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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75612 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Pesquisa formação narrativa (auto)biográfica: da tessitura de fontes aos desafios da interpretação hermenêutica

Narrative (auto) biographical research: from the weaving of sources to the challenges of hermeneutic interpretation

Joelson de Sousa Morais* 
http://orcid.org/0000-0003-1893-1316

Inês Ferreira de Souza Bragança* 
http://orcid.org/0000-0003-4782-1167

*Universidade Estadual de Campinas. Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: joelsonmorais@hotmail.com. E-mail: inesbraganca@uol.com.br


RESUMO

Este texto tem como objetivo desenvolver uma reflexão sobre a abordagem de pesquisaformação narrativa (auto)biográfica, por meio de um olhar retrospectivo para uma pesquisa concluída há 10 (dez) anos e outra que se encontra em andamento. A proposta consiste em um exercício metanarrativo que, ao dialogar com as referidas pesquisas, tematiza o campo dos estudos (auto)biográficos em educação, especialmente quanto ao enredamento de sentidos que unem de forma indissociável pesquisa e formação, a tessitura de fontes narrativas e os desafios da interpretação hermenêutica. Neste exercício teórico e metodológico dialogamos com as contribuições de Christine Josso, Delory Momberger, Elizeu de Souza, Conceição Passeggi e com Paul Ricoeur na discussão da hermenêutica compreensiva. As reflexões indicam que o processo de compreensão e interpretação hermenêutica foi experienciado levando em conta as conversas, mas também a revisitação dos registros escritos para depreender os múltiplos sentidos que as narrativas nos davam a dizer. O movimento de narrar a vida e a profissão docente polifonicamente, pelas narrativas de outros tantos que nos compõem, amplia não apenas nosso leque de saberes, conhecimentos e experiências do ser professor mas, acima de tudo, do aprender continuamente a profissão, a pesquisa, a narração e os diferentes aspectos que desse movimento possam emergir, brotando outras tantas possibilidades teoricometodológicas, epistemológicas, de vida, existência e pesquisaformação.

Palavras-chave: Pesquisaformação; Narrativas (Auto)biográficas; Formação de Professores

ABSTRACT

This text aims to develop a reflection on the narrative (auto) biographical research approach, through a retrospective look at a research completed 10 (ten) years ago and another one that is in progress. The proposal consists of a metanarrative exercise that, when dialoguing with the referred researches, thematizes the field of (auto) biographical studies in education, especially regarding the intertwining of meanings that inextricably link research and training, the fabric of narrative sources and the challenges of hermeneutic interpretation. In this theoretical and methodological exercise we dialogue with the contributions of Christine Josso, Delory Momberger, Elizeu de Souza, Conceição Passeggi and with Paul Ricoeur in the discussion of comprehensive hermeneutics. The reflections indicate that the process of understanding and hermeneutic interpretation was experienced taking into account the conversations, but also the revisiting of the written records to understand the multiple meanings that the narratives gave us to say. The movement to narrate the teaching life and profession polyphonically through the narratives of many others who make up us, broadens our range of knowledge, knowledge and experiences of being a teacher, but above all, of continuously learning the profession, research, narration and the different aspects that may emerge from this movement, giving rise to so many theoretical, methodological, epistemological, life, existence and research-formation possibilities.

Keywords: Research training; (Auto) biographical narratives; Teacher training

RÉSUMÉ

Ce texte vise à développer une réflexion sur la démarche de rechercheformation narrative (auto)biographique à travers un regard rétrospectif sur une recherche terminée il y a 10 (dix) ans et une autre en cours d’exécution. La proposition a pour l’objet un exercice de méta-récit qui, lors du dialogue avec les recherches référencées, thématise le domaine des études (auto)biographiques en éducation, en particulier en ce qui concerne l'entrelacement de significations qui lient inextricablement la recherche et la formation, le tissu des sources narratives et le défis de l'interprétation herméneutique. Dans cet exercice théorique et méthodologique, nous nous établissons un dialogue avec les contributions de Christine Josso, Delory Momberger, Elizeu de Souza, Conceição Passeggi et avec Paul Ricœur en ce qui concerne la discussion de l'herméneutique compréhensive. Les réflexions indiquent que le processus de compréhension et d'interprétation herméneutique a été vécu en tenant compte des conversations, mais aussi de la revisitation des écritures pour comprendre les multiples significations que les récits nous donnaient à dire. Le mouvement pour raconter la vie enseignante et la profession de manière polyphonique, à travers les récits de beaucoup d'autres qui nous composent, élargit non seulement notre éventail de connaissances et expériences d'enseignant mais, surtout, d'apprentissage continu de la profession, de la recherche, la narration et les différents aspects qui peuvent émerger de ce mouvement, donnant naissance à tant d'autres possibilités “théoricométhodologiques”, épistémologiques, de vie, d'existence et de “rechercheformation”.

Mots clés: Rechercheformation; Récits (auto)biographiques; Formation des enseignants

Introdução

O presente artigo tematiza a abordagem de pesquisaformação1 narrativa (auto)biográfica em educação em uma incursão pelos estudos teóricometodológicos desse campo, por meio de um olhar dirigido a duas pesquisas, uma concluída2 e outra em desenvolvimento3. As questões que nos mobilizam são: quais os princípios epistemológicos, políticos e teóricos da perspectiva (auto)biográfica que orientam as referidas pesquisas? Quais os dispositivos metodológicos tomados para a tessitura das fontes narrativas? Como os movimentos de compreensão foram vividos com as professoras participantes?

