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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 11-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.81286 

ARTIGO

“Qualidade da educação”: o nascimento de um conceito ambíguo

“Quality of education”: the birth of an ambiguous concept

*Universidade Federal de Sergipe. Professor voluntário na Pós-Graduação em Educação. São Cristóvão, Sergipe, Brasil. Professor Emérito da Universidade de Paris 8.


RESUMO

O artigo traz o interesse pelo nascimento do conceito de “qualidade da educação” e seu contexto internacional. É mostrado que o conceito nasceu a partir das reflexões sobre a reforma do ensino de Matemática e de Ciências nas décadas de 60, 70 e 80 do século XX, nos Estados Unidos e na Europa, e difundiu-se nos anos 80 e 90 do mesmo século enquanto componente educacional do movimento liberal de modernização e globalização, em um ambiente de intensa concorrência econômica, que mobiliza a Matemática e a Ciência como instrumentos de riqueza e poder. Levando em conta a ambiguidade do conceito, o artigo aponta para alguns problemas a serem enfrentados quando se tenta usar esse conceito.

Palavras-chave Qualidade da educação; Políticas públicas

ABSTRACT

The article presents the interest in the concept of “quality of education” and its international context. It shows that the concept was born from reflections on the reform of Mathematics and Sciences teaching in the 60s, 70s and 80s of the 20th century, in the United States and Europe, and it spread in the 80s and 90s of the same century as the educational component of the liberal movement of modernization and globalization, in an environment of intense economic competition, which mobilizes Mathematics and Science as instruments of wealth and power. Taking into account the ambiguity of the concept, the article points to some problems to be faced when trying to use this concept.

Keywords Quality of education; Public policies

RÉSUMÉ

L’article s’intéresse à la naissance du concept de « qualité de l’éducation » et à son contexte international. Il montre que le concept est né de réflexions sur la réforme de l’enseignement des Mathématiques et des Sciences dans les années 60, 70 et 80 du XXe siècle, aux États-Unis et en Europe, et s’est propagé dans les années 80 et 90 du même siècle comme composante éducative du mouvement libéral de modernisation et de mondialisation, dans un environnement de compétition économique intense, mobilisant les Mathématiques et les Sciences comme instruments de richesse et de pouvoir. Prenant en considération l’ambiguïté du concept, l’article met en évidence certains problèmes auxquels il faut faire face lorsqu’on essaie de l’utiliser.

Mots clés Qualité de l’éducation; Politiques publiques

ABSTRACT

The article presents the interest in the concept of “quality of education” and its international context. It shows that the concept was born from reflections on the reform of Mathematics and Sciences teaching in the 60s, 70s and 80s of the 20th century, in the United States and Europe, and it spread in the 80s and 90s of the same century as the educational component of the liberal movement of modernization and globalization, in an environment of intense economic competition, which mobilizes Mathematics and Science as instruments of wealth and power. Taking into account the ambiguity of the concept, the article points to some problems to be faced when trying to use this concept.

Keywords Quality of education; Public policies

Alguns temas atravessam explicitamente a história da educação, como o da relação entre docente e discente; outros aparecem, desaparecem, tornam-se focos dos debates em certos momentos da história, esmorecem em outros – e isso não acontece ao acaso, há lógicas históricas que regem esse destino dos debates sobre educação.

No final do século XIX, na Europa, o tema dominante foi o da educação nacional, na forma prussiana, militar, ou na forma francesa, republicana, cujo autor de referência é Durkheim. Nas décadas de 20 e 30 do século XX, o tema que ocupa o palco muda: a França debate a escola única e o Brasil, uma escola nova para todos os jovens. Nas décadas de 60 e 70 do mesmo século, o foco da discussão passa a ser a desigualdade social frente à escola, sendo Bourdieu, o autor de referência. De repente, logo em seguida, na década de 80, aparece um tema diferente, que se divulga rapidamente e se torna dominante a partir da próxima década, de 90: o da “qualidade da educação”.

Levantar a questão da educação nesses termos não tem nada de evidente, ainda que nós nos tenhamos acostumado a ouvir falar do tema assim. O debate sobre a melhor forma de educação é antigo, a avaliação dos resultados obtidos por comparação com os objetivos visados faz estruturalmente parte do ato pedagógico, mas a problematização dessas questões em uma temática da “qualidade da educação” é um evento que ocorreu em determinado momento da história e que tem de ser entendido em referência às características desse momento. Este artigo não pretende dar conta de todas as pesquisas sobre a qualidade da educação, nem sequer analisar a história do conceito, mas entender por que esse conceito apareceu naquele momento. Afinal de contas, por que se começa a falar repetidamente de “qualidade da educação” a partir da década de 80, posto que essa expressão nem pertencia ao vocabulário do debate educacional nas décadas anteriores? Por fim, o artigo evoca algumas das dificuldades que a ambiguidade do conceito gera1.

