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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 26-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75611 

Artigos

Cinema negro feminino, estética e política na formação de professoras: uma experiência com o filme Kbela1

Female black cinema, aesthetics and politics in teacher education: an experience with the Kbela film

Fábio José Paz da Rosa* 
http://orcid.org/0000-0003-0672-191X

*Universidade Estácio de Sá. Campus Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: fabiojp83@yahoo.com.br


RESUMO

Esta pesquisa tem o objetivo de problematizar, no cerne da formação de professores em Pedagogia, as potencialidades do cinema negro feminino a partir da exibição do filme Kbela da cineasta Yasmin Tainá. Para isso, o artigo se propõe a defender uma perspectiva de formação docente decolonial em que as licenciandas participantes da exibição são incentivadas a produzirem novos conhecimentos inter-relacionados às corporeidades, estéticas e atuação política. Dessa forma, compreendemos que as estudantes relacionaram esses conhecimentos tanto em suas corporeidades quanto em suas futuras práticas docentes.

Palavras-chave: Cinema Negro; Corporeidade; Estética; Formação de professores

ABSTRACT

This research aims to problematize at the center of the education teacher in Pedagogy the potential of female black cinema from film exhibition Kbela of filmmaker Yasmin Tainá. For this, the article proposes to defend a perspective of decolonial education teacher in which the participating graduates of the exhibition are encouraged to produce new knowledge interrelated to the corporeities, aesthetics and political action. In this way, we understand that the graduates related this knowledge both in their corporeities and in their future teaching practices.

Keywords: Black Cinema; Corporeity; Aesthetics; Teacher education

Introdução

As populações negras brasileiras continuaram a resistir e a preservar a ancestralidade africana no pós-abolição de 1888 através da imprensa, dos clubes recreativos, do teatro e dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Todas essas expressividades compuseram o Movimento Negro constituído, de acordo com Pereira (2008), em três fases históricas.

A primeira fase, do início do século XX até o Golpe do Estado Novo, instaurado em 1937, com destaque para a atuação da Frente Negra Brasileira (FNB); a segunda, do período da redemocratização, em meados dos anos de 1940, representado por atividades culturais como o Teatro Experimental do Negro (TEN) e o Teatro Popular Brasileiro (TPB) até o Golpe Militar de 1964; e a terceira, por meio do Movimento Negro contemporâneo, após o início do processo de abertura política em 1974.

Em todas essas fases, as mulheres negras estiveram atuantes e presentes. No período da FNB, eram elas as responsáveis por trabalhos assistenciais e pelas organizações de bailes e festivais cívicos. Na segunda fase, o TEN fundado por Abdias do Nascimento ganha notoriedade com a atriz Ruth de Souza que em 1952 ganhou uma bolsa para estudar teatro na escola estadunidense Karamu Theatre. O Teatro Popular Brasileiro (TPB), fundado por Solano Trindade, juntamente com sua esposa Maria Margarida da Trindade, tinha o objetivo de formar operários, estudantes e demais trabalhadores em artistas com o intuito de representar a cultura africana e afro-brasileira.

Na terceira fase, as mulheres negras posicionam-se com maior força a partir da institucionalização do Movimento Negro (MN) tendo uma de suas fundadoras Lélia Gonzales, historiadora, ativista, antropóloga e idealizadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), Maria Beatriz do Nascimento, também historiadora, roteirista e poeta e Helena Vitória dos Santos Machado, fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) no Rio Grande do Sul. Esse período também é destacado pela atuação das ativistas Josilene (Jô) Brandão, integrante da Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão; Maria Raimunda (Mundinha) Araújo, fundadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN); Nilma Bentes, fundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) e Sueli Carneiro Filósofa e Doutora em Filosofia da Educação e fundadora do Geledés Instituto da Mulher Negra.

As demandas e reivindicações do MN e de diversos coletivos liderados por mulheres negras em diferentes partes do país também trouxeram à baila as discussões sobre as intersecções do racismo e do machismo. Sobre isso, Lélia Gonzales (1982) recorda das primeiras reuniões do MN no Rio de Janeiro:

Chegou a um ponto que as mulheres passaram a se reunir separadamente para depois, todos se reunirem numa sala maior, onde se discutia os problemas comuns. É claro que pintou machismo e paternalismo, mas também solidariedade e entendimento. O atraso de alguns manifestou-se num tipo de moralismo calvinista e machista, que caracterizava o quanto se sentiam ameaçados pela capacidade e sensibilidade das companheiras mais brilhantes (GONZALES, 1982, p. 35).

As dificuldades enfrentadas pelas ativistas negras do MN também se manifestaram em outros diferentes espaços onde as mulheres negras buscaram evidenciar seus conhecimentos na inter-relação da corporeidade, da estética e da história como o Cinema negro. Essa cinematografia busca uma “nova posição sociocultural do afrodescendente, na construção de uma imagem afirmativa do negro e de sua cultura” (PRUDENTE, 2011, p. 49). No caso das cineastas negras, essa realidade é composta por muitos desafios a começar pela ausência de diferentes profissionais desse público na sétima arte brasileira.

