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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 26-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75599 

Artigos

“O imperativo de contar”: uma pesquisa-ação com mulheres e crianças quilombolas

“Narrating, the imperative”: an action research with quilombola women and quilombola children

Ana Maria de Oliveira Urpia* 
http://orcid.org/0000-0002-1704-9287

Kelly Barros Santos* 
http://orcid.org/0000-0003-3999-3292

Sarah Roberta de Oliveira Carneiro* 
http://orcid.org/0000-0003-2367-9936

*Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Cruz das Almas, Bahia, Brasil. E-mail: anaurpia@gmail.com, E-mail: brunette12@gmail.com, E-mail: sarah.palavra@gmail.com


RESUMO

Este artigo ecoa preponderantemente as vozes de Mara e Nívea, mulheres negras quilombolas e migrantes que ao narrar irrompem um longo e sofrido silêncio imposto às suas ancestrais por séculos de escravização e colonização. Ao fazê-lo, estas mulheres se expõem e se inscrevem no espaço público como referências para outras mulheres quilombolas e para suas crianças, que elas esperam poder viver uma realidade distinta da que tiveram de viver em face da desigualdade sociorracial, motivo pelo qual reivindicam para sua comunidade: educação. As falas das duas nos permitem questionar se não seria o movimento de a) sair da comunidade; b) “respirar/sofrer em outro ar”; e c) regressar para a comunidade a principal alavanca no impulso de enunciação de cada uma delas contra as forças opressivas das narrativas visíveis e invisíveis, “fantasmas”, do sexismo e do racismo. Suas narrativas compõem os resultados de uma pesquisa-ação, de perspectiva interdisciplinar, cujo objetivo foi compreender como os rastros de memória e os processos de tradução linguístico-cultural atuam na subjetivação e politização do self de mulheres quilombolas. Do ponto de vista metodológico, envolveu entrevistas autobiográficas, rodas de memória, oficinas de audiovisual e de línguas, dentre outras ações. Ao nosso ver, as narrativas de Mara e Nívea, centrais nesse artigo, constituem-se material fértil para formularmos linhas interpretativas possíveis, tecidas entre o migrar, o “sentir-se [uma mulher] negra” e o narrar, que, interrompendo um longo tempo de silenciamento e sofrimento, revela-se um imperativo!

Palavras-chave: Narrativa; Mulheres quilombolas; Migração; Sofrimento sociorracial; Língua

ABSTRACT

This article predominantly echoes Mara and Nívea’s voices, black quilombola women and migrants that erupt a long and suffering silence imposed on their ancestors by centuries of enslavement and colonization, at the moment they speak out their narrative. In doing so, these women expose and register themselves in public places as references to other quilombola women and their children who they hope will be able to live a different reality from the one they had to live in the face of socio-racial inequality. Thus, it is the reason they claim education and learning for their community. Mara and Nívea’s speeches allow us to question whether it would not be the movement of a) leaving the community; b) “breathing/suffering in another air”; and c) coming back to the community, their principal boost in each one’s discourse against oppressive forces of visible and invisible histories, “phantom” of sexism and racism. Their narratives consist of the results from interdisciplinary action research whose major goal was to understand how the memory trail and the cultural-linguistic translation processes act in the subjectivities and politicization of quilombola women’s self. Concerning the methodological choices, they were listed as autobiographical interviews, memory circles, audiovisual and language classes, among other actions. Based on our point of view, Mara and Nívea’s histories, besides being the article’s core, are also fertile material to formulate possible interpretative guidelines. These [guide]lines permitted us to stitch together the migrating, “the [black] woman feelings,” and the act of narrating, which interrupts a long period of silence and suffering that reveal themselves as the imperative!

Keywords: Narrative; Quilombola women; Migration; Socio-racial suffering; Language

Introdução

A emergência da voz de Carolina de Jesus (1960), através do seu livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, evidencia o quão grandioso é o fenômeno que perpassa a construção da voz de uma mulher, quando esta se converte em sujeito falante e narra sua própria história. Afinal, nas sociedades complexas, as quais podem ser compreendidas como configurações históricas, socioeconômicas e culturais atravessadas pelas referências do capitalismo, do patriarcado, do machismo e do racismo (HOOKS, 2019; SANTOS, 2010; SPIVAK, 2010), a mulher é constituída como um sujeito histórico contra o qual tanto a estrutura quanto a conjuntura jogam, no que diz respeito à sua expressão no espaço público. Esta formulação encontra amparo nas considerações tecidas pela autora Nancy Fraser (2011), cujas reflexões a partir do conceito de esfera pública de Habermas (1997) apontam para a constatação de que o espaço público repousa em exclusões. Vejamos o que ela salienta:

Os republicanos se inspiram no ponto das tradições clássicas que consideram a ‘feminilidade’ e a ‘publicidade’ como oximoro; é possível tomar consciência do peso dessas tradições graças à etimologia comum de ‘público’ e ‘púbico’, etimologia que testemunha o fato que, durante a Antiguidade, precisava-se possuir um pênis para tomar posse das palavras e falar publicamente (de resto ‘testemunho’ e ‘testículo’ têm também a mesma etimologia) (FRASER, 2011, p. 112-113).

Se conectarmos este fragmento de texto de Fraser com a abordagem de Silvia Federici (2019) sobre a perversa associação histórica entre mulher e fofoca, modalidade discursiva vista como desprovida de conteúdo relevante, temos pistas para compreender por que as mulheres são forjadas sob a batuta do silêncio e do incentivo à não revelação de si e à não verbalização pública do que pensam, sentem e sonham. Por isso, quando mulheres, sobretudo mulheres negras oriundas de condições de vida semelhantes às de Carolina de Jesus (1960) 1 e de tantas outras “iguais em tudo na vida” (MELO NETO, 2007, p. 89), chegam ao ponto de assumirem o lugar de sujeito falante, construindo-se, portanto, a partir de uma perspectiva expressiva, pode-se afirmar que se trata de mulheres que realizaram significativas rupturas para que pudessem se enxergar e se perceber como alguém que tem algo a narrar.

