SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37A representatividade racial na função de diretora nos Centros Municipais de Educação Infantil do município de Curitiba em 2016: um limite para a democracia?Notícias da pré-escola no Distrito Federal: apontamentos de Yvonne Jean (1960-1964) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 20-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75114 

Artigos

A formação de professores do ensino elementar segundo a Comissão dos quinze: forma escolar e os saberes para ensinar1

The teachers’ training to the elementary education according to the Committee of fifteen: school form and the knowledge for teaching

Jeremias Stein Rodriguês* 
http://orcid.org/0000-0002-7869-5856

David Antonio da Costa* 
http://orcid.org/0000-0003-4493-9207

*Address for correspondence: Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica. Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Email: jeremias.stein@ifsc.edu.br. Email: david.costa@ufsc.br


RESUMO

Ao fim do século XIX é proposto pela Comissão dos quinze uma reforma para o ensino elementar estadunidense, na qual se encontram também recomendações para a reestruturação da formação de professores naquele país. A partir da análise do relatório elaborado acerca deste tema, buscou-se caracterizar o modelo de forma escolar que se sobressai segundo a proposta, bem como identificar os saberes que deveriam servir de “ferramenta”, chamados aqui de saberes para ensinar, para os futuros professores norte-americanos. Deste modo, os conceitos de forma escolar (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001), saberes para ensinar (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017) e a objetivação de saberes se constituem como base teórica e metodológica neste trabalho. Por fim, foi possível observar que a proposta elaborada pela Comissão dos quinze para a formação de professores estabelece esta sobre dois eixos: teórica acadêmica e analítica prática. O primeiro eixo, ligado aos saberes das ciências, objeto do ensino, e dos saberes referentes aos processos pedagógicos, ao âmbito escolar e metodologias de ensino. Neste eixo são destacados saberes para ensinar já objetivados, adquiridos por estudos teóricos. O segundo eixo tem como foco a observação do “bom ensino” e da prática da docência, sendo em ambos momentos acompanhados pela orientação dos mais experientes. É possível inferir que tais saberes não poderiam ser transmitidos de outra forma, ressaltando assim um estágio ainda muito inicial de objetivação destes saberes.

Palavras-chave: Forma escolar; História da educação; Objetivação de saberes

ABSTRACT

At the end of the 19th century it is proposed by the Committee of fifteen a reform to the elementary education of the United States, in which it can be seen recommendations to the modification of the teachers’ training in that country. From the analysis of the report made about the topic, we sought to characterize the model of the school form that stands out according to the proposal, as well as to identify the knowledge that should serve as a “tool”, here called knowledge for teaching, for future North American teachers. This way, the concepts of school form (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001), knowledge for teaching (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017) and the objectification of knowledge constitute a theoretical and methodological basis in this work. Finally, it was possible to observe that the proposal elaborated by the Committee of fifteen for the teachers’ training establishes an education in two axes: theoretical academic and analytical practical. The first axis, linked to the knowledge of the sciences, that are the object of teaching, and the knowledge referring to pedagogical processes, the school environment and teaching methodologies. In this axis, knowledge for teaching already objectified, acquired by theoretical studies, are highlighted. The second axis focuses on the observation of “good teaching” and the practice of teaching, both being accompanied by guidance from the most experienced. It is possible to infer that such knowledge could not be transmitted in any other way, thus highlighting a still very early stage of objectifying this knowledge.

Keywords: School form; History of education; Knowledge objectification

Introdução

A busca pela reestruturação do ensino estadunidense no final do século XIX teve início pelo trabalho elaborado pela Comissão dos dez2, cujo objetivo foi apontar mudanças para o ensino elementar daquele país. Esta Comissão, criada pela Associação Nacional de Educação3 em julho de 1892, publica seu relatório em 1894, e um dos apontamentos, a partir do estudo feito, é de que a mudança do ensino secundário norte-americano só seria viável se houvesse, também, a reestruturação no ensino elementar (NEA, 1894). Esta percepção leva à constituição de uma outra comissão intitulada Comissão dos quinze4, no ano de 1893, com o objetivo de analisar e propor mudanças para o ensino elementar estadunidense. Dentre suas muitas contribuições, como a recomendação da inserção do ensino de Álgebra nos últimos dois anos do ensino elementar (RODRIGUÊS; COSTA, 2019), que também fora sugerido pela Comissão dos dez, parte do relatório produzido pela Comissão dos quinze foi dedicada à discussão acerca dos aspectos da formação dos professores da época. Nesse aspecto, entre os anos de 1890 e 1900, segundo Sharma (2005), houve uma grande demanda por novos professores no âmbito estadunidense, o que pode ser observado pelo aumento de quase 80 mil professores nas escolas públicas daquele país.

O relatório da Comissão dos quinze, dividido em três partes que foram elaboradas por três subcomissões, perpassa diversos temas relacionados ao ensino e educação, sendo eles: a correção de estudos, a formação de professores e a organização do sistema escolar, referentes ao relatório de cada subcomissão, respectivamente. Aqui, toma-se como foco o “Report of the sub-committee on the training of teachers” (TARBELL et al., 1895).

As iniciativas para a formação sistemática de professores nos Estados Unidos da América remontam às décadas de 1830 e 1840 e prosseguiram com a criação de escolas normais em quase todos os Estados. Lentamente, a princípio, e por volta da década de 1880, a formação de professores começou a ser integrada à educação superior, com a criação de departamentos, escolas ou faculdades de Educação nas universidades (VALDEMARIN, 2016, p. 57).

Uma vez que “Formar, como qualquer atividade humana, implica dispor de saberes para sua efetivação, para realizar esta tarefa, esse ofício específico” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 133), entende-se que a proposta estadunidense deve, de alguma maneira, estabelecer como deveriam se constituir os elementos da formação de professores, bem como, mesmo que implicitamente, os saberes considerados necessários para a atuação docente. A respeito de uma formação de professores, Valdemarin (2016, p. 59) aponta que teoria e prática do ensino “deveria abordar a educação como ciência e como arte, isto é, aplicar as leis do desenvolvimento mental na observação, no planejamento e no ensino de lições dos diferentes conteúdos ensinados na escola”. Tais perspectivas, de uma Ciência de ensinar e Arte de ensinar, estão presentes na proposta feita pela Comissão dos quinze.