O nascimento do conceito e das políticas de “qualidade da educação”

A investigação histórica mostra que aconteceu um lento amadurecimento do tema, antes mesmo que ele eclodisse abertamente como “qualidade da educação”. O movimento que levou aos discursos contemporâneos sobre esse tema iniciou-se a respeito do ensino de Matemática e Ciências.

A reforma do ensino da Matemática e das Ciências

Se fosse necessário indicar uma data para o início da preocupação com a qualidade da educação, poderia ser o dia 4 de outubro de 1957, data do lançamento para o espaço do primeiro satélite pelas mãos do homem, o Sputnik. Ele foi lançado pela antiga URSS e esse evento preocupou bastante o mundo ocidental por manifestar um possível avanço tecnológico e industrial daquele país e por suas eventuais consequências militares. A reação foi capitaneada por uma organização criada em 1948 e que adotou em 1961 o seu nome atual de Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Já em 1958, ela cria um Gabinete de Pessoal Científico e Técnico, cuja função é tornar mais eficaz o ensino das Ciências e da Matemática. No mês de novembro de 1959, ela organiza em Royaumont, na França, um Seminário de dez dias, animado por Marshall H. Stone, da Universidade de Chicago, seminário que é considerado como o ato fundador da Reforma da Matemática Moderna. Uma mobilização geral se produz e leva, em 1989, a um documento chamado Curriculum and Evaluation Standards for School Mathematics (Currículo e Padrões de Avaliação para Matemática Escolar). Esse documento define dois princípios do que, hoje, poderíamos chamar de qualidade de uma educação matemática. O primeiro indica que todos os alunos podem aprender a Matemática, incluídos aqueles que eram reputados por sua pouca afinidade com essa disciplina, como os mais pobres e as moças – uma nação que visa ao desenvolvimento econômico não pode perder qualquer talento em potencial. O segundo princípio norteador da reforma indica que a Matemática deve ser ensinada de forma não dogmática, a partir do método de problem solving (procura da solução de problemas) e até de real world problems (problemas do mundo real).

O movimento começou pela questão do ensino da Matemática, mas o objetivo fundamental era, de forma mais ampla, o ensino das Ciências e a competência tecnológica. Em 1983, nos EUA, a Comissão Nacional sobre a Excelência em Educação publica um documento que se tornou famoso: A Nation at Risk: The Imperative for Educational Reform (Uma nação em risco: a necessidade de reformar a educação). No mesmo ano, uma Comissão do National Science Board produz um relatório intitulado Educating Americans for the 21st Century: A Plan of Action for Improving Mathematics, Science and Technology Education for All American Elementary and Secondary Students So That Their Achievement Is the Best in the World by 1995 (Educar os Americanos para o século XXI: um plano de ação para melhorar a educação matemática, científica e tecnológica de todos os alunos americanos do ensino primário e secundário para que seu sucesso seja o melhor do mundo até 1995). O texto desse relatório não deixa dúvida alguma: a questão fundamental é a da dominação econômica mundial pelos Estados Unidos.

A nação que espetacular e corajosamente levou o mundo à era da tecnologia está falhando hoje em fornecer a seus próprios filhos as ferramentas intelectuais necessárias para o século XXI.

Continuamos a liderar porque nossos melhores alunos ainda não foram superados. Continuamos a liderar porque nossas universidades, nossas indústrias, nossos recursos e nossa prosperidade atraem os melhores talentos de todo o mundo. Mas essa vantagem é precária. O mundo está mudando rapidamente. [...] Nossos filhos podem se tornar retardatários em um mundo tecnológico. Não devemos permitir que isso aconteça. Os Estados Unidos não devem se tornar um dinossauro industrial. Não devemos dar aos nossos filhos uma educação de 1960 para o mundo do século XXI (NATIONAL SCIENCE BOARD, 1983, p. v, tradução nossa).

Para “melhorar a educação matemática, científica e tecnológica” (NATIONAL SCIENCE BOARD, 1983, tradução nossa), o relatório preconiza apoiar-se sobre “experiências pessoais com atividades científicas que possibilitem colocar a mão na massa” (hands-on science activities). Ele propõe pistas para um método que receberá logo o nome genérico de inquiry – que, em tradução literal, significa “inquérito” e expressa o que chamamos de construtivismo. Sendo assim, o relatório sobre o ensino da Ciência leva às mesmas conclusões pedagógicas construtivistas que o relatório sobre o ensino da Matemática.