A pesquisa Histórias de vida e formação de professores: diálogos entre Brasil e Portugal, concluída há 10 (dez) anos, perspectivou uma racionalidade outra, sensível, estética, narrativa, que pudesse trazer a vida, em toda a sua complexidade existencial, como componente fundamental do processo formativo. Dessa forma, as histórias de vida foram tomadas como uma “alternativa metodológica no processo de tematização da própria vida, como espaçotempo de formação docente, fortalecendo o entrelaçamento entre os acontecimentos biográficos que se foram constituindo como experiências instituintes da formação e que vêm das memórias polifônicas da vida, das experiências docentes e da formação acadêmica” (BRAGANÇA, 2012, p. 28. Grifos da autora).

Abordou as histórias de vida de professoras brasileiras e portuguesas, de diferentes regiões e localidades do Brasil e de Portugal, buscando uma racionalidade sensível nos processos de formação, pela escuta das vozes e histórias que articulam vida, formação e profissão. O trabalho envolveu 12 (doze) docentes, sendo (06) seis brasileiras e (06) seis portuguesas, em diversas etapas da trajetória profissional, incluindo professoras iniciantes, as já “maduras” na profissão e as aposentadas.

Pesquisa sonhada no Brasil, desenvolvida lá e cá, no diálogo sobre a vida, a sociedade, as complexidades da escola e da formação de professores em Portugal e no Brasil. A dinâmica dialógica acompanhou o caminho, os encontros, a partilha com as professoras. Tomando de empréstimo um dispositivo da pedagogia Freinet4, o livro da vida foi uma especial companhia, colocou-se como narrativa escrita sobre o processo, um espaço de questionamentos, de reflexões sobre sentidos da pesquisa em suas interfaces com a vida, onde tramas pessoais e acadêmicas se imbricam.

O termo “Livro da Vida”, como parte integrante da presente pesquisa, busca trazer a intensidade dos caminhos percorridos ao longo do processo. É “livro”, pois propõe o registro das “idas e vindas” e, apesar de intrinsecamente ligado a todo movimento da pesquisa, apresenta certa independência do formalismo acadêmico: não se coloca como capítulo ou item constitutivo da tese, mas como espaço de autorreflexão sobre a pesquisa. Sua proposta é o relato, a narrativa e, nesse sentido, é mesmo “da vida”, traz a densidade de pulsações que vão se apresentando em diferentes dimensões, entrelaçando visões e emoções de cada momento/ciclo desse processo. Setembro de 2004 (BRAGANÇA, 2012, p. 35).

O caminho trilhado envolveu três entrevistas, encontros narrativos com cada professora; nos dois primeiros, fomos guiados pela conversa que trouxe cenas que foram entrelaçando experiências polifônicas da vida em suas múltiplas dimensões, enquanto o terceiro foi dedicado à compreensão partilhada das histórias tecidas, em ensaios de co-interpretação (MOTTA, 2019).

Por sua vez, a pesquisa Fios e tramas em contextos de pesquisaformação e suas implicações na tessitura narrativa de professores/as iniciantes encontra-se em desenvolvimento e tem como dispositivos metodológicos utilizados: a) a imersão no cotidiano escolar; b) conversas; c) diário de pesquisa; e d) narrativas escritas. No que diz respeito ao processo de compreensão e interpretação das narrativas, trabalhamos com a hermenêutica da narratividade e temporalidade fundamentada em Paul Ricoeur (2010).

As professoras iniciantes que participam dessa pesquisa, ao todo em número de três, atuam duas delas em uma mesma escola, lecionando no terceiro ano do Ensino Fundamental, enquanto a outra exerce a docência no 5º ano do Ensino Fundamental em outra escola. O trio de professoras se encontra, desde o início da profissão, nas respectivas escolas onde está em desenvolvimento a pesquisa. A pesquisa que resultou neste artigo foi realizada entre os meses de fevereiro a março de 2020, em um período anterior à paralisação das aulas em função da pandemia do Covid-19. No município em que as docentes participantes da pesquisa estavam atuando, Caxias/MA, o funcionamento das escolas e atividades presenciais de aulas nas instituições foi paralisado oficialmente em 16 de março de 2020, por um decreto público municipal.Delory-Momberger (2012), ao discutir abordagens metodológicas na pesquisa biográfica, afirma a importância de, inicialmente, reafirmar o projeto epistemológico dessa abordagem, a saber, “[...] o estudo dos modos de constituição do indivíduo enquanto ser social e singular” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 524), uma singularidade tecida em experiências sociais, históricas e políticas. Esse projeto epistemológico, no campo educativo, dá contornos à formação humana como sua especificidade; nos movimentos de biografização ao longo da vida, vamos nos (trans)formando, nos dando forma, como afirma Couceiro:

[...] de algum modo as Histórias de Vida são uma “mediação” para a formação. Não no sentido de as considerar como uma técnica de formação, mas como uma abordagem que produz, ela própria, um certo tipo de formação e um certo tipo de conhecimento. Ou seja, as Histórias de Vida influenciam a natureza da formação que se produz, introduzindo mesmo uma ruptura epistemológica no conceito de formação (COUCEIRO, 2002, p. 157).

Assim, a pesquisa (auto)biográfica em educação tem, nos movimentos formativos, a especificidade de seu projeto epistemopolítico. As experiências vividas vão tecendo, em dinâmicas singulares-plurais, uma figura de si e do nós em permanente devir, e a biografização, nas suas diversas formas de expressão, orais, escritas, imagéticas, favorece uma reflexividade potencialmente formadora. Na pesquisa (auto)biográfica a tessitura e a compreensão das fontes narrativas geram movimentos potencialmente formadores. Nesse sentido, assumimos a radicalidade da pesquisaformação.