De acordo com o estudo de Cândido et al. (2014), mulheres pretas e pardas não dirigiram e nem roteirizaram nenhum dos 218 longas-metragens de maior bilheteria do período de 2002 a 2012. Para driblar a falta de visibilidade na cinematografia nacional, as cineastas negras têm apostado nas produções independentes e coletivas (CÂNDIDO; CAMPOS; JÚNIOR, 2017). Diante dessa constatação, muitas teóricas vêm confirmando:

[...] a necessidade urgente de pensarmos um conceito de “Cinema Negro no Feminino”. Essa terminologia vem sendo usada no Brasil e no mundo, como um cinema arquitetado por cineastas negras. Em sua maioria, elas são mulheres negras e militantes que encontraram no audiovisual a possibilidade concreta para denunciar e combater o racismo, o machismo, a homofobia, e as múltiplas formas e especificidades de discriminações e preconceito tão arraigadas na sociedade (SOUZA, 2020, p. 181).

As inter-relações políticas e artísticas das mulheres negras as tornam importantes referências para pensar e praticar novas perspectivas estéticas promotoras de conhecimentos até então pouco problematizadas nos processos educacionais formais, principalmente com o advento da Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003)2 determinando a implantação das temáticas históricas e culturais das populações afro-brasileiras nos currículos escolares em todos os níveis de ensino.

Em grande parte, a exigência da Lei se efetiva primordialmente pelas ausências de conhecimentos das populações negras na busca por reiterar as presenças construídas pelas diferenças. Nilma Lino Gomes (2002) lembra a ideia de diferença, historicamente, à serventia dos processos colonizadores sustentados pela cor da pele e por outros elementos corpóreos, inclusive nos processos educacionais.

Nesse sentido, o corpo é o primeiro conhecimento cujas crianças negras compreendem os demarcadores das diferenças tensionando as relações estabelecidas entre a vida familiar e o espaço público (GOMES, 2012). Para além da denúncia, os estudos sobre as diferenças nos processos voltados às relações étnico-raciais na formação docente e na escola através das corporeidades negras abrem perspectivas para evidenciarmos os “elementos culturais africanos ressignificados no Brasil” (GOMES, 2012, p. 50).

É sobre essas aprendizagens com as potencialidades dessa corporeidade na cinematografia negra feminina em uma perspectiva decolonial na formação de professores que este artigo trata. Nesse ínterim, o objetivo dessa pesquisa foi compreender as possibilidades imagéticas de resgate da ancestralidade na formação docente para a produção de novos conhecimentos capazes de fundamentar outras perspectivas curriculares.

O cinema produzido por mulheres negras enquanto Pedagogia Decolonial

O cinema negro feminino nesta pesquisa fundamenta-se na Teoria decolonial por ser entendido como uma práxis questionadora das formas de estruturação do conhecimento visto como unívocos na perspectiva eurocêntrica. O pensamento decolonial é uma construção intelectual e ao mesmo tempo política de diversos pesquisadores da América Latina originários do Grupo Modernidade/ Colonialidade (M/C) surgido nos anos de 1990.

Walsh (2009) defende a decolonialidade como um dispositivo pedagógico capaz de questionar os processos de “racialização, subalternização e inferiorização” (WALSH, 2009, p. 25). Por isso, ao se colocar enquanto uma Pedagogia, a decolonialidade traz as subjetividades de ativistas e teóricos para o cerne do debate, não apenas para sua valorização, mas também para uma transformação das pessoas como construtoras de conhecimentos forjados em suas histórias e lutas.

Nesse sentido, o cinema produzido por mulheres negras é nesta pesquisa compreendido por decolonial por uma conjunção de conhecimentos indissociáveis às corporeidades, estéticas e formas de fazer política. Para Gomes (2019), as mulheres foram as responsáveis por reintroduzirem no debate crítico das ciências humanas e sociais, os corpos construídos pela cultura. O reconhecimento dessa corporeidade se efetiva por uma “leitura política da estética” (GOMES, 2019) entre regulações e emancipações de mulheres negras e de homens negros. Afinal:

[p]ara cada processo emancipatório, as relações de poder capitalistas, racistas e patriarcais se realinham e tentam regulá-lo novamente. Por isso, não esquecer que a emancipação não é feita só de alegria e vitórias é um componente de resistência para as pessoas negras que têm consciência política da sua identidade racial (GOMES, 2019, p. 135).

O cinema produzido por mulheres negras, em grande parte, tem buscado constantemente essa emancipação na inter-relação corporeidade, estética e política. Nesse afã, também há nas produções cinematográficas das diretoras negras uma perspectiva pedagógica de se verem visibilizadas e permitirem a outras mulheres negras se reconhecerem.

Ao possibilitar o contato com a cinematografia negra problematizada, roteirizada e produzida por mulheres negras, estamos considerando variadas formas de conceber e praticar os conhecimentos ainda à margem do currículo escolar e por isso, muitas vezes, distante das construções e dos reconhecimentos identitários de meninas e jovens negras da educação básica. Ao produzir novos conhecimentos até então estranhos ao campo do currículo, podemos também nos questionar parafraseando Antônio Flávio Barbosa Moreira (2005, p. 45) “como ensinar algo estranho ao ensino? Como aprender um conhecimento estranho ao ensino?”.