Este artigo ecoa preponderantemente as vozes de Mara e Nívea2, mulheres negras quilombolas e migrantes, cujas agruras se relacionam com conteúdos de vida similares aos de Carolina de Jesus. Neste sentido, percepções reflexivas são desenvolvidas na tentativa de analisarmos o ato de narrar de duas mulheres que irrompem o silêncio e colocam sua voz no mundo, falando de si, expondo-se e inscrevendo-se no espaço público, como referências para outras mulheres quilombolas e para suas crianças, que elas esperam poder viver uma realidade distinta da que tiveram que viver em face do sexismo e racismo histórico que permanecem limitando suas vidas.

E por que não esta realidade distinta vir a abarcar voos longínquos como a migração para outros continentes e o diálogo crítico-reflexivo com outras culturas e cosmovisões? E assim sendo, não seria a língua inglesa uma aliada? A justificativa para a formulação destas duas interrogações tem a ver com o fato de a migração ser tema na vida de Mara e Nívea. No entanto, a migração que vivenciaram é a intermunicipal, conforme está evidenciado mais adiante. Por outro lado, a indagação que perpassa a língua inglesa aparece aqui, na medida em que o presente texto configura-se como desdobramento de uma pesquisa-ação intitulada “Com a palavra, mulheres quilombolas”, cujo objetivo central foi compreender como os rastros de memória e os processos de tradução linguístico-cultural atuam na subjetivação e politização do self de mulheres quilombolas.

A pesquisa, de perspectiva interdisciplinar, envolveu a realização de entrevistas autobiográficas, “rodas de memória”, elaboração de vídeos e documentários sobre a vida das mulheres e a cultura quilombola, bem como a criação de espaços formativos no campo audiovisual e das línguas, como as oficinas de inglês com as crianças da comunidade Engenho da Ponte3, processo este que desencadeou em nós algumas reflexões sobre o narrar e sobre a “língua”, expostas na terceira e quarta parte deste artigo.

Bell Hooks (2020a, p. 19), citando Anna Cooper num discurso no “World’s Congress of Representative Women”, em 1983, indica que “a mulher branca pôde ao menos litigar por sua própria emancipação; as mulheres negras, duplamente escravizadas, não puderam mais do que sofrer e lutar e permanecer em silêncio”. Falar publicamente e, por conseguinte, narrar são experiências existenciais que, no caso de uma mulher negra, convertem-se em processos pessoais profundos, pois necessário se faz que ela transponha a disposição social que a define como indivíduo desprovido de ideias próprias e atendedor das expectativas do outro e ocupe a posição de sujeito que tem o que dizer.

Ainda que não seja papel da presente publicação esmiuçar todo o percurso que posicionou Mara e Nívea no polo de narradoras, é indispensável, na medida em que o conteúdo das suas vozes traz a presença marcante da migração que as duas realizaram, saindo da comunidade quilombola do Engenho da Ponte, no interior do Estado da Bahia, para a capital Salvador, sublinhar o processo migratório que essas mulheres protagonizaram, visto que a migração parece ter oferecido para Mara e também para Nívea experiências que se diferenciam do repertório das experiências das outras mulheres da comunidade que não passaram pelo movimento da migração.

Teria a migração a força de agente catalisador no ato de narrar de Mara e Nívea? As falas das duas nos permitem questionar se não seria exatamente o movimento de a) sair da comunidade; b) “respirar/sofrer em outro ar”; e c) regressar para a comunidade a principal alavanca no impulso de enunciação de cada uma delas contra as forças opressivas das narrativas visíveis e invisíveis, “fantasmas”, como teria dito Kimbles (2014), do sexismo e do racismo. É clássica nos mais diferentes domínios, seja na mitologia, na antropologia ou na religião, a compreensão de que a saga, a transumância, enfim, os deslocamentos das pessoas são fontes fecundas de histórias, e, portanto, berço primordial de narrativas. Walter Benjamin (1987, p. 198) é assertivo quando aborda este aspecto, ao afirmar que “quem viaja tem muito o que contar”. Se emoldurarmos o ambiente da comunidade quilombola Engenho da Ponte com a reflexão de Benjamin (1987), um percurso analítico atraente pode ser aberto, com certeza.

Afinal, a comunidade, do ponto de vista sociológico, vivencia um modo de interação e coesão que está pautado nas relações de parentesco próximas. De um modo geral, todas as pessoas se conhecem e partilham de um conjunto parecido de experiências. Assim sendo, é possível deduzir que a decisão de migrar, para quem vive numa configuração societal com este perfil é ainda mais cara do que é para todo e qualquer migrante, visto que migrar é distinguir-se de quem permanece, e o processo de individuação e diferenciação em configurações sociais mais coesas, como é o caso das comunidades quilombolas, estrutura-se como um evento mais exigente para o sujeito.

O ato de migrar, conforme sugere Marie-Claude Blanc-Chaléard (2001), sempre acontece inscrito num contexto de complexidade. Afinal, quem migra abre-se para um percurso desconhecido, ainda que no espaço para onde estiver indo exista uma rede de contatos previamente contatada ou um trabalho garantido. Lee (1966) introduz o conceito de oportunidades intermediárias entre o local de origem e o local de destinação, e sua teoria postula que a migração é o resultado de um cálculo individual fundado sobre os fatores de atração do lugar de destinação e fatores de repulsão do local de origem.

Conforme nos informa Tereza Lisboa (2007), a partir da escuta de mulheres imigrantes internacionais, muitas são as razões que impulsionam uma mulher a migrar, entre as quais estão o desejo de conhecer novos lugares, o escape de condições opressivas na família, acesso à educação e encontro de melhores condições laborais. As motivações de migração de Mara e Nívea giram, respectivamente, em torno da busca por estudos e por um trabalho diferente do oferecido na região onde vivem. Mara e Nívea nasceram numa parte do Brasil onde até alguns anos atrás a formação oferecida perto de casa se encerrava no Ensino Fundamental; por isso, avançar para além deste estágio obrigava as pessoas a saírem para outros lugares, e o trabalho “disponível” ainda estava e está impregnado do modo de exploração que vigora nas relações escravocratas, conforme é possível atestar por meio da fala de ambas.

