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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75644 

Dossiê - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Reflexões conceituais e metodológicas sobre o “barroco” das biografias

Conceptual and methodological reflections on the “baroque” of biographies

Priscila de Oliveira Coutinho* 
http://orcid.org/0000-0002-7178-2789

*Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educação. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: prioliveiracoutinho@gmail.com


RESUMO

Pretendo neste texto apresentar reflexões conceituais e metodológicas produzidas em pesquisa de doutorado que se dedicou à reconstrução sociológica da trajetória de uma mulher, trânsfuga de classe, chamada Juscelina. A pesquisa teve duração de 16 meses, dentro dos quais foram realizadas entrevistas, pesquisa em variados tipos de documentos e incursões etnográficas. Dos muitos desafios da investigação, apresento aqui duas questões que se articulam. A primeira refere-se à utilização do conceito de trânsfuga. A segunda discute o valor sociológico da pesquisa biográfica. Praticando o artesanato intelectual que constrói explicações no entrelaçamento entre a pesquisa de campo e a literatura das ciências sociais, exponho o processo que me levou a considerar produtivo o conceito de trânsfuga para o caso em análise, e argumento que as críticas do campo sociológico ao método biográfico, exemplarmente sintetizadas no clássico “A Ilusão Biográfica”, de Pierre Bourdieu, devem ser relativizadas em consideração às maneiras como se procede em cada investigação empírica. Para tanto, me valho da minha experiência e dos argumentos de Schwartz (1990) e Lahire (2010). Concluo que as pesquisas biográficas em ciências sociais não precisam subsumir os relatos pessoais às dimensões estruturais que também explicam a trajetória (origem social e geográfica, cor, gênero, nível de escolaridade, etc.), mas sim articular a riqueza barroca das visões de si, das relações construídas e do mundo observado e vivido à reconstrução dos constrangimentos estruturais que pavimentam os percursos individuais.

Palavras-chave: Biografia; Trânsfuga; Ilusão biográfica; Trajetória

ABSTRACT

In this text, I intend to present conceptual and methodological reflections produced in doctoral research that was dedicated to the sociological reconstruction of the trajectory of a woman, a “transfuge de classe”, called Juscelina. The research lasted 16 months, in which interviews, research in various types of documents and ethnographic incursions were carried out. Of the many challenges of research, I present two questions that articulate. The first refers to the very use of the concept of transfer. The second discusses the sociological value of biographical research. Practicing the intellectual craftsmanship that builds explanations in the intertwining between field research and the social sciences literature, I expose the process that led me to consider productive the concept of transfuge to the case under analysis, and argue that the criticisms of the sociological field to the biographical method, exemplified synthesized in the classic “The Biographical Illusion”, by Pierre Bourdieu, must be relativized in consideration of the ways in which each empirical investigation proceeds. For that end, I draw on my experience and the arguments of Schwartz (1990) and Lahire (2010). I conclude that biographical research in social sciences does not need to subsume personal reports to the structural dimensions that also explain the trajectory (social and geographical origin, color, gender, level of education, etc.), but rather to articulate the Baroque richness of the visions of the self, the relationships built and the observed and lived world to the reconstruction of the structural constraints that pave the individual paths.

Keywords: Biography; Transfuge; Biographical illusion; Trajectory

RÉSUMÉ

Dans ce texte, j'ai l'intention de présenter des réflexions conceptuelles et méthodologiques produites dans une recherche doctorale consacrée à la reconstruction sociologique de la trajectoire d'une femme, une transfuge de classe, appelée Juscelina. La recherche a duré 16 mois, au cours desquels des entretiens, des recherches sur divers types de documents et des incursions ethnographiques ont été menés. Parmi les nombreux défis de la recherche, je présente deux questions qui s'articulent. La première renvoie à l'utilisation même du concept de transfuge. La deuxième traite de la valeur sociologique de la recherche biographique. Pratiquant le savoir-faire intellectuel qui construit des explications dans l'entrelacement entre la recherche de terrain et la littérature des sciences sociales, j'expose le processus qui m'a conduit à considérer productif le concept de transfuge au cas analysé, et soutiens que les critiques du champ sociologique à la méthode biographique, synthétisée dans le classique «L'Illusion Biographique» de Pierre Bourdieu, doit être relativisée en considérant les modalités de chaque enquête empirique. Pour cela, je m'inspire de mon expérience et des arguments de Schwartz (1990) et Lahire (2010). J'en conclus que la recherche biographique en sciences sociales n'a pas besoin de subsumer les rapports personnels aux dimensions structurelles qui expliquent également la trajectoire (origine sociale et géographique, couleur, genre, niveau d'éducation, etc.), mais plutôt d'articuler la richesse baroque des visions de soi, des relations construites et du monde observé et vécu à la reconstruction des contraintes structurelles qui tracent les chemins individuels.