Tomando essa referência, no diálogo com autores do campo, em um olhar desejante do tempo de agora benjaminiano e do tríplice presente ricoeuriano, desenvolvemos o artigo como uma metanarrativa, retomamos o narrado há 10 (dez) anos e o que está sendo narrado no momento atual, visando identificar permanências insistentes e reinvenções produzidas, com o objetivo de tematizar a abordagem de pesquisaformação narrativa (auto)biográfica, nomeadamente tal como na discussão proposta por Delory-Momberger (2012), a produção de fontes narrativas e a compreensão hermenêutica.

O convite é para que acompanhem a história de nossas viagens, retomando pela “memória” as aprendizagens do caminho, pela “visão” do presente o imperativo de pensá-las criticamente, já que como experiências de pesquisa precisam ser rigorosas e metódicas, e pela “espera”, sonhar e construir futuros que se abrem.

A pesquisaformação, os contextos epistemopolíticos e a produção de fontes narrativas

Aqui nos laçamos ao desafio de uma metarreflexão. Imersos no tempo de agora, somos desafiados por questões que nos levam a problematizar as experiências vividas, com destaque para os movimentos de tessitura de fontes narrativas.

A tese Histórias de Vida e Formação de Professores foi desenvolvida a partir dos referenciais da pesquisa-formação5, perspectiva que remonta o início da década de 1980 pelo pioneirismo das histórias de vida em formação, com Gaston Pineau, na Universidade de Montreal, e que foi também desenvolvida por Marie-Christine Josso, no grupo que ela integrava junto com Matthias Finger e Pierre Dominicé, na Universidade de Genebra, em atividades em que estes denominaram de Seminário de Histórias de Vida e Formação (ABRAHÃO, 2016).

Josso (2010) nos convida a pensar que a pesquisa-formação consiste em uma tomada de consciência pelos sujeitos a partir dos percursos trilhados em suas trajetórias de vida, profissionais e formacionais, e que nesse movimento se potencializam aprendizagens mediadas pelos contextos formativos e reflexivos que se entrelaçam entre o pesquisar e se (auto)formar simultaneamente, levando, assim, a uma transformação e construção do conhecimento científico e de si.

Ao adotarmos os postulados da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica na pesquisa científica, nos unimos ao desejo de uma ciência emergente, corroborando com Boaventura Santos (2010), no sentido de dar a ver e credibilizar os saberes e experiências narrativas com que tecem cotidianamente as professoras em seus contextos socioculturais e fruto do que produzem, implicando em uma potencialidade e riqueza teoricometodológica e epistemológica na tessitura de outras tantas ciências plurais, significativas e emancipatórias.

A junção das duas palavras-conceito em nossos trabalhos, conforme usamos no presente texto, é recente (BRAGANÇA, 2018) e aponta para a assunção de uma indissociabilidade radical entre as dimensões de pesquisa e de formação presentes nos trabalhos que realizamos e que vieram como desdobramentos da referida pesquisa. Nesse sentido, pensamos que a pesquisaformação “[...] no processo de compreensão dos sentidos formativos, plasmados em cada história narrada, não acontece apenas para quem academicamente pesquisa. Acontece, também, para quem, reflexivamente, narra” (MOTTA; BRAGANÇA, 2019, p. 1044).

A potencialidade da pesquisaformação na abordagem narrativa (auto)biográfica se revela, portanto, rica na co-construção de inúmeras reflexões e transformações que acontecem em um voltar para si, resgatando memórias, histórias e percursos que, ao longo do processo formativo e de vida tecido pelo sujeito, vão nos fazendo - no momento em que acontece essa tomada de consciência do refletido - tecer, também, um processo de (auto)formação capaz de ser mobilizador de emancipações implicadas nos itinerários formativos da experiência em curso.

Assim, concordamos com a ideia de uma ciência plural que dialoga com o cotidiano e com os saberes contra hegemônicos

[...] Contrariamente ao modelo tradicional, fundado em divisão disciplinar e na dicotomia teoria-prática, a pesquisa-formação adota metodologias interativas, simbolizadas pelo traço de união que torna inseparáveis os processos de pesquisa e de formação, ou de pesquisa-ação-formação. Se no modelo clássico, o objetivo é depreender leis e princípios aplicáveis à ação educativa, na pesquisa-formação, destacam-se como objetivos a compreensão e historicidade do sujeito e de suas aprendizagens, o percurso de formação e, sobretudo, de emancipação, promovida pela reflexividade autobiográfica que, superando a curiosidade ingênua, cede lugar a curiosidade epistemológica e a constituição da consciência crítica. A pesquisa passa a fazer parte integrante da formação e não alheia a ela (PASSEGGI; SOUZA, 2017, p. 15).

Os autores destacam a centralidade da pesquisa-formação no âmbito da pesquisa (auto)biográfica e também enfatizam a aposta decolonizadora e posdisciplinar como parte de seu projeto epistemopolítico. Bem como, o desejo de construção de um conhecimento científico em uma ecologia de saberes (SANTOS, 2010), no sentido da valorização da experiência narrativa do outro com o qual partilhamos o cotidiano da pesquisaformação.

Partindo dessa perspectiva epistemopolítica, perguntamos: como produzir fontes narrativas? Delory-Momberger (2010, p. 526), ao desenvolver uma discussão sobre a entrevista biográfica, aponta para os paradoxos que envolvem esse dispositivo metodológico e questiona o que a diferencia de outras entrevistas. Segundo ela, a entrevista biográfica busca “[...] apreender a singularidade de uma fala e de uma experiência”, o foco da pesquisa se dirige à tessitura da biografização em trajetórias de vida que se constituem “[...] a partir da conjugação de sua experiência (e da historicidade de sua experiência) e dos mundos-de-vida, dos mundos de pensar e agir comuns de que participa”. A autora ainda ressalta que na pesquisa (auto)biográfica há o desafio de um “entrevistar-se com”, uma implicação de mão dupla que põe em questão lugares hierarquizados entre pesquisador e participantes, que afirma os participantes como pesquisadores e, assim, “[...] um duplo espaço heurístico que age sobre cada um dos envolvidos: o espaço do entrevistado na posição de entrevistador de si mesmo; o espaço do entrevistador, cujo objeto próprio é criar as condições e compreender o trabalho do entrevistado sobre si mesmo”. A partir disso, podemos nos perguntar se tal dinâmica não se expande e transborda em sentidos de tal forma que a clássica expressão entrevista não seja mais suficiente para dar a ver da experiência que vivemos quando juntos, em pesquisaformação, nos encontramos para narrar a vida.