Uma das possibilidades de responder aos questionamentos de Moreira (2005) é ouvindo e aprendendo com as cineastas negras por meio de sua ancestralidade historicamente inter-relacionada com diferentes saberes inerentes às suas existências. Afinal, de acordo com Miranda (2013), é preciso ampliar as fronteiras epistêmicas do educar no contexto escolar, pois existe uma constante pedagogia produzida no meio midiático. A ampliação de diferentes espaços com os quais é possível também à escola fundamentar-se nessas diferentes pedagogias decoloniais, pois essas são construídas “[...] no seio das organizações, nos bairros, comunidades e movimentos e na rua, entre outros lugares” (WALSH, 2009, p. 27). Dessa forma, a inserção do cinema negro feminino enquanto prática de uma educação decolonial assume compromisso com as futuras gerações de mulheres, pois:

[a]o nos conduzir ao mundo da educação formal, e a partir dela o acesso do fazer cinema, nossas matriarcas negras fizeram de nós, cineastas negras, herdeiras de um legado que nos responsabiliza em dar continuidade aos sonhos (SOUZA, 2020, p. 185).

No caso do cinema negro feminino é compreensível essa construção de memória coletiva, de singularidade, cultura e paisagens, resultante das unidades construídas pelas mulheres negras (SOUZA, 2020). Nesse sentido, como os cursos de formação de professores podem aprender com o cinema negro feminino para continuar a produzir conhecimentos com outras mulheres negras e futuras professoras?

Miranda e Riascos (2016) defendem o reconhecimento da formação docente como espaços de processos de educabilidade das populações afro-diaspóricas que podem ressignificar os conhecimentos curriculares e didáticos das epistemologias desenvolvidas em relações com diferentes linguagens artísticas, entres elas, as imagens cinematográficas.

Para as autoras, urge a necessidade de produzirmos novas epistemologias questionantes das relações de poder presentes na elaboração dos currículos escolares, pois esses conhecimentos estão em constantes negociações entre políticas educacionais, didáticas e os cotidianos da sala de aula. Essa constatação se deve principalmente pelo fato da escola ser um espaço frágil onde as diversas disputas de poder concorrem para estabelecer questões de caráter mais administrativo e menos linguístico. Por isso, há a necessidade de promover desaprendizagens para assim aprendermos por meio de outras experiências curriculares inovadoras. (MIRANDA, 2013).

Dessa forma, problematizar na formação docente as produções cinematográficas das mulheres negras proporciona às licenciandas questionamentos e conhecimentos outros para si próprias e para as suas futuras atuações profissionais. Ao mesmo tempo, as estudantes têm a oportunidade de estarem sob uma Pedagogia Decolonial a partir do contato com os conhecimentos das populações afro-brasileiras às quais elas estão inseridas e assim trazem à memória suas vivências e suas existências para assim terem condições de problematizá-las em suas futuras práticas docentes.

A produção de uma pedagogia decolonial por meio do filme Kbela

A importância dessa pesquisa posicionada como uma prática decolonial se efetiva pelo fato de ocorrer em uma Instituição Ensino Superior (IES) localizada no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, região onde 63% da população se autodeclarou preta e parda de acordo com dados do Censo 2010 (IBGE, 2010). Esse dado é reiterado pela composição do curso de Pedagogia da IES onde foi realizada a pesquisa, pois as estudantes são majoritariamente negras.

Por isso, a experiência com o cinema negro feminino integrou as atividades dessa pesquisa produtividade realizada no ano de 2018. A interseccionalidade de gênero e raça, segundo os principais teóricos dos estudos decoloniais (MIGNOLO, 2003; WALSH, 2009; COSTA; GROSFOGUEL, 2016) é uma das principais fundamentações dessa perspectiva teórica, porque as mulheres negras e indígenas continuam a serem dizimadas em suas existências, a começar pela sua estética corpórea.

O filme Kbela (2015) foi uma das obras escolhidas para esse projeto de pesquisa exatamente por questionar as formas como as mulheres negras foram moldadas em suas corporeidades. O contexto sociológico e histórico brasileiro se constituiu pela tendência de embranquecimento da população brasileira, inclusive sustentada pela academia ao final do século XIX e início do século XX. Dessa forma, as mulheres negras foram inseridas em estéticas europeias para assim terem apagadas suas características raciais. Por meio dos controles corpóreos fundamentou-se a ideia de uma democracia racial fundamentada na mestiçagem e “entendida como algo melhor, bom que clareia a raça, alisa ou anela os cabelos” (GOMES, 2020, p. 132).

