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Educar em Revista

Print version ISSN 0104-4060On-line version ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub Oct 26, 2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.82175 

Artigos

Linguagem acadêmica e educação: um campo de disputas e de consolidação da hegemonia

Academic language and education: a field of disputes and consolidation of hegemony

Anita Helena Schlesener* 
http://orcid.org/0000-0002-5185-2604

* Universidade Tuiuti do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: anitahelena1917@gmail.com


RESUMO

Este artigo retoma alguns aspectos de escritos críticos: a pergunta sobre a linguagem e seu significado político e pedagógico é importante a partir do entendimento de que a linguagem, na leitura crítica, tem uma dimensão política e metafórica e, como tal, traduzível, viabilizando a relação dos saberes entre si e destes com o real vivido. Ao mesmo tempo, por sua dimensão política, torna-se um instrumento importante de consolidação da hegemonia. A linguagem é um elemento vital neste processo e as Universidades, no seu interior e no exercício da linguagem acadêmica, têm a incumbência fundamental de nutrir o processo hegemônico por meio da atividade dos intelectuais e de sua formação para funções na estrutura produtiva, política e cultural, no sentido da preservação da ordem social. A educação torna-se mediadora no movimento de superação do horizonte ideológico dominante na medida em que possibilita o acesso ao contexto de formação, ao questionamento e renovação da linguagem.

Palavras-chave: Hegemonia; Ideologia; Educação; Linguagem acadêmica; Política

ABSTRACT

This article returns to some aspects of critical writings: the question about language and its political and pedagogical meaning is important based on the understanding that language, from a critical viewpoint, has a political and metaphorical dimension and which, as such, is translatable, enabling forms of knowledge to relate with each other and also with reality as it is lived. At the same time, due to its political dimension, it becomes an important instrument for consolidating hegemony. Language is a vital element in this process and Universities, both within themselves and when exercising academic language, have the fundamental task of nurturing the hegemonic process through the activity of intellectuals and their training for positions in the productive, political and cultural structure in the sense of preserving social order. Education becomes a mediator in the movement to overcome the dominant ideological horizon to the extent that it enables access to the context of training, as well as access to questioning and renewing language.

Keywords: Hegemony; Ideology; Education; Academic language; Politics

Introdução

Subalterno é aquele que não pode falar, que não tem voz (DIAS, 2012, p. 72).

O tema que nos propomos, os limites da escrita acadêmica e as possibilidades de acesso, para os grupos subalternos, ao conhecimento historicamente produzido, não tem merecido a devida atenção no campo da pesquisa educacional. A expansão das Universidades Públicas no Brasil no período entre 2005-2015, aliada à política de cotas e reserva de vagas para alunos provindos de escolas públicas de educação básica, abriu a perspectiva de acesso de grande parcela dos filhos de trabalhadores ao ensino superior. Entretanto, no âmbito de uma sociedade marcada pela profunda desigualdade social, esta ampliação, resultante em parte da organização docente, não se constitui em acesso qualificado, visto não ser suficiente para demolir o monopólio do conhecimento nas mãos das classes detentoras do poder econômico e político.

Além desta razão, a reflexão crítica é fundamental para compreender a hierarquia que se estabeleceu entre as pesquisas cientificas das áreas biológicas e exatas com as ciências humanas, que tendiam, na década de 70, a adaptar-se às metodologias das Ciências naturais e exatas (positivistas) para serem reconhecidas como ciência. Desde então, as Ciências Humanas parecem relegadas a uma segunda categoria de conhecimento, visto que não possuem elos diretos com o sistema produtivo. A reflexão sobre a linguagem permite descortinar os elos das Ciências Humanas com a política e com a ideologia, fundamentais para a manutenção da estrutura material e das relações sociais e políticas. Serve ainda para esclarecer as barreiras que se apresentam aos discentes mesmo depois do ingresso na Universidade.

Na perspectiva histórica, as dificuldades de acesso das classes subalternas à Universidade no Brasil sempre foram reconhecidas. A partir da primeira década do século XXI é que as ações governamentais para a “expansão do ensino superior e sua mudança estrutural para abrir a possibilidade de acesso às classes populares” começaram a se efetivar. As

[...] políticas públicas educacionais, em geral, trazem a marca das ações reivindicatórias do Movimento docente no sentido de garantir direitos sociais e gerar a possibilidade de acesso a uma formação qualificada aos filhos das classes trabalhadoras (SCHLESENER; PEREIRA., 2016, p. 520-521).

Um processo que aliou várias políticas educacionais que, articuladas, permitiram a ampliação de vagas e abriram a possibilidade de acesso ao ensino universitário aos egressos das escolas púbicas de educação básica, com efeitos positivos. Entretanto, o tema aqui referido não foi considerado empecilho para o processo de aprendizagem e de autonomia de pensamento, o que entendemos como justificativa para a nossa investigação.

Retomamos as observações de Antonio Gramsci (1978) sobre a linguagem, a partir das novas dimensões da ideologia no contexto contemporâneo. Ao pensamento do político sardo aliamos autores como Theodor Adorno (1982, 1986, 2008), Bernard Edelman (2016), Pier Paolo Pasolini (1982, 1994), entre outros. Os escritos de Adorno enfatizam os limites da linguagem na sua crítica ao positivismo, cujas significações formam o senso comum e, na escrita acadêmica, se munem de uma disciplina objetiva cujo pressuposto é a separação e o distanciamento entre sujeito e objeto. Tal separação e objetivismo negam as possibilidades da espontaneidade da fantasia objetiva e limitam o contexto da interpretação (ADORNO, 1982, 1986). Edelman (2016, p. 141) nos oferece uma reflexão sobre os limites do direito e sua funcionalidade enquanto expressão de uma ideologia triunfante, principalmente pelo modo como ensina a refletir e “exprimir-se na linguagem do “comedimento”, da ordem e do direito”, uma das formas de captura da subjetividade, na medida em que, por meio dessa linguagem, se interioriza o controle. Pasolini (1994) critica a rigidez pragmática da linguagem nas suas mais variadas manifestações simbólicas, principalmente na sua apresentação abstrata, como verdade e neutralidade na comunicação.