Livros como o de White (1901), que teve seu título traduzido para “A Arte de ensinar” no Brasil (WHITE, 1911), permitem observar que as ideias postas em circulação pelo relatório da Comissão dos quinze continuam sendo relevantes no país e levam à elaboração de obras, discutindo o tema, de modo que as propostas feitas dialogam com os debates da época em relação à formação de professores. A obra indica, na sua versão original, que esta seria destinada para “professores, superintendentes, círculos de leitura para professores, escolas normais, aulas de formação, e outras pessoas interessadas no ensino correto dos jovens” (WHITE, 1901, p. 1, tradução dos autores). No entanto, o livro de White (1901) pouco indica as contribuições diretas da Comissão dos quinze acerca da Arte de ensinar. Todavia, o autor menciona algumas perspectivas desta Comissão, bem como da Comissão dos dez, a respeito de elementos que se constituem como parte da Arte de ensinar. Em relação a isso, é possível observar que não há trabalhos que se debrucem sobre as contribuições feitas pela Comissão dos quinze, em relação à formação de professores no final do século XIX e início do século XX, o que denota a relevância do trabalho aqui desenvolvido.

Para as análises pretendidas, foram mobilizados, principalmente, os conceitos de forma escolar e de saberes para ensinar. O primeiro, tendo como fundamentação central o trabalho de Vincent, Lahire e Thin (2001), permite compreender e desnaturalizar o funcionamento de uma configuração de ensino, localizada em uma sociedade, em um dado período histórico, a partir de elementos constituintes da forma adotada para a instrução escolar. Já o segundo conceito, apresentado por Hofstetter e Schnewly (2017), está associado aos saberes que embasam e estão atrelados à formação e ao exercício do ensino, ou seja, à profissão do professor. Estes saberes vão além daqueles encontrados explicitamente em livros de conteúdos ou metodologias, mas também saberes implícitos vinculados à formação e atuação do professor. Estes conceitos, bem como outros aspectos teóricos metodológicos, serão melhor explanados na próxima seção.

Deste modo, objetiva-se analisar as propostas da Comissão dos quinze acerca da formação de professores no final do século XIX, no âmbito estadunidense, tendo como foco os saberes relacionados à essa formação de professores. Assim, busca-se responder a seguinte questão: como se constituem a forma escolar e os saberes para ensinar na proposta estadunidense de formação de professores da Comissão dos quinze no final do século XIX? Para isso são mobilizados aportes teóricos referentes à forma escolar e aos saberes para ensinar sob a perspectiva de um estudo historiográfico.

A partir disso, este texto fica estruturado da seguinte maneira: primeiro serão abordados os aspectos teóricos metodológicos adotados; em seguida são discutidas as propostas da Comissão dos quinze, a qual dá ênfase a uma formação de professores com base na Arte de ensinar e na Ciência de ensinar; por fim, são apresentadas a considerações observadas no desenvolvimento do trabalho.

Referencial teórico metodológico

Segundo Certeau (2013) a historiografia decorre da combinação de um lugar social, das práticas científicas empregadas e de uma escrita. Assim, a elaboração de uma narrativa histórica se torna o objetivo da pesquisa e é através dela que se manifesta inteligível o passado sob a perspectiva do pesquisador que a elabora. É a partir dos embasamentos teóricos adotados que se questionam os documentos e será por meio da “[...] interrogação que se faz aos traços deixados pelo passado, que [os documentos] são conduzidos à posição de fontes de pesquisa” (VALENTE, 2007, p. 39, grifo dos autores).

Desta forma, com o objetivo de investigar as propostas realizadas pela Comissão dos quinze ao fim do século XIX, no âmbito estadunidense, para a formação de professores daquele país, as análises deste estudo perpassam tal instrução e as modificações para ela recomendadas. Nesse sentido, a estruturação e organização deste ensino, o local em que este deveria ser realizado e o modo como esta instrução ocorreria entre futuro professor, o responsável por sua formação e os saberes da profissão, permitem a abordagem do tema sob a ótica da forma escolar. Este conceito, por exemplo,

[...] indica que a atividade de aprender se modifica com o surgimento de lugares específicos para aprendizagem como, por exemplo, a escola. Antes do surgimento desses lugares o jovem aprendia no “ver-fazer” e “ouvir-fazer”, a partir do mimetismo, pautada em uma relação pessoal com a afetividade entre mestre e aluno (BARBARESCO; COSTA, 2019, p. 422, grifo dos autores).

Para Vincent, Lahire e Thin (2001, p. 9), abordar a forma escolar significa “pesquisar o que faz a unidade de uma configuração histórica particular, surgida em determinadas formações sociais, e certa época” e que a análise da emergência desta forma e do modo de socialização por ela concebidos, permite caracterizá-la. Assim, a forma escolar “desnaturaliza práticas escolares e as aproxima de uma configuração sócio-histórica associada a um projeto político e pedagógico, visto que, é uma preocupação de ordem pública que coordena o desenvolvimento das escolas” (BARBARESCO; COSTA, 2019, p. 422).

Barbaresco e Costa (2019, p. 422), com base em Vincent, Lahire e Thin (2001), apresentam também que, com o estabelecimento de forma escolar, é caracterizada “[...] uma nova relação entre mestre e aluno, denominada de relação pedagógica. Além disto, nos lugares específicos, nota-se a presença de um tempo específico”, ou seja, um tempo destinado para a aprendizagem e formação. Esses três elementos da forma escolar, lugar específico, tempo específico e relação pedagógica, uma vez que a proposta da Comissão dos quinze aponta, implicitamente, como estes elementos estariam presentes na formação de professores. Barbaresco e Costa (2019) ainda adicionam que

[...] a relação pedagógica passa a se organizar em espaços (lugar específico) e tempos (tempo específico) que vão se estruturar em torno do projeto político e pedagógico [...] Por este motivo, a educação do jovem, na perspectiva da forma escolar passa a ser vista como um empreendimento de ordem pública (BARBARESCO; COSTA, 2019, p. 423, grifo dos autores).

Desta maneira, de acordo com Barbaresco e Costa (2019), a forma escolar dita também sobre os objetos da aprendizagem e sobre o objetivo da formação, de modo que “a escolha dos saberes que devem ser transmitidos para gerações futuras não é deliberada, ela emana da relação entre objeto e objetivo” (BARBARESCO; COSTA, 2019, p. 424). Contudo, vale lembrar que a “emergência da forma escolar não acontece sem dificuldades, conflitos e lutas” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 10) uma vez que esta resulta de uma construção sócio-histórica. De acordo com Vincent, Lahire e Thin (2001), a forma escolar permite então “pensar a mudança”, o que possibilita compreender as reestruturações propostas para a formação de professores, segundo a Comissão dos quinze.