Nesse sentido, como o cabelo das mulheres negras podem ser compreendidos para ressignificar seus posicionamentos políticos, sociais e culturais na sociedade brasileira? Em entrevista concedida para a série documental Afronta! A diretora e produtora Yasmin Thayná (2017) fala sobre a inter-relação entre cinema, cabelos negros femininos e estética enquanto posicionamento político:

O cinema me reconecta com a minha ancestralidade [...] Kbela, ele perpassa por todos esses caminhos, entendeu? De dizer, esse cabelo na real quando a gente está falando de estética, a gente “tá” falando de contexto político. A gente está tocando em coisas muito mais profundas pra dizer uma coisa enorme codificada (THAYNÁ, 2017).

A cineasta compreende a imposição sobre os cabelos das mulheres negras inserido na forma de controle, dominação e para o não reconhecimento com a ancestralidade. Dessa forma, Thayná busca por meio de Kbela apresentar o epistemicídio da presença negra feminina a partir da construção capilar, pois em grande parte esse elemento corpóreo condicionou as mulheres afro-brasileiras a não falarem de si e de suas existências.

Dessa forma, apreendemos com Yasmin Thayná (2017) a forjar outras formas de fazer política, não mais determinadas numa suposição democrática onde o ideário de direitos a todos está em acordo com as imposições das elites brasileiras. Por meio de Kbela, a política é construída por uma democracia conceituada-vivida nas corporeidades das mulheres negras. Assim, também se rompem as perspectivas de apenas serem representadas, como se não fizessem parte da realidade brasileira, para fazerem-se presença.

A urgência dessas temáticas para compor o ethos acadêmico e escolar reflete também posicionamentos políticos cujas corporeidades podem produzir oralidades transformadas em conhecimentos outros. Dessa forma, a experiência com o filme Kbela nos traz novas fundamentações para a formação docente cujo “compromisso da política educacional com o público - e se quisermos com a escola pública - é, antes de tudo, um compromisso com o próprio processo de diferenciação, com as singularidades indomáveis que podem emergir” (MACEDO; RANNIERY, 2018, p. 752).

No caso de nossa pesquisa, exercitamos a construção desse processo de singularidades negras por meio da exibição do filme e em seguida da Análise Criativa. Assistir a um filme pode disparar um gesto criativo sobre cada espectador e exercitar outras possibilidades imagéticas. Bergala (2008) apresenta a análise de criação não como uma finalidade em si, mas como passagem para outra coisa:

Essa outra relação que pode ser imaginada pelo espectador é ‘o retorno ao momento imediatamente anterior à inscrição definitiva das coisas, em que as múltiplas escolhas simultâneas estavam quase atingindo o ponto de serem decididas: o último ponto em que os possíveis estavam abertos [...] (BERGALA, 2008, p. 130)

Bergala (2008) faz uma comparação desse gesto criativo como de uma criança ao quebrar um brinquedo para ver o que tem dentro, mas que depois o utiliza de outra forma. Ou já adultos, poderíamos dizer como Bell Hooks (2018, p. 42): “eu preciso recolher os pedaços e cacos de quem sou e começar tudo outra vez, transformada pela imagem”

A escolha de elementos simples de um plano fílmico pelas espectadoras potencializou a construção de outras imagens elaboradas pelas maneiras como cada mulher negra almeja se ver. Nesse sentido, uma análise criativa é atravessada pela sensibilidade, mas também de racionalidade com as coisas presentes no mundo e de como queremos ressignificá-las.

Uma análise criativa de Kbela

Analisar um filme sempre é um risco, pois envolve diretamente aspectos subjetivos e emocionais de uma obra. Por isso, optamos pela metodologia da Análise criativa a qual retiramos das próprias escolhas estéticas as possíveis interpretações para compreensão de uma narrativa fílmica por meio de elementos da iluminação, de sonoridade e de cenografia. A Análise criativa por possibilitar um contato com o fazer e o pensar o cinema vai ao encontro da potencialidade estética de Kbela que tem o intuito de apresentar a construção de presenças da mulher negra por meio de seus cabelos.

Kbela (2015) inicia-se com a câmera focando a atriz Maria Clara Araújo segurando uma colher com um produto preto que lembra algum tipo de alisante. Em seguida, Araújo leva a colher até a boca e mastiga várias vezes o produto. Esse ato tem por consequência a apresentação de um leve olhar de tristeza e angústia. Quase ao final do plano, a atriz faz uma expressão de vômito.

O segundo plano apresenta Thaís de Amorim com sua cabeça fixa em uma mesa como se fosse um prato pronto para ser servido. Enquanto isso, uma mulher, com o rosto invisibilizado no plano, está sentada sobre a mesa e começa a passar uma série de cremes no cabelo de Amorim. Essa não apresenta nenhuma expressividade e apenas deixa-se levar pelos movimentos das mãos daquela, cheias de creme alisante.

O terceiro plano apresenta um conjunto de bocas completamente pintadas com gliters pronunciando diversas palavras ofensivas às mulheres negras: “pinchaim”, “bombril” e “tizil”. Essas bocas ao mesmo tempo brilham, e gradativamente vão se tornando mais foscas até se tornarem indecifráveis. Nesse caso, alguém fala, com todo o brilho, mas não é preciso reconhecê-lo, pois importa apenas o discurso unívoco acerca dos cabelos das mulheres negras.