Salientamos que nossa abordagem é introdutória, visto a profundidade das reflexões destes autores, impossível de incorporar em um artigo. Trata-se de explicitar a relação do discurso acadêmico com as relações de poder, circunscrevendo nossa reflexão ao contexto das Ciências Humanas, embora tal reflexão possa adequar-se a outros campos do conhecimento. Tal abordagem exige alguns esclarecimentos: primeiro, a leitura crítica supõe uma outra concepção de história e de política, articuladas no contexto das correlações de forças que caracterizam a sociedade moderna. A partir deste subentendido, os escritos gramscianos, por exemplo, supõem a compreensão de que, se tudo é histórico, existe sempre a possibilidade de transformação real, o que depende tanto da historicidade do pensamento quanto das resistências e lutas sociais. Já Adorno reflete a partir do âmbito interno da academia, expondo as barreiras de uma linguagem que é reconhecida somente se referendada pelo discurso do outro, sem preocupações com a prática social. A cultura assim produzida e divulgada ostentando aparência de neutralidade, transforma-se em instrumento de manutenção da ordem instituída. Pasolini (1994), por sua vez, ressalta as práticas dos meios de comunicação de massa e seu desconhecimento da riqueza da literatura popular italiana na sua forma dialetal e na sua força inventiva.

Para Gramsci, a linguagem se articula com a política e a ideologia, tendo como pressuposto que a base material que organiza a estrutura social se concretiza e se mantém a partir da formação do modo de pensar da maioria da sociedade. Gramsci atribui grande importância à formação e à cultura no processo político, sendo que a educação não se restringe ao espaço escolar, mas faz parte da vida e da luta dos trabalhadores por sua identidade e autonomia; é no seio das disputas políticas e da formação das classes subalternas que a educação deve ser pensada e produzida. Desta forma, a educação é abordada no contexto de um problema mais amplo que é o da elaboração de uma nova concepção de mundo enquanto pensamento autônomo, que passa fundamentalmente pela compreensão do significado político da linguagem.

Para tanto, é preciso partir da perspectiva de que a educação não se restringe a um determinado tipo de ação, mas permeia todas as ações; nos educamos na vida, por meio de nossa inserção social. A educação tem uma dimensão política, não é uma simples teoria pedagógica, implica a compreensão dos projetos políticos que as classes sociais pretendem conservar ou instaurar. A separação entre teoria pedagógica e teoria política, comum em grande parte dos trabalhos sobre educação, não exprime a realidade efetiva do processo educacional e permite instrumentalizar o processo educativo, na separação entre informação e formação, culminando na superficialidade do cotidiano escolar ou na simples formação para o trabalho. O exercício da linguagem pode resultar na instrumentalização de conceitos, fato que permite articular teorias completamente estranhas entre si ou ao projeto político possível das classes populares.

Alicerçado no contexto social e político no qual é produzido o conhecimento, entende-se que o conhecimento é poder, e tal se evidencia de forma clara no contexto da história do capitalismo. O político sardo foi um autor que, a partir da militância política alimentada com as teorias críticas, sem desprezar as contribuições da filosofia, procurou dar uma resposta aos problemas cruciais de sua época, enfrentando com coragem o fascismo e mostrando para as classes trabalhadoras a importância de elaborar um pensamento e uma linguagem autônomos no processo de luta política.

A partir de alguns recortes de sua extensa obra, acentuamos que a linguagem, além de ser política, é essencialmente metafórica, sinalizando a existência de relações de poder e de formação de um modo de pensar homogêneo. Expressando uma concepção de mundo, a linguagem é metafórica “tanto em relação aos significados quanto ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos precedentes da civilização” (GRAMSCI, 1978, p. 1427).

Gramsci aprimorou um pensamento crítico gerado a partir da prática jornalística, pensamento que possibilita superar uma visão fragmentária da realidade e buscar uma unidade de classe, alterando o modo de viver e de sentir. A crítica permite conhecer os limites impostos pela sociedade burguesa ao exercício da liberdade, unir-se e organizar-se, aderir ao movimento de transformação da realidade com a participação coletiva. Neste processo, que é um processo educativo, renovar a própria individualidade significa compreender-se livre enquanto historicamente condicionado, firmar-se como classe que elabora sua identidade e projeta seu futuro.

A leitura de Gramsci é fecunda para a análise das relações de força que se instituíram com o neoliberalismo e a mais recente crise orgânica que assolam o Estado brasileiro: crise econômica, política e moral cuja superação se faz urgente, mas que implica fazer a crítica do ideário neoliberal que arrebatou o senso comum formando o imaginário social dos trabalhadores. Para tanto, faz-se necessário retomar alguns aspectos da noção de hegemonia, fundamental para a compreensão do funcionamento das relações de poder, que entendemos ser a grande contribuição de Gramsci para a política moderna. Assim, na primeira parte deste texto apontaremos alguns aspectos da noção de hegemonia e sua importância para a conquista e conservação do poder. Para Gramsci (1978, p. 873), a história dos vencidos se esconde naquilo que “ficou perdido” porque, do ponto de vista dos vencedores, “era irrelevante”, superficial e insignificante.

