SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37Aprendizagens do “tornar-se”, das experiências formadoras e da visibilidade: aproximações entre autobiografias e educaçãoA ambição de ser o desejo do outro: escritas mestiças de uma família do subúrbio do Rio de Janeiro índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75181 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

De cantor a maestro: viagens e horizontes (auto)biográficos do barítono Raimundo Pereira

Ednardo Monteiro Gonzaga do Monti* 
http://orcid.org/0000-0003-3513-3316

Roberto Luís Torres Conduru** 
http://orcid.org/0000-0003-0197-0300

Marcia Pereira de Oliveira*** 
http://orcid.org/0000-0001-8910-0101

*Universidade Federal do Piauí. Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: ednardomonti@gmail.com. E-mail: marcia.pereira33@yahoo.com.br

**Southern Methodist University. Dallas, Texas, United States of America. E-mail: rconduru@smu.edu.

***Instituto Federal do Piauí. Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: marcia.pereira33@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo objetiva compreender a relação entre migrações e viagens na formação musical e artística de Raimundo Pereira, por meio de reflexões sobre a (auto)biografia “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, publicada em 2004, articulada com entrevistas realizadas com dois docentes, um poeta e um músico - pessoas que perpassaram a vida desse sujeito. Nesta perspectiva, interroga-se: como o estudante negro ampliou e consolidou suas redes de sociabilidade em movimentos migratórios? Como se deu sua formação artística em viagens? Como as narrativas (auto)biográficas do cantor gay apresentam-se como táticas de res(ex)istência e empoderamento? A partir dos documentos escritos e orais, foi possível interpretar que, embora o barítono não assine o livro e nem use o recurso da escrita delegada, o próprio ato de narrar uma (auto)biografia, suas migrações e viagens, configura-se num gesto de afirmação, resistência e empoderamento do uso de sua voz para além do ato de cantar.

Palavras-chave: História da Educação; (Auto)biografia; Viagens; Formação; Raimundo Pereira

ABSTRACT

This article aims to grasp the effect of migrations and travels in the musical and artistic education of Raimundo Pereira by reflecting on the 2004 (auto)biography "Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial" [Pleased to meet you: Enjoy Raimundo Pereira Confidential], combined with interviews made with two professors, a poet, and a musician - people who the artist crossed paths with throughout his life. To that end, the study poses the following questions: How did Raimundo Pereira, as a black student, extend and consolidate his networks of sociability in migratory movements? How was his artistic education built up as he traveled? How do the (auto)biographical narratives of this gay singer manifest themselves as tactics of resistive existence and empowerment? Based on written and oral sources, it was possible to infer that although the baritone neither signs the book nor uses the resource of delegated writing, the act of narrating an (auto)biography, including his migrations and travels, emerges as a gesture of affirmation, resistance, and empowerment of the use of his voice beyond the act of singing.

Keywords: History of Education; (Auto)biography; Travels; Training; Raimundo Pereira

Introdução

Este trabalho insere-se no campo da História da Educação e aborda a (auto)biografia denominada “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, na qual estão registradas as narrativas de si do músico piauiense. A compilação datada de 2004, escrita em primeira pessoa, é resultado da relação estabelecida entre Cristina Tojeiro (jornalista responsável pela coleta dos depoimentos) e o artista (biografado). O livro reúne a história de vida do barítono envolvendo suas migrações, formação e militância gay no movimento hoje conhecido como LGBTIQ+, além de passagens reveladoras de suas vivências como discente, artista, nordestino, negro e homossexual.

Ao longo do estudo, buscamos: compreender as motivações de seus processos migratórios e como se deu a ampliação de suas redes de sociabilidade nesses deslocamentos; conhecer sua formação no transcurso das viagens; e identificar traços de resistência e militância em suas escritas e narrativas. Diante disso, as perguntas que moveram o estudo foram: como o estudante negro ampliou e consolidou suas redes de sociabilidade em seus movimentos migratórios? Como se deu sua formação artística em viagens? Como as narrativas (auto)biográficas do cantor gay apresentam-se como táticas de res(ex)istência e empoderamento?

Nesse sentido, ao enfocarmos a trajetória do coralista e ex-aluno da antiga Escola Técnica Federal do Piauí, atual Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Piauí, buscamos agregar conhecimentos e contribuir para ampliar a discussão em torno da formação de pessoas desprovidas de recursos para estudar. Ao passo em que colocamos em perspectiva fatores como viagens e migrações, abordamos aspectos relativos à socialização do estudante que viveu em situação de vulnerabilidade social e econômica, tendo passagens pela docência.

Não obstante a relevância dos temas citados acima e sem prescindir de suas interlocuções, não pretendemos aqui visibilizar políticas públicas, instituições ou práticas, nem mesmo diretamente discutir uma formação escolarizada, pois o foco do estudo é a (auto)biografia de uma pessoa comum, pouco presente nas discussões acadêmicas, de modo que, para nós, escrever sobre Raimundo não é escrever sobre um mito acerca de uma vítima ou de um herói: é contar um pouco de muitos dos Raimundos (BRUM, 2008), dos não pertencentes, dos sem pertences, dos improváveis, que não são exceções ou incomuns, mas apenas passam pela História como invisíveis.

Assim, trazer à cena tais discussões para o campo da História da Educação, sobretudo da História da Educação Musical, ao estudarmos a vida do aluno pobre que se tornou cantor erudito, advém da nossa opção por reconhecer o discente como parte significativa das relações no campo educacional e decorre do nosso interesse pelos processos de subjetivação de estudantes em condição de vulnerabilidade. Dessa forma, o estudo justifica-se por visibilizar uma pessoa negra, mediada e subjetivada em (e por) suas redes de sociabilidade, bem como pelas instituições, práticas e políticas, por seus professores, por seus processos migratórios e por outras viagens.