O quarto plano volta a mostrar Amorim ainda com a cabeça sobre a mesa na qual tem seu cabelo molhado pela outra personagem com uma série de produtos como cremes, azeite e vinagre. O cabelo está sendo temperado para ser consumido e atender às estéticas impositivas do alisamento capilar.

No quinto plano, Isabel Zuaá está sentada com a cabeça abaixada até os joelhos e com um acessório cobrindo todo o seu rosto. No sexto plano, Zuaá aparece de perfil, com a cabeça abaixada e uma das mãos encostadas a uma parede. Levanta a cabeça, olha para frente e começa a chorar. Enquanto no plano anterior, não a conseguíamos ver, agora a vemos com toda sua expressividade de dor.

Enquanto o choro abafado de Isabel continua a ser ouvido, inicia-se o sétimo plano no qual a mulher X3 sentada no chão com os braços cruzados sobre as pernas. Ao fundo desse plano, avistamos um corredor de uma casa abandonada, com paredes e pinturas desgastadas. A câmera se aproxima e vemos sobre a cabeça de X um pacote pardo cobrindo-a completamente. Ela pouco se movimenta e compõem junto com a casa em ruínas o fim de sua existência, já quase sem vida, como se fosse parar de respirar.

No oitavo plano, Thaís de Amorim continua a ter seu cabelo emplastado por uma série de produtos e cremes pelas mãos da mulher sentada sobre a mesa, reiterando seu condicionamento de inexistência, sem poder respirar, falar, expressar.

A partir do nono plano iniciam-se tentativas de liberdade das mulheres negras. A mulher Z aparece ao fundo de um corredor formado por árvores e pela escuridão da noite com um saco preto à cabeça, querendo se libertar por meio de movimentos bruscos com os braços. À frente do plano, a mulher Z é iluminada permitindo ver seus gestos desesperados por liberdade.

No décimo plano, Isabel Zuaá aparece de costas para uma grade branca, reiterando a ideia de uma prisão. Em seguida, ela vai pintando todo o seu corpo com tinta branca em movimentos circulares rápidos. Ao fundo, um som musical de um teclado de sopro conduz os movimentos manuais de Zuaá e ela começa a retirar a tinta branca que cobria a sua pele bem lentamente. Olha para as suas mãos e encara a câmera.

Ao iniciar o décimo primeiro plano, Dai Ramos aparece tocando um teclado com sopro em um tom fúnebre. Essa musicalidade expressa o início de um novo ciclo: a morte da opressão dos corpos das mulheres negras, agora, substituído pelo renascimento de cada uma delas de forma irmanada. Assim podemos compreender no plano seguinte, onde Isabel Zuaá, Mara Clara, Dandara Raimundo e Lívia Laso vão limpando uma às outras da tinta branca presente em seus corpos. Junto com a música fúnebre, uma voz muito baixa diz: “tira”, “tira”. Dessa forma, elas se sentem fortalecidas e encorajadas para ajudarem umas às outras em retirar a tinta branca de seus corpos e se visibilizarem de acordo com as múltiplas negritudes de suas peles e cabelos.

No plano 13, Carla Cris está penteando o cabelo de Dandara Raimundo em meio à noite escura. Em seguida, Cris começa a cortar o cabelo de Raimundo enquanto essa segura sobre seu colo um espelho para acompanhar o processo de transição capilar.

A reflexão da imagem de Dandara sobre a lâmina de vidro revela a importância e a necessidade das mulheres negras em acompanhar não apenas o processo em si, mas de admirar o próprio processo. Assim, tudo o que vai ocorrendo é a escolha dessa mulher desejosa por apresentar seus cabelos, sem nenhuma imposição. Enquanto continua cortando e ajeitando o cabelo de Dandara, Carla inicia o seguinte canto:

Que luz é essa

que vem lá do mar?

É a Senhora das Candeias

Mãe dos Orixás

Seu Adê resplandece

na lua cheia

Glória ê ê glória

Glória Mamãe sereia (bis)

Inaê por cima do mar prateou

por cima do mar mariô

por cima do mar incandiou(bis)

[...]

Ê nijé nilé lodô

Yemanjá ô

Acota pê lê dê

Iyá orô mio.

A canção chama-se “Prece de pescador” e é enunciada como uma oração, dando forças àquelas mulheres para se reconhecerem com suas corporeidades por meio de sua ancestralidade, a partir daquele momento. Após esse encontro transcendente com a memória ancestral, as duas atrizes começam a se lembrar das anulações corpóreas iniciadas em suas infâncias. Enquanto Carla se lembra da necessidade de parar à frente do espelho para fazer algo engraçado, atitude criticada pelo irmão mais velho, Dandara recorda sobre o espelho como um incômodo.

Tanto o ato de se ver de forma jocosa como o não se ver para as duas mulheres se efetiva em meio às dores e às opressões vivenciadas por cada uma de forma solitária, porque elas não referenciam outras pessoas que as fizessem reconhecer ou não as suas negritudes. Ao mesmo tempo, as duas têm a oportunidade de encontrar apoio uma na outra e assim tornam-se referências até então perdidas ou nunca antes conhecidas. Dessa forma, Dandara começa ali o seu processo de transição ao se olhar no espelho com uma nova estética, admirando-se ao tocar o seu cabelo, não mais para se ver de forma cômica, mas bela e feliz.