Ainda não se fala explicitamente de “qualidade da educação”, mas é disso que se trata e as palavras utilizadas se aproximam do tema da qualidade: “melhorar a educação”, “excelência em educação”. Essa história evidencia o movimento profundo que aconteceu na década de 80 do século XX nos países ocidentais, com o impulso da OCDE e dos Estados Unidos: a passagem da questão da educação de uma problemática dominante sociopolítica para uma problemática econômica. Não é por acaso que no mesmo período se espalha o conceito de “capital humano” para conotar o conjunto de saberes e competências humanas economicamente úteis. Esse conceito, surgido no início da década de 60, foi desenvolvido por Gary Becker, que ganhou um prêmio Nobel de Economia, em 1992, por sua teoria do capital humano. Aliás, a própria Sociologia crítica contribuiu (sem querer) para a importação do conceito de capital para o campo da educação, com os conceitos de capital cultural e de capital simbólico propostos por Bourdieu. Essa mudança profunda de lógica tornou possível a emergência progressiva de uma questão tematizada como “qualidade da educação”. Não é de se admirar que os governos atribuam tanta importância à questão da qualidade da educação como ela é abordada hoje em dia: em verdade, o objetivo não é a educação, mas a economia e a riqueza.

Cabe notar também que não se trata apenas de uma perspectiva econômica, mas da concorrência entre as economias. O desafio é o de liderar, como diz muito claramente o texto de 1983 Educating Americans for the 2st Century. O Conselho Europeu, reunido em Lisboa no mês de março de 2000, define o mesmo objetivo fundamental: “tornar-se a economia do conhecimento mais competitiva e mais dinâmica do mundo” (CONSEIL EUROPEEN LISBONNE, 2000, tradução nossa). Na década de 80, falava-se do conhecimento como um “recurso” para a economia; vinte anos mais tarde, fala-se de uma economia cujo “motor” é o conhecimento: a lógica econômica e com ela a lógica da concorrência apoderouse da questão da educação. Portanto, não é de se admirar que o tema da qualidade da educação esteja tão fortemente ligado às comparações internacionais: em verdade, o objetivo fundamental não é o de melhorar a própria educação, mas o de ficar entre os melhores na competição econômica.

Tampouco se deve admirar que as avaliações e comparações valorizem tanto a Matemática quanto as Ciências: historicamente, a questão da qualidade da educação nasceu dos esforços norte-americanos e europeus para reformar o ensino da Matemática e das Ciências. Por interesse cultural por essas matérias? Não. Pela preocupação pela competição internacional tecnológica, industrial e militar.

Por fim, para os brasileiros, é muito interessante constatar que a resposta pedagógica que os Estados Unidos propuseram para melhorar o ensino foi o problem solving e o inquiry, ou seja, o que, no Brasil, chama-se de construtivismo. Esses cientistas e professores norte-americanos ficariam muito surpresos se soubessem que, no Brasil de 2019, alguns iriam afirmar que o construtivismo é uma conspiração comunista inspirada por Paulo Freire – enquanto esses docentes americanos queriam melhorar o seu ensino frente à concorrência soviética, sendo que a maioria deles nunca ouvira falar de Paulo Freire. Historicamente, o chamado construtivismo, que se apresenta sob formas diversas, nasceu da epistemologia de Gaston Bachelard, da Psicologia genética de Jean Piaget e da experiência dos professores. Bachelard mostra que a verdade é erro retificado. Piaget explica que a atividade intelectual constrói as estruturas da inteligência. A experiência dos professores lhes possibilita entender que a mobilização intelectual dos alunos na aprendizagem requer uma atividade em uma situação que tenha sentido para eles. O fantasma de um construtivismo comunista e freiriano não tem nenhuma pertinência científica e histórica, como evidencia a história da reforma do ensino da Matemática e das Ciências nos Estados Unidos.

Para entender o surgimento do debate sobre a qualidade da educação, é útil conhecer suas raízes na reforma do ensino de Matemática e de Ciências, mas convém também entender que se trata de uma parte específica de uma política mais ampla desenvolvida a partir da década de 80.