Mots-clés: Biographie; Transfuge; Illusion biographique; Trajectoire

Introdução

Pretendo apresentar neste texto algumas reflexões conceituais e metodológicas produzidas no âmbito de pesquisa de doutorado em sociologia que se dedicou à reconstrução da trajetória de uma mulher, trânsfuga de classe, chamada Juscelina. Dos muitos desafios da investigação, que exigiram um trabalho de constantes reavaliações das articulações entre trabalho de campo e explicações provisórias que iam sendo produzidas, apresento aqui duas questões que se articulam. A primeira refere-se à utilização do conceito de trânsfuga. A segunda discute o valor sociológico da pesquisa biográfica. Praticando a artesania intelectual que constrói explicações no entrelaçamento entre a pesquisa de campo e a literatura das ciências sociais, exponho aqui o processo que me levou a considerar produtivo o conceito de trânsfuga para o caso em análise, e argumento que as críticas do campo sociológico ao método biográfico, exemplarmente sintetizadas no clássico texto “A Ilusão Biográfica”, de Pierre Bourdieu, devem ser relativizadas em consideração às maneiras como se procede em cada investigação empírica. Para defender este argumento, me valho da minha própria experiência de pesquisa e dos argumentos de Olivier Schwartz e Bernard Lahire, que dialogaram diretamente com a perspectiva bourdieusiana sobre a biografia. A trajetória que em breve relatarei resumidamente, em função dos limites deste artigo, foi reconstruída por meio de uma série de métodos que foram sendo escolhidos e mobilizados no decorrer da investigação. Passo a uma sucinta descrição da trajetória pesquisada.

Juscelina é filha de um casal de pequenos agricultores paraibanos, originários de Caiçara, no agreste do estado. Seu pai também exerceu durante muitos anos o trabalho de tropeiro e feirante. Tiveram 21 filhos, mas muitos morreram na infância. Ela foi a décima nona criança a nascer, em 1957, numa época específica da vida familiar, quando seus pais e irmãos moravam no Pará, na região de Bragantina, pra onde foram em 1953, após uma grande seca. Em 1959, quando ela tinha, portanto, dois anos de idade, a família voltou para Caiçara, e foi na região rural dessa cidade que Juscelina foi criada, trabalhando no roçado desde bem pequena, e iniciando sua primeira experiência de trabalho fora do espaço doméstico aos 12 anos, quando se tornou secretária do sindicato dos trabalhadores rurais da cidade. Ela fazia uma espécie de estágio como retribuição a uma bolsa de estudos, concedida pelo próprio sindicato, para que cursasse o que era chamado, à época, de ginasial, no único colégio da cidade em que se podia realizar essa etapa da vida escolar. Entre 14 e 15 anos, ela pede ao pai que a autorize a se mudar para João Pessoa. Obtendo-a, se muda para a capital do estado, onde emprega-se como secretária de um jornal e, em seguida, como funcionária da pequena burocracia do Serviço de Processamento de Dados (SERPRO) do estado. Em João Pessoa permanece até dezembro de 1976, quando, aos 19 anos, muda-se para o Rio de Janeiro. Nos dois deslocamentos, Juscelina não tinha um projeto de vida, mas um desejo de mudança, que a ela não parecia absurdo, já que a migração fez parte da vida de muitos de seus conterrâneos, embora fosse raro que mulheres sozinhas se expusessem a esse tipo de experiência. Um de seus irmãos tinha ido pro Rio anos antes dela, e a acolheu na capital carioca. Alguns dias após sua chegada no Rio, ela se empregou como secretária na Coca-Cola, onde ocupou diversos cargos ao longo de 35 anos.