No que diz respeito aos saberes relacionados à formação pretendida, toma-se a perspectiva sócio-histórica de Hofstetter e Schneuwly (2017), ao afirmarem que às profissões do ensino e da formação estão relacionados dois saberes:

[...] nos parece possível definir dois tipos consecutivos de saberes referidos a essas profissões: os saberes a ensinar, ou seja, os saberes que são os objetos do seu trabalho; e os saberes para ensinar, em outros termos os saberes que são as ferramentas do seu trabalho (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 132, grifos dos autores).

Desta forma, sob a perspectiva dos autores, os saberes a ensinar são relacionados, por exemplo, com os conteúdos escolares ensinados em uma dada instituição, bem como saberes intrínsecos e não explicitados deste mesmo ensino. Por outro lado, os saberes para ensinar são “os saberes que são as ferramentas do seu trabalho” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 132). Em outros termos, são os saberes que se referem ao exercício da atuação docente, como, por exemplo, os saberes pedagógicos relacionados à formação do professor, ou ainda, saberes vinculados à prática docente, adquiridos primordialmente pela experiência em detrimento de estudos teóricos. Para os autores, é importante identificar esses saberes por estarem ligados ao fato de que “toda instituição de formação e de ensino se define pelos saberes a ensinar que a especificam” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 137). Não se debruçar sobre os

[...] saberes para ensinar teria ao mesmo tempo por consequência de considerá-los como não distintos dos saberes práticos e cotidianos e de negligenciar a formação especifica que os concerne, considerando-se os saberes gerais e disciplinares como suficientes (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 153).

Tais saberes devem ainda ter a “possibilidade de que sejam comunicáveis, transmissíveis, objetos e ferramentas a estarem presentes na formação de professores” (VALENTE, 2019, p. 9) de forma que assumem o status de objetivados, que, do ponto de vista de Bertini, Morais e Valente (2017), são saberes que resultam de um movimento:

Quando todos passam a “dizer da mesma coisa” (há um estabelecimento de consensos, por meio de sua circulação e apropriação [...]) dá-se a objetivação, isto é, ocorre uma naturalização do “objeto”. A legitimação da objetivação (por meio de publicações, cursos, seminários, congressos etc.) e a atuação direta da expertise profissional pode levar à institucionalização e normatização de novos saberes (BERTINI; MORAIS; VALENTE, 2017, p. 20).

Vincent, Lahire e Thin (2001) apontam que os saberes objetivados são saberes formalizados por meio de uma escrita e do status que foi conquistado, e que fazem parte da instrução. Segundo os autores, a objetivação de um saber advém de um processo que perpassa a “classificação, divisão, articulação, estabelecimento de relações, comparações, hierarquização etc” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 29). Segundo Valente (2019), o processo de objetivação de saberes requer tempo, uma vez que

situações de decantação, de estabilização, de consensos sobre determinados saberes que vão ganhando formas sistematizadas para se tornarem referência à formação de professores, em termos da constituição de matérias de ensino, de disciplinas escolares e científicas (VALENTE, 2019, p. 17, grifo do autor).

Na perspectiva de Valente (2019, p. 17), a existência de saberes objetivados leva, em contrapartida, a possível caracterização de saberes não objetivados, denominados pelo autor de saberes da ação, que seriam “evidenciados na prática pedagógica dos professores numa dada época histórica, transcritos sob formas diversas” (VALENTE, 2019, p. 17). Os saberes objetivados podem então ser compreendidos, por exemplo, “[...] como um conjunto de saberes que devem ser transmitidos e conquistaram um status social na/pela escrita” (BARBARESCO; COSTA, 2019, p. 424). Assim, o estudo teórico de saberes, geralmente atrelado a livros acadêmicos, está intimamente relacionado a uma aprendizagem tendo como base saberes que já possuem um dado nível de objetivação. Nesse sentido, Maciel (2019) aponta que

Das orientações, inicia-se um primeiro nível de objetivação desses saberes. E a partir desse primeiro nível, pode ser que outros níveis se sedimentem, e outras análises possam ser realizadas como forma de organizar as informações presentes nos manuais para que sejam analisadas e interpretadas, confluindo na sistematização a fim de captar elementos do saber profissional (MACIEL, 2019, p. 86).

A presença de saberes em um dado conjunto de impressos caracterizaria um nível avançado de objetivação, sendo que orientações acerca de saberes poderiam ser encaradas como um primeiro nível de objetivação. Desse modo, saberes objetivados remetem

[...] a realidades com o estatuto de representações […] dando lugar a enunciados proposicionais e sendo objeto de uma valorização social sancionada por uma atividade de transmissão-comunicação. Elas, essas representações, têm consequentemente uma existência distinta daqueles que as enunciam ou daqueles que delas se apropriam. São conserváveis, acumuláveis, apropriáveis (BARBIER, 1996, p. 9 apudHOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 131 — grifo do autor).

Barbaresco (2019, p. 58) reforça dizendo que a objetivação de saberes “é um caminho que conduz para a sua institucionalização. Esse processo não é um caminho natural, ele decorre da ação de pessoas sobre todas as etapas”. Como processo que leva à observação do movimento de objetivação, Bertini, Morais e Valente (2017, p. 21) apontam ainda que a inventariação de documentos pode enaltecer a presença dos saberes estabelecidos em uma determinada época, uma vez que seria por meio “da leitura e análise atenta desses documentos pode-se capturar métodos, didáticas, orientações pedagógicas que podem ser lidas como integrantes do movimento de constituição de saberes”. Com a forma escolar, tem-se o início da valorização da

[...] transmissão dos saberes pela escrita e altera-se o estado incorporado do saber para um estado de objetivação, atribuindo ao saber uma existência autônoma em relação ao sujeito. [...] a escrita vai permitir organizar e sistematizar os saberes, dando um “corpo”, por meio de classificação, divisão, articulação, estabelecimento de relações, comparações, hierarquização e etc. Esse trabalho de objetivação não se trata de um trabalho manual, mas é de natureza intelectual; portanto, interpretamos que a forma escolar impulsiona uma valorização do trabalho intelectual sobre o trabalho manual (BARBARESCO, 2019, p. 44, grifos do autor).

A formação de professores na perspectiva da Comissão dos quinze

Segundo a Comissão dos quinze, a ideia de que se “nasce” professor ao invés de formar o professor “tem sido um pensamento amplamente aceito até o presente século que um estudo de temas sem nenhum estudo de princípios ou métodos de ensino era considerado bastante suficiente” (TARBELL et al., 1895, p. 209, tradução dos autores). Contudo, na perspectiva da Comissão, implicitamente, a docência exigia muito mais do que apenas um “dom”, sendo necessário um conjunto de saberes específicos para se exercer a função com maestria. Nesse sentido, a subcomissão responsável pelo relatório acerca da formação de professores apresenta o consenso de que “professores do ensino primário deveriam ter o ensino secundário, e que professores do ensino secundário deveriam ter o ensino superior” (TARBELL et al., 1895, p. 209, tradução dos autores).