A qualidade da educação: um aspecto particular de uma política mais ampla

Na década de 80, além dos grandes relatórios sobre essas reformas, aparece e começa a se propagar a própria noção de “qualidade da educação”. Ela nasce na mesma organização que iniciou o movimento de reforma do ensino: a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. A OCDE foi criada em 1948 (sob outro nome) para gerir o Plano Marshall de reconstrução da Europa após a guerra e, por definição de nascimento, ela funciona como think tank (laboratório de ideias) do pensamento liberal. Portanto, as políticas educacionais por ela propostas ou estimuladas fazem parte de um quadro econômico e social mais amplo, cujo conhecimento possibilita melhor entender as políticas públicas que visaram a “qualidade da educação” nos últimos quarenta anos. Muitas páginas seriam necessárias para apresentar esse quadro e essas políticas de forma um pouco detalhada (CHARLOT, 1987), mas é possível resumi-las em algumas ideias básicas.

O problema a ser resolvido no início da década de 80 é o do esgotamento do modelo fordista de produção, com a crise de produtividade e a queda da taxa de lucro. O que os economistas chamam de intensidade capitalística aumenta: é necessário investir cada vez mais em máquinas e equipamentos para enfrentar a concorrência, e esses equipamentos, sempre mais caros, têm uma duração de vida econômica cada vez mais curta. Isso produz uma queda da taxa de lucro, que não se consegue mais compensar pelos métodos clássicos do taylorismo e do fordismo: dividir o trabalho em tarefas mínimas que possam ser cumpridas em ritmo acelerado por operários pouco qualificados, em uma linha de montagem. Primeiro, isso passa a ser socialmente difícil e leva a greves e protestos que provocam perda de dinheiro. Além disso, tecnicamente, os estudos mostram que, em um processo complexo de produção, o tempo perdido para abastecer a linha, transferir as peças, enfrentar os imprevistos etc., torna esse modo de produção negativo do ponto de vista da produtividade.

A queda da taxa de lucro provocou, nas décadas de 80 e 90, uma reorganização da produção, que, por um lado, levou à demanda pela “qualidade da educação” e, por outro lado, gerou princípios de management que foram aplicados à própria escola.

O trabalho humano foi substituído por máquinas quando essa mudança podia gerar mais lucro ou, em outras situações, foi deslocado para países com menores salários, ou deixado para imigrantes pobres. Também, muitos esforços foram empreendidos para diminuir os chamados “custos indiretos” do trabalho, ou seja, os gastos públicos com educação, saúde, aposentadoria etc. – e esses esforços continuam hoje.

A eletrônica e a informática possibilitaram uma racionalização da gestão que poupou dinheiro. Em particular, elas permitiram gerir fluxos com o método do Just in Time (no momento exato): comanda-se o produto ao fornecedor no último momento, o que economiza os gastos de armazenamento. Também, a flexibilização da produção graças à eletrônica fez com que se tornasse possível aproximar o produto dos desejos do consumidor, integrando um sistema de opções dentro do próprio processo de produção e, assim, ganhar mercados contra os concorrentes.

Entre os novos princípios de produção e de management, alguns definem uma política para a qualidade. Deve-se diminuir os malfeitos, já que eles desperdiçam capital e tempo de trabalho e desagradam aos clientes. Portanto, é preciso melhorar a qualidade do produto ou do serviço. Mas, como atingir esse resultado? Na sociedade contemporânea, o processo de produção passa a ser complexo demais para ser organizado detalhadamente a partir do centro (a sede da empresa ou o ministério). Assim, entra-se num período em que o centro reserva para si mesmo as decisões estratégicas, mas confia a organização detalhada do processo a quem faz in loco: à ordem hierárquica a priori sucede a avaliação a posteriori dos resultados. Já que a qualidade do produto depende do ato em situação de trabalho, as empresas e administrações incentivaram a criação de “círculos de qualidade”; até, às vezes, prometendo prêmios pelas propostas que melhorassem a qualidade do produto ou do serviço. Assim, no fim da década de 80, “qualidade” tornou-se uma palavra da moda, muito além da área da educação.

Essa política de “qualidade” diz respeito à escola por dois motivos. Por um lado, a delegação de responsabilidades locais ao trabalhador requer que ele receba uma formação “de qualidade”. Por outro lado, aplicam-se os novos princípios à própria escola.