Na pesquisa Histórias de Vida e Formação de Professores, os encontros se deram entre a professora-pesquisadora e cada uma das participantes em um formato nomeado como entrevista, com a mediação de um roteiro cuidadosamente preparado. O que vivemos, entretanto, transbordou para uma conversa, um círculo virtuoso entre narrativa e escuta, um encontro narrativo. A leitura de um livro infantil quebrou a cronologia e a linearidade e fez irromper o tempo intenso da experiência. As professoras envolvidas foram conduzidas a um movimento de reflexão sobre a vida, a docência, a formação e, após os ensaios de interpretação partilhada, escrevam uma narrativa escrita, retomando a experiência de pesquisa e seus sentidos.

Em nosso grupo de pesquisa6, a palavra-conceito “entrevista passou a não ser suficiente e juntamos a ela à conversa, caminhando para a assunção de entrevistasconversas, ao reconhecer a força da conversa que toma e transforma sentidos canônicos no campo das ciências sociais, pois nossa experiência de pesquisaformação se dá em encontros narrativos que incorporam a conversa como dispositivo metodológico (RIBEIRO; SOUZA; SANCHES, 2018). Os encontros narrativos são mediados por roteiros, tópicos abertos que vão sendo tecidos como fios ao longo da conversa. Para romper com qualquer sedução pela linearidade, iniciamos com dispositivos de memória, objetos, imagens, textos literários, dentre outros, que possam fazer disparar um “fiar com”, uma tessitura de intrigas na produção de histórias compartilhadas.

A pesquisa com professoras iniciantes anteriormente apresentada tem na conversa e na produção de narrativas escritas seu caminho na tessitura de fontes narrativas, em que narramos tanto quanto as docentes, passando a registrar por escrito no diário de pesquisa, o que gera uma multiplicidade de efeitos, tomadas de consciência e uma reflexividade de nós, do ser pesquisadores, mas acima de tudo, professores, formadores de futuros professores, e produtores de saberes, experiências e conhecimentos que de forma coletiva foram se compondo nas atividades de pesquisa e de se formar em partilha.

Não estamos apenas pesquisando, estamos nos formando com as professoras iniciantes e com os muitos sujeitos que habitam e transitam na escola, e nos (auto)formando. Fruto do entrelaçamento com inúmeras narrativas que vamos compartilhando e com as múltiplas linguagens que conseguimos perceber, refletir e tomar consciência da potencialidade que estas geram na tessitura do saber e conhecimento científico e para além disso, na afetação que pode ir nos moldando e trazendo outras tantas emoções, sensibilidades, prazeres e desenvolvimento.

Perspectivamos, assim, a construção de um conhecimento científico que se diga de outros modos, aberto a múltiplas linguagens e a uma ecologia de saberes, em uma atitude decolonial, um conhecimento não hierarquizado, construído e partilhado em roda. A produção de fontes narrativas tecidas ao longo das pesquisas nos convocam ao diálogo, à construção partilhada de sentidos e interpretações, e para esse desafio de nosso pensarfazer trazemos, a seguir, reflexões de Paul Ricoeur.

Contribuições da hermenêutica da narratividade e temporalidade de Paul Ricoeur

Situar a hermenêutica da narratividade e temporalidade nos princípios ricoeurianos e na tessitura de experiências do vivido na pesquisaformação entre pesquisadores e sujeitos participantes do estudo, se traduz no mergulho em profundidades inteligíveis da produção de conhecimentos tecidos nas narrativas (auto)biográficas que juntos fomos compondo nos encontros narrativos e na imersão que tivemos no cotidiano escolar.

Esse processo hermenêutico que primamos para produzir saberes, experiências e conhecimentos no contexto da pesquisa científica, reflete-se em uma potencialidade que se transpõe em um universo de constituição de uma ciência outra, dando centralidade às narrativas (auto)biográficas que emergem do encontro, da conversa e da experiência no cotidiano.

Cabe, aqui, situar as contribuições de Delory-Momberger (2008), quando invoca o processo de compreensão hermenêutica. Segundo a autora: “[...] a narrativa (auto)biográfica instala uma hermenêutica da ‘história de vida’, isto é, um sistema de interpretação e de construção que situa, une e faz significar os acontecimentos da vida como elementos organizados no interior de um todo” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 56. Grifos da autora). A hermenêutica no contexto da pesquisaformação nos leva a pensar um modo outro de compreensão e reflexão do conhecimento científico, que se delineia nas mediações das experiências cotidianas do vivido e da composição da narrativa desse experienciar, que ganha legitimidade em espaçostempos em articulação com os percursos trilhados e dos contextos, pessoas e na temporalidade em que se inscreve.

Trazer a hermenêutica da narratividade e temporalidade em Paul Ricoeur nos coloca inicialmente de frente para uma curiosidade epistemológica que nos incitar a pensar: O que nos dar a ver a narrativa? Tendo como referência a tríplice mimese em Ricoeur, que implicações são propiciadas pelas narrativas (auto)biográficas ao transitarmos entre o acontecido (o plano da ação), o narrado (a narrativa materializada) e as reflexões que tecemos nos movimentos de leitura ou outras formas de apropriação da narrativa do acontecimento (a compreensão e interpretação do narrado)?