Lá a comunidade sempre teve de primeiro ao quarto ano. Do quarto ano a gente ia ou pra Santo Amaro ou pra Cachoeira. [...] Quando eu passei pra o quinto ano, hoje sexto ano que era quinta série, aí eu estudei no Teodoro Sampaio em Santo Amaro, depois aí, eu comecei: estudei em Salvador, estudei em Cachoeira, mas concluí o ensino médio no Teodoro Sampaio. E teve muitas de minhas colegas que por falta de condições não avançou [...]. Eu fiquei um tempo na casa de amigos de minha mãe, ficava lá, ajudava nas tarefas da casa pra eu poder estudar [Mara da Ponte].

Quando eu chegava em casa não tinha condições nem de pegar um caneco quente pra botar na mão porque tava pingando sangue de tanto eu catar quiabo, porque aqueles espinhos, por mais que a gente colocasse uma luva na mão [...]. Aí eu tomei a decisão na faixa dos meus 16 anos, eu disse: eu vou arranjar um trabalho em Salvador, e vou trabalhar na casa dos brancos. Aí eu fui, não demorei muito voltei pra aqui, já construí família [Nívea].

As narrativas de migração de Mara e Nívea retratam suas histórias de vida a partir de um lugar de força e coragem, ainda que em seus relatos ressoem cansaço, medo e dor também. Dor que se relaciona estreitamente com o fato de que esta migração as conduz a um novo e mesmo mundo: aquele em que os sujeitos estão divididos e hierarquizados de acordo com seu pertencimento étnico-racial, mas também um mundo em que a palavra “liberdade” poderia e pôde ganhar novos sentidos, ainda que a um custo alto.

Nesse novo mundo do pós-abolição, “o negro”, certo de que como negro não há possibilidade de existência, “quer [e ao menos inicialmente luta para] ser branco”, afinal, como afirmou Franz Fanon (2008, p. 27), “o branco incita-se a assumir a condição de ser humano”, até que se dá conta de que a sua libertação e de seu povo está justamente em reconhecer-se negro/a e de falar em nome próprio, questionando séculos de “silêncio [silenciamento] do oprimido” (HOOKS, 2020a, p. 17). Como nos lembra Grada Kilomba (2019, p. 33) nos remetendo à máscara que cobria a boca de Anastácia: “a boca é um órgão muito especial. Ela simboliza a fala, a enunciação. No âmbito do racismo [e do sexismo], a boca se torna o órgão da opressão por excelência [...]” e também da libertação.

É nesse sentido que as narrativas de Mara e de Nívea constituem-se um material fértil para formularmos linhas interpretativas possíveis, tecidas entre o migrar, o “sentir-se [uma mulher] negra” e o narrar, ato este que rompe, como dissemos, um longo, doloroso e “profundo silêncio engendrado de resignação e aceitação perante seu destino” (HOOKS, 2020a, p. 17).

Narrar é, por assim dizer, um imperativo4 na vida dessas mulheres! Um imperativo que surge das entranhas de um “passado” que é presença na ausência e que continua a sombrear a vida de mulheres negras quilombolas com suas “narrativas fantasmas” (KIMBLES, 2014), ceifadas pelo racismo e sexismo, que como sociedade precisamos superar. Narrar significa, tal qual observa Audre Lorde (1993 apudKILOMBA, 2019), lidar com o medo de que nossas palavras nunca sejam de fato ouvidas; porque, não sendo esperado que sobrevivêssemos, sobrevivemos para contar, e denunciar, como o faz Nívea, as oportunidades que foram negadas ao povo negro desde o pós-abolição: “Quando eu tinha 6 anos, eu não tive a oportunidade de dizer assim: eu vou pro colégio fixo pra estudar pra ser alguém na vida”, e que continuam a ser negadas ainda hoje, como nos tem mostrado a pandemia, que deixa mais uma vez inúmeras crianças negras quilombolas sem acesso à educação.

Mas narrar é ainda, no contexto dessa pesquisa, fazer uso da palavra, conectar-nos com a história dos povos africanos no Brasil e à sua estreita relação com a tradição oral. Nas comunidades negras quilombolas, assim como em várias sociedades africanas, há uma ligação importante entre o sujeito e sua palavra. A palavra é o testemunho daquilo que se é. A educação tradicional em África e em muitas comunidades negras na diáspora, liga-se à experiência e se integra à vida, seu início se dá no seio de cada família e/ou da própria comunidade através das pessoas idosas que são ao mesmo tempo mestres e educadores.

Entende-se que “a lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica profundamente gravada na memória da criança” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 183). E é nesse sentido que entra também o ensino de uma outra língua, ou seja, como possibilidade de oportunizar às crianças um saber/poder que a estas mulheres foi negado, um saber/poder que permita aos seus filhos e filhas contarem suas histórias e as histórias de seu povo, sem intermediários, fazendo bom uso da palavra e desafiando a narrativa dominante que busca apagar os saberes, os dizeres e os horrores vividos pelos povos subalternizados.

Duas mulheres, dois “destinos”, uma única sina: “o imperativo de contar”

Eu me chamo Maria da Conceição Abade da Silva Confessor5.

Eu sou Maria Abade, conhecida como Mara, né? E por privilégio alguém me batizou como Mara da Ponte, que pra mim é um privilégio, e a gente aprende desde cedo que mulher preta tem que ter nome e sobrenome, por isso que eu me apresento como Maria Abade, porque esse é meu nome: eu me chamo Maria da Conceição Abade da Silva Confessor. Eu nasci no quilombo Engenho da Cruz, na Comunidade de Acutinga, me criei lá e tem 16 anos que eu me mudei pra cá, porque eu casei com um nativo do quilombo Engenho da Ponte. [...]