O princípio básico é organizar um mercado escolar concorrencial, com a ideia de que a concorrência leva a mais qualidade. Existem pelo menos duas formas de produzir esse mercado: seja desenvolvendo uma rede de escolas e universidades particulares, seja estimulando a concorrência no próprio sistema público – por exemplo, oferecendo opções diferentes nas diversas escolas ou promovendo algumas delas ao estatuto “de excelência”. Uma forma mista é o voucher, vale escolar proposto em 1955 por Milton Friedman, o economista liberal da Escola de Economia de Chicago. Cabe notar que no Brasil as escolas com os melhores resultados no mercado concorrencial não são as escolas privadas, mas as escolas públicas federais (colégios de aplicação de universidades, Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia etc.). O que prevalece não é o fato de a escola ser particular ou pública, é o perfil sociocultural dos alunos e os recursos de que ela dispõe.

A orientação liberal dessa política de “qualidade da educação” definida na década de 80 não abandona a luta contra o fracasso escolar, mas redefine seu sentido. Andreas Schleicher, que propôs à OCDE o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, em inglês), escreve:

Alcançar maior equidade na educação não é apenas um imperativo da justiça social, é também uma maneira de usar os recursos com mais eficiência e de aumentar a oferta de conhecimentos e habilidades que alimentam o crescimento e promovem a coesão social (SCHLEICHER, 2018, p. 13, tradução nossa).

O aluno fracassado é um malfeito do sistema de produção escolar. Quando ele repete, o estado paga duas vezes pelo espaço, pela eletricidade, pelo salário do professor etc. Portanto, conforme os novos princípios de qualidade, em vários países as autoridades públicas encarregadas das escolas impuseram medidas para diminuir e, às vezes, proibir a repetência dos alunos. Assim, porém, foi produzido um impasse. Por um lado, o aluno que passa de ano sem ter atingido um nível mínimo afunda no ano seguinte. Por outro lado, raramente o aluno que repete melhora, a não ser que suas dificuldades sejam conjunturais, por exemplo em caso de doença. A saída dessa contradição existe, experimentada em particular em países da Europa do Norte: dispositivos de intervenção rápida logo que aparecem os primeiros sintomas de dificuldades (por exemplo, um sexto professor disponível, sem turma, por cada grupo de cinco professores na escola primária).

Um outro princípio básico das políticas de qualidade definidas nas décadas de 80 e 90 é o do local: é no lugar do ato que se devem enfrentar e resolver as dificuldades específicas ou inesperadas. Esse princípio foi aplicado sob três formas. Primeiro, o projeto político-pedagógico visa a adaptação da escola e da pedagogia às características do bairro, das famílias e dos alunos. Também, hoje em dia insiste-se no diretor como manager da escola e até evoca-se a ideia de um salário dos professores que possa variar de acordo com os seus resultados pedagógicos. Por fim, hoje o professor tem mais autonomia pedagógica, o ministro ou o secretário de educação (em princípio...) não lhe diz como ele deve ensinar, mas, ao mesmo tempo, multiplicam-se os dispositivos de avaliação: Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), PISA etc. Os responsáveis pelos sistemas escolares sofrem uma síndrome de transparência e domínio absolutos, como se avaliar permitisse resolver os problemas da escola. Em verdade, o processo de ensino-aprendizagem envolve uma complexidade que nunca se pode dirimir completamente, mas é também um fato que nas lógicas atuais de concorrência, um sistema de produção é pilotado a partir dos resultados.

Sendo assim, a nova configuração autonomia/avaliação, uma política de qualidade, exige do professor que ele seja um profissional. Outrora, ele foi um missionário, de Deus ou da República. A seguir, passou a ser um funcionário, isto é, alguém que devia obedecer às instruções de seu superior, incluídas as instruções pedagógicas – e se não desse certo, não era culpa sua desde que tinha acatado as ordens. Hoje, o seu superior espera que ele seja um profissional, cuja função é resolver os problemas: “faça como quiser, mas entregue-me alunos que” saibam ler, ou consigam bons resultados nas provas do Saeb ou do PISA. O desafio é estimulante, mas quando o objetivo é impossível de ser atingido, por ser ambicioso demais ou por a escola não receber os recursos necessários, a situação do professor é desesperadora.

O conjunto desses princípios define aquela política que foi esboçada na OCDE nas décadas de 80 e 90 sob o nome genérico de “qualidade da educação”. Pode-se gostar ou não dela, em particular por aderir ou não a seus pressupostos sociopolíticos, mas não se pode negar sua coerência. O objetivo primeiro dessa política não é melhorar a educação por interesse pela própria educação, é produzir o máximo de resultados educacionais economicamente úteis na concorrência internacional, limitando os gastos públicos ao que é estritamente necessário. Sob outra forma: produzir o máximo de lucro que corresponda a determinado investimento. É uma política explicitamente liberal. Entretanto, é também uma política que visa a certa modernização dos sistemas escolares, necessária em sociedades cada vez mais complexas. Neste ponto, observa-se uma dupla ambiguidade. Por um lado, muitas vezes, defensores dessas políticas apresentam-nas como projetos de modernização, silenciando o projeto liberal. No outro lado, às vezes, professores escondem seu conservadorismo pedagógico atrás de uma argumentação política antiliberal.