Teoricamente, o trabalho dialoga com o conceito de memórias (AMADO, 1995) e considera a discussão acerca do escopo dos estudos biográficos (AVELAR; SCHMIDT, 2018). O estudo entende escritos autobiográficos como arquivamento de si, como prática de resistência (ARTIÈRES, 1998); contudo, busca não perder de vista as reflexões em torno das ilusões produzidas nas biografias (BOURDIEU, 2006). Nesta mesma direção, compreendemos que, “seja qual for o tipo ou o suporte de memória, nada prova que os vestígios da subjetividade humana são um retrato conforme o fato original, como a experiência em si” (MONTI, 2018, p. 73).

O estudo reflete sobre conceitos relacionados às (in)visibilidades gays (PEDRO; VERAS, 2014); articula tensionamentos relativos a campo e distinção social (BOURDIEU, 2007) entre outsiders e estabelecidos (ELIAS; SCOTSON, 2000); percebe interditos e rejeições (FOUCAULT, 2010); reconhece a presença de seleções e fendas nas abordagens biográficas (MONTI, 2014); e admite a música como possibilidade de desenvolvimento do intelecto e da afetividade (MONTI, 2014). Todas as etapas do trabalho foram permeadas pela intersecção entre viagens, redes de sociabilidade, formação e escritas de res(ex)istência.

Nessa concepção, o estudo buscou um esforço de organização circunscrita a um recorte temporal a partir de 1978, ano da primeira migração de Raimundo Pereira, até 2004, data de lançamento da sua (auto)biografia em forma de livro: a obra “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, da editora Litteris, com conteúdo narrado pelo músico e compilado pela jornalista Cristina Tojeiro. Como fonte documental escrita, a (auto)biografia esteve em constante articulação com as entrevistas, as quais compuseram o corpus de documentos orais analisados por meio da metodologia da História Oral. Entendemos, conforme Grazziotin e Almeida (2012), a relevância de estarmos atentos aos seguintes aspectos: que lugar é ocupado pelo sujeito; por que e quando fala; e a quem se dirige a narrativa.

Em relação ao critério de escolha dos entrevistados, a seleção foi feita com base em Ludke e André (1986). Optamos, assim, pela amostragem intencional, a qual não se constitui aleatoriamente, mas em razão de características específicas que o investigador deseja pesquisar. Nesse caso, foram ouvidos dois ex-professores do coralista (Frederico Marroquim e Paulo Libório)1, um músico2 (Geraldo Brito), um poeta3 (Salgado Maranhão) contemporâneos de Raimundo. Os entrevistados foram selecionados por fazerem parte da mesma rede de sociabilidade do cantor, bem como por transitarem pelos mesmos palcos e instituições educativas.

Além da delimitação temporal, o artigo inclui uma explanação inicial sobre seu objetivo, delimitação, justificativa e relevância. A próxima seção abrange o eixo migração; em seguida, o estudo trata de formação. Um terceiro ponto é voltado para as possibilidades de escrita como tática de res(ex)istência e empoderamento e da militância LGBTIQ+; e a última parte apresenta alguns resultados e faz algumas considerações finais.

Migração e redes de sociabilidade

Neste tópico, o foco está centrado nas duas migrações de Raimundo, partindo da construção de suas redes de sociabilidade. Conforme narrativas (auto)biográficas, ele nasceu em 1960, num lugarejo denominado de “Boca da Mata”, no município de José de Freitas, cidade localizada a 54 quilômetros da capital do Piauí. O então estudante migrou, em 1978, aos quase dezoito anos, do interior para Teresina, capital do Estado do Piauí, levando o sonho de estudar (TOJEIRO, 2004). Assumiu uma vaga, obtida por meio de processo seletivo, na então Escola Técnica Federal do Piauí para fazer o curso técnico em contabilidade. Relata, em sua narrativa (auto)biográfica, que partiu a contragosto da mãe, que temia seu sofrimento diante da falta de condições de permanência.

Quando ele chegou a Teresina e à Escola Técnica Federal do Piauí, em ambiência sobremaneira sufocante do período ditatorial-civil-militar, a direção da escola estava recrutando alunos para montar o coral. No período, exposições pessoais poderiam ser cerceadas até mesmo por uma autocensura necessária à própria sobrevivência, mas Raimundo Pereira4, mesmo ainda se autodenominando como o “menino pacato, que dizia sim a tudo, não sabia protestar” (TOJEIRO, 2004, p. 7), decidiu submeter-se ao teste de admissão.

Para o barítono, o ingresso no coral marca o começo de sua carreira. Não obstante as conquistas, o preconceito dentro da escola técnica era inevitável; e os coralistas, segundo ele, eram chamados de “as bichinhas do coral” (TOJEIRO, 2004, p. 10). Nesse sentido, cabe lembrar a fala do professor Frederico Marroquim (DOCUMENTÁRIOS..., 2020), quando este afirma que, à época, havia muitos preconceitos entre os professores em relação ao canto coral, os quais defendiam que “homem não devia participar”.

Ainda corroborando o relato do cantor lírico sobre os estigmas atribuídos aos meninos do coral, o professor e regente Fred Marroquim declara que essa postura foi alterada em 1981, depois da visita do Ministro da Educação da ditadura militar General Rubem Carlos Ludwig, que, após ver a apresentação do coral, no seu discurso “em plena revolução5”, disse ter sido coralista. Para Fred, com esse discurso, o conceito daqueles professores preconceituosos se alterou completamente, e a situação mudou para melhor (DOCUMENTÁRIOS..., 2020).