Minha mãe não sabia ler nem escrever, mas ela sempre quis muito que a gente estudasse, ela dizia que pra a gente conseguir algo só era através do estudo. E ela assim, ela se sacrificou muito, muito pra que a gente viesse a estudar, pudesse ter uma qualidade de vida melhor, uma condição de vida. Porque assim, minha mãe, ela sofreu muito por falta de oportunidade. [...] quando minha mãe morreu eu não tinha... eu tinha parado de estudar, eu não tinha concluído o ensino médio, aí depois que ela morreu, depois de dois anos, eu comecei a me cobrar isso [...].

Minha mãe ia pra feira na segunda, aí me levava, eu ficava lá, quando era sábado ela ia pra feira vender novamente, eu voltava com ela. Aí eu fiquei até os 17. Com 17 anos, eu já fui pra Salvador. [...] uma vez eu ficava na casa de uma pessoa em Salvador que... eu estudava de noite, e à noite eu tinha que acender vela para fazer minhas atividades porque ela dizia que tinha horário de desligar energia na casa dela. E assim, minha mãe dizia: você tem que ficar porque você tem que estudar, mas na pele quem está sofrendo é você. Eu enfrentei ciúme de patroa com marido, eu enfrentei, eram coisas que eu enfrentava, enfrentei de às vezes, tipo sábado, eu precisava sair meio dia e vir pra Acutinga e a patroa chegar 6, 7 horas e eu não vir mais. Foram muitos enfrentamentos. E é por isso que hoje eu digo a minhas filhas: olhe, o meu sonho é que eu consiga fazer por vocês o que minha mãe sonhou em fazer comigo, que elas só saiam de minha casa depois de ter uma profissão pra que não bata tanta cabeça como eu bati. Entendeu? Eu vim terminar meus estudos em 2015. Eu já tinha o quê? Uns 38 anos. Então hoje, quando eu chego aqui que digo às meninas: gente, vamos fazer um curso, vamos estudar, vamos correr atrás mesmo, aí eu levo minha história pra elas. [...] Modéstia à parte, eu tenho assim muito orgulho quando eu olho assim, xxx, da onde eu saí, as dificuldades, eu fui babá da sobrinha de [nome], um que é deputado agora. E aí, ele chegou em Cachoeira um dia desses, aí ele veio apertar a minha mão, aí ele disse: muito bem... de babá de meu filho para Secretária Municipal de Promoção da Igualdade Racial. E isso pra mim assim, eu disse: é, doutor, muito bem, quando a gente tem força e coragem a gente faz acontecer. Aí ele veio, me abraçou. A gente vê que o sistema ainda não tem aceitado os passos que a gente deu, e isso só foi através da luta, da resistência e da minha teimosia.

E... a vida da gente, minha vida aqui [...] era maré e roça.

Meu nome é Nívea Maria do Santos de Jesus e eu quero te dizer que eu sou nascida e criada aqui. [...] Meu pai e minha mãe eram daqui, trabalhavam sempre em roça. A vida da gente aqui não é diferente uma da outra. É... Quando eu tinha 6 anos, eu não tive a oportunidade de dizer assim: eu vou pro colégio fixo pra estudar pra ser alguém na vida. E... a vida da gente, minha vida aqui, não vou nem relatar a dos outros, mas assim... a minha é uma vida muito cansativa, porque era maré e roça. Eu com a idade de 10 anos, antes, com 8 anos, já trabalhava na maré, mariscando pra sobreviver. E daí pra frente quando eu fui assim tomar atitude, 12 anos, 15 anos, aí já comecei a catar quiabo de ganho [...]. Muitas das vezes eu saia de dentro de casa 5 horas da manhã e quando eu retornava pra casa era 2, 3 4 horas da tarde catando quiabo. [...] Aí eu tomei a decisão na faixa dos meus 16 anos, eu disse: eu vou arranjar um trabalho em Salvador, e vou trabalhar na casa dos brancos. Aí eu fui, não demorei muito voltei pra aqui, já construí família, e a gente vivia era na maré tirando sururu, tirando ostra, cavando peixe pra sustentar os filhos, dia que a gente amanhecia o dia e não tinha nada pra dar os filhos pra se alimentar, muito difícil, era muito difícil, que muitas vezes eu digo as meninas que lembrar o passado é sofrer duas vezes, é um sofrimento ruim que quando eu lembro o que já passei...

Quando eu passei a ter entendimento, meu pai trabalhava, saía vendendo dia de ganho. E minha mãe ficava na roça trabalhando, e ele saía pra trabalhar fora. Mas meu pai nunca foi homem de dizer assim: ‘trabalhei firme de carteira assinada’, não, nunca trabalharam não. Era sempre o trabalho mesmo de roça. Aí fui com meu tio [pra Salvador], fui embora, aí só voltei mesmo quando engravidei de Carla, que é a mais velha, aí voltei. Eu sentia saudades daqui. Não vou te dizer que não sentia, mas era uma coisa que eu tinha na mente, que eu tinha que ganhar meu dinheiro. [...] Eu fui muito humilhada na casa dos brancos. Principalmente quando chegava alguém na casa deles ou quando eu saía com a menina que eu era babá. Naquele tempo, você sabe que tinha que vestir luva, botar luvas nas mãos, meia nos pés, sapato branco, calça branca e blusa branca, a minha farda de babá era essa.

Teve casa que eu trabalhei que quando eles acabavam de almoçar, o resto que ficasse na mesa, era aquele que era para eu e a cozinheira comer. Eu trabalhei uma época em Salvador também que minha irmã foi lá um dia me visitar e quando ela chegou lá meio-dia. Aí ela perguntou: você vai almoçar o quê? ‘O almoço daqui todo dia é um ovo. Se eu te contar você diz que é mentira.’ Ela disse: você tá comendo um ovo? Eu disse: é. Aí ela disse: você vai embora hoje, vou ficar sentada aqui até ela chegar e quando ela chegar você vai pedir suas contas. Aí ela me tirou de lá, me levou pra casa da patroa dela, que se chamava Dona Mairinha, que é mesmo que ser uma mãe pra ela, aí eu fiquei lá, depois consegui o trabalho, fui trabalhar... Dessas todas que eu trabalhei, a melhor patroa que eu peguei foi a que eu vim quando eu engravidei dessa minha mais velha, quando ela soube que eu tava grávida... que já tava com plano de vir embora pra aqui, ela chorou igual menino pequeno pra eu não vir embora.