Em seguida, abordamos aspectos da linguagem acadêmica e sua função na formação de intelectuais para a preservação da ordem social, tendo como pressuposto a dimensão política e ideológica da linguagem e sua função no processo de construção e manutenção da hegemonia. Os intelectuais, a partir de sua formação, atuam como organizadores do modo de ser social no âmbito dos aparelhos de hegemonia, que podem ser tanto da sociedade política (estrutura burocrática de controle e de elaboração das políticas públicas) quanto da sociedade civil (escola, igreja, jornais, ONGs etc.) que, articuladas, constituem o Estado.

A escrita acadêmica impõe uma forma de problematização que supõe uma ideia de verdade, em geral aquela que predomina em um determinado momento da pesquisa, construindo o pensamento dominante e, consequentemente, excluindo outras abordagens. O que pretendemos mostrar é que a Universidade preserva para as classes dominantes a produção e o controle do conhecimento na formação de seus intelectuais, de modo que não basta ter acesso aos cursos universitários para atuar no sentido de alguma mudança, mas, para tal, é preciso apropriar-se do modus vivendi universitário ou mudar a estrutura institucional alterando seus currículos e questionando a sua linguagem.

Para concluir, retomamos o percurso descrito para acentuar alguns aspectos da escrita acadêmica, que adapta a uma forma de pensar que restringe o pensamento a uma medida e exclui outras, em contraponto com a dimensão ideológica e política da linguagem. O aporte teórico crítico nos auxilia a demonstrar os limites da linguagem acadêmica e, ao mesmo tempo, explicitar a sua força política no sentido de manter a divisão hierárquica entre dirigentes e dirigidos e as classes trabalhadoras no horizonte ideológico burguês.

Notas sobre a linguagem a partir de um aporte teórico crítico

A comunicação envolve e divulga uma verdade que, devido ao súbito acordo coletivo, deveria antes tornar-se suspeita (ADORNO, 1982, p. 13).

Partimos de um tema abrangente do pensamento de Antonio Gramsci, que perpassa os “Cadernos do Cárcere” e que retomamos aqui a partir do Caderno 11, quando o autor afirma que

toda a linguagem é um contínuo processo de metáforas, sendo a história da semântica um aspecto da história da cultura: a linguagem é, simultaneamente, uma coisa viva e um museu de fósseis da vida e das civilizações (GRAMSCI, 1978, p. 1438).

Um ponto fundamental que se apresenta nesta afirmação é que a linguagem é histórica e se encontra em processo de construção permanente. “Ser metafórica significa que possui vários sentidos que se entrecruzam, ou seja, é ambígua e dinâmica, podendo ser instrumentalizada conforme os interesses políticos em presença” (SCHLESENER, 2016, p. 117). Na leitura de Gramsci (1978, p. 1427), a linguagem “é metafórica com relação aos significados e ao conteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos precedentes da civilização” e se modifica na medida em que as relações sociais e as concepções de mundo se alteram no processo de construção ou de conservação da hegemonia. Disso se depreende que, se o discurso acadêmico fundado em determinados métodos se interpretação atua para consolidar determinadas relações de hegemonia, também pode servir para questionar relações e estruturas vigentes na medida em que abre a senda da contradição e possibilita o questionamento do instituído.

O conceito de hegemonia permeia os “Cadernos do Cárcere” em momentos distintos da reflexão gramsciana. Uma das definições se encontra no Caderno 19, parágrafo 24, Caderno sobre a Revolução burguesa italiana, na qual a opção política do Partido da Ação teve a influência direta do Partido Moderado que, no processo de unificação da Itália, tomou a frente na disputa política com o Partido da Ação:

O Partido da Ação foi guiado pelos Moderados: a afirmação atribuída a Vitório Emanuel II de “trazer no bolso” o Partido da Ação ou algo similar é praticamente exata, não somente pelos contatos pessoais do Rei com Garibaldi, mas porque o Partido da Ação foi dirigido “indiretamente” por Cavour e pelo Rei. O critério metodológico no qual se funda esta observação é este: a supremacia de um grupo social se manifesta de duas maneiras: como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’. Um grupo social é dominante dos grupos adversários que tende a ‘liquidar’ ou a submeter inclusive com a força armada e é dirigente dos grupos afins e aliados (GRAMSCI, 1978, p. 2010).

A direção intelectual e moral se apresenta como uma das principais condições tanto para a conquista quanto para a preservação da hegemonia no exercício do poder. A definição acima explicita o modo como se concretizam as relações de poder e como a política se articula com a ideologia: a função hegemônica se consolida como dominação política e direção cultural, ou seja, como um processo por meio do qual o grupo dominante submete e controla os grupos resistentes por meio da lei e da coerção, ao mesmo tempo em que divulga seus valores e tenta formar o horizonte ideológico que sustenta e conserva o apoio das classes subalternas na consistência de suas ideias no senso comum.