As dinâmicas da mimese em Ricoeur (2010) nos ajudam a situar a produção narrativa como um processo humano e também lançam luz sobre os desafios da compreensão hermenêutica das fontes. Estar imerso no campo da ação, na vida cotidiana, implica em uma pré-compreensão (mimese I). Estar ali em plenitude permite viver a ação e ao mesmo tempo refletir sobre ela. Nesse sentido, a interpretação articula-se ao viver o campo da ação. A retomada narrativa da ação é tramada na produção de um enredo que tece diferentes fios de uma história que não estava dada, mas que é construída na tessitura da intriga (mimese II), uma história que possa ser seguida e que partilhada com leitores segue aberta às múltiplas interpretações e sentidos (mimese III). O encantador movimento da mimese encarna, em todas as suas fases, produção narrativa e compreensão. Assim, quando dirigimos o olhar para as fontes narrativas da pesquisaformação (auto)biográfica reconhecemos nelas movimentos de compreensão interpretativa que se dão na enunciação, na composição e na leitura, envolvendo desse modo todos os participantes.

Tal perspectiva, de situar a compreensão interpretativa, consiste em um modo privilegiado de dialogar horizontalmente com os sujeitos com os quais pensamos as ações, praticamos o cotidiano e refletimos os tempos e espaços da experiência, em articulação com os movimentos que se produzem em interpelações produtoras de sentidos e significações as mais diversas que se compõem coletivamente entre um e outro: pesquisadores e participantes da pesquisa. Partimos então do princípio de que “[...] a construção do conhecimento científico sobre o mundo, a vida e a formação se afirma no encontro e no diálogo com o outro e nas possibilidades que esse encontro gera ao ensinar, ao aprender e, especialmente, no transformar de si, do outro e do mundo, em partilha” (BRAGANÇA, 2012, p. 192).

O entendimento do termo compreensão por nós subjaz um processo de tomada de consciência de uma ação ou acontecimento em que o sujeito constrói ou materializa em função de suas vivências ou experiências que tem ou teve, tornando-se única, irrepetível e, portanto, singular. O sentido de compreensão a que evoca o filósofo francês refere-se a um entendimento que advoga uma certa singularidade, e que, portanto, se transmuta de uma dimensão a outra que não seja capaz de se repetir, dado o acontecimento que, diferentemente de um outro, poderá emergir em momentos temporais distintos. Ou, como ele próprio elucida: “[...] a compreensão em sentido amplo define-se como o ato de apreender conjuntamente em um único ato mental coisas que não são experimentadas juntas ou nem podem sê-lo, porque estão separadas no tempo, no espaço ou de um ponto de vista lógico” (RICOEUR, 2010, p. 263).

Algo só pode ser compreendido quando passa pelo plano da ação e da experiência. Logo, o acontecimento precisa emergir ou brotar de uma situação que se origina das relações tecidas cotidianamente pelas experiências em que os sujeitos se lançam ou se situam em um determinado contexto, envolvendo movimento que por vezes pode ser suscitado ou no plano da abstração ou da materialização de uma ação em que se desloca de um ponto X para um ponto Y modificando, assim, o que outrora era para o que poderá ser. A isso chamamos de deslocamento temporal da experiência, que consiste em uma transformação experiencial do sujeito mediado pelas transformações do meio, do contato com as coisas, ou com outras pessoas e lugares.

Vemos a potencialidade da compreensão como uma dimensão fundante dos processos de produção de sentidos na pesquisa científica, que prima pelo gênero da narrativa como perspectiva teoricometodológica de produção de fontes, do saber e do conhecimento, mediatizados pelas reflexões e percursos formativos em que situa o contexto, os sujeitos e as múltiplas questões que são passíveis e exequíveis de compreender e apreender durante o processo de pesquisar, aprender e se formar dialeticamente. Trata-se de fazer brotar tessituras inteligíveis que dão substancialidade ao que se está pesquisando, ao mesmo tempo em que reverberam em dimensões formativas e reflexivas dos percursos trilhados no processo de pesquisaformação. Assim, “[...] compreender a ação é reviver, reatualizar, repensar as intenções, as concepções e os sentimentos dos agentes” (RICOEUR, 2010, p. 213).

O processo de compreensão na pesquisa científica primando pela hermenêutica no âmbito da abordagem da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica implica um modo de compreender também a si, o que significa pensarmos o mundo subjetivo em articulação com o mundo objetivado pelo sujeito, passível de uma construção inteligível que amplia as possibilidades de entendimento da ação e uma reflexão na tomada de consciência que leva a transformação e, consequentemente, a emancipação do sujeito.

Para compreender a narrativa, então, torna-se necessária e emergente a compreensão de si no movimento entre a experiência de narrar, as lógicas do acontecimento, e o que impulsiona a tessitura dessa narrativa, até porque existem razões, motivos e escolhas que fazem emergir no escrito, ou por meio de outros artefatos de registrar o narrado, e que toda essa trama vai possibilitar a compreensão e sua materialização como dimensão inteligível de entender e tecer as ideias na construção do conhecimento científico.

Nas narrativas uma multiplicidade de sentidos podem ser revelados, compreensões e interpretações oriundas de quem narra, de quem lê a narrativa ou de quem a ouve, a vê, enfim, dos sujeitos envolvidos na tessitura entre o narrar, compreender e refletir a experiência se compondo em narrativas dos múltiplos aspectos que lhes constituem quando narra o que narra. Assim, concordamos que “[...] as narrativas são totalidades altamente organizadas, que exigem um ato específico de compreensão, da natureza do juízo” (RICOEUR, 2010, p. 257. Grifos do autor).