“Qualidade da educação” é, por nascimento, um conceito ao mesmo tempo político e ambíguo. Sendo assim, não é de se admirar que as tentativas para avaliar a chamada qualidade da educação esbarrem em muitas dificuldades.

Qualidade da educação: um conceito ambíguo, de uso difícil

“Qualidade da educação” é uma expressão que pode remeter a assuntos muito diferentes, mesmo que sejam correlacionados. Pode interrogar a pertinência das políticas educacionais. Pode questionar a organização e o funcionamento dos estabelecimentos escolares. Pode levantar a questão do comportamento, dos valores e da formação dos pais e dos docentes. Pode apontar para o assunto que, afinal, é o mais importante e que, aliás, é, pelo menos parcialmente, o efeito dos pontos anteriormente evocados: quais são os valores da juventude e o que eles aprenderam na família e na escola? Pode também tentar abarcar o conjunto dessas questões. Sendo assim, um discurso sobre a “qualidade da educação” só começa a ter pertinência e até legitimidade quando ele explicita do que fala e quais são os seus critérios de avaliação da qualidade.

Explicitar os critérios da “qualidade”

Do que falamos e quais critérios usamos quando tratamos de qualidade da educação? Todos somos a favor dessa qualidade, claro. Quando levamos nossos filhos à escola, esperamos uma educação de qualidade, bem como esperamos uma medicina de qualidade quando os levamos ao hospital. Mas para emitir nossos julgamentos de valor sobre as escolas, usamos critérios implícitos diferentes e até contraditórios – de tal modo que o que traz qualidade na visão de um desvaloriza a escola na perspectiva de outro.

Suponhamos que queiramos comparar a qualidade de duas escolas, A e B usando tipos ideais de Max Weber (2015), a partir dos seus resultados no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Na escola A, vários alunos conseguem ser aprovados em Medicina, alguns em Pedagogia e muitos não encontram vaga alguma. Na escola B, nenhum aluno entra em Medicina, muitos são aceitos em Pedagogia e ninguém fica sem vaga universitária. Qual é a escola “de melhor qualidade”? Aquela que faz propaganda em grandes cartazes publicitários exibindo a fotografia dos seus novos estudantes em Medicina ou aquela que, silenciosamente, ajudou quase todos os seus alunos a iniciarem estudos superiores? Vejamos outro exemplo. Os alunos da escola C são muito bons em Matemática e Português, mas vários deles têm comportamentos racistas e machistas, que não parecem preocupar a direção e os professores, enquanto a escola D valoriza a solidariedade e o respeito às diferenças, mas seus alunos só ficam na média em Matemática e Português. Qual das duas tem a melhor qualidade? Além do mais, depois de propormos uma resposta baseada em nossos princípios, será que vamos mesmo escolarizar nossos próprios filhos na escola que afirmamos ser a melhor?

Não existem respostas “científicas” a essas questões, porque as respostas dependem de escolhas filosóficas e políticas e envolvem muitas contradições, sociais e pessoais. Mas pode-se enunciar uma exigência intelectual e democrática: cada vez que se fala de “qualidade da educação”, deve-se explicitar os critérios que embasam os julgamentos. Senão, grande é o risco de que o discurso seja vazio, confuso, inconsciente dos seus pressupostos ingênuos ou, pior ainda, que seja um discurso manipulador, avançando uma coisa para fazer aceitar outra, não dita. Muitas vezes, os discursos gerais sobre “a qualidade da educação” têm como objetivo real denunciar a escola pública e seus docentes ou fazer publicidade para si mesmo ou para uma ideologia. Dizendo as coisas de forma um pouco radical, os discursos sobre qualidade da educação que não explicitam os seus critérios são, no melhor dos casos, vazios e, no pior, uma propaganda disfarçada. Podemos também tentar fugir da dificuldade dizendo que queremos tudo ao mesmo tempo, mas, em verdade, não é possível se livrar da necessidade de escolher, já que a vida é permeada por tensões e contradições; assim, uma escola funcionando na lógica da concorrência generalizada e permanente nunca será uma escola da solidariedade e da inclusão.