A minha vida não é um mar de rosas não… muitas vezes eu pergunto pra Deus: Deus, por que, Deus, por que acontece tudo isso na minha vida?

Eu não quero mais ‘ter voz’, eu quero ser escutada

Escutando as narrativas de Mara e Nívea, duas mulheres cujas “escolhas juvenis” se tocam - ambas migraram com vistas a mudar de vida -, mas os destinos destoam, lembramos fortemente de Dori Laub (1995), quando afirma que os sobreviventes [de traumas coletivos como a colonização e a escravização dos povos africanos no Brasil] não só precisam sobreviver para contar suas histórias, como também precisam contar suas histórias para sobreviver. Segundo a autora, existe, em cada sobrevivente e em seus descendentes, uma necessidade imperativa de contar, e tornar conhecida sua própria história, “livrando-se” dos fantasmas do passado contra os quais precisaram proteger-se. Este imperativo para contar e ser escutado pode tornar-se, inclusive, uma tarefa da vida em si mesma, que tudo consome, tal qual ocorre com Maria Abade, cuja vida tem se constituído na exaustiva tarefa de dar voz às demandas de sua comunidade, reivindicando a escuta de sua história e de seu povo, assim como providências no campo das políticas de educação, saúde, moradia, transporte. Em uma participação numa live organizada pela Teia dos Povos em face da Covid-19, Mara afirma enfática: “eu não quero mais ter voz, eu quero ser escutada”.

Contudo, diz Dori Laub (1995), nenhuma narrativa consegue fazer justiça a esta compulsão interna que reivindica a escuta de um passado que continua vivo, repetindo-se na psique das mulheres negras quilombolas como nas ausências de um Estado que claudica em reconhecer as consequências nefastas da desigualdade sociorracial e de dar respostas efetivas no presente que barrem o racismo histórico que nos persegue. Afinal, como observa Jeanne Gagnebin (2006), não se trata somente de lembrar do passado, mas de, ao rememorá-lo, estarmos atentos às suas ressurgências no presente e agir sobre ele para que o horror não se repita, afetando de forma traumática a vida das pessoas.

Ciente dessas ressurgências do passado no presente, autores como James Hollis (2017), em livro intitulado “Assombrações: dissipando os fantasmas que dirigem nossas vidas”, nos faz recordar que, do ponto da prisão interior que nos limita a vida, seja individual ou social, desce um fio invisível ao campo arcaico de nossa história. “Tais histórias”, sublinha o autor (2017, p. 39), “são nossos ‘documentos fundacionais’, saibamos delas ou não”. Elas podem assombrar nosso presente, infiltrando-se em nossas vidas, individuais e/ou coletivas, quiçá destruindo-as. Para Hollis (2017, p. 83), “[...] todos [somos], na maior parte do tempo, prisioneiros de uma história, assombrados por “instruções” espectrais que flutuam do passado até o novo presente para informar, colorir e ditar nossas escolhas”.

É possível conjecturar que parte da “escolha” de migrar de Mara e de Nívea deve-se a estas “narrativas fantasmas” a que se refere Kimbles (2014), ou a esses “documentos fundacionais” de que fala Hollis (2017). Ou seja, deve-se à ligação estreita entre as suas histórias e a de seus ancestrais. Ao escolherem o caminho da migração, essas duas mulheres intentam lutar contra a fantasmagoria desse passado escravista e colonialista e libertarem-se, assim como a sua comunidade. Elegerem a migração como o escape da dura realidade que conheciam permite a Mara e a Nívea, bem ou mal, abrir-se para outro caminho e redimensionarem seus discursos nas narrativas sobre si e sobre as comunidades negras. Afinal, como pontua Benjamin (1987, p. 198): “a faculdade de intercambiar experiências é a atividade por excelência do ato de narrar”. Ele ainda sublinha que “o sabor das terras distantes trazido pelos migrantes” (BENJAMIN, 1987, p. 198) tem lugar de prestígio numa narrativa.

Mas se esta saída para um “mundo outro” as permite vislumbrar uma vida mais digna para si e acena com as possibilidades existenciais que almejam, as coloca novamente diante de um racismo que não morreu com a “abolição da escravatura” - antes, transferiu-se, como destaca Brewster (2019), para uma região subliminar e continua vivo nas estruturas institucionais. A autora lembra que a cada dia, em algum lugar da América, vemos os resultados da escravização dos povos africanos sendo pagos através do sofrimento vivido por cada nova geração. Enfatizando a presença viva do sofrimento de seus ancestrais nas gerações negras contemporâneas, a autora, utilizando-se do conceito de arquétipo6 tal como formulado por Jung (2014), afirma que “[...] devido a séculos de escravidão [escravização dos povos africanos, para sermos mais precisas] na América - trauma cultural - esse sofrimento tornou-se poderoso e reflexo de séculos [na condição de] potencialmente arquetípico, tendo se tornado ativo no nível transgeracional.” (BREWSTER, 2019, p. 4).

Esse sofrimento está expresso em diferentes pontos das narrativas de Mara e de Nívea apresentadas no início desta seção, e é reapresentado na seguinte frase, dita por Mara da Ponte, no contexto da live anteriormente citada: “quando a gente fala que hoje é dia da libertação dos escravos, que libertação? Foi uma falsa [abolição da] escravatura. Eu me sinto escravizada e oprimida [...]”. Desde esse sentimento de opressão que se alonga há séculos desde a escravização, a sensação, como bem observa Dori Laub (1995), referindo-se aos sobreviventes e aos descendentes de sobreviventes de traumas históricos, é de que não existem palavras suficientes e/ou adequadas, assim como não existe uma narrativa capaz de expressar completamente aquilo que “vai na alma”.