Existiam variações significantes na natureza geral dos cursos de estudo (currículos) delineados para a preparação de professores do ensino elementar [...]. Os cursos de estudo para os possíveis professores variava de dois a quatro anos. Estes cursos consistiam de “revisões” de temas da escola elementar, “ramos superiores” [...] e assuntos pedagógicos (SHARMA, 2005, p. 39, tradução dos autores).

Ao fim do século XIX, entendia-se, então, que o professor deveria possuir conhecimentos e saberes que fossem além daqueles que fizessem parte do seu trabalho docente na sala de aula. O pensamento da Comissão era de que

[...] estes são requisitos mínimos que podem ser aceitos de forma geral, que o conhecimento, cultura, e poder adquiridos pelos quatro anos de estudo a mais em relação aos estudantes não são muito a ser legitimamente exigido, e que como regra ninguém deveria se tornar professor sem ter a idade e as realizações pressupostas [...] (TARBELL et al., 1895, p. 209-210, tradução dos autores).

A Comissão ainda destaca que, mesmo não possuindo um ensino secundário homogêneo no país, serviriam como requisitos para o ingresso no curso de formação de professores a verificação de que a escola secundária, onde o candidato havia estudado, possuía boa reputação e a cobrança do diploma. Caso estas condições não fossem satisfeitas, uma análise mais aprofundada poderia ser realizada. De forma reduzida,

[...] pode ser dito que o candidato para admissão em uma escola normal ou uma escola de formação5 deveria ter dezoito anos e deveria ter estudado Inglês, matemática, e ciências na medida em que geralmente são ensinados no ensino secundário, deveria ser capaz de escrever prontamente, corretamente, e metodicamente sobre tópicos dentro do alcance necessário do pensamento e conversação de um professor, e deveria ter estudado por dois ou mais anos, ao menos uma língua além do Inglês. Habilidades em música e desenho são desejáveis, particularmente a habilidade para desenhar prontamente e de forma eficaz (TARBELL et al., 1895, p. 210, tradução dos autores).

Nesse sentido, é possível perceber que a Comissão aponta elementos de uma forma escolar vinculada à formação de professores, ou seja, esta instrução deveria ocorrer em escolas apropriadas – escolas normais ou escolas de formação – que seriam um lugar específico para a instrução dos futuros professores. Segundo o relatório da subcomissão, a instrução de professores poderia ser realizada em escolas normais, classes normais6 na academia e nas escolas do ensino secundário, e em escolas de formação das cidades. A Comissão ainda estipula que

Aqueles instruídos nessas escolas serão chamados de estudantes enquanto realizam o ensino profissional, e estudantes-professores ou professores em formação enquanto realizam a prática do ensino preparatório para graduação. Professores que serão observados por estudantes-professores serão chamados de professores-modelo; professores responsáveis por estudantes-professores durante suas práticas serão chamados de professores-críticos (TARBELL et al., 1895, p. 210 — 211, tradução dos autores).

Outra característica da forma escolar seria a presença de um tempo específico para a oferta deste ensino, após os dezoito anos. Além disso, a exigência de saberes específicos denota ainda que o tempo desta formação profissional deveria ser posterior a um outro, nomeado instrução básica.

A subcomissão destaca que a formação para docência deveria assumir duas perspectivas: profissional e acadêmica. Nesse sentido, a formação acadêmica deveria ser realizada na academia, ou no ensino secundário, e a formação profissional realizada após estudos acadêmicos. E antes, ou durante, a prática do ensino ocorreria como forma de preparação. Estas duas formações apontam inicialmente que o exercício da profissão docente, segundo o relatório, estaria ligado a dois tipos de saberes, os das ciências, advindos da formação acadêmica, e os profissionais, adquiridos através da prática e, também, de estudos sobre as teorias da pedagogia. Assim, o relatório aponta que:

Como estudar é um conhecimento indispensável para saber como ensinar. O método de ensino pode ser melhor ilustrado pelo ensino. A atitude de um estudante na escola de formação deve ser o de um aprendiz [...], que encara o grande mundo do conhecimento com o propósito de examinar parte dele. [...] a questão de quais estudos prosseguir e especialmente a controvérsia entre a formação profissional e acadêmica será, sobretudo, resolvida (TARBELL et al., 1895, p. 212, tradução dos autores).

É possível perceber o surgimento dos primeiros indícios de uma relação pedagógica na instrução de professores, elemento referente à forma escolar e que ainda não podia ser percebido no relatório da subcomissão. Isto é, destaca-se uma aprendizagem da docência por uma formação profissional adquirida através de dois segmentos: teoria e prática, talvez sendo possível observar distintas relações pedagógicas nas propostas da Comissão.

Como a Comissão dos quinze tinha como foco a reestruturação do ensino elementar estadunidense, o relatório é centralizado na discussão acerca da formação profissional, uma vez que a acadêmica deveria fazer parte de estudos sobre a escola secundária, normal ou o ensino superior. Sob o viés do relatório, esta formação seria composta por dois eixos, a “Ciência de ensinar” e a “Arte de ensinar”. De acordo com Cruikshank (1993), talvez tenha sido a obra “Theory and Practice of Teaching”, de David Page, publicada em 1847, que primeiro reconheceu a possibilidade de uma Ciência de ensinar, sendo que o autor defendia que esta ciência não deveria ser separada da Arte de ensinar. A divisão proposta pela Comissão para a instrução do professor poderia então ser compreendida como um eixo de formação a partir da teoria, dos saberes vinculados à Psicologia e Metodologia, por exemplo, e outro de formação prática, principalmente adquirida através da observação e da efetiva atuação docente. A proposta da Comissão é de que seria suficiente a alocação de um ano para estudos teóricos e um ano de prática para os futuros professores. Na Figura 1 é realizado um esboço de como a Comissão caracteriza a formação profissional.

FONTE: elaborado pelos autores a partir de (TARBELL et al., 1895, p. 212).

FIGURA 1 CARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL SEGUNDO A COMISSÃO DOS QUINZE. 