No plano 13, Thamyres Capela toca o seu cabelo cacheado e em seguida passa um sabão azul em movimentos circulares sobre seus cachos encaracolados. Logo depois, começa a passar o cabelo em uma panela com força. A cena faz referência a uma das mais pejorativas formas de nomeação dos cabelos crespos comparados às esponjas de aço.

O plano 14 aparece, ainda ao som do cabelo de Capela limpando a panela no plano anterior, todas as personagens colocando turbantes e vestimentas africanas assumindo suas ancestralidades de formas livres, belas e empoderadas. Aos poucos, o som do cabelo sobre a panela vai sumindo e adentra a música cantada por Isabel Zuaá:

Dê agua pra ela beber

Dê roupa pra ela vestir

Saúde pra dar e vender

Dê paz pra ela descansar

Adubo pra ela crescer

Dê rosas pra ela enfeitar

África, centro de rainha

Dona da realeza

Mãe da matéria-prima...

Enquanto as personagens vão se compondo com vestimentas coloridas e seus turbantes, elas vão pedindo os nutrientes da ancestralidade africana presentes na natureza. Assim, cada mulher negra pode se encontrar no mundo de forma plena e significativa. Em seguida, aparece sobre a tela completamente preta: “Para todas as mulheres negras do mundo”.

O último plano apresenta todas as personagens resgatando suas ancestralidades plenas em suas corporeidades ao dançar ao som dos tambores com alegria e companheirismo. Ao final, as personagens se colocam de frente para câmera em posição de luta.

Produção de conhecimentos estéticos-corpóreos no curso de Licenciatura em Pedagogia

Após a exibição de Kbela para um grupo de nove estudantes, sendo sete mulheres, cinco delas negras e duas brancas, e dois homens, um negro e um branco, abrimos o espaço para uma roda de conversa por meio da Análise criativa. A seguinte metodologia foi explicada com intuito de orientar os estudantes a evidenciar os elementos estéticos da obra fílmica e a partir deles construir possíveis interpretações:

Estudante 1: Eu achei o filme incrível porque remete toda a rejeição do negro, todo momento querer se encaixar na sociedade. A questão da pele, dela se pintando. Achei agonizante, ela se pintando. Aquela cena dela passando o sabão no cabelo pra lavar a panela, a princípio pensei que ele estava lavando o cabelo. Aí eu pensei: mano, você vai estragar o teu cabelo. Senti uma tristeza tão grande. A gente sempre escuta que o cabelo do negro é Bombril, é isso ou aquilo pinchiam, que é feio e é só diferente. O cabelo é lindo, entendeu? É muita rejeição.

Estudante 2: Uma cena bem agonizante é aquela da cabeça que a pessoa fica ali passando vários tipos produtos de um jeito bem agressivo um produto atrás do outro agredindo o cabelo e com força, machucando, puxando Acho que com o intuito de alisar. Um produto atrás do outro. Eu acho que alguns produtos, não deu para identificar direito, mas talvez metade deles não seja muito bom, talvez façam até mal para o cabelo e pra saúde.

Quando a Estudante 1 e o Estudante 2 explicam porque acharam agonizante a situação das personagens dos primeiros planos de Kbela, remetem as formas de opressão sofridas pelas mulheres. Há nessas falas uma compreensão dos constructos sociais que desconsideram a estética negra em seus cotidianos. No entanto, em seguida, os mesmos estudantes, reiteraram a produção das populações negras acerca de suas corporeidades:

Estudante 1: Uma coisa que achei interessante foi essa questão dos cremes, porque no ano de 2014 para 2015 que começou a fazer a transição capilar, quem não lembra disso? Foi em alta, porque teve uma novela que a pessoa mostrou o cabelo cacheado de outra forma. E aí todo mundo quis aderir a essa nova moda [...] Muitas pessoas viraram blogueiras [...] Então, hoje tem muito isso, ensinando a fazer a transição capilar.

Estudante 2: [...] conheci uma blogueira que o cabelo dela é crespo, bem cheio. Ela começou a transição no final de 2014. Desde criança ela relaxava o cabelo. As pessoas olhavam. O cara falou que o cabelo dela era bem crespo. O cara queimou o couro cabeludo dela. Ela tomou essa decisão por causa que o noivo dela que falou: Por que você não deixa seu cabelo natural? Começou a transição com a trança, fez três meses de transição com a trança, depois ela falou: não, acho que vou cortar o cabelo. Agora, você precisa estar preparada para se olhar no espelho, porque você precisa estar preparada para o que chamam de big chop que é quando cortam o cabelo todo para ficar somente o cabelo crespo.

Kbela (2015) fez essas/esses estudantes lembrarem a produção de novos conhecimentos acerca de suas corporeidades, principalmente por meio das redes sociais onde as negras e os negros nos últimos anos puderam aprender a visibilizar suas estéticas em conjunto uns com os outros. Nesse cenário, assim como o coletivo de mulheres produtoras de Kbela, grande parte dessas estudantes aprendeu com blogueiras e youtubers a reconhecerem e valorizarem o momento da transição capilar como forma de conhecer a si e suas ancestralidades.