Entretanto, talvez haja uma situação pior ainda do que a dos debates vazios sobre a qualidade da educação: a do silêncio, em que a escola nem é mais considerada como lugar importante para pensar o mundo. Deste ponto de vista, é interessante o caso de Greta Thunberg. Além de tudo o que se disse sobre seu engajamento e sua personalidade, há uma coisa que não é comentada, apesar de ser muito significativa: o primeiro ato da mobilização ecologista que colocou em movimento uma parte da juventude mundial foi uma greve da escola. Isso merece destaque e reflexão: o ato simbólico fundador dessa mobilização não aconteceu dentro da escola. Para dizer algo importante sobre o mundo, sobre o futuro, para recusar a rotina cotidiana em que os trancamos, os jovens não falaram na escola, fizeram greve da escola. Talvez isso seja um indício forte de que, para eles, a escola já não é lugar do sentido, é apenas lugar da competição, forma escolar desse mundo que, precisamente, muitos começam a recusar.

A segunda questão fundamental a ser levantada quando se trata de qualidade da educação é a dos conteúdos a serem considerados e avaliados. Deste ponto de vista, o PISA merece uma atenção particular, por causa da importância que vários países lhe deram nos debates públicos sobre a qualidade da educação – e nas suas políticas públicas. Criado em 2000, esse Programme for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) avalia o desempenho dos jovens de 15 anos em Leitura (Reading Literacy), Matemática e Ciências. A cada ano, é avaliada uma dessas três áreas – de modo que uma determinada área é avaliada a cada três anos. Em 2019, a avaliação do PISA foi aplicada em 80 países, incluído o Brasil, que participa do programa desde o início. Ela é organizada pela OCDE, na lógica que rege essa instituição: uma lógica de competição internacional, com o modelo das empresas. Insisto no fato de que não se trata de uma interpretação pessoal, mas da forma como o programa é concebido e publicamente apresentado. Schleicher, pai da ideia do PISA, escreve:

Os formuladores de políticas educacionais podem tirar proveito das comparações internacionais da mesma maneira que no mundo dos negócios os líderes aprendem a levar suas empresas para o sucesso: inspirando-se nos outros e adaptando os ensinamentos assim aprendidos à sua própria situação (SCHLEICHER, 2018, p. 62, tradução nossa).

O PISA traz uma avaliação tecnicamente muito séria, mas ela avalia o quê? Ao contrário do que muitos acham, ela não avalia a “qualidade da educação”, mas as competências dos jovens de 15 anos em três áreas específicas. Uma dessas áreas é a leitura na língua materna – o letramento (reading literacy), que é mais que a alfabetização. As duas outras são aquelas que, desde 1958, tal como vimos, a OCDE considera como as ferramentas intelectuais necessárias na competição econômica: Matemática e Ciências. O problema é que, assim, certa interpretação do que deve ser a educação é implicitamente imposta a 80 países. Por que não se avaliam também os ensinos em História, Geografia, Literatura, Filosofia, Artes, Educação Física? Será que não são importantes para julgar a qualidade do ensino? Por que tampouco se interessa pelas taxas de suicídio ou de uso de drogas entre os jovens de 15 anos – critérios com os quais a Coreia do Sul ou os Estados Unidos irão baixar na classificação? Por que não se avaliam também a consciência ecológica, os pressupostos racistas, sexistas, a forma como se educam os deficientes etc.? Ao evitar todo conteúdo cultural específico, esvazia-se também o próprio aluno e avalia-se um adolescente imaginário, reduzido ao que todos têm em comum nesses 80 países (ou ao que esses países gostariam que seus jovens tivessem em comum): serem indivíduos competindo num mercado de trabalho interno e na competição econômica internacional. Sendo assim, não é de se admirar que se encontrem no topo do ranking países culturalmente e pedagogicamente tão diferentes como Finlândia e Coreia do Sul.

Tratar da qualidade da educação de um país a partir da única referência ao programa PISA é reduzir essa questão à da eficácia das aprendizagens e considerar apenas três áreas de aprendizagem. Apesar de ser uma das principais vítimas das avaliações do PISA, uma vez que é classificado entre os últimos países nas três áreas, o Brasil adotou o discurso e as práticas da OCDE: fala de “qualidade da educação” sem levantar o problema dos critérios da avaliação; o serviço de avaliação da educação básica do Ministério da Educação (o Saeb) avalia apenas Português e Matemática e essas duas matérias têm também uma importância desmedida na Prova Brasil e no Ideb. Nesse ponto, pelo menos, o Brasil está pronto para adentrar a OCDE, em que ele ambiciona entrar.