Conforme o relatório, a existência e importância de tais aspectos, vinculados à Ciência de ensinar e à Arte de ensinar, seriam comumente reconhecidas. Nesse sentido, Sharma (2005, p. 39-40, tradução e grifo dos autores) aponta que “psicologia, história da educação, economia e gestão escolar, um ou mais métodos especiais, princípios do ensino [Ciência e Arte de ensinar], e prática do ensino e/ou observação” seriam os assuntos centrais do ensino pedagógico das escolas normais estadunidenses de 1890. As opiniões poderiam variar quanto à importância ou ordem de cada elemento, assim como ao tempo determinado para cada um deles na formação do futuro professor. “O maior número [de pessoas], contudo, defende uma divisão de tempo aproximadamente igual entre teoria e prática” (TARBELL et al., 1895, p. 213, grifo e tradução dos autores). A Comissão continua:

[...] não menos do que metade do tempo gasto na formação do estudantes-professor deveria ser dedicado para observação e prática, e que esta prática deveria ser tão similar quanto possível, em suas condições, ao trabalho que ela7, mais tarde, será requisitada a realizar de forma independente (TARBELL et al., 1895, p. 213, tradução dos autores).

Assim, teoria, observação e prática estabelecem também um tempo específico na instrução de professores, sendo parte deste tempo destinado aos estudos teóricos e outra para a observação e prática.

A Ciência de ensinar e a Arte de ensinar

Ainda no início da sua formação, os futuros professores deveriam ter contato com fatos conhecidos da Psicologia e princípios essenciais da educação, fazendo, mais tarde, “seus estudos e prática à luz desses princípios” (TARBELL et al., 1895, p. 214, tradução dos autores). Assim, esses princípios “se tornam, então, a norma do pensamento educacional, e sua verdade é continuamente demonstrada pela experiência subsequente. A partir deste momento teoria e prática deveriam prosseguir juntas em mútua ajuda e suporte (TARBELL et al., 1895, p. 214, tradução dos autores).

Deste modo, por mais que a subcomissão não aponte uma ordem específica para os eixos da Ciência de ensinar e da Arte de ensinar, é possível perceber uma perspectiva da prática em função da teoria. Os saberes teóricos vinculados à atividade pedagógica se constituiriam como parte dos saberes da profissão docente e auxiliariam um segundo conjunto de saberes, os da prática profissional. Nesse sentido, a Psicologia deveria se fazer presente no início e fim da formação de professores. Assim, a metodologia de estudo deveria ser dedutiva e indutiva, de forma que “O hábito de pensar analiticamente e psicologicamente deveria ser formado em cada professor” (TARBELL et al., 1895, p. 214, tradução dos autores), bem como a tendência para a investigação deveria ser encorajada ou criada.

A “criança”, ou o estudante, também veio a receber destaque no relatório da subcomissão. Deveria fazer parte da formação do professor o estudo sobre a criança8, uma vez que “O pensamento educacional moderno enfatiza a opinião de que a criança, não o tema de estudo, é o guia para os esforços do professor” (TARBELL et al., 1895, p. 214, tradução dos autores). Nessa perspectiva, o professor deveria observar se o estudante possuía capacidades fracas ou dormentes, seus gostos, se seu aprendizado era visual ou auditivo etc. Ainda assim, a subcomissão destaca que “a criança deve ser estudada como uma individualidade e não como um objeto para ser pesado ou analisado” (TARBELL et al., 1895, p. 215, tradução dos autores). A subcomissão aponta, então, para um ensino em que se considerassem as diversas subjetividades do estudante, uma vez que estas apontariam o “norte” para o desenvolvimento das ações do docente para a aprendizagem.

Deste modo deveria também fazer parte da formação do professor o estudo dos efeitos, morais e mentais, de diferentes métodos de ensino e de avaliação, assim como o valor do ensino dado em turmas, ou de maneira individual, em diferentes momentos da instrução escolar e o estudo de diferentes modelos de ensino.

As leis da psicologia, ou as capacidades e métodos da atividade mental, são elas mesmas as leis fundamentais do ensino, que é o ato de excitar atividade mental normal e proveitosa. Além dessas leis fundamentais, os princípios da educação devem ser derivados indutivamente. Essas induções, quando colocadas a teste, serão observadas como sendo inferências racionais das leis psicológicas e, assim, fundadas sobre e explicadas por elas (TARBELL et al., 1895, p. 215, tradução dos autores).

A Economia Escolar viria a subsidiar estas perspectivas, uma vez que permitiria ao futuro professor entender o funcionamento, administração, organização e as condições do trabalho escolar. De acordo com a Comissão (TARBELL et al., 1895, p. 216), esta formação seria de maior importância para o professor do ensino secundário, sendo que apenas aspectos fundamentais deveriam ser ensinados nas escolas de formação comuns. Também vinculado a isto, a História da Educação teria como foco a “Amplitude da mente” o que consistiria na “habilidade de ver fatos e opiniões a partir do ponto de vista dos outros” (TARBELL et al., 1895, p. 216, tradução dos autores). Segundo o relatório, o interesse nas visões e nas experiências daqueles comprometidos com a formação dos jovens, “nos possibilita ir mais a fundo em seus pensamentos e propósitos do que conseguiríamos naqueles de um guerreiro ou de um líder” (TARBELL et al., 1895, p. 216, tradução dos autores).

Podemos, a partir do seu estudo, responder de melhor maneira a questão O que é educação, o que ela pode conquistar, e como podem seus ideais serem realizados? Dá a evolução do presente e explica anomalias em nosso trabalho. E ainda assim a história da educação não é um tema que deva ser tratado de forma extensiva na de escola de formação (TARBELL et al., 1895, p. 216 – 217, tradução dos autores).

Sob esta perspectiva a História da Educação, na formação de professores da época, buscaria tornar possível compreender a educação e o processo de ensino, através de suas constantes mudanças e evoluções. Implicitamente, a subcomissão indica que compreender parte da História da Educação muniria o professor com ferramentas que os outros eixos da Ciência de ensinar talvez não possibilitassem, complementando assim sua instrução.

A proposta da Comissão dos quinze indica então que, na formação de professores, sob o eixo da Ciência de ensinar, os saberes para ensinar estariam associados aos saberes teóricos vinculados às diversas áreas que permitissem, ao futuro professor, deter uma gama de conhecimentos de forma que ele fosse apto a desenvolver suas funções dentro e fora da sala de aula, ou seja, na sua prática. Assim, a psicologia, metodologia e organização escolar, junto da história do sistema escolar e do ensino, unem-se em uma formação teórica que tem como objetivo servir de base para o desenvolvimento da prática docente. A respeito de tais saberes, associados a estudos teóricos acadêmicos, pode-se assumir um maior nível de objetivação (MACIEL, 2019), uma vez que estes saberes não apenas estão atrelados a conhecimentos já estabelecidos, mas também presentes em livros e manuais pedagógicos. Aqui, o futuro professor faz parte de uma relação pedagógica mais tradicional, de professor-aluno, sendo que este assume o papel daquele que deve ser inculcado com os saberes teóricos da profissão.