Ricoeur (2010) desenvolve uma profícua reflexão acerca de como se dá o processo de interpretação hermenêutica focalizando os estudos historiográficos, em decorrência do trabalho do historiador na tessitura do saber e do conhecimento científico, o que se correlaciona com a partilha de experiências, reflexões e saberes que tecemos com os sujeitos participantes de nossos estudos. Segundo o filósofo, tecendo compreensões da leitura de Charles Franckel acerca da interpretação no campo da história, “[...] o momento da interpretação é aquele em que o historiador avalia, isto é, atribui sentido e valor” (RICOEUR, 2010, p. 196).

Entendemos então, que o processo de interpretação implica em um movimento que, de forma encadeada, mobiliza saberes e conhecimentos de mundo, das coisas e dos aspectos e contextos com os quais se defronta o sujeito, que emerge internamente de sua consciência ou do que já entende, para dar sentido a uma experiência expressa em uma materialidade. O que, de certo modo, se hibridiza pelo atravessamento assimétrico e não linear entre os fins, objetivos e ideias. A hermenêutica na pesquisa científica nos incita à aventura de instituir modos outros de significação do vivido e experienciado, que vão sendo tomados pelo sujeito através das múltiplas questões subjacentes ao contexto da subjetividade, em articulação com o que está a tecer, ver, sentir e revelar de alguma forma palpável o que lhe representa, significa ou lhe faz entender.

Interpretar é, portanto, dar sentidos outros a uma materialidade que é experienciada pelo sujeito que, no caso da narrativa, sendo esta oral ou escrita, quando evocada, dá a ver diferentes fios de uma história, revelando o mundo de significação atribuída pelo sujeito e pelas questões que encadeia na rede de pensamentos e reflexões que empreende. Por isso, Ricoeur (2010) declara a pertinência dos processos de interpretação compostos nas práticas e vestígios que o historiador consegue enxergar dos percursos trilhados no decurso de uma pesquisa, de um acontecimento ou fato que transita entre as diferentes temporalidades que se pode atribuir à fonte, seja no passado, presente ou futuro.

Não há uma simetria, enquadramento ou transferência de um modo interpretativo para outrem. Logo, se constitui em um processo subjetivo e singular que, pelo seu caráter de particularidade, traduz-se em uma riqueza de possibilidades criadoras que o sujeito consegue inaugurar, como no caso da narrativa, em que se faz presente um conjunto de significações e subjetividades revelando muito do que o sujeito narra, lê ou ouve de uma narrativa.

Desse modo, a potencialidade do processo interpretativo na pesquisa científica, e com a qual temos tecido no contexto da pesquisaformação, nos tem feito ver que “[...] a narrativa possibilita a expressão da experiência vivida pelo sujeito ao mesmo tempo que a transforma na comunicação intersubjetiva do diálogo: ao ser dita, a experiência se transforma em seus sentidos” (BRAGANÇA, 2012, p. 121).

Na pesquisaformação com professoras brasileiras e portuguesas, tomamos Ricoeur como referência teórica, nos aproximamos da hermenêutica e percorremos os movimentos de compreensão também com a contribuição de “Histórias de Vida: teoria e prática” (POIRIER; CLAPIER-VALLADON; RAYBAUT, 1999). Na referida obra, os autores desenvolvem uma discussão sobre as histórias de vida no contexto de uma ciência social transdisciplinar. Destacando questões que envolvem método, contradições teóricas, apresentam diversos desdobramentos metodológicos como entrevistas, etnobiografias e histórias de vida cruzadas, dedicando especial espaço de reflexão ao tratamento do material biográfico. A proposta dos autores parte de uma perspectiva de compreensão ampla das fontes para, a seguir, detalhar de forma minuciosa processos de análise de conteúdo, com enfoque em fontes narrativas.

Os encontros narrativos com as professoras brasileiras e portuguesas foram realizados, respectivamente, nos anos de 2005 e 2006. A tessitura narrativa se deu em cada encontro durante os quais enunciação e compreensão seguiram de forma indissociável. Os fios tecidos na produção da intriga traduzem a versão da história que já contém, ela própria, interpretação. As fontes orais foram transcritas na íntegra pela pesquisadora que, ao ouvir repetidas vezes as histórias narradas, foi fazendo relações, levantando questionamentos, retecendo enredos. O material transcrito foi enviado às professoras para leitura e possíveis revisões e complementações. A pesquisadora trabalhou em diversos quadros, esquemas, comentários, tematizações, indo da tessitura aos fios e dos fios à tessitura, idas e voltas na complexidade de escalas entre o particular e global de cada história e também de suas relações com os contextos sociais, históricos e políticos. No terceiro encontro realizado, o material foi retomado em uma partilha sobre a experiência narrativa, caminhos de uma interpretação com ou como temos chamado co-interpretação (MOTTA, 2019).

Um momento significativo da construção partilhada consistiu na escrita da biografia educativa de cada uma das professoras. Os movimentos sobre as narrativas orais, transcrições e quadros os mais diversos, favoreceram uma nova produção da história de formação em textos escritos pela pesquisadora em diálogo com suas colegas também participantes da pesquisa, criando nova tessitura de intrigas que buscou dar a ver a inteligibilidade da vida como processo formador na trajetória individual das professoras. Os textos das biografias educativas foram encaminhados a cada professora para leitura e contribuições e, passados cerca de um ano após os encontros narrativos, as professoras produziram narrativas reflexivas escritas sobre a participação na pesquisaformação. Nesses exercícios, explicação e compreensão caminharam juntas em idas e voltas na interpretação que se desejou partilhada e hermenêutica. Ao longo do caminho sempre nos acompanhou o livro da vida, espaçotempo de narrativa da pesquisaformação em movimento, e seus escritos compuseram e atravessaram a tese de diferentes formas, como pequenos fragmentos que, a cada capítulo, foram apresentando a história da pesquisa, e também como parte do próprio texto.