Uma hegemonia se mantém basicamente pela ação contínua dos intelectuais que a representam. São os intelectuais que possibilitam que a hegemonia se concretize como unidade, ocultando o movimento contraditório que constitui a sociedade. Um exemplo da atividade dos intelectuais na conservação da hegemonia se apresenta na função do direito moderno e toda a sua estrutura legal e jurídica na salvaguarda da ordem social desigual e excludente: um exemplo claro desta situação se encontra no fato que a maioria dos políticos que integram o sistema parlamentar e judiciário são formados em advocacia e a sua expressão na mídia manifesta os limites dessa formação; para tanto, o direito precisa ser apresentado como neutro e, consequentemente, como expressão de toda a sociedade. Na realidade, o direito moderno é uma das principais instituições de manutenção da ordem instituída em favor dos grupos dominantes. A função máxima do direito é esta:

Por meio do direito o Estado torna “homogêneo” o grupo dominante e tende a criar um conformismo social que seja útil à linha de desenvolvimento do grupo dirigente. [...] O direito serve para entender melhor a conduta de cada indivíduo (atos e omissões) e os fins que a sociedade se coloca como necessário, correspondência que é coercitiva na esfera do direito positivo tecnicamente entendido e é espontânea e livre (no sentido ético), no campo em que a coerção não é estatal, mas de opinião pública, de ambiente moral, etc. (GRAMSCI, 1978, p. 757).

Este é um exemplo de como o direito funciona na sociedade burguesa e deixa reconhecer o trabalho dos intelectuais, fundamental para a manutenção da ordem instituída. A linguagem jurídica pode ser outro exemplo de como este mecanismo de controle e orientação política e ética funciona. Os códigos linguísticos e o próprio vocabulário do discurso do direito são desconhecidos pelas classes subalternas, as que mais têm necessidade da proteção jurídica. Gramsci tenta demonstrar as condições empíricas que caracterizam a situação do trabalhador ante o intelectual: as massas populares, que dificilmente mudam de concepção, porque esta se baseia em convicções, aceitam a forma racional e logicamente coerente do raciocínio do intelectual apenas quando já se encontram em condições de crise intelectual, ou seja, “perderam a fé no velho e ainda não se decidiram pelo novo” e, então, aceitam a autoridade do intelectual (GRAMSCI, 1978, p. 1390).

A habilidade de formação de um modo de pensar homogêneo na ação dos intelectuais é

acentuada por Edelman (2016, p. 111) na constatação de que, pelo direito, a “burguesia “apropriou-se” da classe operaria: impôs seu terreno, seu ponto de vista, seu direito, sua organização de trabalho” e, ousamos acrescentar, seu modo de pensar e de conceber o mundo. E este trabalho foi feito por intelectuais. Ainda conforme Edelman (2016, p. 94), a lição política ideal é: “ensine aos trabalhadores a língua política da burguesia, dê-lhes aulas de direito constitucional, administrativo ou privado e você terá uma classe operária disciplinada”.

Estas observações desvendam o que se esconde por trás do discurso legal, apresentado como neutro, expressão e garantia de toda a sociedade, mas que garante a hegemonia dos grupos dominantes na medida em que oculta ou mistifica a desigualdade social. Uma realidade que se exprime na linguagem, que se torna a concepção de mundo que formamos a partir de nossa inserção social, e que se concretiza no senso comum a partir do ideário do grupo dominante. Assumir o ideário do grupo dominante implica raciocinar dentro do horizonte ideológico do grupo dominante, fato que se exprime nas condições empíricas dos grupos subalternos (DIAS, 2012).

Imagine-se a posição intelectual de um homem do povo: ele se formou a partir das opiniões, das convicções, dos critérios de discriminação e das normas de conduta. Qualquer um que sustente um ponto de vista contrário ao seu, enquanto é intelectualmente superior e sabe argumentar as suas razões de modo mais convincente que ele e consegue derrotá-lo logicamente (GRAMSCI, 1978, p. 1390).

O fato de ser contrariado em suas opiniões não faz o homem do povo mudar suas convicções, porque elas não resultam de argumentação racional, mas de fé, fator importante para agregar os indivíduos em um grupo. A verdade assumida pelo senso comum é estabelecida por convicções e não por pesquisas cientificas. Com estes pressupostos e com a ampliação dos meios de comunicação de massa decorrentes das novas tecnologias, a dimensão ideológica da linguagem se fez mais evidente.

Na conquista da hegemonia e no seu exercício, a apropriação do conhecimento e da linguagem se torna fundamental para alcançar a direção intelectual e moral na sociedade a partir da formação de um consenso passivo. Daí a importância que Gramsci atribui à educação e à cultura, entendidas como conhecimento historicamente produzido pela sociedade e apropriado pelas classes dominantes.

A educação, a cultura, a organização difundida do saber e da experiência significa a independência das massas dos intelectuais. A fase mais inteligente da luta contra o despotismo dos intelectuais de carreira e das competências por direito divino se constitui da ação para intensificar a cultura e aprofundar o conhecimento. E esta atividade não pode ser adiada para amanhã (GRAMSCI, 1975, p. 301).

Importante para Gramsci é não somente apropriar-se da linguagem dominante, mas superar os limites ideológicos por ela impostos: “No contexto de mundialização do capital e da fusão das grandes potências midiáticas, o controle autoritário e imperialista se instaura de modo sutil e quase imperceptível” (SCHLESENER, 2016, p. 119). Gramsci (1978, p.2265) acentua que “todo movimento cultural cria a sua linguagem própria”, introduz termos novos e “enriquece com conteúdo novo os termos já em uso, criando metáforas” e, assim, gerando as condições de uma nova concepção de mundo. A distância entre a linguagem de expressão popular e a linguagem acadêmica pode nos mostrar o abismo que se produziu no processo educativo, fruto de uma sociedade cuja desigualdade econômica e social se aprofunda cotidianamente.