Isto se deve, como sublinha Eva Hoffman (2004), ao fato de que os traços [formativos/constitutivos] deixados nas psiques dos/as descendentes de sobreviventes não são tanto as memórias dos eventos traumáticos vividos por seus antepassados, mas sobretudo perdas, sofrimentos, cicatrizes e feridas que não raro tem efeito fantasmático, para usar a terminologia proposta por Kimbles (2014). O fantasma em Kimbles (2014) é uma imagem simbólica que ele usa para falar da presentificação psicológica de imagens, afetos, processos e dinâmicas ausentes/presentes que fluem através de um campo narrativo que é transmitido intergeracionalmente. De acordo com o autor, a ontologia do fantasma é ambígua: presença no silêncio, ausente e literalmente irreal, mas real psiquicamente e, portanto, com força de sugestão. O fantasma carrega o passado como presente e nos faz exigências que crescem a partir de uma história viva, em que a hauntology7 substitui a ontologia (KIMBLES, 2014, p. 43). De acordo com Nicolas Abraham e Maria Torok (1995), ele indicaria os efeitos sobre os descendentes daquilo que tivera, para nossos ancestrais, valor de ferida.

Eis os fantasmas que seguem atormentando a vida da população negra, como observa Nívea:

a minha mãe não chegou a alcançar esse negócio de escravidão, mas ela também era trabalhadora rural, ela também trabalhava em roça, eu sempre trabalhei em roça, meus avós também, trabalharam também sempre em roça, mas não era tempo de escravidão assim não”. E completa: “era quase um trabalho escravo, porque esses trabalhos que têm aqui, na verdade, é um trabalho escravo mesmo”.

Frente a essas fantasmagorias que impelem as comunidades negras no Brasil à repetição, não por força da tradição, mas por falta de oportunidades, as mulheres da comunidade Engenho da Ponte criam a Articulação de Mulheres do Engenho da Ponte. Através dessa articulação, elas se cuidam e criam espaços formativos de educação antirracista, ao tempo em que lutam contra o sexismo e a desigualdade sociorracial que as fazem sofrer e que expulsam mulheres, homens, jovens, crianças para fora da comunidade e os/as expõem a um mundo outro, nem sempre novo e cheio de possibilidades.

Pó de efun-funfun:8 o portal da infância para mediar um ensino de inglês decolonial

Possibilidades. De posse. De poder narrar a sua própria história em seus próprios termos e a partir de uma ótica local e não estrangeira, compartilhando saberes e lutando contra a desapropriação de suas terras. A esse respeito, Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo9 (2015), líder quilombola do território Saco-Curtume (São João do Piauí) e autor do livro “Colonização, quilombos: modos e significados(2015), declarou em uma conferência na Universidade de Brasília (UnB) que os saberes dos seus mestres e mestras o salvaram do pensamento colonial, e sentenciou: “quero que as crianças do Curtume aprendam a ler para brigar contra a exploração e desapropriação de suas terras. [...] quero que elas se letrem para não serem enganadas pela Bunge, a Cargil e a Monsanto” (BISPO DOS SANTOS, 2015).

Possibilidades é o que esse intelectual e militante quer para seu coletivo. De igual pensar, a professora Ângela Figueiredo, em seu texto10“Descolonização do conhecimento no século XXI”, defendeu “a educação como uma estratégia de luta contra o racismo, a invisibilidade e o recalque das diferenças, bem como a educação, a escola e o currículo, como espaços onde a ação humana pode produzir a resistência” (FIGUEIREDO, 2019, p. 76). A fim de prover as armas certas para esses enfrentamentos, dentro do mesmo projeto que pretendia escutar Mara, Nívea e as outras mulheres do Engenho da Ponte, propusemos, dentre as oficinas formativas que poderiam ser implementadas na etapa das ações na comunidade, o ensino de línguas (português e inglês) e de outras linguagens. A ideia era fortalecer as mulheres em seu lugar de fala, de modo que elas pudessem se sentir cada vez mais confiantes para romperem o silêncio historicamente imposto às mulheres negras. As mulheres optaram, porém, pelas oficinas de audiovisual e português, preferindo que suas crianças pudessem ter acesso ao inglês, que entendiam como uma oportunidade de terem o que sua geração não conseguiu acessar face às desigualdades sociorraciais.

Aprender para ter acesso, aprender para passar no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), aprender para viajar pelo mundo, aprender para ser o que quiser ser e para exigir os seus direitos como cidadãos e cidadãs. Obviamente, compreendíamos a nossa responsabilidade ao propormos para os meninos e meninas de uma comunidade quilombola o ensino de língua inglesa, e respaldamos nossa ação em uma perspectiva decolonial. Ao fazermos essa escolha, pretendíamos garantir que o aprendizado de um novo idioma não implicasse a perda ou barganha dos aspectos identitários e na deturpação do inventário cultural dos(as) estudantes. Não desejávamos repetir aquele discurso pedagógico, arquétipo do modelo hegemônico cultural dos países que foram grandes colonizadores e violentamente invisibilizaram culturas locais a partir do processo de “macdonalização” da língua (COX; ASSIS-PETERSON, 2001) e desde então a máxima estabelecida era que para aprender inglês o sujeito precisaria saber como degustar um bom hamburguer.

A representação identitária é tão mítica quanto a narrativa de Próspero e Calibã (ACHUGAR, 2006), em que este último personagem, de forma inconsciente, resiste à língua do colonizador, degradando o discurso através de “balbucios incoerentes”. Nas escolas públicas, os Calibãs11 modernos travam uma batalha antiga, na qual os estudantes de classes populares, que não se veem representados no material didático e nem na abordagem de ensino comunicativa, “grasnam em outra língua e fazem ruídos como perus” (ACHUGAR, 2006, p. 42) para conjugar o tão famoso verbo To Be.

Logo, cientes dessas objeções, não pisamos na terra de barro vermelho do Recôncavo da Bahia, calçando um sapatinho de cristal, mas ao mesmo tempo não queríamos negar às crianças do Engenho o direito de brincarem e de imaginarem. Definimos então que a apresentação de palavras em inglês seria feita através da contação de histórias (em português) e que estaríamos atentas aos elementos narrativos da cultura local. E lá fomos nós “atravessar a ponte”, que ao mesmo tempo une e separa o povo preto das possibilidades concedidas aos brancos; e lá fomos nós contar história para ensinar brincando e, para isso, praticamos a epistemologia do afeto e do pertencimento. Portanto, as sessões de histórias eram embaixo da árvore tamarineira, ao lado do campinho, que estava em frente à casa de Jaí, perto da morada de Chica.