No que diz respeito à Arte de ensinar, a subcomissão começa ressaltando que para a apropriada formação nesse eixo seriam necessários dois elementos importantes, as escolas de observação e as escolas de prática. Esses deveriam ser considerados como dois elementos uma vez esses locais deveriam ser separados tanto em propósito, quanto em organização. Em um relatório acerca dos métodos de instrução e estrutura do ensino de escolas normais estadunidenses (GRAY; BOYDEN; ROUNDS, 1889) é possível observar, a partir do questionário aplicado, que a perspectiva de escolas de prática, ou “escolas modelo”, já existia e nestas seria desenvolvido o exercício da prática e observação do professor em formação. Isto ressalta que a proposta da Comissão dos quinze busca inovar ao propor que estes dois eixos de formação ocorressem em lugares distintos. A proposta de uma forma escolar é reelaborada pela Comissão dos quinze, uma vez que a instrução do futuro professor deveria ocorrer não só nas escolas de formação, mas também em escolas de observação e escolas de prática. Assim, por mais que esta instrução devesse ocorrer em três lugares, aparentemente distintos, a subcomissão aponta para a constituição de um lugar específico para o ensino de professores. Este lugar estaria vinculado a três eixos da formação deste profissional, a teoria, a observação e a prática, talvez sendo possível perceber diferentes relações pedagógicas para cada um destes.

Na observação, os professores em formação deveriam ter a oportunidade de constatar os melhores modelos da Arte de ensinar, ou seja, aqueles considerados professores modelo. Segundo o relatório de Gray, Boyden e Rounds (1889), muitas escolas normais apontaram a

[..] utilidade duvidosa deste trabalho [observação], mas indicam que sob as atuais condições não poderiam fazer melhor. As respostas frequentemente sugerem o pequeno valor que seria obtido pelo trabalhador não qualificado ao meramente estar presente onde o trabalho especializado ocorre, a menos que este observador tenha o treinamento preliminar na teoria necessária para o habilitar para saber o que procurar, e reconhecer isto quando o ver (GRAY; BOYDEN; ROUNDS, 1889, p. 575, tradução e grifo dos autores).

Sendo assim, na perspectiva da Comissão dos quinze, a observação de bons modelos possibilitaria, aos futuros professores, a discussão a partir das descrições do que fora observado, apresentando quais “leis” do ensino poderiam ser constatadas. Um segundo professor, o “professor de métodos”, deveria agir como orientador, questionando seus estudantes ao que pudesse ter fugido da atenção. Após realizar diversas observações, com variados professores e em diversas áreas, ou conteúdos, os futuros professores poderiam realizar discussões mais amplas, como a organização da sala de aula, programa escolar, métodos de disciplina, relação professor-aluno, etc. Desta forma, uma relação pedagógica, vinculada à observação, surge na proposta da subcomissão. Esta relação se dá pelo exame e reflexão da prática de professores considerados exemplares e, na discussão do que fosse observado com um outro professor que tornaria possível o acesso a saberes ligados ao ambiente escolar, à prática docente e aos métodos de ensino. O futuro professor deixa de ser apenas inculcado pelos saberes da profissão docente e assume posicionamento analítico, no qual faz uso dos saberes teóricos já adquiridos. Nesta perspectiva White (1901) indica que

É cada vez mais claro que o que é preciso para obter maior sucesso no ensino não é cópia de métodos padrão, mas a clara compreensão dos professores dos princípios fundamentais da sua arte, e uma aplicação mais inteligente e consciente destes princípios orientadores (WHITE, 1901, p. 4, tradução dos autores).

Contudo, durante este período os professores em formação não deveriam participar de qualquer trabalho na escola ou causar qualquer mudança nesta. Tal atividade deveria ser realizada antes da atividade de ensino e deveria se tornar um exercício comum durante o período de prática do ensino. Nesse sentido, para a Comissão dos quinze, “Se um artista necessita da ajuda sugestiva de um bom exemplo que mexe com sua própria originalidade, por que não deveria um professor?” (TARBELL et al., 1895, p. 218, tradução dos autores).

Quanto à prática do ensino, a preparação de uma aula é um elemento ressaltado no relatório da Comissão dos quinze. Práticas como a confecção de planejamento de aulas e o ato de ministrar estas para colegas em formação, ajudaria o iniciante em aspectos gerais relativos à sala de aula, seu funcionamento, o preparo da aula, os temas ensinados, os alunos etc. A ser realizada em um outro espaço, do que o da observação, a prática deveria ter um período considerável para o exercício do trabalho apenas com o professor em formação e com alunos, para melhor se assemelhar com as condições normais da sala de aula. Esta perspectiva corrobora com o apresentado no relatório de Gray, Boyden e Rounds (1889), uma vez que o melhor trabalho como professor só seria alcançado se o professor em formação não se visse como “estudante”, uma vez que isto “o desqualifica para exercer a liberdade individual de julgamento e autorresponsabilidade nas escolhas necessárias para o real professor” (GRAY; BOYDEN; ROUNDS, 1889, p. 576, tradução dos autores).

Os futuros professores ainda teriam a “oportunidade de buscar conselhos com um crítico amigável” o que, segundo a Comissão, “é a mais valiosa prática” (TARBELL et al., 1895, p. 219, tradução dos autores). Ainda, de acordo com a mesma, tais atividades também deveriam ter um fim, uma vez que a repetição de algumas práticas poderia levar a vícios deslocados da realidade escolar. O professor-crítico deveria se encarregar de observar dois professores em formação, cada um comandando uma sala de aula. Este crítico não precisaria fazer uso dos mesmos métodos do professor de metodologia, podendo assim assumir perspectivas próprias quanto a procedimentos e práticas, uma vez que

Nenhum dano viria aos professores em formação se eles aprenderem que princípios devem ser consentidos por todos, mas que métodos podem carregar a marca da personalidade do professor; que todas as coisas devem ser consideradas pelo ponto de vista do seu efeito sobre os estudantes; o crítico mantendo as reivindicações das crianças, o professor de métodos em conformidade com as leis da mente e a ciência dos temas ensinados (TARBELL et al., 1895, p. 219, tradução dos autores).