A leitura crítica das determinações presentes, uma delas que se expressa na crença em um universal legitimador, é a primeira ação necessária para romper os elos de subalternidade e criar as condições de compreender a dimensão histórica do conhecimento e os mecanismos de hegemonia pela via da cultura e da linguagem. Desta perspectiva, os “meios de comunicação de massa tornam-se decisivos na disputa hegemônica, alterando fundamentalmente o processo de luta de classes” (DIAS, 2012, p. 118). Tais meios informam de modo genérico e de forma homogênea, como se a verdade fosse única. O contraditório não se apresenta no seu conflito, mas apenas como opostos. Repetidas cotidianamente estas opiniões se tornam senso comum, cumprindo a sua função de adaptação a uma ordem social inquestionável. Neste contexto, o conhecimento, transformado em mera informação, converte-se em domínio ideológico de formação do consenso passivo.

Para Gramsci (1978), do ponto de vista cultural e histórico, cabe entender o processo de aprimoramento da linguagem, suas ambiguidades e metáforas, as contradições que expressa, a fim de encontrar formas de interação da linguagem popular com a linguagem culta. Este processo é essencialmente político e implica explicitar as relações sociais vigentes em suas contradições e desigualdades, a fim de superar a gritante distância entre a linguagem popular e o discurso acadêmico.

Adorno (2008) adentra a questões metodológicas fundamentais para que se entenda como, nas Ciências Humanas, o conceito de neutralidade cientifica e a separação sujeito-objeto implícita nesta abordagem ampliam as formas de reificação que dificultam a formação de um pensamento autônomo. O “ideal da metodologia é o tautológico, ou seja, os conhecimentos são determinados de modo operacional” quando, ao contrário, somente “são produtivos os conhecimentos que ultrapassam o juízo analítico puro, que vão além desse caráter tautológico- operacional” (ADORNO, 2008, p. 194-195).

Referindo-se à Sociologia, Adorno acentua que os “estudantes que se empenham por uma nova forma para sua autonomia no mundo reificado e se rebelam contra a reificação do mundo e da consciência”, teriam que se indignar também com “as formas reificadas da consciência que a ciência vigente lhes impõe” (ADORNO, 2008, p. 195). Desta perspectiva, a questão política de fundo atinge diretamente os filhos das classes populares que conseguem entrar nas Universidades.

Aspectos da linguagem acadêmica e sua função na formação de intelectuais para a preservação da ordem social

A linguagem se transforma com o ransformar-se de toda civilização (GRAMSCI, 1978, p. 1427).

Conforme Dias (2012, p. 133), “considera-se, do ponto de vista burguês, um processo hegemônico aquele pelo qual os subalternos pensam, agem e vivem no interior do modo de vida dos dominantes, de suas normas e instituições”. A linguagem é um elemento vital nesse processo e as Universidades, no seu interior e no exercício da linguagem acadêmica, têm a incumbência fundamental de nutrir o processo hegemônico por meio da atividade dos intelectuais: “É na linguagem e por ela que se passa das grandes elaborações ideológicas ao saber das massas”, enquanto construção do sentido, da voz e do projeto político (DIAS, 2012, p. 323).

Os intelectuais desempenham uma tarefa fundamental na manutenção da ordem instituída e na formação do senso comum por meio da palavra do “especialista”, aquele que coloca o saber que acumulou ostensivamente a serviço da ordem instituída (LUPERINI, 2007 apudDIAS, 2012 p. 100). A linguagem tem uma eficácia ideológica relevante na organização das relações políticas consolidada pelo discurso dos intelectuais.

Este contexto é desconhecido para a maioria dos estudantes das classes populares, para os quais o ingresso em uma Universidade significa galgar um novo patamar de conhecimento que serve para a preparação para o mundo do trabalho; esta é a ideia que se transmite na sociedade e que expressa parte da realidade universitária. É verdade que a grande maioria recebe esta formação prometida, mas poucos imaginam que serão apresentados a um universo desconhecido, que se apresenta em epistemologias complicadas e termos específicos, acessíveis a uma pequena parcela de especialistas treinados ao longo dos anos na interpretação de textos.

A exclusão social já se inicia no ensino fundamental e médio, que se caracteriza pela diferença gritante entre o ensino das escolas particulares e o das escolas públicas e que se traduz em dificuldade de domínio da língua aos alunos destas últimas. E não basta o esforço individual em estudar: a trama discursiva implica uma vivência e uma familiaridade com determinados vocabulários e temas, muitas vezes desconhecidos para os alunos advindos das classes populares. A linguagem acadêmica exige um trabalho contínuo de leitura e de interpretação que se inicia na graduação e percorre toda a formação posterior, se o aluno se aventurar no mestrado e no doutorado.

As dificuldades principais: em geral as teorias são apresentadas como se fossem neutras e suas diferenças fossem apenas metodológicas, como se o método fosse apenas uma técnica e não implicasse a posição teórica e política do autor. Conforme Marinho (2010, p. 363-364), o “discurso acadêmico se sustenta por estratégias elaboradas de erudição pouco compreensíveis e usuais para um leigo”. O trabalho do professor é de iniciar o aluno na leitura dos textos e do modo de pensar acadêmico, a fim de habilitá-los na escrita acadêmica. No entanto, sem se submeter cegamente às regras metodológicas que separam forma e conteúdo, aprendizagem que implica saber fazer perguntas e identificar as contradições que permeiam o real, a fim de romper com o horizonte ideológico dominante e exercer a autonomia do pensamento.

Para validar sua pesquisa no contexto do discurso acadêmico, torna-se necessário ao pesquisador apoiar-se em teorias reconhecidas que legitimem seu argumento; nas avaliações mais recentes no campo educacional a bibliografia também precisa ser recente e inovadora, partindo de uma abordagem analítica de dados empíricos o que, na leitura de Adorno (1986, p. 178), “contradiz brutalmente a forma ensaística, pois esta parte do mais complexo, não do mais simples e que já de antemão seja habitual”.

Outra questão que esclarece a linha de investigação acadêmica é a chamada revisão de literatura: Adorno (1986, p. 168) acentua que é como ter que iniciar de Adão e Eva, ou seja, a interpretação deve enraizar-se em “algo filologicamente rígido e fundado”, enquanto o ensaio expressa o pensamento livre, “diz o que lhe ocorre, termina onde ele mesmo acha que acabou e não onde nada mais resta a dizer”.

A objetiva pletora de significações encapsuladas em cada fenômeno espiritual exige de seu receptor, para ser descoberta, exatamente aquela espontaneidade da fantasia subjetiva que se condena em nome da disciplina objetiva. Nada pode ser extraído pela interpretação que, ao mesmo tempo, não seja também introduzido pela interpretação (ADORNO, 1986, p. 169).

Existe aí uma questão metodológica que separa positivismo e dialética e que se constitui na separação que a tendência positivista coloca entre objeto e sujeito, que redunda, no final das contas, na separação entre forma e conteúdo: “segundo o costume positivista, o conteúdo, uma vez fixado conforme o protótipo constituído pela sentença protocolar [...] deveria ser indiferente à sua forma de exposição”, que deveria ser neutra e não imposta pelo assunto (ADORNO, 1986, p. 169).

O que subjaz a esta reflexão é que, no contexto positivista ou cartesiano o método é, também ele, uma forma de controle do discurso e de exclusão do popular, pressupondo que ele funciona como um instrumento exterior ao pensamento. No ensaio, método e conteúdo se articulam na medida em que sujeito e objeto interagem entre si como parte do movimento histórico. O método não é apenas um instrumento ou uma técnica neutra de abordagem do objeto, mas ele é parte do problema a ser resolvido na complexidade da pesquisa em ciências humanas, relacionada ao fato de que os objetos de pesquisa são também sujeitos históricos, situados e condicionados por um contexto social e político. Adorno (1982, p. 12), num escrito cujo objeto é a crítica linguística a uma falsa consciência que mascara as filosofias existencialista, escreve que: “o que a palavra singular perdeu da magia é concedido de forma dirigista, como por medidas oficiais”.

A questão do método implica pressupor que sujeito e objeto estão enredados entre si no movimento histórico-social, nas contradições que precisam ser esclarecidas do ponto de vista cultural e histórico, a fim de entender como interagem ou se excluem a linguagem popular e a linguagem acadêmica na ação dos intelectuais, que produzem um modo de vida. No contexto da sociedade burguesa, a cultura popular se converteu em ideologia a partir da ação dos meios de comunicação de massa, ainda como instrumento de manutenção das relações vigentes de propriedade e poder (ADORNO, 1982).

No fundo, a colocação de Adorno vai na linha das observações de Gramsci (1975, p. 160), quando este acentua que livre pensamento e pensamento livre não são a mesma coisa: o livre pensamento é individualista, escravo das convenções e dos preconceitos. O pensamento livre, por sua vez, é condicionado pela história e se reconhece como tal, entendendo que a verdade jamais deve ser apresentada como dogmática e absoluta, mas depende das condições históricas.

O livre pensador é um utopista, ou seja, o seu pensamento é escravo, não saiu ainda do caos da convencionalidade e do preconceito. Concebe a liberdade de um modo estreito e limitado: liberdade somente para determinadas opiniões, para determinadas conexões de pensamento. Se pode dizer que, no fundo, concebe a liberdade somente para si, para as próprias opiniões, de modo exclusivista e tirânico (GRAMSCI, 1978, p. 260).

O pensamento livre sai dos limites de todas as convenções e de todos os preconceitos. Mesmo sendo livre, é um pensamento condicionado pelas circunstâncias sociais e pela história, tendendo a uma unidade coletiva, a partir da tolerância nos debates e polêmicas. Pensar livremente implica reconhecer as contradições e tentar superá-las “alargando a esfera ideal e humana das próprias ideias” (GRAMSCI, 1978, p. 261).

Adorno (1986, p. 172) pode ser relacionado a estas observações ao comentar a separação entre arte e ciência na história do pensamento, denuncia “traços de uma ordem repressiva” de uma “ciência organizada de cima até embaixo, sem lacunas, coerente e inatingível”, oposta a uma “arte intuitiva” numa organização cuja pretensa redução à objetividade pode ser duramente questionada. A “medida de tal objetividade não é a comprovação de teses já firmadas através de repetidas provas, mas a experiência humana individual mantida por esperança e desilusão”, como foi o caso de Marcel Proust e Henri Bergson, citados por Adorno. Há razões para pensar que estes autores se sentiram constrangidos ante a linguagem acadêmica e suas exigências metodológicas, fator que se refletiu em seus escritos.

Se o ensaio é mal recepcionado na academia, imaginemos, então, a situação da linguagem popular, que é expressão da vida e das atividades coletivas de um povo e, como diz Gramsci (1978, p. 679), “composta ‘pelo povo e para o povo’” e que devemos distinguir da linguagem “composta ‘para o povo, mas não pelo povo’”. Há linguagens e artes que não são do povo, mas são elaboradas para o povo: há que se entender que existe uma terceira linguagem literária popular escrita “nem pelo povo nem para o povo”, mas fácil de ser apropriada pelos subalternos por ser próxima ao senso comum.

A dimensão política da linguagem se expressa no exercício da hegemonia e na formação dos intelectuais que, no âmbito da modernidade, efetiva-se no interior das universidades. Para Gramsci (1978, p. 1638), um grupo social exerce a hegemonia quando detêm os mecanismos de domínio e de direção cultural da sociedade, ou seja, quando detêm os instrumentos que possibilitam submeter pelo uso da força ou pela disseminação de seus valores e modo de pensar assimilado pelas classes subalternas. O “exercício ‘normal’ da hegemonia resulta da combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado sem que a força supere em muito o consenso” ou, o que é mais comum, que a força “apareça apoiada sobre o consenso da maioria”. A disputa, em geral, não aparece como política, mas sim como moral. Neste contexto, o direito exerce uma atuação fundamental para a conservação da hegemonia, preservando a ordem instituída pela aplicação de códigos e normas tradicionais que se apresentam numa linguagem própria do direito e praticamente desconhecida dos comuns mortais. Por meio do “direito o Estado torna homogêneo o grupo dominante e tende a criar um conformismo social que seja útil aos dirigentes” (GRAMSCI, 1978, p. 757). O direito, tomado como norma neutra e válida para todos os indivíduos sem nenhuma referência às desigualdades sociais históricas, obscurece a compreensão da realidade efetiva e enreda as classes subalternas na teia do direito instituído.

Este é um dos exemplos do significado político e ideológico da linguagem, que pode ser acrescido de outros mostrando como a linguagem acadêmica atua na sociedade para a manutenção das relações de poder pela ação dos intelectuais. As desigualdades econômico-sociais que caracterizam a sociedade capitalista, e que são omitidas no discurso acadêmico, se aprofundam na medida em que a produção intelectual resultante da pesquisa é também ela um instrumento de consolidação das relações de poder ao ser apropriada para o desenvolvimento econômico. A adoção de um padrão de qualidade da pesquisa, embora seja importante, não atinge a maioria da população e não contribui para a melhoria das condições sociais, visto que a desigualdade social naturalizada não se apresenta como preocupação fundamental.

As Universidades brasileiras, principalmente as públicas, têm uma atribuição primordial no desenvolvimento cientifico e tecnológico de interesse da sociedade para a melhoria da qualidade de vida, mas, no contexto estrutural de apropriação capitalista, esta contribuição acaba servindo para aumentar as condições de exclusão social. Com o aprofundamento da crise orgânica que vive o Brasil e também com a pandemia, muitos estudantes se veem na situação de ter que repensar sua opção profissional e abandonar os estudos.

Desta perspectiva, a liberdade de pensamento, mesmo nos limites do ideário liberal, é condicionada pelo modo como a linguagem se torna instrumento político de formação da subjetividade e de manutenção da hegemonia, com agravamento das desigualdades sociais pela via do distanciamento das classes subalternas do conhecimento historicamente produzido. Do ponto de vista da hegemonia burguesa, a manutenção desta estrutura em qualquer situação continuará a ser sempre vantajosa, e a educação um instrumento de adaptação ao projeto político que se visa consolidar e manter.

É necessário reconhecer que sempre existirão brechas a partir da emergência de contradições dissimuladas e acobertadas pela própria linguagem; a natureza do Estado moderno se manifesta no modo como se produzem e se desenvolvem as relações de forças sociais e políticas. Como num “cabo de guerra”, exercendo um grande poder ideológico, o cenário sempre pode mudar, visto que a “linguagem é um contínuo processo de metáforas”, a linguagem é um conjunto de coisas vivas; alguns significados se escondem sob as metáforas (GRAMSCI, 1978, p. 1438) e podem desvelar o movimento histórico e a alteração do conjunto de relações de força, e mostrar a necessidade de superar as condições de subalternidade existentes.

Falamos, portanto, do oposto da linguagem acadêmica, cujas regras fecham a linguagem em contornos definidos. Um discurso e um método que delimitam a pesquisa, que constrangem a observar com atenção se se almeja um certo reconhecimento dos pares; a revisão de literatura ou o chamado “estado da arte” demarcam o caminho a seguir e determinam a forma de abordagem dos temas. Uma forma que desconhece que a realidade social é permeada de conflitos e que a desigualdade social e suas determinações passam ao largo deste discurso.

Notas sobre a educação e a linguagem acadêmica

Nos períodos de crise, verificam-se as mais extensas e múltiplas manifestações de liberalismo (GRAMSCI, 1978, p. 2193).

A questão da educação da perspectiva do discurso acadêmico requer que se entenda a dimensão ideológica da linguagem e sua interação com o imaginário popular; demanda ainda que se questione o acesso ao ensino superior e os limites a ele impostos pela profunda desigualdade social que exclui grande parcela da população desde a educação básica. A linguagem culta dos intelectuais se apresenta como um dos meios de exclusão no contexto das relações de dominação que estruturam a sociedade. Explicitar os limites da linguagem acadêmica no processo educativo implica entender como interagem variantes que dependem da formação dos grupos sociais e do nível cultural dos mesmos grupos.

A forma racional, lógica e bem articulada da linguagem acadêmica segundo determinados critérios de organização do pensamento são, em si, um elemento de exclusão das classes subalternas dificultando o acesso ao conhecimento. As possibilidades históricas de mudança social só acontecem quando os grupos subalternos conseguem alguma autonomia de pensamento organizando coerentemente o seu modo de pensar embrionário; isso só se verifica a partir de uma organização política consistente e continuada. A educação formal tem uma importância gigantesca neste processo, mas se faz necessário superar os seus limites.

As formas de domínio que garantem o exercício da hegemonia também se efetivam pela educação formal, cuja tarefa de transmitir os códigos de leitura da realidade se delimitam pela estrutura dos meios de formação que o Estado oferece. A educação tem uma dimensão política e ideológica por fazer parte do processo de organização econômica e social e da formação do comportamento.

A estrutura universitária na qual se consolida e se fortalece a linguagem acadêmica pode ser entendida como uma grande barricada de consolidação das relações de poder vigentes. Para os grupos subalternos, as formas de acesso ao ensino superior que porventura lhe são concedidas não superam as barreiras e outras formas de exclusão social que encontram no seu processo de formação, e uma dessas barreiras é a linguagem acadêmica.

Como acentuamos a propósito das colocações de Gramsci, a “eficácia política da ideologia se apresenta no modo como se abordam os assuntos no processo de aprendizagem” (SCHLESENER, 2016, p. 159). Perder a dimensão histórica da linguagem significa perder a dimensão do movimento da vida em suas contradições e determinações. As normas de produção do discurso acadêmico não somente não correspondem à realidade social, marcada por uma profunda desigualdade econômica, social e cultural, como ainda tornam a linguagem abstrata e estática, ou seja, a linguagem perde o seu significado histórico na medida em que se naturalizam os conceitos reforçando as formas de dominação vigentes. A exemplo de Pasolini (1994), precisamos examinar a questão da linguagem acadêmica de duas perspectivas: do ponto de vista da contradição e da experimentação, que se apresentam como as duas faces da mesma moeda, ou seja, relacionar a questão histórico-ideológica com o problema linguístico, de estilo e método de expressão. Identificar as contradições permite estabelecer as relações entre a produção intelectual e as condições sociais de uma realidade cindida, fator que se constitui na maneira de abrir o acesso não apenas quantitativo, mas qualitativo das classes subalternas ao contexto da universidade.

Para concluir

A abordagem deste artigo se fez no sentido de mostrar como a linguagem acadêmica possui uma dimensão política e ideológica que possibilita manter a divisão social instituída e expressa na hierarquia entre dirigentes e dirigidos. A possibilidade de mudança da linguagem está em que ela possui também uma dimensão histórica e metafórica, que explicamos da seguinte forma:

Ser metafórica significa que possui vários sentidos que se entrecruzam, ou seja, é ambígua e dinâmica, podendo ser instrumentalizada conforme os interesses políticos em presença. Por outro lado, o ambíguo pode ser ainda aquilo que escapa à lógica e à coerência do sistema, aquilo que é inusitado, que gera perplexidade e pode, por suas características, colocar em questão toda a ordem instituída (SCHLESENER, 2016, p. 117).

Em outras palavras, os significados não são neutros, mas sim traduzíveis e conversíveis e, assim como possibilitam a sua instrumentalização, podem gerar as condições de autonomia e emancipação política. A questão da linguagem e sua transformação, assim como a questão da apropriação do conhecimento, torna-se de primordial importância na luta pela hegemonia. A partir de Adorno (2008, p. 201), conclui-se que a “velha e rígida dicotomia de conhecimento valorativo e conhecimento axiologicamente neutro é impossível hoje em dia”. Apesar disso, continua imperando na sua aparência de neutralidade, mas com uma função política precisa de manter e ampliar a divisão social que garante a manutenção da ordem instituída. A leitura crítica das condições presentes da linguagem acadêmica, num contexto de aprofundamento das desigualdades sociais, torna-se fundamental para romper um dos elos de subalternidade e de construção das condições de emancipação política dos subalternos.

Conforme Dias (2012, p. 159), as classes “não são uma classificação topológica, mas articulações de luta, experiências e sociabilidades produzidas conflitivamente na sua oposição estrutural”. Assim, conquistar novos espaços de educação no âmbito do ensino superior é de suma relevância para a luta pela hegemonia, para criar, nos embates políticos, as possibilidades de afirmação de uma nova cultura e de uma nova linguagem. O debate que se firmava no início do século XX sobre a importância dos intelectuais na manutenção da ordem instituída continua válida para o Século XXI. Enquanto houver esta distância hierárquica entre linguagens e suas instrumentalizações, o pensamento dos subalternos continuará a ser elaborado a partir da voz e da fala do outro, da classe dominante.

Finalizamos retomando uma expressão de Pasolini a respeito da burguesia: “Por burguesia não entendo tanto uma classe social quanto uma verdadeira doença. Uma doença muito contagiosa: tanto que ela contagiou quase todos os que a combatem” (PASOLINI, 1982, p. 38). O que se acentua aqui é precisamente o domínio burguês pela assimilação do seu modo de pensar pelas classes subalternas. O ideário liberal (e neoliberal) que sustentam a ordem social vigente tornam o burguês um

vampiro, que não fica em paz enquanto não morde sua vítima no pescoço, pelo puro, simples e natural prazer de vê-la se tornar pálida, triste, feia, desvitalizada, disforme, corrompida, inquieta, cheia de sentimento de culpa, calculista, agressiva, terrorista, tal como ele mesmo (PASOLINI, 1982, p. 38).

Neste contexto, a crítica da linguagem acadêmica, fruto do trabalho permanente dos intelectuais, com efeitos políticos importantes para o exercício da hegemonia, torna-se de fundamental importância para as classes subalternas.

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Recebido: 28 de Julho de 2021; Aceito: 09 de Setembro de 2021

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