Chica; esta é a personagem que nos redimiu da dúvida de sermos nós as neocolonizadoras do conhecimento, e, atendendo ao imperativo deste texto, contaremos o ocorrido que veio a se tornar o argumento de sustentação das nossas ideias. Em uma reunião sobre os rumos do nosso projeto dentro do Engenho da Ponte e de como a pesquisa tensionava as questões relacionadas à liderança política na comunidade, fomos interpeladas sobre a contação de histórias não-locais e do inglês para ensinar as crianças por um membro da comunidade que não estava participando do projeto por questões de ordem pessoal. Em nosso resgate, Chica levantou-se, gigante, proeminente e replicou:

Eu também quero que os meus filhos conheçam outras histórias. Não quero só conhecer o que o povo daqui diz. Eu também quero saber o que tem lá”. E completou: “não é porque meu bisavô trabalhou na enxada, minha avó trabalhou na enxada, meu pai e minha mãe trabalharam na enxada, eu trabalho hoje na enxada, que meus filhos e filhas devem trabalhar na enxada”.

Esta fala de Chica foi amplamente apoiada pelas demais mulheres, e o projeto seguiu com toda a força com as oficinas de português e audiovisual para as mulheres e de inglês para as crianças.

Uma vez que tínhamos agora a bênção das palavras de Chica e das outras mães do Engenho da Ponte, agora era seguir o conselho de Bell Hooks (2020b, p. 233):

[...] as ideias são sempre mais importantes que a língua. Para curar a cisão entre mente e corpo, nós povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua. Procuramos criar um espaço para a intimidade. [...] Aí, nesse lugar, obrigamos o inglês a fazer o que queremos que ele faça. Tomamos a linguagem do opressor e voltamo-la contra si mesma. Fazemos das nossas palavras uma fala contra-hegemônica, libertando-nos por meio da língua.

Sujeitar o inglês à sua própria vontade foi o que fez João, de 12 anos de idade. Ele mora com Neide, sua mãe. João tem cinco irmãos e junto com essa galera adora descer maré abaixo e enfiar os pés no mangue; algo que nos parece muito mais desafiador do que aprender inglês. João foi um dos alunos que ao nos avistarem disse de imediato que não aprenderia inglês e o que ele gostava mesmo era tirar cacho de dendê para fazer azeite. Essa é outra empreitada que de fato é desafiadora, dolorida e demanda uma astúcia que nenhum especialista em língua conseguiria realizar. Certo dia fomos visitar Neide e colhemos este diálogo:

- pró, pró!

- Oi, João! Como é que você tá?

- Pró: green, red, ball, boy, eyes, cat...

- Calma! O que é isso tudo?

- Pró, tem mais: nose, mouth e... dog. Agora me dê um lollipop.

Ao sair da casa deles, a pergunta que sempre nos incomodou: “por que você acredita que a criança quilombola precisa de inglês na vida?” ganhou um horizonte de respostas. Particularmente, naquele dia, nós estávamos tomadas de um entusiasmo que nenhuma pergunta nos tiraria da nossa rota de contentamento, porque já não nos importávamos se havia quem pensasse que é natural e fatídica a exclusão de corpos negros na academia, em programas internacionais e/ou em pesquisas estrangeiras.

A subversão de ter uma comunidade quilombola aprendendo inglês configura-se também como uma tentativa de sobrevivermos a uma democracia fragilizada por ataques políticos de uma elite que sempre achou conforto no senso comum de as periferias saberem “mal o português, quanto mais o inglês”.

Considerações finais

Num cenário tão desigual, em que mulheres e crianças lutam para existir em meio a narrativas racistas que reavivam os fantasmas da escravização, da colonização e de toda a violência envolvida nestes eventos históricos, e em que diferentes discursos tentam deslegitimar a liberdade das comunidades em escolher o seu próprio destino, o resultado, como se pode ver nas narrativas de Mara e Nívea, é o sofrimento psíquico lado a lado com uma narrativa que poderíamos chamar de resistência.

Bosi (1996, p. 21) afirma que as narrativas de resistência poderiam ser bem entendidas através do mito de “[...] Sísifo, retomando a subida da montanha, não cederá à onipotência do rochedo. À gravidade do mundo oporá pela liberdade do espírito [...].” Vê-se que a narrativa dessas mulheres é construída, literalmente, sobre as ruínas de um eu que é a todo tempo desalojado de seu lugar de fala, que é também um lugar de dor, e que elas resistem à força de um “sistema” que, como destaca Mara, “não tem aceitado os passos que a gente deu, e isso só foi através da luta, da resistência e da minha teimosia.” Esse “sistema” de que fala Mara da Ponte nega-se a escutar as narrativas das comunidades negras quilombolas e a reconhecer o racismo institucional e ambiental, que como foi dito, as tem expulsado de suas comunidades.

No projeto de pesquisa que apresentamos neste artigo colocamo-nos como contadoras, professoras e escutadoras de narrativas, testemunhas de uma “narrativa entre cacos”. Nívea e Mara expressam bem o que Jeanne Gagnebin (2006), citando dois ensaios de Benjamin “Experiência e pobreza”, de 1933, e “O narrador”, escrito entre 1928 e 1935 -, chama de “uma narração nas ruínas da narração”. Essa narração que nasce das próprias ruínas da arte de narrar, entretanto, revela, ao nosso ver, não somente “uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas” (GAGNEBIN, 2006, p. 53), mas também a narrativa de uma alma em frangalhos: a alma do povo negro no Brasil.