Com as professoras iniciantes tem se dado assim: a partir de nossas conversas vão sendo produzidas uma multiplicidade de composições narrativas, tecidas à luz da escrita em nosso diário de pesquisa, que vão favorecendo, tanto no encontro em que estamos dialogando como em outros posteriores, uma revisitação do registrado, passando a (re)compor outros tantos sentidos interpretativos entre nós, que lemos o que escrevemos, e as participantes da pesquisa, que nos dão a ver outros elementos, saberes e conhecimentos presentes na narrativa, que também se amplifica e se pluraliza a partir desse adensamento compartilhado.

Logo, acreditamos que o encadeamento de vários fatos e acontecimentos das experiências narrativas que as professoras iniciantes foram evocando no processo de conversação conosco, perfilou-se em um conjunto de narrações que foram oferecendo sentido, à medida em que fomos refletindo e reconstruindo o dito, vivido, refletido ou experienciado.

Quanto à temporalidade presente em uma narrativa e do contexto temporal em que se encontram as professoras iniciantes, torna-se fundamental que o pesquisador empreenda uma mobilização compreensiva e interpretativa de situar: a) em que momento e etapa da profissão se encontram as professoras, o que incidirá no modo como narram de si e de suas experiências, aprendizados e conhecimentos; b) quais experiências já trilharam e o que tem significado estas na sua vida pessoal e profissional; c) que elementos emergem em suas evocações narrativas que se revelam mais significativos e marcantes; d) como se veem enquanto professoras e o que percebem destacar-se mais fortemente no seu cotidiano experiencial, entre outras inúmeras questões que revelaram-se durante as conversas que com elas fomos estabelecendo.

A intepretação hermenêutica, portanto, implica uma tomada de posição tanto axiológica que fazemos do que são possíveis de percebermos e enxergar nas narrativas, como é fruto do entrelaçamento dos muitos aspectos que foram possíveis notar, viver e experienciar no cotidiano das professoras iniciantes, em que também se fazem presentes as crianças, os demais profissionais e a cultura escolar com suas diferentes lógicas de funcionamento, organização e das relações que foram se compondo nos espaçostempos escolares, etc.

Há, portanto, uma temporalidade em que cada professora iniciante responde e corresponde ao que lhes apresentam, ou que criam e faz brotar de acordo com suas especificidades e dos acontecimentos que se processam no cotidiano de sua prática pedagógica, e com as relações e encontros que fomos tecendo juntos, entre professoras e pesquisadores. São outras lógicas percebidas, sentidas, compreendidas e interpretadas, já que estão elas com outras pessoas as quais outrora não estavam na escola, e que, por isso mesmo, vão nos narrando de forma espontânea e não programada o que conseguem lembrar, e sentem-se à vontade para dizer e o que surge durante nossas conversas. Nesse sentido, elucidamos que:

[...] a temporalidade biográfica configura-se como outra vertente estruturante da experiência humana e das narrativas num tempo biográfico, ao explicitar territórios da vida individual e social, através das experiências vividas e narradas pelos sujeitos, implicando-se com princípios hermenêuticos e fenomenológicos que caracterizam a vida, o humano e suas diferentes formas de expressão e manifestação (SOUZA, 2014, p. 41).

A potencialidade e a riqueza do trabalho com a hermenêutica no desenvolvimento de uma pesquisaformação reflete-se na pluralidade de fontes que vão nos dando inúmeras possibilidades de compreensão da experiência do vivido e que trazem um adensamento e tessituras outras de apreensão dos sentidos e mediadoras dos percursos interpretativos que se consolidam implicadamente entre pesquisadores e sujeitos participantes da pesquisa. Tal movimento se dá com base emaprendizagens e formações coletivas que disparam elementos encadeadores de uma (auto)formação e transformação do sujeito, do conhecimento que ele stá se apropriando e construindo, e se ampliam em outras dimensões relacionadas à profissão, ao processo de pesquisa e às compreensões que os percursos trilhados nos dão a ver, refletir e a compreender.

Lições sobre experiências em pesquisaformação

A reflexão sobre as experiências da pesquisaformação que partilhamos, tanto a que foi concluída em 2009 quanto a que se encontra em andamento, tem contribuído para a tessitura de nossas aprendizagens e a construção de referenciais teoricometodológicos e epistemológicos quanto aos desafios da produção de fontes narrativas. Essa articulação mediada pelas conversas com as docentes, foi o que nos fez direcionar nossas escolhas, perceber as múltiplas nuances desse caminhar e criar o que se tornou pertinente e plausível em função do que foi se apresentando, de modo a se tornar uma via fundamental de construção do conhecimento científico. Por isso, retomamos o questionamento: Como tem se dado o processo de produção e compreensão hermenêutica nos movimentos da pesquisaformação narrativa (auto)biográfica com as professoras? Tem se dado, então, no entrelaçamento de nossas conversas, transcrições e registros narrativos nos diários de pesquisa em que fomos tecendo uma rede rizomática de saberes, conhecimentos e experiências, que se produziram polifonicamente entre nós pesquisadores e as professoras participantes. E como aconteceu essa produção de sentidos mediados pela articulação com os dispositivos metodológicos que experienciamos com as professoras? Por meio da construção e reconstrução de narrativas orais e escritas das histórias de vida e das experiências pedagógicas desenvolvidas pelas professoras e registradas por nós colaborativamente durante os encontros que juntos tivemos ao longo dos caminhos trilhados.