Assim, as redes de sociabilidade foram construídas a partir da participação do recém-chegado à capital em atividades musicais. Foi nesse movimento promovido por seus professores que se estabeleceram novas relações, laços e amizades. Na escola técnica, Raimundo Pereira conheceu Ramsés Ramos6, buscou oportunidades profissionais, de viagens pelo país e cursos na área de música. Foi o momento no qual entabulou contatos com jornalistas, políticos e músicos, ampliando seu trânsito nos mais diversos meios. Segundo ele, nesse período, tornou-se “uma figura importante no movimento coral do Piauí” (TOJEIRO, 2004, p. 10).

Em tal contexto, o artista ainda não era o barítono Raimundo Pereira; mas, como consta nas narrativas (auto)biográficas transcritas no livro em destaque neste estudo, ele iniciou inúmeras viagens para apresentação musical custeadas pela Escola Técnica Federal. Junto ao coral da instituição de ensino, viajou para Belém do Pará, Goiânia, Belo Horizonte, São Luis, dentre outras capitais. Consta ainda de seus registros na (auto)biografia que, financiado pela Secretaria de Cultura do Estado do Piauí, fez uma jornada pelo interior do estado, fundando corais; e, em 1982, deslocou-se de avião pela primeira vez com passagens e estada pagas pelo Maestro Reginaldo Carvalho7, rumo ao Rio de Janeiro, cidade pela qual se encantou.

Ainda apoiados nas informações extraídas da obra “Muito Prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, observamos que, nesse primeiro período de estudos, Raimundo passou quase uma década em Teresina. De 1978 a 1986, morou onde encontrava abrigo: na casa da irmã Maria Neuza, na Casa do Estudante do Piauí, em repúblicas particulares, de favor na casa do professor e regente Frederico Marroquim. Foi também nesse intervalo que teve seu primeiro emprego com carteira de trabalho assinada numa loja de material esportivo, cujos donos eram pais de Ângela Pessoa, orientadora educacional da Escola Técnica, que o indicou para atuar como comerciário.

Nesses oito anos, entre 1978 e 1986, Pereira alcançou certa notoriedade, tendo inclusive, em 1984, se apresentado pela primeira vez no Teatro 4 de Setembro. Também foi membro do Coral de Nossa Senhora do Amparo, regido por Reginaldo Carvalho. Contudo, a desproteção material persistiu, e ele então retornou para a cidade de José de Freitas em 1986, onde permaneceu apenas por poucos meses.

Após a primeira viagem ao Rio, em 1982, retornou a essa cidade, em 1986, como regente do Madrigal Polifônico de Teresina. Em 1988, após o início da redemocratização e com a Lei de Incentivo à Cultura, no governo José Sarney, realizou mais viagens pelo país juntamente com Ramsés Ramos, em geral custeadas pelo Estado ou outra estrutura pública ou governamental. Em 1988, por exemplo, participou de uma turnê por algumas capitais do país patrocinada pelo Governo do Estado do Piauí, na qual foram apresentadas composições de Ramsés Ramos que tinham como tema o folclore local. À época, o governo do estado subsidiou alimentação e diárias; e a VARIG (Viação Aérea Rio-Grandense), as passagens aéreas.

A amizade com os três irmãos Ramsés Ramos, Carla Ramos e Garibaldi Ramos, todos pianistas e filhos de família abastada da capital, foi um acontecimento também marcante na vida pessoal e profissional de Raimundo. Ao frequentar a casa da família Ramos, conheceu poetas, artistas, músicos, jornalistas e outros intelectuais, pois lá era onde eles se reuniam para tocar piano e conversar sobre música na década de 1980, como afirmaram o músico Geraldo Brito e o poeta Salgado Maranhão.

Desses encontros, nasce a amizade com Kenard Kruel, jornalista e escritor que ocupou cargos de confiança em diversos governos; foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do Piauí, editor do Jornal da Manhã e do Jornal Correio do Piauí. Kenard Kruel exerceu o cargo de secretário executivo da segunda etapa do Projeto Petrônio Portella, no segundo governo Alberto Silva (1987-1991). Na gestão do jornalista e amigo, Raimundo obteve bolsa de pesquisa concedida para pesquisar a história da música piauiense (MOURA, 2015).

Pode-se perceber, da leitura da obra em destaque, que Raimundo transitou por diferentes redes e se relacionou com ocupantes de diversas esferas, circulando entre intelectuais, artistas e políticos, passando por governos e instituições. Foi então no Governo Moreira Franco, do estado Rio de Janeiro (1987-1991), a pedido de Arimatéa Tito Filho, imortal da Academia Piauiense de Letras, que Raimundo migrou pela segunda vez - de Teresina para o Rio de Janeiro -, com a promessa de uma bolsa de estudos. A bolsa, no valor de um salário mínimo, teve como intuito financiar seus estudos de canto, tempo em que estagiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (TOJEIRO, 2004) e também estudou na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Apesar da referida bolsa e de uma passagem custeada pela Fundação Cultural do Piauí, que tinha como titular da pasta Susana Silva, filha do Governador Alberto Silva, o intérprete lançou-se ao Rio como foi para Teresina: “com a cara e com a coragem” (TOJEIRO, 2004, p. 98) - tanto que Raimundo diz o seguinte sobre o período: “na época da UNI-Rio, em que estudava licenciatura em Música, passei por sérios apertos e dificuldades: o momento não era dos melhores. Abandonei o curso porque não aguentei ‘o rojão’, como dizem lá no Piauí” (TOJEIRO, 2004, p. 08). Isso posto sobre as redes de sociabilidades e a dificuldade de Pereira em se manter estudando fora do seu estado, no Rio de Janeiro, buscamos avançar no entendimento de como se deu a formação do barítono em suas viagens.

Formação em viagens

Apesar de dificuldades financeiras, foi possível o avanço na formação do aluno-artista. Nessa perspectiva, trazemos à baila aspectos da formação de Raimundo a partir de suas viagens, entendendo, juntamente com Monti (2014), que a música oferece alternativas de desenvolvimento afetivo e intelectual, possibilitando assim a educação. Entendemos ainda como sendo significativa a primeira migração do estudante, de José de Freitas para a capital Teresina - cidade onde suas experiências posteriores foram engendradas a partir do conjunto de fatores que foram se aglutinando, até que se tornasse conhecido e estabelecesse relações com sujeitos do seu campo. Como dito alhures, Pereira foi fazer o curso técnico em Contabilidade na Escola Técnica Federal do Piauí e ali encontrou ambiente propício para traçar rotas que talvez nem ele próprio pudesse supor.

O que já existia no migrante, antes mesmo do encontro com o coral, era um interesse pela música. Foi interpretando a música Colher de Chá, do astro da jovem guarda Ronnie Von, que Raimundo Pereira da Silva venceu, em 1972, um concurso de canto na escola, em José de Freitas. Ele afirma, em sua (auto)biografia, ter a música adentrado sua vida nesse momento de vitória.

Seis anos depois dessa “primeira vitória”, aconteceu a partida para Teresina e surgiu a oportunidade de ser selecionado para o coral. Com o intenso e constante envolvimento no canto coral, Raimundo acabou por abandonar o curso técnico já no último ano, como disse ele, para “me dedicar de corpo e alma ao canto coral” (TOJEIRO, 2004, p. 36), concluindo o antigo segundo grau anos depois.

Nesse entretempo, como consta no livro “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, o cantor fez muitas viagens pelo interior do Piauí (Ipiranga, Picos, Parnaíba, Jaicós) formando corais. Ele também viajou para capitais do Nordeste e do Norte (Fortaleza, Recife, São Luiz, Maceió, Salvador, Manaus), em apresentações do coral da Escola Técnica Federal do Piauí, bem como para cidades das regiões Sudeste e Centro-Oeste (Vitória, Belo Horizonte, Brasília) para aprimoramento em cursos livres de música.

Pessoalmente, o jovem negro, gay, afastado de sua terra, enfrentava questões íntimas quanto ao fato de não assumir a homossexualidade e passava pelo processo de se constituir e autoafirmar como sujeito de si, como corroboram suas palavras registradas por Tojeiro (2004, p. 32): “eu era muito só. Não tinha com quem conversar. Eu já me sabia homossexual. Queria me aceitar, tentava me compreender”. Ao mesmo tempo, Raimundo Pereira estudava incansavelmente para suas apresentações de canto, segundo afirma recorrentemente na referida obra.

Relata ter feito, em 1980, um curso de regência na Universidade Federal do Piauí a convite do maestro Reginaldo Carvalho, quando igualmente teve apoio de Frederico Marroquim. Nos anos posteriores, ainda na década de 1980, fez um curso de verão em Curitiba e também em Brasília, bem como narra ter tido aulas de técnica vocal com as sopranos Gislene Macedo (Teresina/Brasília) e D’Alva Stella Freire (Fortaleza), com os maestros Afrânio Lacerda (Belo Horizonte), Jáder de Alemão Cysneiros (Pernambuco) e com o baixo Paulo de Tarso Libório (Teresina). Raimundo refere-se também a um curso de música do qual participou em Ouro Preto, sob a responsabilidade de Toninho Horta. Além desses, conta ter sido aluno de outros professores em cursos rápidos de menos de dois anos cada, como os dos barítonos Carmo Barbosa e Fernando Teixeira.

Ao longo da transcrição da (auto)biografia, há referências esparsas sobre a formação do barítono, entretanto de maneira assistemática e com lacunas temporais bastante acentuadas. Ele próprio afirma considerar-se “quase um autodidata [...] estudei muito” (TOJEIRO, 2004, p. 32), devendo tudo o que sabia à própria persistência, a Fred Marroquim e a Reginaldo Carvalho. O que é possível depreender desses relatos é um claro empenho no sentido de produzir a si mesmo (BOURDIEU, 2006) como alguém de valor, apresentando-se como uma pessoa esforçada, digna e respeitável.

Apesar dessa ausência de dados na obra relativos a uma formação realizada nos moldes formais, há momentos em que ele relata dificuldades profissionais por não ter um diploma, como quando escrevia no Jornal da Manhã. Introduzido no jornalismo por Kenard Kruel, editor da publicação, Pereira comenta dificuldades com o Sindicato dos Jornalistas por não ter formação acadêmica. Contudo, o fato de não dispor do capital cultural institucionalizado, materializado e configurado em um diploma - ou, segundo o pensamento de Bourdieu (1998), na legitimação de competência cultural - não o impediu de atuar como assessor de imprensa na Secretaria de Cultura do Estado do Piauí.

Em outro trecho, faz um desabafo: “cá entre nós, a Academia não é muito democrática. É privilégio de poucos” (TOJEIRO, 2004, p. 57). Percebemos assim que, não obstante os esforços empreendidos pelo cantor de música erudita no sentido de aprender por meio das viagens e das relações socioculturais, havia clivagens entre seu capital acadêmico e cultural (BOURDIEU, 2007) e os de seus interlocutores - aspecto que o situava, assim, fora da ordem do discurso (FOUCAULT, 2010) que o agenciaria como parte legítima do meio que frequentava.

Com base no que o barítono Raimundo Pereira escreveu e narrou de si, em “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial”, num movimento de res(ex)istência e empoderamento a ser compreendido a partir da análise de sua (auto)biografia, concordamos com Bourdieu (2006) ao inferir que se compreende uma trajetória a partir da soma de relações entre os agentes que compõem determinado campo em confronto com o mesmo espaço de possibilidades. Diante da assertiva e em cruzamento com a pesquisa empreendida, podemos compreender as distinções entre os espaços ocupados pelo músico como resultado de uma vasta teia de (des)acontecimentos situados para além do que a mera vontade dele pudesse vencer.

Assim, no início da década de 1990, aparentemente após ter esgotado as próprias expectativas na cidade de Teresina, Raimundo Pereira realizou sua terceira viagem ao Rio. Os dois deslocamentos anteriores à capital fluminense ocorreram em 1982 e 1986, respectivamente. Dessa vez, diferentemente de uma viagem de ida com data de volta marcada, o barítono aventurou-se e migrou para o Rio de Janeiro, onde começou o curso de Licenciatura em Música na UNIRIO, que, como mencionado antes, não concluiu.

O músico não tinha onde se instalar na cidade, então buscou como alternativa uma pensão e colocou um anúncio, em uma revista gay, sobre sua necessidade de hospedagem. Por meio dessa comunicação, obteve resposta e começou o contato com o grupo Atobá8 - Movimento de Emancipação Homossexual. Paulo Cezar Fernandes, fundador do grupo, foi buscá-lo no aeroporto e de lá o levou para a sede da agremiação, onde se instalou. Na cidade chamada de maravilhosa, sem emprego e sem dinheiro, Pereira foi acolhido pelos militantes daquela comunidade.

Foi desses contatos no Rio de Janeiro que se evidenciaram suas subjetividades, as quais construíram suas identidades longe de sua terra - a de homossexual e a de militante. Em Teresina, sua orientação sexual já era de conhecimento da maioria; e, inclusive, ele chegou a participar como candidato de um concurso de Miss Gay. Sobre a ocasião, o artista afirma que foi ótimo ter conquistado o quarto lugar com o traje belíssimo confeccionado pelo irmão, o estilista Luís Pereira. Então, a novidade não foi o fato de ser homossexual, mas de assumir-se e autoafirmar-se como tal. Conforme ele próprio diz, considerava-se “homossexual sem medo de ser feliz” (TOJEIRO, 2004, p. 8).

Pereira discorre sobre a relevância do Atobá em sua vida e formação, dizendo ter sido lá que conviveu com “gente que tem a mesma vivência, discriminado no seio de sua própria família. Aprendi a fincar o pé no chão, sem a mitificação tecida pelo mundo ‘hetero’ em torno dos homossexuais” (TOJEIRO, 2004, p. 66). Aqui destacam-se nuances de sua narrativa militante, tendo em vista que “decidir quais categorias se deve historicizar é inevitavelmente político” (SCOTT, 1998, p. 299).

No decorrer da análise, fizemos o esforço de buscar ouvir outras fontes, cruzar informações, por compreender que “nossas memórias são formadas de episódios e sensações que vivemos e que outros viveram” (AMADO, 1995, p. 132). Nesse sentido, sobre a mudança de Teresina para o Rio, ouvimos o professor Paulo de Tarso Libório e o músico e compositor Geraldo Brito, que afirmaram que ali Raimundo mudou. Para Paulo Libório, no Rio ele se perdeu. Geraldo Brito, considerado um nome da música Teresinense (MEDEIROS; NASCIMENTO, 2013), afirma que, no Rio, Pereira deixou de ser cantor e descobriu-se militante. É sobre essa descoberta da militância e da escrita como forma de res(ex)istência que nos debruçamos no próximo tópico.

Possibilidades de res(ex)istência pela escrita militante

Interpretar o que foi registrado da narrativa de si de um homem negro, gay, migrante, pobre e nordestino desafiou e impulsionou a discussão ancorada, juntamente com Reis (2018), na perspectiva de que o indivíduo tem na escrita uma aliada. Por meio de tal processo, o sujeito busca o próprio reconhecimento nos círculos aos quais pertence e nos grupos inter-relacionados diante de sua condição humana, entremeada pela soma de sujeitos e espaços de sociabilidade.

O barítono parece ter selecionado cuidadosamente o que desejava deixar registrado. Destaca suas viagens para fazer cursos de canto; relaciona os palcos pelos quais passou, como o Teatro 4 de Setembro, o Ginásio Albertão e o Teatro São Pedro.9 Também menciona as personalidades para quem se apresentou, como o artista plástico e paisagista Roberto Burle Marx, o embaixador Aloísio Napoleão e o Papa João Paulo II. Relacionamos a busca dessa visibilidade positiva para si e para as existências de seus pares ao movimento iniciado nas décadas de 1970 e 1980, por meio do qual os homossexuais refutavam sua visibilização associada a patologias, como também questionavam sua invisibilidade histórico‐social (PEDRO; VERAS, 2014).

Identificamos fragmentos na (auto)biografia por meio dos quais Raimundo parece provocar, afirmar, agradecer, reivindicar um lugar de reconhecimento. Na suposta busca de vencer o apagamento contra situações sociais que parecem ter promovido um esquecimento estratégico (RICOUER, 2007), notamos essa reinvindicação, por exemplo, quando o barítono deixou registrado que “o cantor lírico no Brasil é um herói. Sobrevive sem incentivo e sem o apoio de ninguém”; e segue no mesmo tom: “Alguém conhece o nome de um famoso cantor lírico brasileiro da atualidade?” (TOJEIRO, 2004, p. 112).

A relação com a militância ainda demora algum tempo a se consolidar, mas a afinidade com a escrita vem de bem antes, da adolescência, quando ouvia no rádio do pai “emissoras da Holanda, Alemanha, Voz da América” (TOJEIRO, 2004, p. 27). Nessa época, correspondia-se intensamente com pessoas de diferentes lugares do Brasil, escrevia cartas e fazia pesquisas na biblioteca municipal da prefeitura da cidade de José de Freitas - tudo isso sem nunca falar com ninguém sobre sua homossexualidade.

Em Teresina, veio o tempo em que escrevia no Jornal da Manhã10. No Rio, ainda sem trabalho, cita como uma de suas atividades de freelancer a coluna Babados, no jornal gay O Grito11. O ato de escrever, independentemente de quando fosse e de onde estivesse, aparentemente fazia-lhe companhia nas repetidas vezes em que dizia “[...] e eu fiquei só” (TOJEIRO, 2004, p. 19) - e talvez já fosse uma forma de resistência até contra a própria solidão.

Raimundo escreveu e inferiu sobre si em um crescente: no começo, antes das migrações, das amizades, das viagens, descreve-se com um menino cheio de medos, tímido, solitário, que não sabia protestar. Com as amizades, as viagens e algum reconhecimento profissional, vai se empoderando, afirmando-se como negro, gay, nordestino. Descobrindo-se, fala da situação desfavorável: “sempre fui de luta. Sempre gostei de furar bloqueios, transpor barreiras” (TOJEIRO, 2004, p. 67). Confessou o que talvez não tivesse pronunciado ao longo de toda a sua carreira: “as pessoas esquecem que cantar, para mim, é atividade profissional. Preciso comer, vestir, calçar, pagar contas, y otras cositas más” (TOJEIRO, 2004, p. 106).

Altera também a forma de escrever; conta seus feitos; cita os palcos pelos quais passou, as canções que interpretou; menciona as pessoas para quem cantou, parecendo querer registrar e deixar registrado por escrito, arquivado, que existiu, indicando onde esteve e com quem esteve. Em certo momento, muda o tom: assume a militância. Inicialmente, participava das reuniões e já falava em nome do grupo (o Atobá), mas dizia ainda não se sentir preparado. Então, após a ECO-92, como ele diz, “resolvi botar a cara a tapa” (TOJEIRO, 2004, p. 8).

A leitura das narrativas de si no livro “Muito prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial” reforçou a ideia baseada em Artières (1998) ao considerar que a prática de arquivamento do eu é atravessada pelo próprio processo de subjetivação, envolvendo uma intenção autobiográfica, de constituição de si por meio das seleções e exclusões deliberadamente elaboradas: “[...] arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência” (ARTIÈRES, 1998, p. 11).

Percebem-se imbricamentos entre essas ideias de Artières (1998) e as narrativas de Raimundo Pereira, no que toca às intencionalidades e seleções no processo de constituir-se como sujeito e narrador de si. Vale ressaltar que, na construção dessa imagem elaborada na (auto)biografia, o barítono refere-se diretamente à sua negritude apenas uma vez, porém com ênfase: “sempre faço questão absoluta de dizer que sou negro e nordestino” (TOJEIRO, 2004, p. 120).

Desse modo, lemos a obra também com a percepção de que “tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca, pode e deve informar sobre ele” (BLOCH, 2001). No caso de Raimundo, o cruzamento com documentos orais, a busca nos jornais e o contato com fotografias - e mesmo o desafiador contratempo de não encontrarmos tantos escritos como gostaríamos - permitiu que essa ausência também proporcionasse questionamentos e interpretações. Se não há neutralidade no arquivamento de si e se, nesse arquivar, reside talvez a única esperança de se mostrar como se vê ou como se quer ser visto - e, em última instância, se é uma prática de resistência (ARTIÈRES, 1998) -, os vestígios da história de Raimundo que permaneceram e os fragmentos que faltaram também algo dizem dele.

Se aparentemente há, na ordem do discurso, uma tendência a aplaudir e exaltar realizações de determinados grupos ocupantes de espaços específicos de poder, ao tempo em que, em contrapartida, há aqueles que não se encontram em determinados lugares na ordem discursiva e podem observar a depreciação, o menosprezo e o apagamento de seus feitos por meio de interditos e rejeição (FOUCAULT, 2010), inclusive por seus pares, confrades e contemporâneos, refletimos sobre que lugar Raimundo ocupava em suas redes e com que intencionalidades havia apropriação de seu discurso e presença. Sobre essa exclusão da ordem discursiva e da suposta ilegitimidade imputada ao artista, vale destacar que, na pesquisa realizada por nós no arquivo público, nos exemplares do Jornal da Manhã de 1985, não localizamos colunas assinadas pelo barítono. A ausência de assinatura nos leva a supor que ele não assinava suas matérias em razão do alegado problema com o Sindicato dos Jornalistas, por não ter formação na área. Outra possiblidade de interpretação para essa lacuna seria a possível existência de assimetrias nas relações e a hierarquização de valores atribuídos às pessoas no campo social e acadêmico, a depender das posições de poder ocupadas naquele momento.

Nessa busca por cruzar informações, para maior aprofundamento e consolidação do estudo empreendido, em composição com a (auto)biografia, fontes variadas foram cotejadas e articuladas, tais como documentos orais, fontes iconográficas e hemerográficas, atentando para a presença de olhares externos impostos à escrita de si, aceitando que “o espelho do outro é parte do movimento de construção da própria identidade dos sujeitos” (SILVA, 2014, p. 35). Foi a partir dessa articulação, juntamente com a análise da (auto)biografia, que nos reportamos a um crescente empoderamento do discurso de Raimundo. Após um discurso autodepreciativo na escrita, referente ao período juvenil, o artista vai surgindo e se insurgindo: enquanto o músico que deseja se afirmar como tal a partir da apresentação de seus professores renomados; enquanto o gay assumido e militante das causas humanitárias; enquanto o artista bem-relacionado e “badalado” que dá entrevistas e é muito solicitado. Num retorno às origens, também é o filho que chora a falta de dinheiro para chegar ao velório do pai. Raimundo Pereira recupera a voz e diz ter aprendido a “fincar o pé”.

Considerações finais

Para compreendermos o enredo que nos propusemos a desenvolver neste artigo, foi relevante saber um pouco sobre a conjuntura política da ditadura civil-militar em alguns dos períodos descritos na biografia investigada, sobre a delimitação dos recortes temáticos, sobre o contexto das relações e sobre o próprio tempo e cenário em que foi feita essa obra. Isto posto, constatamos, a partir da reflexão sobre a (auto)biografia “Muito Prazer: sirva-se Raimundo Pereira confidencial”, articulada com documentos orais, fotos e consulta em jornais, que Raimundo transitava em diferentes espaços, recebia afetos, mas não era efetivamente incluído. Percebemos que o barítono foi mediado e subjetivado pela imersão em suas redes de sociabilidade e teve como condicionantes de sua passagem por esses ambientes sua origem socioeconômica, seu local de nascimento e sua orientação sexual.

Compreendemos que seus processos migratórios se deram em um movimento de superação da miséria material, como também pela ânsia e pela necessidade que demonstrou de conhecer, ousar, arriscar e experimentar no trajeto de sua formação profissional. A primeira migração, assim como a segunda, ocorreram com um suporte financeiro insuficiente para que o cantor se mantivesse com dignidade, segurança e sem precisar de favores de terceiros.

Por sua vez, as viagens nacionais e internacionais aconteceram já em razão dos espaços que conquistou como cantor lírico, e tornou-se possível interpretar, sob esse aspecto, que sim, tais experiências contribuíram para sua formação intelectual, para seu aprimoramento como artista e militante. Podemos inferir também que esse itinerário não seria possível sem o apoio recebido em várias instâncias. Foram os deslocamentos de Raimundo Pereira, associados às aulas e à própria exposição, que indicam a conquista de mais segurança tanto nos palcos como na vida.

As amizades e o fato de estar no lugar certo, na hora certa, foram relevantes, porém insuficientes para que o cantor lírico avançasse até o ponto de ter uma vida independente. Estar na Escola Técnica Federal do Piauí, em um momento em que ainda havia a ditadura civil-militar - mas quando já se aproximavam os ventos, ainda que tímidos, da redemocratização -, e convivendo com professores que apostavam na arte, fosse qual fosse o propósito, permitiu a Raimundo desfrutar de um momento profícuo para o seu desenvolvimento. O que fica patente é a indissociável relação entre suas redes, viagens e formação, de modo que tais experiências estavam significativamente imbricadas.

Conhecer Ramsés Ramos e sua família, frequentar sua casa, relacionar-se com esses amigos, ouvir e discutir com esse grupo sobre música e política, e transitar pelas mesmas redes de sociabilidade foram aspectos preponderantes para que as experiências de viagens e a formação de Raimundo se concretizassem, pois foi por meio dessas relações que ele passou também a transitar entre políticos e ocupantes de espaços de poder públicos além da escola. Tais contextos custearam muitos dos seus itinerários e resultaram em convites tanto para participar de cursos como para ministrá-los. Tais solicitações eram feitas pelos mais diversos grupos de diferentes filiações políticas, e Raimundo aparentemente tinha livre trânsito entre vários deles.

Quanto aos espaços em que tinha oportunidade de cantar, houve momentos, especialmente em Teresina, em que o barítono parece ter sido reconhecido como uma “grife” elegante. Em alguma medida, parece que gerava “status” tê-lo cantando em eventos particulares, como casamentos de senhoras da alta sociedade. O problema é que ele não cobrava, ou não era pago por isso; então, sua voz veio a reverberar mais fortemente em seu favor na militância.

Foram muitos trechos analisados que não são o foco no momento, nem compõem esta proposta. Mas, em se tratando das representações e intencionalidades captadas por meio da leitura, o que depreendemos foi um movimento de erguer a própria voz, de resistir a representações de si como frágil ou como aquele que tudo aceita, que nada contesta, de modo que o próprio ato de narrar uma (auto)biografia configura-se num gesto de afirmação, resistência e empoderamento, de uso de sua voz sem que alguém precise falar por si - rompendo inclusive com um preconceito histórico e da História de que pessoas vindas de baixo não deixam registros escritos (ALBERTI, 2015), nem mesmo pela escrita delegada.

Raimundo, apesar de autor, não assinou sua (auto)biografia. Delegou o registro escrito de suas memórias à jornalista Cristina Tojeiro, que escreveu sob o seu comando e controle. Foi maestro no processo de escrita compartilhada de sua biografia, intérprete de composições alheias, fazendo-se condutor da narrativa sobre sua vida. Tal fato nos permite compreender que, dessa maneira, Raimundo Pereira falou por si, impondo-se pela narrativa (auto)biográfica em alguma medida descomprometida com regras sociais e cronológicas. Nessa perspectiva, abordou diferentes prazeres e dissabores, dentre os quais estão o convívio com a música e com os músicos, as relações políticas e sociais. O barítono cantou até seu último dia de vida, em 7 de outubro de 2006, dois anos após o registro das narrativas de si. Portanto, as memórias em forma de livro parecem uma carta de despedida.

1Professores aposentados da antiga Escola Técnica Federal do Piauí, atual IFPI.

2Professor da Escola de Música Possidônio Queiroz.

3Poeta Salgado Maranhão.

4Raimundo Pereira era conhecido profissionalmente e no meio artístico como Barítono Raimundo Pereira; entre amigos, era chamado de Pereira.

5O termo “revolução” foi utilizado pelo professor Frederico Marroquim para referir-se à ditadura civil-militar resultante de um golpe de estado. Mais informações estão disponíveis na Coleção Elio Gaspari (A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, A Ditadura Acabada).

6Poeta piauiense, nascido em Teresina. Faleceu jovem, aos 36 anos, na Rússia. Trabalhou na Organização das Nações Unidas como Chefe do Cerimonial e de Relações Internacionais. Raimundo o tinha como um irmão.

7Reginaldo Vilar de Carvalho era regente do Coral do Amparo quando conheceu Raimundo. O maestro foi aluno de Heitor Villa-Lobos no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, de onde chegou a ser diretor (SILVA, 2009).

8O Grupo Atobá - Movimento de Emancipação Homossexual - surgiu no Rio de Janeiro em 1985, a partir do assassinato do homossexual Sidney Quintanilha dos Santos. Fundado oficialmente em 28 de junho de 1986, dia da Dignidade Gay, objetiva reconhecer, desenvolver e promover a dignidade de homens e mulheres homossexuais. Mais informações disponíveis em: https://nacomsisal.files.wordpress.com/2017/03/gestc3a3o-depolc3adticas-pc3bablicas-em-gc3aanero-e-rac3a7a.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.

9Na sequência, trazemos algumas informações sobre os três palcos citados, respectivamente: Teatro 4 de Setembro - maior da capital do Piauí, com capacidade para 600 lugares, foi projetado por Alfredo Modrak; teve suas obras iniciadas em 4 de setembro de 1889 e inauguração em 21 de abril de 1894. Ginásio Albertão - Ginásio Alberto Tavares Silva, também localizado em Teresina; está entre os três maiores estádios do Brasil, com capacidade para 52 mil pessoas; construído em 1973. Teatro São Pedro - um dos palcos mais nobres de Porto Alegre/RS desde o período colonial, inaugurado em 1858; é o teatro mais antigo da capital do Rio Grande do Sul (SOPHER; CHWARTZMANN, 2008).

10Ao pesquisarmos no arquivo público os exemplares do Jornal da Manhã de 1985, ano assinalado na (auto)biografia como período de seus escritos na publicação, não localizamos colunas assinadas pelo barítono, o que nos leva a supor que ele não assinava seus escritos em razão do alegado problema com o Sindicato dos Jornalistas, por não ter formação na área. Em tentativa de contato com Kenard Kruel desde 13 de julho de 2019, ainda não tivemos sucesso em agendar entrevista para obter mais informações.

11Em pesquisa na Hemeroteca Nacional e na biblioteca do Museu Nacional, não tivemos acesso à publicação.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da história. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2015. 302 p. [ Links ]

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História oral. Revista História. São Paulo, v. 14, p. 125-136, 1995. [ Links ]

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, p. 9-34, 1998. [ Links ]

AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso. Apresentação: O que pode a biografia hoje? In: AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito Bisso (org.) O que pode a biografia? São Paulo: Letra e Voz, 2018. 248 p. [ Links ]

BLOCH, Marc. A apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 160 p. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. 251 p. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 304 p. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007. 560 p. [ Links ]

BRUM, Eliane. O País dos Raimundos. In: BRUM, Eliane. O Olho da Rua: uma repórter em busca de literatura da vida real. São Paulo: Globo, 2008. 422 p. [ Links ]

DOCUMENTÁRIO quem somos, quem nos tornamos - 110 anos de Instituto Federal do Piauí. [S. l.: s.n.], 2020. 1 vídeo (59 min 52 s). Publicado pelo canal IFPiauí Comunicação. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gmFXYrxBBlA. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders - sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 224 p. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 20. ed. São Paulo: Loyola, 2010. 79 p. [ Links ]

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagens do Tempo e Recantos da Memória: Reflexões Metdológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012. 112 p. [ Links ]

LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. 128 p. [ Links ]

MEDEIROS, Hermano Carvalho; NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa. Mapeando os fazeres musicais: pluralidade sonora no cenário muiscal teresinense. In: NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa; MEDEIROS, Hermano Carvalho (org.). História & Música Popular. Teresina: EDUFPI, 2013. 211 p. [ Links ]

MOURA, Iara Conceição Guerra de Miranda. Historigrafia piauiense: Relações entre escrita histórica e instituições político-culturais. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2015. 251 p. [ Links ]

MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Biografia Villalobiana: educação e políticas entre fendas. In: SILVA, Alexandra Lima da; MONTI. Ednardo Monteiro Gonzaga Do (org.). Escritas (auto)biográficas e histórias da educação. Curitiba: CRV, 2014. p. 156. [ Links ]

MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Educação Musical e uma nova hierarquia de valores no contexto da pós-modernidade. Eccos Revista Científica, São Paulo, v. 34, p. 215-228, maio-agosto 2014. [ Links ]

MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga do. Afetividades e (auto)censura na escrita autobiográfica da pianista Magdalena Tagliaferro. Revista Eletrônica Documento Monumento, Cuiabá, v. 1, p. 72-83, julho 2018. [ Links ]

PEDRO, Joana Maria; VERAS, Elias Ferreira. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in) visibilidade das homossexualidades no Brasil. Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 6, n. 13, p. 90-109, set./dez. 2014. [ Links ]

REIS, José Carlos. O desafio historiográfico. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV , 2018. 125 p. [ Links ]

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007. 536 p. [ Links ]

SCOTT, Joan. A Invisibilidade da Experiência. Projeto História, São Paulo, v. 16, p. 299-300, fev. 1998. [ Links ]

SILVA, Alexandra Lima da. "Amanda, você deveria escrever": a autobiografia de Amanda Smith como fonte/objeto para a história da educação. In: MONTI, Ednardo Monteiro Gonzaga Do; SILVA, Alexandra Lima da (org.). Escritas (auto)biográficas e história da educação. Curitiba: CRV , 2014. p. 33-42. [ Links ]

SILVA, Vladimir. Aspectos estilísticos do repertório coral na obra de Reginaldo Carvalho. Música Hodie, Goiânia, v. 9, n. 1, p. 67-91, 2009. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/musica/article/view/10721/12414. Acesso em: 20 abr. 2020. [ Links ]

SOPHER, Eva; CHWARTZMANN, Clarice. Theatro São Pedro: 150 anos. Porto Alegre: Nova Prova, 2008. 288 p. [ Links ]

TOJEIRO, Cristina. Muito Prazer: sirva-se Raimundo Pereira Confidencial. Rio de Janeiro: Litteris, 2004. 128 p. [ Links ]

Recebido: 13 de Julho de 2020; Aceito: 24 de Outubro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.