Ao fim do dia, o professor-crítico deveria encontrar os professores em formação sob seus cuidados para que estes pudessem relatar as experiências do dia, abordando suas propostas e suas dificuldades, buscando conselhos e a experiência. Conforme o relatório da subcomissão, a avaliação do sucesso na prática do ensino dos futuros professores deveria ser feita através da busca pela resposta das seguintes perguntas

Seus estudantes crescem mais honestos, diligentes, educados? Eles admiram sua professora? Ela garante a obediência e diligência apenas quando exige, ou ela tem a influência que vai além da sua presença? Seus estudantes pensam bem e falam bem? Quanto a própria professora: Ela tem simpatia e tato, autoconfiança e originalidade, amplitude e intensidade? Ela é sistemática, direta, e profissional? Ela é cortês, arrumada pessoalmente e no trabalho? Ela tem discernimento de caráter e um padrão justo de exigência e realização? (TARBELL et al., 1895, p. 222, tradução dos autores).

Assim, no que tange à prática na formação de professores, a Comissão dos quinze aponta uma segunda relação pedagógica, obtida pela atuação em sala de aula e pela orientação com um professor-crítico, que talvez devesse assumir papel semelhante ao do professor de métodos, mas que sua atuação está vinculada à prática e não à observação. Esta relação se baseia na experiência, seja do futuro professor ao fim de cada dia de prática, ou do crítico, que faz uso do seu conhecimento adquirido para contribuir com a formação daqueles que estão sob seus cuidados. Na atuação prática o sujeito assume, ao mesmo tempo, o papel de professor e estudante, uma vez que ministra aulas que são, posteriormente, submetidas ao exame de alguém mais experiente.

Quanto aos saberes para ensinar é possível notar, na Arte de ensinar, a predominância da aquisição de saberes pela experiência e na prática. A observação do “bom ensino” e o exercício da docência, associado à posterior crítica, denotam que os estudos teóricos, isoladamente, não seriam suficientes para a formação desejada para o futuro professor. É necessário apontar, contudo, que os saberes que advêm do exercício da observação e da prática, principalmente por estarem associados à orientação de um professor de métodos e a outro crítico, respectivamente, seriam saberes que não estariam objetivados, em livros ou revistas, e só poderiam então ser adquiridos por estes exercícios que envolvem a experiência. Na perspectiva de Valente (2019) e Maciel (2019), estes saberes, nesse período, deviam assumir o status de saberes da ação, não objetivados, mas o movimento estabelecido pela Comissão dos quinze, ao propor esta estrutura para a formação de professores, se constituiria como parte de um movimento de objetivação dos saberes para ensinar, já propostos pela própria Comissão. Este movimento pode ter iniciado com um modelo de formação semelhante que havia sido aplicado no país, como se pode observar no relatório de pesquisa de Paul H. Mattingly (1972, p. 135, tradução dos autores), no qual é apontado que o Instituto Normal, na metade do século XIX, teria como foco o “aperfeiçoamento das habilidades de ensino” através da “instrução centrada em aulas, observação de professores experientes, e experiência prática dos aspirantes a professores”.

Considerações

A formação de professores apresentada pela Comissão dos quinze, em seu relatório, traz alguns elementos que já poderiam ser observados em escolas normais da época (SHARMA, 2005; GRAY; BOYDEN; ROUNDS, 1889). Contudo, a proposta da Comissão, e o esforço para desenvolvê-la, ressaltam a necessidade de uma estruturação e sistematização de tal modelo de formação, no âmbito estadunidense do final do século XIX. A descrição minuciosa dos elementos que constituiriam a Ciência de ensinar e a Arte de ensinar também corrobora nesse aspecto, uma vez que buscaria delimitar e homogeneizar estes aspectos na formação do futuro professor.

É possível observar, nas propostas elaboradas pela Comissão dos quinze, a instituição de uma forma escolar diferenciada para a formação de professores no final do século XIX. Esta formação tomaria como lugar específico três espaços, as escolas de formação, as escolas de observação e as escolas de prática, vinculadas a três aspectos de formação, teórica, analítica e prática, respectivamente. Cada um destes elementos se constituía como complemento para a formação que era oferecida nos outros, de forma que se buscava uma formação integral do futuro professor. Além disso, duas características seriam estabelecidas quanto ao tempo específico para a formação de professores, sendo a primeira a idade mínima de 18 anos e que o tempo da formação deveria ser divido em duas partes iguais, uma para a teoria e a outra para a prática/observação.

A teoria, observação e prática estabelecem ainda o último elemento relacionado à forma escolar, a relação pedagógica. Os estudos teóricos, sejam na formação acadêmica ou profissional, consolidam uma relação de ensino professor-aluno em que o futuro professor é que toma o papel de ser inculcado pelos saberes dessa instrução. Já a observação permite que este sujeito tome uma postura analítica, na qual faz uso dos saberes teóricos adquiridos para examinar e refletir sobre a prática docente de outros, de modo que se observa uma relação orientador-pesquisador, sendo o orientador o professor de métodos. Por fim, a prática estabelece uma nova relação, na qual os saberes vinculados à teoria e observação são empregados e de modo que o professor em formação permeie a função daquele que ensina e que também aprende, ou que é avaliado por um crítico. Deste modo, a relação pedagógica apontada pela Comissão dos quinze na formação de professores não é única, sendo que cada momento atribui uma nova relação entre o futuro professor e aqueles que são responsáveis pela sua instrução, principalmente quando se observa as diferentes nomenclaturas utilizadas para o processo de formação proposto, como estudantes, estudantes-professores ou professores em formação; ou professores-modelo; professor de métodos, professor-crítico.

Os saberes para ensinar que podem ser observados na proposta estadunidense para a instrução de professores no final do século XIX se dividem em duas classes: os saberes teóricos acadêmicos que já estariam melhor sedimentados e, assim, possuiriam um maior nível de objetivação devido à sua presença em livros texto ou revistas pedagógicas; os saberes adquiridos pela observação e prática, ou seja, internalizados pelas experiências vividas no ambiente escolar e pela orientação dos mais experientes na profissão docente, saberes então que não poderiam ser inculcados de outra forma, indicando que estes possivelmente não seriam encontrados em outras formas ou objetos de aprendizagem. A segunda classe de saberes, devido às características particulares dos seus elementos e do processo de sua aprendizagem, poderia ser considerada como saberes da ação docente – ainda não objetivados – mas que faria parte em um processo inicial de objetivação, estabelecido pela própria Comissão dos quinze ao elaborar um plano para uma formação de professores nestes moldes.

Cabe ressaltar que não fez parte do escopo desse trabalho averiguar se, ou como, a proposta da Comissão foi adotada, mas que esta buscava padronizar e sistematizar a formação de professores estadunidense. No entanto, segundo Valdemarin (2016, p. 60), alguns anos depois “faziam parte da estrutura do Teachers College9 duas escolas de observação e prática de ensino, entendidas como laboratório de estudo e pesquisa”, o que mostra que as discussões da Comissão dos quinze foram relevantes para aquele país. Enquanto isso, a tradução do livro de White (1911), mostra a necessidade da disseminação das discussões acerca da Arte de ensinar – desenvolvidas nos Estados Unidos – para a formação do professor no âmbito brasileiro.