Coletar, interpretar, utilizar e divulgar dados sobre a qualidade da educação: algumas questões

Do ponto de vista técnico (embora nenhum assunto seja puramente técnico quando se trata de qualidade da educação), pode-se identificar pelo menos três pontos que merecem destaque.

O primeiro é clássico: deve-se distinguir a avaliação somativa e a avaliação formativa. A avaliação somativa atribui uma nota ou pontos, é uma operação quantitativa. Mas a avaliação pedagogicamente interessante é a avaliação formativa, que é qualitativa e tem uma função diagnóstica e reguladora: ela compara os resultados atingidos com os objetivos perseguidos. Quando uma avaliação visa a classificar, hierarquizar, ela procede por medidas. É o caso do PISA ou das avaliações do Saeb. Quando ela se interessa pela qualidade da própria educação, ela deve apresentar uma dimensão qualitativa, já que em tal caso as funções diagnóstica e reguladora são imprescindíveis.

Um segundo problema é saber se se comparam situações equivalentes. Assim, o PISA coteja alunos de 15 anos em países em que a defasagem idade-série é mais ou menos importante. No Brasil, mais de um quarto dos alunos do Ensino Médio têm uma idade superior à idade institucionalmente prevista. Portanto, quando estavam com 15 anos, muitos ainda não tinham ingressado no Ensino Médio. Sendo assim, o PISA avalia alunos que não atingiram o mesmo nível escolar e, portanto, não receberam o mesmo ensino e, logicamente, não podem ter o mesmo nível de formação. Ora, a defasagem idade-série, ainda que nunca seja um fato positivo, pode ter causas geográficas ou sociais que não remetem diretamente à qualidade da educação. Aliás, pode-se ampliar o questionamento: quando se comparam os resultados ou as competências de alunos escolarizados em escolas socialmente diferentes, avalia-se o que exatamente? A qualidade da educação ou a desigualdade social no país – ou ambas?

Por fim, merecem também destaque a interpretação e a divulgação dos resultados de uma avaliação. Quando o Saeb apresenta os resultados das suas avaliações, ele comenta, para a mídia melhor entender, qual percentual dos alunos fica na norma, ou acima dela, ou abaixo. Mas quando 50% dos alunos ficam “fora da norma”, qual sentido tem essa noção de norma? Ao apresentar uma avaliação, pode-se insistir no que não dá certo no sistema, para convencer os políticos a investirem mais na educação, mas, assim, desvaloriza-se a imagem da escola pública. Divulgar sem precaução as comparações entre escolas tende a piorar a situação dos estabelecimentos mais frágeis – e, portanto, a sua “qualidade”.

A interpretação e o uso dos resultados de uma avaliação remetem também à questão da reprovação e do passar de ano, ou seja, à vida dos jovens. Nesse assunto, é interessante comparar o uso institucional das notas no Brasil e na França. No Brasil, o aluno deve atingir a média em todas as matérias para não repetir. Supondo que a média seja 5, com a nota máxima de 10 em todas as matérias, se ele tirar apenas 4 em uma delas, vai repetir o ano. Na França, o aluno passa para a série seguinte se ele obtiver a média geral; com 6 em Matemática e em Ciências e 4 em Francês e em História, ele passa. O sistema francês tende a valorizar a excelência em algumas matérias, tolerando certa fraqueza em outras. O sistema brasileiro atual exige alunos sem fraqueza e não valoriza a excelência. Os dois países querem jovens diferentes.

Afinal, a questão básica é: quem avalia quem, onde, quando, como, por que e para quê? Atrás dessa pergunta aparentemente técnica, encontram-se questões filosóficas e políticas fundamentais: qual educação, para formar qual tipo de ser humano, em qual sociedade, para qual mundo, qual vida, qual futuro (CHARLOT, 2020)?

1Este artigo foi escrito com base em uma conferência (não publicada) ministrada na Academia Sergipana de Educação.

REFERÊNCIAS

CHARLOT, Bernard. L’école en mutation. Paris: Payot, 1987. [ Links ]

CHARLOT, Bernard. Educação ou barbárie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020. [ Links ]

CONSEIL EUROPEEN LISBONNE. Conclusions de la Présidence. Lisboa, 24 mar. 2000. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/summits/lis1_fr.htm. Acesso em: 16 fev. 2020. [ Links ]

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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015. v. 1. [ Links ]

Recebido: 31 de Maio de 2021; Aceito: 21 de Janeiro de 2021

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Traduit par l’auteur.

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