Ao aderirem e incentivarem por meio de diferentes redes sociais o big chop, corte para retirar a química dos cabelos e deixá-los crescer naturalmente, as mulheres negras estão resguardando seus conhecimentos para serem construídos e transmitidos fora dos ambientes formais de ensino. Dessa forma, as mulheres negras reiteram a condição de não serem visibilizadas em suas trajetórias escolares, pois, historicamente, elas tiveram que aprender e transmitir os conhecimentos constituintes de sua ancestralidade por processos de educabilidade forjados por diferentes expressividades relacionadas ao Movimento Negro. Nesse processo de ensino e aprendizagem, é preciso considerar que:

[o] Movimento de Mulheres Negras merece destaque quando refletimos sobre os saberes políticos. A ação de ativistas negras constrói saberes e aprendizados políticos, identitários e estéticos-corpóreos específicos. Enfatizamos, aqui, os saberes políticos por considerá-los como aqueles que reeducaram as identidades, a relação com a corporeidade e a própria ação política dentro e fora do Movimento Negro (GOMES, 2017, p. 73).

Quando mulheres negras se reúnem em torno de um conhecimento, isso significa, em primeiro lugar, como mencionado por Thayná (2017), um posicionamento político, pois construir expressividades por seus próprios corpos, em sua maioria não reconhecida pelas instituições formais, é um dos maiores atos de resistências e de consciência das suas existências. A partir desse posicionamento, essas mulheres vão construindo identidades para além das institucionalidades da educação formal, como é o caso do cinema e de outras formas de produção audiovisuais. Nesse sentido, a escola descontextualizada dos conhecimentos produzidos pelas populações afro-brasileiras por meio de suas corporeidades ainda é uma lacuna, como analisado pela licencianda a seguir:

Estudante 3: Na verdade, a gente aprende na escola a forma europeia, que bonito é o branco, de cabelo liso [...] Mas, na verdade, o Brasil, a história toda começa na África, através das danças, das pinturas, só que não é tratada na educação escolar. Agora que surgiu a lei para educação indígena nas escolas, para que a gente possa aprender com eles outros modos de vida. Inclusive como podemos ser felizes de outras maneiras, como podemos exercitar nosso olhar de outras maneiras. Por que o que é o belo? Dentro da universidade, nós temos que nos policiar [...]Porque tudo que é diferente, a gente não sabe lidar com essas questões.

A Estudante 3, após assistir Kbela (2015), reitera a necessidade do conhecimento escolar reelaborar a História do Brasil pelos conhecimentos africanos, a começar pelas expressividades corpóreas como a dança. Ao relembrar a implantação da Lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008) para a exigência de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena no currículo escolar, a licencianda considera a necessidade de exercitarmos outras aprendizagens para além dos conhecimentos unívocos fundamentados no eurocentrismo. Uma delas é a estética negra, cuja reelaboração produzida pelas universidades precisa estar pronta para trabalhar com os conhecimentos plurais e diversos.

A análise da estudante atenta-nos para a responsabilidade dos formadores de professores em assumir outras fundamentações capazes de atravessar a esfera da valorização superficial e pontual para a produção de currículos outros forjados nas existências de mulheres negras, onde a corporeidade não se dissocia dos saberes estéticos e políticos.

Essa constatação abre novas formas de construção de políticas curriculares, aos quais, segundo Lopes (2004), são influenciadas pelos movimentos sociais. Nesse conflituoso diálogo, de acordo com a autora, os sujeitos têm a oportunidade de questionar os conhecimentos considerados legítimos e universais e paralelamente problematizar as epistemologias ainda não enunciadas.

Por meio das estéticas corpóreas, é possível em um primeiro momento fazer os sujeitos contactarem conhecimentos relacionados às suas maneiras de ser e estar no mundo em consonância com as suas ancestralidades. Por meio de Kbela (2015) conhecimentos corpóreos e políticos também foram produzidos pelas espectadoras ao se reconhecerem nesse processo de transição:

Estudante 4: Eu fiquei um ano passando prancha. Eu comecei a alisar. Hoje, eu estou fazendo outra transição. Agora estou tentando sair do louro. Já até marquei o salão. Você se sente presa ao que a sociedade te impõe. Quero cortar tudo! Gente, não dá, porque o negócio é você ser loura, você ser lisa [...] O resto é nada. Todos esses padrões é que são bonitos, mas você é um lixo. Você não vale nada. É uma coisa que perturba a mente de todas as mulheres.

A Estudante 4 sente-se sensibilizada em narrar seu processo de transição capilar na busca de encontrar-se consigo mesma, consciente de estar sob uma padronização estética. Ao mesmo tempo, a graduanda desenvolve uma constante ambiguidade entre assumir seus cabelos de forma natural e as imposições da sociedade brasileira. A constante obsessão sobre os corpos negros reflete a necessidade de serem controlados para que se evidenciem menos suas negritudes e por consequência a falta de liberdade.

Pensar-praticar essa liberdade incentivadas pelo filme Kbela fez-nos refletir sobre a corporeidade enquanto conhecimento curricular necessário a ser desenvolvido e problematizado nos currículos da formação docente. De acordo com Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2011) , as tradições determinam o que é conceituado como currículo por meio dos discursos. Enquanto construção da realidade, o currículo “nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade e tudo isso produzindo sentidos” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41). Ao mesmo tempo, a égide do currículo é determinada pela interseção entre diferentes práticas discursivas reelaboradas constantemente. No entanto, apenas algumas dessas recriações curriculares tornam possíveis suas visibilidades no contexto educacional.

Quando o cinema negro é problematizado no contexto da formação de professores, temos a oportunidade de desenvolver fundamentações decoloniais a partir das relações que as narrativas fílmicas propõem. As licenciadas, em sua maioria negra, elaboraram primeiramente os conhecimentos suscitados por Kbela relacionando e reconhecendo os processos opressivos impostos às mulheres negras. Para além desse fato, as participantes conseguiram trazer para a discussão os conhecimentos construídos diuturnamente pelas mulheres negras e reconhecidos em suas existências.

Nesse sentido, como aprender com essas mulheres cineastas, blogueiras, Youtubers, outras novas formas de enunciar conhecimentos curriculares relacionados às corporeidades, estéticas e políticas para reconceituar as populações afro-brasileiras? Essa é uma das perguntas desencadeadas nesse processo de pesquisa.

Considerações finais

A decolonialidade enquanto teoria questionadora das formas de estruturação do conhecimento unívoco, também é uma referência para pensar outras relações dos saberes e novas formas de concepção do conhecimento pelas populações historicamente subalternizadas.

Para que esses conhecimentos se tornem mais presentes na trajetória das populações negras, é preciso efetivar novas práticas pedagógicas culminadas em experiências corpóreas, históricas estéticas desde a infância. Ao pensarmos no direito dos estudantes em adquirir os conhecimentos produzidos pelos africanos e afro-brasileiros, pouca atenção se tem dado a formação docente.

O desafio das escolas para cumprir as legislações determinadas pela Lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e alterada pela Lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008) nos currículos escolares deve começar pelos processos de formação de professores, pois assim as questões étnico-raciais terão maiores condições de se consolidar enquanto campo do conhecimento nos currículos e nas didáticas. Assim, a sala de aula será o espaço onde os futuros docentes terão as condições necessárias para lecionar fazendo diferentes relações com os conhecimentos produzidos por pensadores, cientistas e artistas afro-brasileiros e africanos.

Diante desse desafio, alguns questionamentos surgem. Como conceber uma formação docente em uma perspectiva decolonial? Quais os conhecimentos decoloniais podem fundamentar essa formação de maneira que o currículo dos cursos de licenciatura sejam ressignificados sem resultar em superficialidade tanto teórica quanto prática do fazer docente?

Algumas dessas interrogações podem encontrar respostas na forma como o coletivo de mulheres negras em Kbela produz o filme. Uma obra fílmica pensada e construída com e pelas mulheres negras traz em catarse as dores, trajetórias e perspectivas sensíveis e significativas para construção de imagens relacionadas à ancestralidade omitida. Por isso, a construção dessa imagética também possibilitou às estudantes se encontrarem consigo próprias. Dessa forma, uma das licenciandas foi tocada a falar sobre o seu processo de transição capilar, bem como das opressões ainda vivenciadas.

Nessa condição, intrínseca e necessária, a Pedagogia decolonial pensada-vivenciada através do cinema negro feminino na formação de professoras promoveu processos de produção do conhecimento entre as estudantes, o que posiciona essa cinematografia, parafraseando Gomes (2017) por uma pedagogia das relações políticas e sociais.

Quando uma das estudantes do curso de Pedagogia questiona a universidade para atentar-se às temáticas étnico-raciais, isso tem a ver com os conhecimentos produzidos pelas mulheres negras ainda ausentes na educação formal. Nesse sentido, quando professoras e professores tomam para si o conhecimento de sua ancestralidade, tem maiores condições de produzirem sua própria intelectualidade e ao mesmo tempo produzirem currículos indissociáveis entre o corpo e o pensamento.

Pela corporeidade, os conhecimentos em Kbela ficaram impressos nas licenciandas, que afetadas pelas imagens, pela sonoridade, pelas dores, se questionaram para também romperem com os estereótipos. Assim, elas puderam visibilizar, repensar e indicar novas fundamentações onde as diferentes estéticas das mulheres negras se instituem como conhecimentos curriculares e didáticos para cada uma delas e para suas futuras alunas das Séries iniciais e da Educação Infantil.

1Pesquisa produtividade financiada pela Universidade Estácio de Sá.

2Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que determina as Diretrizes e Bases da Educação Nacional e inclui nos currículos oficiais do ensino fundamental a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

3Em alguns planos, as atrizes não estão visíveis e por isso, as nomeamos com letras.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 02 de Agosto de 2020; Aceito: 29 de Outubro de 2020

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