas e observadas de outros espaços e tempos pela professora iniciante e, também, por muitas outras consciências, que lhe possibilitavam excedentes de visão (BAKHTIN, 2010a) de si e do trabalho que realizava. Diante disso, eram assimiladas de maneiras diferentes de como haviam acontecido no momento do vivido. Como já mencionamos, essas maneiras outras de assimilar o valor, o tempo e o espaço passados (BAKHTIN, 2018), a partir das narrativas, levavam a professora a reorganizar seu trabalho a partir do irrepetível que notava: as necessidades do coletivo de crianças e de cada uma delas.
Assim como nas pesquisas que abordam a mentoria (MARCELO, 2009; SMIT; DU TOIT, 2016) e as comunidades de aprendizagem (HARGREAVES; FULLAN, 2014; NEVE; DEVOS, 2016), aqui também defendemos a necessidade de um trabalho coletivo na formação continuada de professoras no início da carreira.
Neste artigo, entretanto, discutimos essa necessidade de um trabalho coletivo na formação continuada de professoras iniciantes atrelada aos atos de narrar e de compartilhar essas narrativas. Isso porque percebemos a potência da expressão narrativa (a) - ao organizar a vivência, assimilando o valor, o tempo e o espaço do já acontecido, de um tempo e espaço presentes (nos quais está a narradora) -, possibilitar que a narradora perceba excedentes de si e do vivido por ela. Também o compartilhar das narrativas (b) com outros é um movimento que possibilita excedentes de visão e de conhecimentos. Compreender a enunciação de alguém é orientar-se em relação a ela. Ao orientarem-se em relação às narrativas, as integrantes do grupo revelavam o que viam da professora e do seu trabalho. Tanto os excedentes possíveis pelo lugar que a professora-pesquisadora se colocava ao narrar (a), como os possíveis porque o grupo de interlocutoras lhe possibilitava ao responder as narrativas (b), lhe faziam ser não-indiferente (BAKHTIN, 2010b) às relações que ia construindo na escola. E, sendo não indiferente, dar um próximo passo, como resposta que considerasse cada um dos seus outros.