Nesse percurso, o diário figurou sempre como nosso companheiro fiel. Na pesquisa com as professoras portuguesas e brasileiras, após cada encontro narrativo, o livro da vida era espaçotempo especial do registro ainda encharcado de emoção, ali ficaram as inseguranças da pesquisadora, as dúvidas, o registro dos gestos. Esse material foi muitas vezes retomado, relido, reescrito, num movimento contínuo de sair do livro e entrar na tese.

No cotidiano escolar com as professoras iniciantes, durante as conversas que tivemos, fomos registrando, por escrito, o que ia surgindo em nossas conversas, fruto do que nos narravam as docentes. Fomos tecendo narrativas dos encontros, que depois foram por nós lidas às professoras, e que passaram a recompor o escrito narrativo, quando diziam outras coisas aconteceram e que se somavam aos nossos registros, bem como teciam reflexões de que passaram a perceber através das nossas escritas narrativas lidas para elas. Assim, acabamos fazendo uma reconstrução narrativa, pois passamos a acrescentar palavras, expressões, experiências e mesmo endossar o que estava registrado, dando uma outra feitura composicional ao texto em sua versão final.

O que estava escrito narrativamente, no livro da vida e no diário das experiências pedagógicas e de outros tantos elementos que iam sendo desvelados pelas professoras, passava a ser - por meio da leitura - compreendido, refletido e interpretado pelas docentes. Agimos, assim, em uma dimensão ética e responsável no contexto da pesquisaformação tecida com elas. Desse modo, o processo de compreensão e interpretação hermenêutica foi praticado levando em conta as conversas, mas também à revisitação dos registros escritos para depreender os múltiplos sentidos que as narrativas nos davam a dizer.

As reflexões tecidas só foram possíveis porque estivemos com elas, regadas a conversas, gestos, linguagens outras que, coletivamente, foram produzindo tantos sentidos, quanto compreensões e interpretações. Temos, desse modo, a perspectiva hermenêutica pelos contributos de Ricoeur (2010), em diálogo com a perspectiva de alteridade em Bakhtin (2003; 2017), pois, a produção do conhecimento foi possível em um jogo de relações que nos afetou e transformou o nosso olhar e nós mesmos acerca dos muitos sentidos, compreensões e experiências que juntos fomos tecendo se deixando implicar um pelo outro nos movimentos da pesquisaformação. A relação com o outro é produtora de transformações e implicações diversas que mudam um estado de ser e estar para outro, mediado pelos processos inter-relacionais que juntos compomos coletivamente, uma vez que “[...] é o outro possível, que se infiltrou na nossa consciência e frequentemente dirige os nossos atos, apreciações e visão de nós mesmos ao lado do nosso eu-para-si” (BAKHTIN, 2003, p. 140).

A tônica da pesquisaformação foi pautada pelo que também fez Bragança (2012, p. 162) no sentido de “[...] compreender o entrelaçamento de diferentes fios que se articulam de forma complexa e não linear”, tendo em vista que, dialeticamente, fomos compondo uma conversação com as fontes narrativas que iam surgindo na partilha de nossas experiências, o que se deu de forma disparadora no ecoar das narrativas das professoras durante os encontros.

Temos desenvolvido a interpretação hermenêutica no processo de pesquisaformação não nos atrelando apenas ao âmbito das narrativas, daquilo que nos narram as professoras, mas entrelaçados a uma educação sensível no sentido benjaminiano (BENJAMIN, 2012), que se tece entre os ditos e não-ditos, a propósito do que emerge em múltiplas linguagens, sejam elas gestuais, sonoras, visuais, imagéticas, orais, escritas e outras tantas que vão se compondo e revelando numa pluralidade de conhecimentos, aprendizados, saberes e experiências que potencializam cada vez mais o compreender e interpretar a si, tanto para nós pesquisadores, como com as professoras, bem como fruto do que tornamos inteligível em nossas reflexões.

O movimento de narrar a vida e a profissão docente polifonicamente pelas narrativas de outros tantos que nos compõem e que, horizontalmente, estamos imersos nesses contextos de transformações e aprendizagens significativas, ampliam nosso leque de saberes, conhecimentos e experiências do ser professor. Mas, acima de tudo, do aprender continuamente a profissão, a pesquisa, a narração e os diferentes aspectos que desse movimento possa emergir, brotando outras tantas possibilidades teoricometodológicas, epistemológicas, de vida, existência e pesquisaformação.

1Primamos pela junção de duas ou mais palavras com o sentido de atribuir outros tantos significados rompendo, assim, com o modelo clássico de ciência e construção do conhecimento científico. Adotamos essa forma de escrita neste texto em que aparecerão essa e outras palavras juntas em itálico com esse sentido, em consonância com os postulados dos estudiosos nos/dos/com os cotidianos como o faz Oliveira (2012).

2Tese de doutorado defendida na Universidade de Évora-Portugal, em 2009, e publicada em 2012 (BRAGANÇA, 2012).

3Pesquisa de doutorado em educação em desenvolvimento pelo primeiro autor e orientada pela segunda autora na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

4Célestin Freinet (1896-1966) desenvolveu a proposta de um registro diário das experiências da sala de aula produzido com os alunos.

5Utilizaremos o termo pesquisa-formação separado por hífen quando nos reportarmos aos autores dessa abordagem, os quais assim o nominam. Em outras partes do texto, o uso de pesquisaformação (junto em itálico) se deve a uma escolha teoricometodológica, política e epistemológica, que fizemos movidos pelos estudiosos nos/dos/com os cotidianos, como o faz Oliveira (2012), e que recentemente adotamos (BRAGANÇA, 2018).

6Nos referimos a pesquisas desenvolvidas no âmbito do Grupo Interinstitucional de Pesquisaformação Polifonia, vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Extensão Vozes da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ) e ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 15 de Setembro de 2020

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