Uma alma ferida por uma sociedade sexista e racista. Assim, nessa narrativa em meio a ruínas, observamos narradoras como Mara e Nívea, movendo-se do passado para o presente e do presente para o passado, motivadas pelo forte “desejo de não deixar nada se perder” (GAGNEBIN, 2006, p. 53), mesmo que à custa de uma certa dose de sofrimento, como sublinha Nívea, num esforço de “dizer o indizível” (GAGNEBIN, 2006, p. 99): “lembrar o passado é sofrer duas vezes”. Elas entendem que dizer o indizível pode significar denunciar os descasos e colaborar para mudanças no contexto das oportunidades formativas e trabalhistas colocadas não somente para elas, mas para seus/as filhos/as e netos/as, as gerações vindouras.

Sustentadas pelas narrativas ancestrais de luta do povo negro e pelo desejo de deixar um mundo outro para seus filhos e filhas, elas comportam-se, como diz mais uma vez Gagnebin (2006), como “narradoras catadoras”, recolhendo em suas histórias aquilo que foi deixado de lado como algo sem valor ou sem significação histórica, algo com o que a história oficial ou dominante “não soube o que fazer” (GAGNEBIN, 2006) ou negou-se a fazê-lo. Ao trabalhar com essas “sobras”, essas mulheres, entre os cacos de uma história sofrida e transmutadas pelas experiências de migração, denunciam o racismo e o sexismo de uma nação que se negou a reconhecê-las como cidadãs e, por assim dizer, a reconhecê-las, e aos seus “irmãos e irmãs”, como mulheres, profissionais, estudantes, filhas, mães...

1No caso de Carolina esta perspectiva se delineia no campo da escrita, modalidade que, em termos de processos enunciadores, é ainda mais inacessível do que o campo da oralidade.

2Cumpre sublinhar que Nívea é um nome fictício, atribuído a esta participante com o objetivo de preservar sua identidade, conforme sua solicitação. Mara, no entanto, é o apelido de Maria Abade, que por sua vez preferiu usar seu próprio nome na pesquisa. No artigo também aparece a voz de Chica, mais uma mulher e mãe quilombola que participou do projeto, especialmente em seu início. Mantivemos também seu apelido entre as mulheres. Ela teve um papel muito importante nesse começo, contribuindo com muitas reflexões e posições para a construção de uma boa compreensão sobre a realidade das mulheres quilombolas e de suas crianças. Aparece, ainda, a voz de João, uma das crianças participantes das oficinas de língua inglesa de que falaremos na quarta parte do artigo. Embora sejam vozes de fundamental importância para a pesquisa, não serão alvo, neste artigo, de uma análise mais profunda do ponto de vista de suas trajetórias de vida.

3Comunidade situada no Recôncavo da Bahia, distante aproximadamente 140 quilômetros da capital. O Engenho da Ponte ocupa, junto a outras 16 comunidades quilombolas, uma região conhecida como Iguape. De acordo com Fraga Filho (2004), no século XIX, o Recôncavo se configurava como centro produtor de açúcar, uma vez que aproximadamente 90% dos engenhos de açúcar funcionavam neste território de terras úmidas que contorna a Baía de Todos os Santos. Atualmente, a comunidade do Engenho da Ponte vive, sobretudo, da pesca e da mariscagem, do dendê e do plantio de mandioca. Como outras comunidades quilombolas da Baía de todos os Santos, luta contra o racismo ambiental que vem destruindo os seus mangues.

4O título que nomeia este artigo foi inspirado num texto de Dori Laub (1995), em que a autora afirma que narrar é, para sobreviventes e descendentes de traumas coletivos, uma necessidade imperativa.

5Maria da Conceição Abade da Silva Confessor é historiadora, formada pela faculdade Maria Milza (FAMAM), e na ocasião da entrevista estava Secretária da Promoção da Igualdade Racial do município de Cachoeira. Atualmente é coordenadora da articulação da CADITER/CESOL Recôncavo; coordenadora da Frente Quilombola do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); coordenadora da regional Recôncavo; Presidenta da Associação da Comunidade Quilombola do Engenho da Ponte; Articuladora geral da Articulação de Mulheres Negras do Quilombo Engenho da Ponte; militante da Rede Estadual de Mulheres Negras; coordenadora do Projeto Cinemando no Quilombo; coordenadora da feira de mulheres negras de Cachoeira. Agradecemos a Maria Abade e a todas as mulheres da Articulação de Mulheres do Engenho da Ponte por todo o apoio a esta pesquisa, realizada ao longo de todo o ano de 2019 no interior da comunidade, ao tempo em que reconhecemos publicamente a importância do trabalho que elas realizam na luta contra o racismo estrutural e na defesa de condições dignas de existência para as mulheres e para todos os membros da comunidade.

6Na obra junguiana, o conceito de arquétipo é apresentado por diversos caminhos discursivos. Nesse artigo, a definição que melhor expressa o que Brewster parece querer dizer quando assume que o sofrimento do povo negro na África e na diáspora é arquetípico, é a seguinte: o arquétipo corresponderia à “[...] presença, em cada psique, de disposições vivas inconscientes, nem por isso menos ativas de formas ou ideias em sentido platônico que instintivamente préformam [criam imagens sugestivas e dotadas de autonomia psíquica, resultado de inúmeros e repetidos eventos históricos ao longo da história da humanidade] e influenciam seu pensar, sentir e agir” (JUNG, 2014, p. 86).

7Hauntology é um neologismo usado por Derrida (1994 apud KIMBLES, 2014) para referir-se à persistência do passado no presente, ou seja, a estas presenças fantasmáticas de que fala Kimbles, que nem estão presentes nem ausentes, nem mortas nem vivas.

8Para fazer uma alusão a pó de pirlimpimpim. Efun mineral: é um pó retirado de calcário, encontrado na natureza em várias cores, também chamado de tabatinga. Chamado de efum fum (pó branco), é utilizado na feitura de santo e serve para pintar o corpo do neófito (EFUN, 2020).

9Nego Bispo é atualmente membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (CECOQ/PI) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

10Texto escrito para abertura do II Fórum Internacional 20 de Novembro/ VII Fórum Pró-Igualdade Racial e Inclusão Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

11Personagens da obra A tempestade, de William Shakespeare.

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Recebido: 02 de Agosto de 2020; Aceito: 27 de Outubro de 2020

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