1O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior (UNIEDU/FUMDES) Pós-Graduação vinculado à Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina.

2Nomeada desta forma por ser formada por dez membros, sendo eles: Charles William Eliot (presidente da Comissão), William Torrey Harris, James Burrill Angell, John Tetlow, James Monroe Taylor, Oscar David Robinson, James Hutchins Baker, Richard Henry Jesse, James Cameron Mackenzie e Henry Churchill King.

3National Education Association – NEA, em inglês.

4Nomeada desta forma por ser formada por quinze membros, sendo eles: William Henry Maxwell, William Torrey Harris, Horace Sumer Tarbell, Edward Brooks, Thomas Meinhard Balliet, Newton Charles Dougherty, Oscar Henry Cooper, Charles B. Gilbert, James Mickelborough Greenwood, Lewis Henry Jones, William Bramwell Powell, Edwin Pliny Seaver, Albert Grannis Lane, Andrew Sloan Draper e Addison Brown Poland. A relevância do trabalho elaborado pelas duas comissões fica estabelecida pelo vínculo destas com a NEA, uma vez que esta associação nacional aponta a importância dos estudos ao solicitar que estes fossem realizados, bem como pelas discussões posteriores sucedem os resultados apresentados nos relatórios.

5Também poderia ser traduzido como “escola de treinamento”, mas como foi adotado o termo “training teachers” como “formação de professores”, termo usado até hoje, optou-se por essa tradução.

6Aqui o termo “normais” se refere ao ensino normal, ou seja, um ensino voltado para a formação de professores. Deste modo, uma classe normal visava à formação de professores em instituições que não eram classificadas como escolas normais, de modo que o tempo de formação e currículo poderia variar nas duas.

7Vale ressaltar que por muito tempo a função de ensinar era atribuída às mulheres. Por vezes se defende que isto se dava devido à busca de inserção de mulheres no mercado de trabalho, à associação professora/função materna e aos baixos salários. Assim, em diversos momentos dos relatórios, da Comissão dos quinze, quando é dado um gênero ao professor, este é feminino.

8Os “child studies”, campo de estudos disseminado na época.

9Instituição estadunidense direcionada para a formação de professores que, posteriormente, foi incorporada a Universidade de Columbia.

REFERÊNCIAS

BERTINI, Luciane de Fatima; MORAIS, Rosilda dos Santos; VALENTE, Wagner Rodrigues. A Matemática a ensinar e a Matemática para ensinar: novos estudos sobre a formação de professores. São Paulo: Livraria da Física, 2017. [ Links ]

BARBARESCO, Cleber Schaefer. Saberes a ensinar aritmética na Escola de Aprendizes Artífices (1909-1937) lidos nos documentos normativos e livros didáticos. 2019. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) — Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, Florianópolis, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/194962. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

BARBARESCO, Cleber Schaefer; COSTA, David Antonio da. Lugar, tempo, relação pedagógica: a Escola de Aprendizes Artífices na perspectiva da Forma Escolar. Interfaces da Educação, Paranaíba, v. 10, n. 30, p. 417-444, 2019. [ Links ]

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. [ Links ]

CRUIKSHANK, Kathleen Anne. The rise and fall of American Herbartianism: Dynamics of an educational reform movement. 1993. Thesis (Doctorate in Philosophy) — University of Wisconsin, Madison, Wisconsin, 1993. [ Links ]

GRAY, Thomas J.; BOYDEN, Albert G.; ROUNDS, Charles C. Report of the “chicago committee” on methods of instruction, and courses of study in normal schools. In: NEA. New York: Addresses and Proceedings, 1889. [ Links ]

HOFSTETTER, Rita; SCHNEUWLY, Bernard. Saberes: um tema central para as profissões do ensino e da formação. In: HOFSTETTER, Rita; VALENTE, Wagner Rodrigues (org.). Saberes em (trans)formação: tema central da formação de professores. São Paulo: Livraria da Física, 2017. p. 113 – 172. [ Links ]

MACIEL, Viviane Barros. Elementos do saber profissional do professor que ensina matemática: uma aritmética para ensinar nos manuais pedagógicos (1880 — 1920). 2019. Tese (Doutorado em Ciências) — Universidade Federal de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, São Paulo, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/199390. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

MATTINGLY, Paul H. The Origins of Professional Schoolmen, 1820-1900. Washington: National Acadtmy of Sciencgs, National Research Council, 1972. [ Links ]

NEA. Report of the committee of ten on secondary school studies. NewYork: American Book Company, 1894. Disponível em: https://archive.org/details/reportofcomtens00natirich/page/n5. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

RODRIGUÊS, Jeremias Stein; COSTA, David Antonio da. A Comissão dos Quinze e os Primeiros Movimentos Acerca do Ensino da Álgebra na Escola Primária Brasileira. Acta Scientiae, Porto Alegre, v. 21, n. 6, p. 150-172, 2019. Disponível em: http://www.periodicos.ulbra.br/index.php/acta/article/viewFile/5450. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

SHARMA, Tara Chand. Teaching Learning Theory and Teachers Education. Nova Delhi: Sarup & Sons, 2005. [ Links ]

TARBELL, Horace S. et al. Report of the Sub-Committee On the training of teachers. Educational Review, Nova York, v. 9, p. 209-229, 1895. Disponível em: https://archive.org/details/educationalrevie09newyuoft/page/n8/mode/2up. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

VALDEMARIN, Vera Teresa. Modelos para a formação de professores nas páginas do Teachers College Record (1900-1921). História da Educação, Santa Maria, v. 20, n. 48, p. 55-73, 2016. [ Links ]

VALENTE, Wagner Rodrigues. Saber objetivado e formação de professores: Reflexões pedagógico-epistemológicas. História da Educação, Santa Maria, v. 23, p. 1 — 22, 2019. [ Links ]

VALENTE, Wagner Rodrigues. História da Educação Matemática: interrogações metodológicas. REVEMAT, Florianópolis, v. 2, n. 2, p. 28-49, 2007. [ Links ]

VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 7- 47, 2001. [ Links ]

WHITE, Emerson E. The art of teaching. Nova York: American Book Company, 1901. Disponível em: https://archive.org/details/artofteachingma00whit. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

WHITE, Emerson E. A arte de ensinar. Traduzido por Carlos Escobar. São Paulo: Siqueira, Nagel & Comp., 1911. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/193957. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

Recebido: 09 de Julho de 2020; Aceito: 25 de Abril de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado