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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.74451 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Paradigma Indiciário: abordagem narrativa de investigação no contexto da formação docente

Thiago Borges de Aguiar* 
http://orcid.org/0000-0002-7294-1200

Luciana Haddad Ferreira* 
http://orcid.org/0000-0002-8440-7347

?Universidade Metodista de Piracicaba. Piracicaba, São Paulo, Brasil. E-mail: tbaguiar@outlook.com.br. E-mail: haddad.nana@gmail.com


RESUMO

Este estudo tem como objetivo tomar o Paradigma Indiciário como método narrativo de investigação no âmbito da formação docente. Destacamos sua dimensão autobiográfica, enfatizando as particularidades de fazer uso da narrativa como fenômeno estudado, gênero textual e concepção metodológica. Para tanto, realizamos leitura abrangente da obra de Carlo Ginzburg e a partir de suas contribuições apontamos características da escrita narrativa em pesquisa, entendendo-a como escolha consciente de olhar para o passado e reconstruí-lo, tomando as opções feitas ao longo do processo e as respostas encontradas ao final. Tomamos ainda, como eixo reflexivo, narrativas produzidas por professoras, cujas análises evidenciam que este modo de fazer pesquisa possibilita entendimento de aspectos das práticas sociais que não dizem respeito apenas ao que foi vivido ou a quem viveu, mas ao modo como a experiência se atualiza no instante em que se decide narrar, em diálogo com questões de nossos tempos, espaços e cultura, tornando-se potente instrumento de pesquisa e formação. Finalizamos apresentando três temporalidades, presentes numa investigação com base no Paradigma: o tempo da história de vida, considerando que ela atravessa e é atravessada pela pesquisa; o tempo da própria pesquisa, entendendo que o método se dá num movimento constante entre coletar, observar, decifrar; o tempo da escrita, entendendo a linearidade de um texto que precisa ser definitivo, mas se abre para a provisoriedade do conhecimento produzido e o estranhamento de nós mesmos.

Palavras-chave: Pesquisa narrativa; Paradigma Indiciário; Método narrativo; Método indiciário; Formação docente

ABSTRACT

This study aims to take the Evidential Paradigm as a narrative research method of teacher training. We highlight its autobiographical dimension, emphasizing the particularities of using narratives as a studied phenomenon, textual genre, and methodological conception. We carried out a comprehensive reading of Carlo Ginzburg’s work, and from his contributions, we point out characteristics of narrative writing in research, understanding it as a conscious choice to look at the past and reconstruct it, considering the options made throughout the process, and the answers found at the end. We take, as reflexive axis, narratives produced by teachers, whose analysis show that this way of doing research enables understanding aspects of social practices that are not related to what was lived or to whom lived, but to how the experience is updated at the moment when it is decided to narrate, in dialogue with issues of our times, spaces and culture, becoming a powerful research and training instrument. We conclude by elucidating three temporalities, present in the investigation based on that Paradigm: time of life history, considering that it crosses and is crossed by research; time of research itself, understanding that the method occurs in constant movement between collecting, observing, deciphering; time of writing, understanding the linearity of a text that needs to be definitive, but opens up provisionally to the knowledge produced and the estrangement of ourselves.

Keywords: Narrative research; Evidential Paradigm; Narrative method; Evidential method; Teacher training

Nós vos pedimos com insistência: Nunca digam - Isso é natural. Diante dos acontecimentos de cada dia. Numa época em que reina a confusão, Em que corre o sangue, Em que se ordena a desordem, Em que o arbitrário tem força de lei, Em que a humanidade se desumaniza… Não digam nunca: Isso é natural. A fim de que nada passe por ser imutável. Sob o familiar, descubram o insólito. Sob o cotidiano, desvelem o inexplicável. Que tudo que seja dito ser habitual, Cause inquietação. Na regra é preciso descobrir o abuso. E sempre que o abuso for encontrado, É preciso encontrar o remédio (BRECHT, 1929 apudPEIXOTO, 1981, p. 60).

Narrativas são textos orais, escritos e/ou visuais que há séculos circulam nos diferentes espaços de convívio social. Tomada como prática humanizadora, a narrativa comporta um conhecimento intergeracional ao mesmo tempo em que possibilita o estranhamento e a ampliação acerca da consciência daquilo que é vivido. Por isso, extrapola a dimensão do próprio indivíduo que narra ou pesquisa, pois se conecta com aspectos da cultura e da sociedade, atualiza-se e é ressignificada ao ser interpretada pelo interlocutor.

Uma narrativa é composta por uma sequência original de situações vividas, permeada por emoções e ligações com outras memórias e imagens. Ao prazer de contar uma/a sua história, acrescenta-se a seleção e organização pela pertinência do que parece relevante ao interlocutor e ao contexto presente, bem como ao tempo que se tem para narrar e o que se objetiva com ela.

Há um forte componente no ato de narrar que faz com que nos debrucemos sobre esta prática no contexto de pesquisa. Muito diferente da ideia de reportar ou dar ciência, a narrativa requer tomada de posição e implicação naquilo que foi vivido e é contado: narramos o que julgamos relevante, colocamos nela nossas representações e expectativas, damos certa tônica ao relato. Também deixamos de lado a preocupação com explicações sobre os fatos. O entendimento é aberto justamente porque o mais relevante não é a descrição em si, mas o que é inexplicável e insólito (usando as palavras de Brecht, apudPEIXOTO, 1981, p. 60), aquilo que só se exprime sensivelmente, que mobiliza e conecta narrador e leitores numa interlocução que possibilita a compreensão de si e da realidade.

Aquelas narrativas que fazem referência às práticas, costumes e saberes específicos dos espaços escolares, contadas por professores, têm sido amplamente investigadas na área de Educação. Os docentes constroem sentidos a partir de suas experiências ao lhes dar a forma de narrativas, pois a partir de algo vivido criam enredos, elencam prioridades, ordenam um fluxo de acontecimentos e planejam ações. (FERREIRA; ARAGÃO, 2020). Ao ler ou ouvir narrativas docentes partilhamos da intimidade, vivenciamos os dilemas e experimentamos as sensações comuns do cotidiano da escola.

Como metodologia de pesquisa, consideramos como abordagem narrativa aquela que se utiliza amplamente deste tipo de relato, tomando-a como gênero textual, modo de obtenção de informações e forma de registro do percurso investigativo. Ainda, Connelly e Clandinin (1995) destacam a relevância da narrativa como estratégia formativa para quem narra: “A pesquisa narrativa figura como fonte de dados, método e o uso formativo (promover mudanças na própria prática e formação através da narrativa do sujeito)” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 62).

Tomando como certo que o exercício de narrar é sobretudo formativo, compreendemos que a narração da pesquisa é também exercício de constante reflexão e aprimoramento do próprio trabalho como pesquisadores, como apontam Serodio e Prado (2020). É ele próprio: autor, escritor, interlocutor e por vezes também o protagonista de narrativas, indivíduo que está buscando respostas e, ao mesmo tempo, provocando mudanças nos seus próprios espaços de pesquisa. Além disso, a escrita em gênero narrativo possibilita conexão e aproximação do meio acadêmico com a comunidade escolar, pois cria-se uma certa “língua pedagógica própria” (PRADO; SOLIGO, 2007, p. 39), um dialeto pessoal que para se realizar supõe a imersão do pesquisador/autor em seu trabalho e o mobiliza a pensar dialogicamente, considerando a comunidade com a qual estabelece vínculo por meio do narrar. Escolher a narrativa como gênero e método então, é assumir a pesquisa como movimento de autoria e formação.

A narrativa se afirma como alternativa potente em pesquisa quando objetiva investigar o entrecruzamento de culturas e práticas, de modo a deixar transparecer como os sistemas teóricos dialogam com os saberes cotidianos. Também ao evidenciar as memórias e histórias que nos constituem e potencializam os processos de formação e produção de conhecimento. Assim como descrito por Aragão, Ferreira e Prezotto (2017), parte do micro, mas não do individual, pois em cada fala há ressonâncias de gerações e aspectos de toda a sociedade que ecoam nas e das relações com o outro.

Ao mesmo tempo em que se baseia nos dizeres, práticas e saberes construídos historicamente, atualizados na fala de quem narra, o pensamento narrativo apresenta certo ar de novidade ao romper com as formas convencionais de produzir conhecimento, numa constante tensão entre forma e conteúdo, tradição e inovação. Soligo e Simas (2014) apontam que a escrita narrativa é um “exercício permanente de construção por desconstrução”, isto é, uma escrita que caminha na contramão do tipo de pensamento lógico-científico na qual as teses e dissertações são convencionalmente vinculadas por sua estrutura posta a priori. “Pressupõe ‘pensar de outro modo’. Se a perspectiva for de privilegiar formas narrativas de registro, será preciso então privilegiar o modo narrativo de pensar” (SOLIGO; SIMAS, 2014, p. 5).

“Romper tratados, trair ritos”1 quando eles aprisionam e se mostram incapazes de abrigar a totalidade da pesquisa e as marcas da humanidade dos sujeitos que dela participam. Reafirmar contratos, quando eles preservam e reverenciam as memórias e histórias que constituem professores e seus espaços. Fazer circular as práticas antes restritas a pequenos grupos, dar visibilidade ao conhecimento produzido no chão da escola. Optar pela narrativa é um modo particular de fazer e entender a pesquisa, que valoriza as possibilidades interpretativas de uma temática necessariamente relacionada com experiências vividas pelo narrador, que ao relatar também tece articulações com os pressupostos teóricos considerados. É concepção que tem cunho social e visa compreender as transformações ocorridas no processo, captando as tensões e os dados subjetivos, muitas vezes não previstos no início da pesquisa.

Diante dos significados aqui atribuídos à metodologia narrativa, entendendo que ser aberta, diversa e suscetível às nossas escolhas são características centrais desta forma de fazer pesquisa, perguntamo-nos quais são os usos e possibilidades de compreensão do Paradigma Indiciário como modo de investigação essencialmente narrativo. Delineia-se como nosso principal objetivo, então, compreender que apropriações e produções de conhecimento são possibilitadas por esta abordagem no âmbito da formação docente, a partir das narrativas tecidas por, com e sobre professores.

Assim como outras abordagens de pesquisa qualitativa, a narrativa não tem compromisso com realização de estudos replicáveis ou desenvolvidos a partir de modelos. Buscando coerência com os princípios que são próprios do movimento de narrar, assumimos que não há uma única verdade a ser testada ou comprovada. Ao contrário, concordando com Bragança e Ossa (2018), consideramos aquele que narra como portador de um conjunto de saberes e práticas que suscitam leituras diversas da realidade, que podem e devem dialogar e conflitar a visão do pesquisador e com os sistemas teóricos, de forma dialética e dialógica.

Firmando nossa opção teórica e metodológica, no intuito de oferecer elementos que subsidiem a reflexão proposta, inicialmente faremos uma retomada das bases do Paradigma Indiciário, conforme a compreendemos na leitura da obra de Carlo Ginzburg, destacando o elemento narrativo dela decorrentes. Na sequência, partindo de tais contribuições teóricas, organizamos quatro eixos de análise que apontam para possíveis usos da narrativa como método, apresentando-os a partir das narrativas de professoras da Educação Básica2 que, em suas escritas, compreenderam as possibilidades investigativas do narrar. Desenvolvemos então, como síntese final do estudo realizado, três temporalidades que consideramos presentes numa investigação com base no Paradigma Indiciário e que se mostram coerentes, sólidas e potentes na realização de pesquisas no contexto da formação docente.

Construção de uma leitura indiciária: a narrativa como implicar-se

Carlo Ginzburg é um autor razoavelmente conhecido no campo da História. Um tanto menos no campo da Educação. De toda a sua obra, são dois os seus textos mais referenciados na área de educação. O primeiro deles é sua pesquisa monográfica intitulada “O queijo e os vermes” (GINZBURG, 2006). Publicado originalmente em 1976, foi traduzido para diversas línguas, tendo sua primeira versão em português publicada no ano de 1987. Possui edições à venda até hoje e continua a ser um livro de ampla circulação. Ao analisar a história de um moleiro da região do Friul (nordeste da Itália), no século XVI, Ginzburg busca compreender a circulação cultural entre conhecimento erudito e o conhecimento das classes populares. Para além da própria narrativa muito bem escrita, bem como da singular cosmologia proposta pelo sujeito histórico analisado no livro, esta obra, metodologicamente, se propõe a analisar um fenômeno histórico a partir de uma única história de vida, partindo de uma documentação que permite acessá-la apenas indiretamente.

Os principais termos que os pesquisadores inspirados pela obra de Ginzburg passaram a utilizar foram retirados de um ensaio publicado em 1979, republicado em livro no ano de 1986 e traduzido para o português em 1989. Trata-se do texto “Sinais, raízes de um paradigma indiciário”. Disponível na coletânea de ensaios “Mitos, emblemas e sinais” (GINZBURG, 1989), o “Sinais” busca qualificar o que o autor denomina de Paradigma Indiciário, com origens remotas nas práticas de caçadores de sociedades anteriores à invenção da escrita, passando por diversas ciências que não se adequam ao paradigma denominado de galileano das ciências modernas. Trata-se da construção de um conhecimento que busca a totalidade sobre um objeto cujo acesso só se dá de maneira indireta, o que é possível por meio de sinais e indícios, que são, nas palavras do autor, “zonas privilegiadas” para decifrar uma realidade que é “opaca” (GINZBURG, 1989, p. 177). Ao fazer esse exercício epistemológico, Ginzburg se insere no âmbito de um debate sobre os paradigmas científicos e oferece subsídios para pensarmos a pesquisa qualitativa no âmbito da educação (SUASSUNA, 2019).

Não obstante o caráter de síntese e densidade desses dois textos do historiador italiano, é necessário compreender os modos de fazer uma leitura indiciária no diálogo entre esses textos e o restante da obra de Ginzburg (como apontado em LEONARDI;AGUIAR, 2010). Entendemos que essa leitura mais abrangente permite compreender diferentes aspectos presentes numa pesquisa indiciária. Nesta, remontamos uma realidade complexa a partir da disposição narrativa dos indícios que apreendemos por meio de fragmentos, em diálogo erudito com o entorno desses indícios. A decifração desses indícios é feita por meio de perguntas narrativas que são construídas ao longo de nossa pesquisa em exercícios de alternância entre o micro e o macro, consideração da distância e do estranhamento, observação de recorrências e anomalias. Utilizando de um rigor flexível, nós nos aproximamos do outro, preservando o indecifrável de tudo o que é humano, inclusive em nós mesmos, implicando-nos na escrita de uma narrativa que preserva o caráter de verdade e totalidade3.

Nestes termos, diferentes conceitos ampliam a noção de indício, apontando que tão ou mais importante quanto o fato de, dentro deste paradigma, trabalharmos com elementos normalmente negligenciáveis (e negligenciados), os indícios, é a consideração de que eles são desenvolvidos de forma narrativa. Para tanto, um conjunto de atitudes diante dos materiais da pesquisa é necessário, especialmente o referido exercício de distância e estranhamento. Esta atitude em especial é amplamente desenvolvida no livro “Olhos de Madeira” (GINZBURG, 2001), a partir do qual podemos compreender que:

Estranhar é ter consciência que, numa sociedade globalizada, na qual “o mundo todo é nossa casa”, “todos nos sentimos estrangeiros em relação a alguma coisa e a alguém” (idem, p. 11). É com essa tomada de consciência que convidamos a nós mesmos a estranhar mais e a buscar elementos e temas que não estão óbvios. É agir como a criança que, curiosa, sempre pergunta “por que” e o nome das coisas (LEONARDI; AGUIAR, 2010).

Sentir-se estrangeiro, distanciar-se, são práticas aqui pensadas como exercício de olhar profundamente para si mesmo, buscando compreender de que maneira estamos implicados na pesquisa que realizamos e como explicitamos, narrativamente, nossas escolhas, dúvidas, tensões e decisões metodológicas. Assim, a narrativa se constitui como forma de pensar, organizar e realizar a investigação. Experiências e acontecimentos são organizados de modo a, ao longo da pesquisa, produzir uma outra narrativa, a do pesquisador. Quando estamos imersos nas histórias dos participantes da pesquisa, reconhecemos todo um contexto no qual cada narrativa se desenvolve, bem como aspectos importantes da cultura e das práticas sociais que não dizem respeito apenas ao que foi vivido ou a quem viveu, mas ao modo como a experiência se atualiza no instante em que se decide narrar, em diálogo com as questões do nosso tempo, dos nossos espaços e da nossa cultura. De acordo com Alves (2000),

Após tantas pesquisas desenvolvidas no cotidiano e após tantas e tantas histórias narradas (ouvidas e contadas) foi possível começar a entender que, talvez, narrar seja o modo mesmo como, por um lado, se expressam os sujeitos sobre seu cotidiano sempre que desejam transmiti-lo e, por outro lado, pode ser, também, um dos métodos mais importantes para se organizar a história do cotidiano, melhor expressando-a e possibilitando seu melhor entendimento (ALVES, 2000 p.03).

A pesquisa narrativa se dá, então, nessa relação entre o micro e o macro, entre a narrativa do sujeito e a história de seu contexto (GINZBURG, 2007b, p. 244). Remete a questões tipicamente humanas, por isso transversais e urgentes que entram na história dos sujeitos e se materializam nas experiências registradas. É, portanto, particular e individual, ao mesmo tempo em que remete ao diverso e coletivo. Explicitamos tal percepção em relação a uma de nossas pesquisas:

Em primeiro lugar, só conseguimos explicar como foi feita a pesquisa em seu final. Quando estávamos no meio do processo, o modo de analisar as cartas era diferente. (...) A principal consequência dessas mudanças de percurso durante a pesquisa é a percepção que perguntas que pareciam insignificantes tornaram-se fundamentais e vice-versa. A lista de porquês começou a aumentar (...) entendemos que qualquer explicação de como a pesquisa foi conduzida constitui-se numa nova narrativa, que pode ser recontextualizada futuramente. (...) Em segundo lugar, como decorrência deste primeiro item, compreendemos que o processo de estranhamento como distanciamento não é apenas com relação às fontes, mas também com relação às nossas próprias escolhas metodológicas e os resultados destas escolhas. (...) Por fim, como consequência do que acabamos de afirmar, a narrativa final torna-se novo objeto de estranhamento, visto que há elementos que fogem ao nosso próprio controle como historiadores quando escrevemos nossa narrativa histórica. Nossa escrita é sempre inacabada. (...) As novas perguntas só surgem quando continuamos a estranhar as fontes. E para que continuemos a estranhar as fontes, precisamos estranhar a nós mesmos, nossas certezas e nossas narrativas (AGUIAR, 2012, p. 6579-6580).

Compreendemos que a pesquisa narrativa requer leitura indiciária quando consideramos o caráter polissêmico daquilo que escrevemos. A escrita contém mais do que as palavras apresentam de forma explícita e imediata. Este modo de olhar para a pesquisa também se fundamenta na ideia de que os instrumentos, por serem produtos da ação humana, são elementos férteis em significados e abertos a múltiplos sentidos. Por isso, a narrativa “carrega uma perspectiva transformadora, de ações e de sentidos, que assume um compromisso com o que não é formalmente dito, mas está posto pelo registro, levando o pesquisador a buscar o que é marcado para além da obviedade” (FERREIRA, 2014, p. 241, grifo nosso).

Ainda, entendemos que a dimensão narrativa é a que permite ligar os pontos dos indícios que encontramos em nossa pesquisa. É justamente porque queremos narrar nossos dados que aqueles elementos marginais precisam ser explicados, eles devem ser significados de modo a se unirem de forma coerente e coesa por meio de nossas perguntas narrativas. Concordando com Aragão (2010), compreendemos que “a análise indiciária valoriza componentes de singularidade e detalhes secundários situados muitas vezes na aparência das coisas. O objetivo é reconhecer e remontar uma dada realidade estabelecendo elos conectivos” (ARAGÃO, 2010 p.125). Neste sentido, não se abandona a totalidade, ao contrário, ela é resgatada pouco a pouco, estabelecendo-se uma conexão narrativa.

O trabalho com narrativas permite o acesso a um tipo de conhecimento que não está presente nos modelos gerais das ciências modernas. Numa ciência generalizante, a exceção é excluída. No Paradigma Indiciário, a exceção, o singular, o individual são necessários para o conhecimento. Para a compreensão daquilo que foi vivido e relatado, em toda a sua riqueza, é preciso considerar tanto os elementos recorrentes quanto os singulares, assumir a subjetividade do pesquisador sem abdicar do “rigor flexível” (GINZBURG, 1989, p. 179). Entendemos o rigor flexível do Paradigma Indiciário como a adoção e coerência com procedimentos próprios, que são metódicos (nem por isso únicos ou preestabelecidos) e que consideram a dúvida como parte fundamental do processo de conhecer (por isso, distância e estranhamento).

A manutenção da dúvida exige implicar-se na pesquisa, estar presente, fazer perguntas narrativas tanto ao objeto da investigação quanto a nós mesmos. Implicar-se demanda considerar a si mesmo e ao outro, pois é justamente a existência do outro que permite a construção de significações coletivas para nossa implicação. Deste modo, nossa leitura indiciária é a narrativa de nós mesmos, de nossa pesquisa, de nosso objeto. É por isso que narrar não é apenas contar uma história ou a própria história. Requer compromisso com as perguntas realizadas e objetos estudados, bem como a disposição da partilha com o outro, a escolha das palavras e dos fatos, certa ordenação lógica e criteriosa que mobiliza emoções tanto no narrador quanto em seus interlocutores.

Paradigma Indiciário e a pesquisa realizada por, com, sobre professores

Em consonância com uma leitura indiciária, articulamos tais preceitos ao contexto da formação docente ao tomar para análise as narrativas elaboradas por professoras de Educação Básica em momentos de formação continuada, realizados concomitantemente à pesquisa. Trazemos para o texto fragmentos potentes da escrita de docentes que nos auxiliam na identificação e compreensão de quatro aspectos do processo de constituição metodológica da investigação que aqui defendemos.

a) Pensar narrativamente: atentar-se ao processo

O movimento da pesquisa, no Paradigma Indiciário, se dá num constante coletar, observar e decifrar. Coletamos recorrências, anomalias e lacunas, variamos as escalas de observação, reunimos diferentes documentos, fontes de dados, materiais de estudo. Buscamos indícios e repetições. Observamos o material que coletamos. Para cada material, podemos reconhecer coisas já sabidas antes (é quando nossas certezas aparecem), podemos duvidar e propor questões (é quando nossas dúvidas aparecem) ou ainda intuir que há algo ali que ainda não entendemos (porque há, em toda pesquisa, elementos não tão evidentes). Podemos voltar à busca de outros materiais, a partir do que observamos, e novamente lançar olhar apurado.

Mas os textos, as palavras, as ideias, as imagens, os sons, o que quer que tenhamos capturado, só possuem sentido se colocados em uma narrativa. Este é o ato de decifrar. É o momento do estado exilado do estranhamento em relação às nossas certezas, dúvidas ou intuições. Numa reflexão sobre história e fotografia, em diálogo com Siegfried Kracauer (1889-1966), escritor alemão, com uma obra marcante no campo dos estudos sobre cinema, Ginzburg afirma que o historiador, assim como o fotógrafo, é um exilado, alguém que pode desenvolver um olhar de estranhamento: “O instante do não-reconhecimento abre para o olhar de estranhamento do espectador o caminho da iluminação cognoscitiva” (GINZBURG, 2007b, p. 238). Ou seja, pelo não reconhecimento posso estranhar e posso compreender:

É somente nesse estado de autoanulação, ou nesse ser sem pátria, que o historiador pode entrar em comunhão com o material que concerne à sua pesquisa. [...] Estrangeiro em relação ao mundo evocado pelas fontes, ele deve enfrentar a missão - missão típica do exilado - de penetrar as suas aparências exteriores, de modo a poder compreender esse mundo de dentro (GINZBURG, 2007b, p. 238, grifos nossos).

É quando, por meio da leitura lenta, buscamos a erudição em outras referências bibliográficas, inserimos os indícios em séries (estabelecendo categorias) e reorganizamos nossos registros da pesquisa. Implicados, assumimos uma postura de exílio em relação a nós mesmos, num constante movimento de (nos) problematizarmos.

Ao romper com a lógica de pesquisa em certo molde linear e de neutralidade como meio de confirmar ou refutar hipóteses, a pesquisa narrativa expande o universo a ser estudado e coloca o pesquisador como interlocutor privilegiado, alguém que se dispõe a fazer uso da escuta e da palavra para conhecer. Esta visão altera sensivelmente a relação de professores com saberes que lhe são próprios e com a produção de narrativas, como externa Marina:

Eu não sei se é isso que você espera que eu fale... A gente pode falar a partir daquilo que sabe porque vê acontecer na escola, mas são as coisas que eu vivo e que eu sei que são potentes porque fazem sentido quando eu percebo o link que tem com todas as coisas que eu julgo importantes, desde os conteúdos, que não posso abrir mão, até com a essência de ser professora, ao menos para mim... mas talvez você precise que eu fale assim, mais pensando naquilo que a gente estuda de desenvolvimento, né? Não sei o que você precisa. Mas se eu puder contar um pouco do que eu faço, acho que você vai encontrar as teorias também, viu... pensando bem, é isso. Tenho certeza que as próprias histórias que eu tenho, com as crianças aqui, elas vão te contar coisas que nem sempre percebemos, mas estão cheias de sentido. Trecho de narrativa oral de Marina (audiogravado).

Marina, professora de Educação Infantil, deixa transparecer a preocupação com uma concepção de pesquisa que busca encontrar, em suas falas, argumentos que caminhem na direção de hipóteses previamente elaboradas pelo pesquisador. Ao perceber que não havia prescrições fechadas nem modelos ensaiados, organiza seu pensamento e assim compreende que as histórias que tem para partilhar, vividas no chão da escola, podem remeter a questões comuns ao desenvolvimento e aprendizagem de muitas professoras em diferentes contextos. A problematização do imediato abre espaço para que nossas certezas, quando lidas de forma indiciária, tragam links com outras escalas de observação. Novos sentidos permitem novas questões num movimento narrativo de olhar para a própria pesquisa.

Nesse movimento, a busca por coerência entre referencial teórico, metodológico e de análise é ponto central. Quando nos referirmos à metodologia narrativa há ainda maior cuidado a ser tomado por compreendemos que não se trata de um modo de pesquisa dado a priori, ou seja, com referenciais previamente definidos e hipóteses claras a serem conflitadas, o que exige a elaboração de outros - novos - critérios metodológicos.

A pesquisa narrativa, neste sentido, se realiza num ir e vir entre teorias, escolhas metodológicas e análises, pois compreendemos que todo o processo deve ser revisitado e questionado a cada novo passo. Vale esclarecer que o pesquisador certamente possui um conjunto de saberes e perguntas mais ou menos estáveis que direcionam seu olhar, dos quais se mune para buscar compreender seu objeto de pesquisa. Porém, na medida em que entra em contato com as narrativas dos participantes, percebe quais escolhas parecem acertadas e que outras devem ser abandonadas, realizando movimento de diálogo e construção de uma nova narrativa - a de sua investigação. Assim, é fundamental que o pesquisador se mostre aberto a conhecer profundamente o que é revelado pelo próprio grupo de sujeitos/material analisado, em consonância com os campos teóricos que fundamentam sua ação, pois como pesquisador assume o lugar de quem recolhe, organiza e reconta tais experiências.

b) Além dos acontecimentos: considerar os contextos

Ao considerar aquilo que o sujeito narra, é preciso olhar além da materialidade das palavras e buscar entender também os silêncios, as pausas, as recorrências. As escolhas feitas alteram a relação do narrador com sua elaboração, pois aquilo que foi vivido se atualiza e se conecta com o momento presente, o espaço e as pessoas que se colocam como interlocutoras.

Ao narrar, o indivíduo ordena seu pensamento e submete aquilo que viveu concretamente ao próprio julgamento, às representações, memórias e emoções. Por isso, a narrativa é sempre uma criação e, como tal, ganha amplitude quando conhecemos seu contexto de produção. Neste sentido, só podemos compreendê-las na relação com o espaço e o tempo.

Saí no finalzinho do encontro ontem pois estava muito cansada e não aguentava mais parar em pé de tão cansada, que ruim é ir embora sem participar do fechamento com as colegas! Tem sido uma verdadeira delícia estarmos juntas. (...) Eu mal cheguei em casa e já me arrependi de não ter ficado até o final, pois não dei conta de fazer em casa um registro cuidadoso e completo como o que fazemos juntas. Percebo que estar com o grupo me faz mais criativa, mais animada, disposta. Trecho de narrativa escrita de Amelie (registrado em portfólio).

As situações narradas ocorrem no recorte temporal de uma história de vida e, portanto, seu contexto de produção altera significativamente seu conteúdo. Por isso, conhecer os indícios as nuances, os atravessamentos históricos, os interlocutores e as motivações do narrador se faz necessário em pesquisa narrativa, o que Amelie deixa explícito ao narrar ao pesquisador como compreender sua ausência (sentida, necessária, compromissada com os afazeres não realizados por sua saída antecipada). Deste modo, a pesquisa como aqui é considerada, contempla a diversidade das situações vividas como parte das informações investigadas, considerando a necessária relação entre o micro narrado e o macro da narrativa inserida em um espaço-tempo.

Mas nem sempre esse espaço-tempo (que é tão presente!) é explícito como Amelie nos faz perceber. Em um texto intitulado “Latitudes, escravos e a Bíblia” (GINZBURG, 2007a), o historiador italiano, na escala da história de vida de um único sujeito, analisa dois memoriais escritos por Jean-Pierre Purry, um burguês suíço do século XVIII, no qual, em linhas gerais, justifica a escravidão e a colonização a partir de uma interpretação bastante pessoal de um trecho bíblico sobre a latitude da Terra Santa.

Ginzburg aponta a inspiração de seu trabalho nas ideias do filólogo e crítico literário alemão Erich Auerbach (1892-1957) e na visão que este pensador tinha sobre o processo que hoje chamamos de globalização. Quando escreveu sua história da literatura pensada no âmbito de uma interação mundial entre diferentes linguagens e culturas, Auerbach propôs olhar para os “pontos de partida” e inferir seus desenvolvimentos:

Auerbach acreditava que era preciso olhar para Ansatzpunkte, isto é, para pontos de partida, para detalhes concretos a partir dos quais o processo global poderia ser reconstruído indutivamente. A unificação em andamento do mundo, Auerbach escreveu na conclusão de Mimesis, “é mais concretamente visível agora na representação despreconceituosa, precisa, interior e exterior do momento aleatório nas vidas de diferentes pessoas” (GINZBURG, 2007a, p. 86).

Olhar para as pessoas, suas vidas, seus “momentos aleatórios”, coletar e elaborar “pontos de partida” era um procedimento inspirado em Marcel Proust e Virgina Woolf. E um procedimento marcante na obra de Ginzburg. Aqui, o autor trata do caráter fragmentário da realidade e do modo como os indícios são caminhos para, por meio da redução da escala de observação, reconstruirmos uma história de vida. Mais do que isso, são justamente os indícios presentes em nossa história que nos permitem o olhar para uma realidade histórica mais ampla:

O caso de Jean-Pierre Purry, esse profeta precoce da conquista capitalista do mundo, apresenta a oportunidade de derrubar as barreiras pensadas para separar micro-história e teoria. Uma vida escolhida aleatoriamente pode tornar concretamente visível a tentativa de unificar o mundo, assim como algumas das suas implicações. Ao dizer isso, eu estou fazendo eco a Auerbach. Mas Auerbach estava se referindo a Proust, implicitamente. Deixemos Proust ter a palavra final: “Imaginam os simples de espírito que as grandes dimensões dos fenômenos sociais são uma excelente ocasião de penetrar mais além na alma humana; deveriam antes reconhecer que só descendo em profundeza numa individualidade é que teriam probabilidades de compreender tais fenômenos” (GINZBURG, 2007a, p. 97, grifo nosso).

Nesse sentido, o método indiciário aproxima-se das questões teórico-metodológicas propostas por Ferrarotti (2010, p. 45), especialmente por sua compreensão do indivíduo como “reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia” e a possibilidade de conhecermos o social a partir do individual.

Partindo da compreensão, apresentada por Connelly e Clandinin (1995), de pesquisa narrativa como prática fundamentada na experiência dos indivíduos, ressignificada pela narração de histórias vividas, compreendemos que este modo de investigação se fundamenta na busca por referenciais que valorizam as dimensões pessoais e humanas para além de esquemas fechados, recortados e quantificáveis.

c) Fazer parte: registrar o percurso da pesquisa

A pesquisa narrativa, neste sentido, tem compromisso com a transparência e humanização do lugar de investigador. Isso significa revelar em quais condições os dados foram produzidos e sob que prismas se submeteram para serem analisados, as idas e vindas em relação aos conjuntos teóricos escolhidos, os ajustes realizados e caminhos traçados. Tal atitude aproxima e torna os saberes mais facilmente compreendidos por aqueles que desejarem conhecer melhor a pesquisa desenvolvida.

As vivências coletivas, desenvolvidas a partir de proposições das professoras-participantes, mobilizaram outros saberes que não estavam previstos no início da proposta de pesquisa, de caráter formativo, dotado de amplo potencial estético. Por mais que eu soubesse que devia acolher e registrar o que se produzia ali, tive o desejo de direcionar as ações, como quem diz: “ei, não é para demorar tanto nesse registro, parem de fazer isso e vamos para o que me interessa”. Mas não disse, felizmente. Acolhi as interações que aconteciam e em pouco tempo o grupo demonstrava envolvimento, cumplicidade e disponibilidade para realizar as propostas de trabalho com a inteireza que dele esperávamos. Aprendi (FERREIRA, 2014, p. 133).

Ao narrar parte do processo de pesquisa, assumimos cuidado com o leitor, de inseri-lo no contexto e fazê-lo compreender as decisões e dilemas que não eram previstos no início da investigação. Reconhecemos haver construções, apropriações, propostas e recusas que dialogam e tensionam a elaboração do conhecimento, humanizam este processo e o retratam como fazer muito próximo a outros fazeres, destituindo o lugar da pesquisa como prática exequível apenas a alguns eleitos. Desta forma, podemos dizer que o registro narrativo do estudo é, sobretudo, compromisso político de partilha dos modos de produzir conhecimento.

Além disso, ao registrar reafirmamos o rigor teórico e metodológico da investigação narrativa: seus valores centrais se fazem presentes em todas as etapas de estudo e estão claros no modo como se registra este processo. A necessidade deste cuidado transparece quando a pesquisa conta com diversos procedimentos de produção de dados que frequentemente mostrarão perspectivas diferentes da mesma situação/participante. Sabendo que a análise dos dados traduz a leitura do pesquisador sobre o vivido, é indispensável localizar quais fontes foram consideradas, evitando o esvaziamento de sentidos do material produzido.

Toda escrita é autobiográfica, visto que quem escreve deixa marcas de si na escrita. De certo modo, todo o tempo da pesquisa deve ser acompanhado de escrita. Diários de pesquisa (não apenas para a coleta de dados em campo, mas, especialmente, um diário que acompanhe todo o processo da pesquisa), inventários de fontes, tabelas, esquemas, mapas, esboços, fichamentos são exemplos de textos que escrevemos durante a pesquisa. Mas há uma escrita final, aquela que conclui a pesquisa.

Ginzburg escreveu muitos ensaios, tomando esse gênero como seu favorito, visto que ele permite preservar, na escrita final, o caráter indiciário de sua pesquisa (GINZBURG, 2000, p.11-12). A escrita em forma narrativa é fundamental para o registro de uma pesquisa no Paradigma Indiciário. Ela permite trazer o caminho da pesquisa, não apenas nas suas certezas, como também nas suas dúvidas, bem como possibilita a gradação das certezas nos termos que utilizamos para escrever e viabiliza o movimento entre provisório e definitivo (que se tornará um novo provisório) marcante no conhecimento produzido neste paradigma. Consiste numa escrita que traz tanto as conclusões quanto as questões do caminho.

Nessa escrita, estamos presentes e, portanto, expostos. Nossos acertos e, principalmente, nossos erros são visíveis aos outros. O próprio Ginzburg trata, em mais de um texto, das críticas que recebeu e de diversos erros que outros pesquisadores já lhe apontaram. Um deles, em especial, possui impacto significativo no argumento que desenvolveu no livro “Investigando Piero” (GINZBURG, 2010), quando alguém mostrou que uma de suas inferências sobre um determinado quadro estava errada. Mas é justamente porque sua escrita possui caráter narrativo que aquela inferência foi apresentada, originalmente, com o devido grau de dúvida.

Trabalhar com a memória cotidiana das tantas ações desenvolvidas nos múltiplos contextos em que vivemos, exige trazer à tona uma narrativa que não é nem linear nem progressiva. Por isso, o investigador que trabalha com pesquisa narrativa deve registrar suas escolhas, dúvidas e hipóteses ao longo da construção da investigação. Escrever narrativamente, além de levar às análises novos saberes decorrentes do estudo realizado, também se mostra potente por seu caráter formativo para outros pesquisadores que buscam conhecer mais sobre os processos e dilemas da condição de professor-pesquisador.

d) Firmar contratos: estabelecer critérios de relevância

Como as narrativas são amplas, diversas, repletas de sentidos e emoções, no momento em que as tomamos como material empírico, elas não falam por si. Ou melhor, falam de maneira polissêmica e aberta, suscitando inúmeras conexões. Por isso, pesquisa narrativa requer intencionalidade e a aplicação de filtros que conduzam os leitores às compreensões obtidas pelo pesquisador. É fundamental esclarecer aos interlocutores quais são as intenções, que perguntas fazemos às histórias contadas e que autores/teorias servem como lentes para sua interpretação.

Neste mesmo sentido, sabemos que nem todo o conteúdo de uma narrativa tem pertinência com o tema estudado. Dada a flexibilidade característica desta maneira de fazer pesquisa, os materiais extraídos do processo de investigação podem se revelar diversos em temas e significados. Ou seja, mesmo tomando as narrativas em sua totalidade, é preciso selecionar criticamente as informações das quais iremos nos munir para manter a atenção no que se mostra central e potente no desenvolvimento da pesquisa, também com o intuito de preservar o narrador da exposição de informações irrelevantes para o curso da investigação.

Tem uma parcela de tudo o que conversamos aqui que pode ser traduzida em lições aprendidas, em conhecimento e práticas que certamente modificam meu modo de ser professora. Tem muita coisa no que contamos, e eu percebo como temos muito em comum. Tem neste espaço uma dimensão de vivência que me ensina demais: é aquilo que me mostra o prazer de viver, de estar na escola, a alegria de partilhar com o outro, o olhar encantado para o mundo. As cores da sala de aula, os sons do pátio, o movimento das folhas e areia no parque, a delicadeza do toque de um abraço manhoso, o sabor do café... Tudo fica um pouco cinza se não aprendemos a sentir com totalidade e inteireza. Trecho de narrativa oral de Hellen (audiogravado).

Hellen nos ensina que a própria construção da narrativa do pesquisador trará elementos que possibilitem a seleção de histórias, fragmentos e excertos que remetam à totalidade das obras, a partir dos ensinamentos que se destacam, ora por serem comuns, ora por serem inéditos entre aqueles que narram. Não é necessário incluir toda a narrativa, ou todas as narrativas na pesquisa pois cada uma delas, ou cada parte delas, quando escolhida criteriosamente, retratam/contém/reverberam uma somatória de experiências vividas.

Um olhar descuidado pode estranhar o gesto do pesquisador diante dos dados da pesquisa ao tomá-los “ao acaso” ou de modo “arbitrário”. Por não se fundar exclusivamente em uma racionalidade técnica e determinista, dizemos que a atitude de pesquisa em uma investigação narrativa se funda em outra forma de compreensão do real, pois parte da razão sensível sem, por isso, deixar de ser inteligível. Assim, os recortes e escolhas realizadas são as que se mostram coerentes com a narrativa tecida, de modo a respeitar o curso da história e os pressupostos que subsidiam o estudo. Há articulações possíveis, elos conectivos evidentes, ligações que emergem da escrita e que sensivelmente são tomadas pelo pesquisador. É o que nos lembra Ginzburg em relação ao seu ensaio sobre um moleiro do século XVI:

[...] podemos dizer que Menocchio é nosso antepassado, mas é também um fragmento perdido, que nos alcançou por acaso, de um mundo obscuro, opaco, o qual só através de um gesto arbitrário podemos incorporar à nossa história. Essa cultura foi destruída. Respeitar o resíduo de indecifrabilidade que há nela e que resiste a qualquer análise não significa ceder ao fascínio idiota do exótico e do incompreensível. Significa apenas levar em consideração uma mutilação histórica da qual, em certo sentido, nos mesmos somos vítimas. (GINZBURG, 2006, p. 26, grifos nossos)

Culturas excluídas, esquecidas, mutiladas chegam até nós por meio de fragmentos, estes muitas vezes opacos, porque carregam um forte teor de indecifrabilidade. Pouco entendemos a seu respeito. Quando estamos muito próximos de nossas fontes ou objetos de investigação, tendemos a nos esquecer da (sempre) existência de certo teor de indecifrabilidade em qualquer objeto cuja historicidade é inerente, como, por exemplo, o fenômeno educativo.

Nesse sentido, a escrita de forma narrativa permite que vivenciemos e valorizemos a dúvida, pois é ela que permite que nosso conhecimento busque seu caráter de totalidade. Nós preservamos a indecifrabilidade que existe em tudo o que é humano, mantendo termos como “talvez”, “provavelmente”, “certamente” naquilo que escrevemos (GINZBURG, 2007b; DAVIS, 1987) e tomando posições sobre as (necessárias) escolhas que fazemos.

Três temporalidades da pesquisa no Paradigma Indiciário: à guisa de conclusão

Quando pensamos nas relações entre pesquisa narrativa e Paradigma Indiciário, entendemos que tão ou mais importante do que observar os indícios nos materiais produzidos ao longo da pesquisa, é compreender que o método indiciário é necessariamente narrativo, na medida em que é a narrativa que dá sentido aos indícios. Esse processo de produção de sentidos ocorre num método que segue um rigor flexível e que buscamos, neste artigo, sistematizar em quatro atitudes diante da pesquisa.

Diante do exercício de estranhamento de nossas certezas, buscamos decifrar os inícios durante o contínuo processo de investigação. Pensar narrativamente é atentar-se a esse processo, numa postura cíclica de implicar-se e se exilar de nossas narrativas e das narrativas dos outros. Na alternância entre escalas de observação, olhando para a narrativa de um professor e a realidade histórica mais ampla na qual se insere, considerando o caráter fragmentário da realidade, olhamos para além dos acontecimentos imediatos presentes numa escala para considerar seu contexto de formação.

Registros como os que compõem as análises realizadas neste estudo reafirmam as narrativas como forma potente de mobilizar sentimentos, dúvidas e processos reflexivos diferentes dos vividos momentaneamente na ação. Sendo uma experiência de retomada - oral ou escrita - da experiência vivida, narrar é outro acontecimento que toma o professor e permite atualizar momentos passados, lições aprendidas, contextos e perspectivas não contempladas no calor da ação. Esta relação de narrar o vivido e voltar-se à experiência se configura de maneira dialética: se por vezes é a experiência vivida no contexto formativo que reverbera a escrita narrativa, em outras situações é a leitura e contato com narrativas docentes que favorece importantes mudanças de atitude e concepção em relação às práticas cotidianas.

Percebendo o entrecruzamento de tempos que torna as narrativas singulares e potentes, destacamos três temporalidades da pesquisa: o tempo da história de vida, o tempo da pesquisa e o tempo da escrita.

O tempo da história de vida é aquele que vivenciamos como realidade e como cultura. O caráter fragmentário da realidade faz com que os diferentes pontos de ligação entre as coisas e suas significações históricas não sejam diretamente compreensíveis. Nossa relação com o real é mediada pela cultura. Entrar no tempo da pesquisa é, de certo modo, exilar-se de um tempo cotidiano para, num exercício de estranhamento e distanciamento, problematizarmos esse cotidiano. Mas esse exílio não significa nos afastarmos de nossa história de vida, o que seria tão impossível quanto nos afastarmos da cultura. Trata-se de entramos na pesquisa implicados com aquilo que somos quando a iniciamos e estarmos acompanhados de nossas certezas e nossas dúvidas durante toda a realização da pesquisa (bem como depois que ela terminar). Nossa história de vida atravessa e é atravessada pela pesquisa que realizamos. O tempo é, de certo modo, uma constante, um eterno presente.

O tempo da pesquisa é o do método, que como afirmamos, se realiza no movimento de imersão e afastamento, a partir de três atos: coletar, observar e decifrar. Ele não é uma etapa específica da pesquisa. A todo momento estamos reunindo diferentes documentos, dados empíricos e/ou bibliográficos, em diferentes escalas de observação. Cada novo material levantado é submetido às (e problematizado por) nossas certezas e dúvidas, seja num processo racional, seja por meio de momentos intuitivos. Essa problematização exige de nós um exercício de entendimento narrativo com atos como ler mais sobre o entorno daquele dado (buscar maior erudição), estabelecer categorias de trabalho (inserir numa série) e/ou reorganizar nossos registros/inventários. O que nos traz de volta a novas buscas, a novas coletas de dados. Esse movimento contínuo acontece desde as primeiras ideias da pesquisa (antes mesmo de ela se formalizar) e não termina (pois sempre haverá algo novo a ser decifrado e nossa ignorância é infinita). Entendemos esse tempo de pesquisa como algo cíclico.

O terceiro tempo é o tempo da escrita. Como partimos do pressuposto que toda escrita é autobiográfica, visto que quem escreve deixa marcas de si na escrita, escrevemos o tempo todo, com nossos diários, inventários, esquemas, esboços, etc. Mas há um momento em que temos que estruturar uma narrativa, uma escrita final, que contenha o caminho percorrido, a gradação de nossas certezas e nossas conclusões (mesmo que provisórias). Essa escrita final, dado o seu caráter conclusivo, ocorre, de certa forma, num tempo linear. Linear, porque é necessário pôr um fim ao texto acadêmico. O texto escrito deve terminar e nossa pesquisa se conclui em algum momento. Mas, quando ela se conclui, ela se abre a novas questões narrativas, seja sobre os mesmos objetos, seja sobre um mundo novo de ideias que se abre, seja sobre nós mesmos - que não somos mais os mesmos.

1Parafraseando João Ricardo e Paulinho Mendonça em Sangue Latino (Secos e Molhados, 1973).

2Narrativas produzidas em iniciativa de formação continuada realizada em concomitância com pesquisa já finalizada, da qual este estudo decorre.

3As ideias presentes neste parágrafo são oriundas do debate com os pesquisadores Paula Leonardi e Fernando Antonio Peres, com quem elaboramos um artigo para discutir os usos da obra de Ginzburg na história da educação. Este artigo está em processo de avaliação em outro periódico.

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Recebido: 11 de Junho de 2020; Aceito: 26 de Setembro de 2020

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