Quando a conheci, em 2011, Juscelina tinha 54 anos e era uma executiva bastante eminente da multinacional. Iniciou sua carreira numa época em que era muito rara a presença de mulheres em cargos de vendas e gestão, mas conseguiu ocupar vários deles, sendo reconhecidamente1 uma das primeiras mulheres da Coca-Cola Brasil a fazê-lo. O espaço deste artigo não permitirá que eu me aprofunde na descrição da trajetória2, mas para os fins da argumentação que desenvolvo aqui, é importante destacar que além do distanciamento geográfico da família (quase todos os seus irmãos, além de seus pais, permaneceram em Caiçara ou fizeram deslocamentos esporádicos), a pesquisada e sua família precisaram lidar com um enorme distanciamento cultural, linguístico e socioeconômico. Apesar de sempre ter tentado se fazer presente com visitas anuais, distribuição abundante de presentes para toda a extensa família, ligações telefônicas e encontros com os parentes (alguns primos e sobrinhos) que moravam nas cidades onde Juscelina viveu a maior parte dessas três décadas e meia (São Paulo e Rio de Janeiro), havia um espaço entre a Juscelina que conheci e seu “passado” - as pessoas e a vida de Caiçara - que parecia intransponível. Especialmente no início da pesquisa, ela falou de si mesma e de seu percurso existencial como se de fato houvesse uma cisão fundamental entre aquela menina que viveu na Paraíba até os 19 anos e a mulher que se tornou após sua chegada no Rio de Janeiro. Essa ruptura, na visão dela, vinha junto de uma clara hierarquização. A mulher que ela se tornou era melhor do que a menina que a precedeu. Foi sobretudo essa cisão identitária que me levou à senda conceitual do trânsfuga de classe.

Acompanhei Juscelina por 16 meses, entre julho de 2011 e novembro de 2012. Na primeira fase da pesquisa fiz uma série de entrevistas com ela e com familiares que moravam na capital carioca (na família mais extensa, incluindo primos, há pessoas morando em São Paulo e Rio de Janeiro). Percebi, em função das tensões com o passado que se mostraram desde a primeira entrevista, que precisava conhecer seus irmãos e a cidade onde passou sua infância e parte da adolescência (somente um de seus irmãos não residia, à época, em Caiçara e arredores). Das 3 semanas que passei na Paraíba, entre fevereiro e março de 2012, Juscelina me acompanhou por seis dias. Depois dessa primeira incursão etnográfica, a pesquisa sofreu uma grande inflexão, em dois aspectos principais:

  1. percebi que deveria me aprofundar na compreensão da relação de Juscelina com sua família e no conhecimento e análise das dimensões primordiais da vida social da infância (religião, economia, política e cultura), o que me levou inclusive a retornar à cidade em outubro de 2012, para acompanhar de perto as movimentações que culminaram nas eleições municipais;

  2. as reflexões motivadas pela pesquisa e as conversas com a família no tempo em que estivemos em Caiçara, conversas essas direcionadas à compreensão do passado e das visões da família sobre Juscelina, tiveram um efeito muito forte sobre ela, a ponto de catalisarem uma crise existencial que a fez questionar a possibilidade de adiantar seus planos de aposentadoria - em 2012 ela completaria 55 anos - e de se mudar para a Paraíba, o que ocorreu de fato. Em março de 2012 Juscelina entrou com o pedido de aposentadoria em outubro de 2012 ela se mudou para João Pessoa.

Além de uma série de conversas e entrevistas gravadas realizadas com Juscelina ao longo dos 16 meses de pesquisa, em Caiçara fiz diversas entrevistas com cada um dos seus irmãos, com sobrinhos, primos, duas tias paternas e amigos de infância. Procurando compreender as diversas dimensões do espaço social caiçarense, entrevistei autoridades religiosas, políticos, um importante latifundiário da região, trabalhadores rurais contemporâneos do pai de Juscelina, professores da escola em que ela estudou, etc. Nessa fase do trabalho etnográfico, realizei cerca de 76 entrevistas gravadas, mantive inúmeras conversas não gravadas e registrei falas e observações em cinco cadernos de campo. Por meio de várias entrevistas e conversas com um erudito local, Jocelino Tomaz de Lima, tive acesso a um considerável volume de arquivos históricos, incluindo textos, objetos e fotografias, do tempo da infância e adolescência da pesquisada. Eu me vali, além disso, de diários, cartas, documentos e fotografias de Juscelina e sua família, e realizei entrevistas com colegas de trabalho e amigos da vida adulta da pesquisada. Passo, agora, aos motivos que me levaram à escolha do conceito de trânsfuga de classe, e a defesa do método biográfico na pesquisa sociológica.

Trânsfuga de classe: o que justifica a utilização do conceito no caso estudado

Inicialmente, eram as referências de trânsfugas de classe, tais como analisados por Bourdieu, que eu tinha em mente. Na obra do sociólogo podemos encontrar, no que se refere ao tipo de relação do sujeito com seu passado, dois tipos de trânsfugas: o intelectual3 que, por meio de uma profunda atividade reflexiva, é capaz de reconciliar-se com o passado; e o homem de (pequenos ou grandes) negócios que, deslumbrado com a “cultura legítima”, deixa-se dominar por ela na forma de uma recusa sistemática e incurável do passado. Este segundo caso é exemplarmente representado, no livro “A Distinção” (2006), pelo membro da classe trabalhadora que, seguindo uma trajetória de ascensão social, torna-se um pequeno burguês. Como afirma Bourdieu:

“[...] Na ordem da sociabilidade e das satisfações correlatas é que o pequeno-burguês realiza os sacrifícios mais importantes, para não dizer, mais manifestos. Com a garantia de que deve sua posição apenas a seu mérito, ele está convencido de que se deve contar somente consigo para conseguir sua salvação: cada um por si, cada um consigo mesmo A preocupação de concentrar esforços e reduzir os custos leva a romper os vínculos - até mesmo, familiares - que seriam obstáculos à ascensão individual. A pobreza tem seus círculos viciosos e os deveres de solidariedade que contribuem para acorrentar os menos desprovidos (relativamente) aos mais desprovidos transformam a miséria em um eterno recomeço. A “decolagem" supõe sempre uma ruptura, cuja negação dos antigos companheiros de infortúnio representa apenas um aspecto” (BOURDIEU, 2006a, p. 316).

Orientada por essas visões sobre o trânsfuga, e antes de iniciar a pesquisa empírica, a categorização possível, era, portanto, a seguinte: indivíduos que ascendem predominantemente via capital econômico (a escolarização é meio, e não fim em si mesma), tendem a abraçar acriticamente a cultura legítima e a recusar a cultura paterna, sofrendo uma incurável vergonha de si, forma específica de violência simbólica. Aqueles que ascendem via capital cultural, por outro lado, teriam maiores chances de encarar a cultura “de destino” de forma mais crítica, assim como de dispor dos instrumentos reflexivos que os habilitariam a fazer o retorno à cultura paterna. Esses eram meus pressupostos conceituais sobre o trânsfuga, mas eles foram sendo nuançados e mesmo modificados durante a pesquisa empírica.

O avanço da análise propiciou a complexificação do conceito, mas há outros fatores que devem ser mencionados. A inteligência e habilidade narrativas da biografada, somadas ao longo tempo de pesquisa empírica (16 meses), com intenso acompanhamento, afastaram a possibilidade de criação de um estereótipo ou de um modelo de trânsfuga na medida em que propiciaram que Juscelina realizasse uma autoconstrução estética, uma estilização de si na qual não cabiam caricaturizações. Mantive, porém, por motivos que serão expostos adiante e sob condições que serão igualmente elucidadas, a decisão de valer-me do conceito.

A metodologia que utilizei nessa pesquisa, assim como a forma como lidei com os acontecimentos que a ela se integraram, muitos deles completamente imprevistos por mim, foram, em grande medida, baseados na “sociologia em escala individual” de Bernard Lahire (2010). Desde o início procurei conhecer as várias dimensões e etapas da vida da biografada, aprofundando-me na compreensão de seu patrimônio disposicional, ou seja, de suas tendências mais cristalizadas para pensar, sentir e agir. Ainda em consideração à sociologia lahireana, foi inspirando-me nela que procurei compreender sociologicamente a “problemática existencial” (LAHIRE, 2010) de Juscelina, ou seja, o conjunto de elementos estreitamente ligados à sua trajetória e que lhe são impostos como questões incontornáveis, que a perturbam constantemente e aparecem como problemas a serem enfrentados ou combatidos. Esta “problemática matricial” comporta elementos extremamente estáveis que podem se modificar em função de diferentes etapas do ciclo de vida ou de grandes eventos biográficos que desencadeiam crises existenciais. Na biografia em análise, a tessitura dessa problemática encontra-se nos conflitos gerados pelas grandes e significativas diferenças entre o mundo de origem e aqueles nos quais ela viveu 35 anos de sua vida. Devemos, é claro, assumir que os contextos frequentados nas metrópoles eram diversos, cada um ao seu modo. Porém, todos eles, desde o ambiente corporativo, no qual ela passou a maior parte de sua vida, até as casas de seus amigos e os ambientes que ela conheceu e frequentou nas viagens de férias e trabalho ao longo de todos esses anos, têm grandes e importantes oposições com relação àquele universo moral e afetivo no qual ela vivenciou a socialização primária, e no qual seus pais, muitos de seus familiares, e quase todos os seus irmãos, permaneceram.

Foi pensando nesse problema matricial que mantive o conceito de “trânsfuga de classe” mobilizado na sociologia bourdieusiana, lahireana e de outros autores, tais como Abdelmalek Sayad (2000), Vincent de Gaulejac (1987) e Jean Klaude Kaufmann (2004), como de importância central para sintetizar a subjetividade de Juscelina. O conceito parece-me, no caso em análise, mais completo que o de migrante por englobar tanto o deslocamento geográfico (migração) quanto o social (ascensão de classe). Além disso, junto com a noção de migrante, a de trânsfuga denota, como afirma Jean-Claude Kauffman (2004, p. 160-161), um modelo ideal das estruturas psicológicas nas quais, ao longo da “duração” biográfica, alternativas identitárias se entrecruzam, formando diversas e renovadas bricolagens. Esses dois modelos de trajetórias sociais, segundo o autor, revelam com mais clareza modalidades de ajustamento identitário que, na verdade, atingem o conjunto da população. O conceito de trânsfuga, além disso, carrega também uma noção bastante importante para a trajetória de Juscelina, a de culpa pela traição às origens.

No vocabulário militar o trânsfuga é o desertor; no da ciência política é o traidor de seu partido original. Na sociologia, o trânsfuga de classe é aquele que carrega a dor de desejar viver uma vida diferente da de sua família, de conseguir, em maior ou menor medida alcançá-la, e de ter que lidar com a culpa confusa de ter superado o pai. Como afirma Gaulejac (1987), o deslocamento de classe, que conduz o indivíduo ao pertencimento simultâneo a grupos sociais distintos, cujas relações são historicamente marcadas pela dominação de um sobre o outro, leva a conflitos psicológicos ligados ao embate entre a identidade herdada, originária, que lhe é conferida pelo meio familiar, e a identidade adquirida, ou seja, aquela construída ao longo da trajetória.

Várias são as formas de expressar tais conflitos, assim como são muito diferentes as soluções encontradas para lidar com eles. Richard Hoggart (1973), na obra As utilizações da cultura, profundamente baseada na infância e juventude vividas no seio da classe operária inglesa, afirma:

“[...] Contudo, ao escrever, encontro-me constantemente na obrigação de resistir a uma forte pressão interior que me leva a encarar o antigo como muito mais admirável que o novo, e o novo como algo de condenável, sem que para tal me baseie na minha compreensão consciente do material de que disponho. Estou, pois, a olhar esse material através da lente deformadora da nostalgia: fiz o que pude para obstar seus efeitos. Porque estão em causa a classe de que sou oriundo e minha infância, experimento uma tendência para ser injustificadamente severo em relação aos aspectos da vida trabalhadora que desaprovo. Juntamente com essa tendência vem o impulso para me libertar dos meus próprios fantasmas; na pior das hipóteses, pode se tratar de uma tentação para “rebaixar” a minha própria classe, resultando de uma ambiguidade premente na minha atitude para com ela. Por outro lado, verifico ainda que tenho tendência para atribuir demasiado relevo àqueles aspectos da vida das classes proletárias que eu aprovo, tendência esta que me arrastou para um certo sentimentalismo, para um romantizar do meu ambiente de origem, como se, subconscientemente, estivesse a dizer às pessoas com quem presentemente me dou - vejam, apesar de tudo, uma infância assim é bem mais rica que a vossa” (HOGGART , 1973, p. 23).

A análise de um mal-estar que expressa o que de outra forma Hoggart confessou pode ser encontrada no texto “Um distúrbio de memória na acrópole” (FREUD, 1996). O psicanalista alemão era filho de um pequeno comerciante e viveu sérias restrições materiais durante sua infância e adolescência. No relato autobiográfico que passo a sintetizar, Freud atribui a causa de um distúrbio da memória à culpa pela superação (intelectual, social e econômica) do pai.

Freud conta que ele e seu irmão costumavam fazer viagens de férias juntos, e em 1904 decidiram ir juntos até Atenas. A decisão, porém, provocou em ambos um estado de depressão cujo motivo ou origem não compreendiam. Após chegarem à cidade foram visitar a Acrópole. O psicanalista relata o que pensou ao ver de perto as ruínas antes conhecidas somente pelos livros escolares: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!” (FREUD, 1996, p. 295). Segundo ele, naquele momento operou-se uma espécie de cisão do “Eu”, como se duas pessoas, em uma só, estivessem surpresas, mas por motivos distintos:

A primeira comportava-se como se estivesse obrigada, sob o impacto de uma observação inequívoca, a acreditar em algo cuja realidade parecia, até então, duvidosa. Se me permito um pequeno exagero, era como se alguém, caminhando na margem do Loch Ness, subitamente enxergasse a forma do famoso monstro encalhado na praia e se visse compelido a admitir: “Então realmente existe mesmo a serpente marinha, na qual nunca acreditávamos!”. A segunda pessoa, por outro lado, com razão estava surpresa, pois desconhecia a possibilidade de que a existência real de Atenas, da Acrópole e do cenário em torno, alguma vez tivesse sido objeto de dúvida. O que essa pessoa estivera esperando era, preferentemente, alguma expressão de alegria ou admiração (FREUD, 1996, p. 295).

A incredulidade motivada pela tentativa de afastar a realidade (não aquela que causa desagrado, mas, ao contrário, que causa alto grau de prazer) poderia ser sintetizada com a ideia de não aceitação de que o destino possa proporcionar a alguém algo de tão bom. Tal incredulidade estava ligada tanto a uma memória distorcida do passado (naquele momento ele se recordara, erroneamente, de que não acreditava na existência real da Acrópole) quanto à relação que ele mantinha com aquele lugar (expressão máxima da elevação cultural que almejara atingir). O que se operou foi chamado por Freud de desrealização, o que seria, na visão dele, processo contrário ao que se opera no “déjà vu”, “déjà raconté” ou “fausse reconnaissance”. Enquanto estes se caracterizariam como ilusões que procuramos fazer pertencer ao nosso ego, nas desrealizações nos esforçamos para manter algo longe de nós. Foi essa experiência de desrealização a responsável pelo distúrbio da memória. No momento em que viu a Acrópole, recorda que em sua infância ele duvidara da existência daquele lugar. Porém, na verdade, ele duvidava de que algum dia pudesse ir visitá-la, dada a sua origem social e à pobreza que vivera na adolescência. O psicanalista conclui:

“[...] Mas justamente minha própria experiência na Acrópole, que realmente culminou num distúrbio de memória e numa falsificação do passado, ajuda-nos a demonstrar essa conexão. Não é procedente o fato de que, em meus tempos de colegial, eu, alguma vez, duvidasse da existência real de Atenas. Apenas duvidava se algum dia chegaria a ver Atenas. Parecia-me além dos limites do possível, eu, algum dia, viajar tão longe - eu ‘percorrer um caminho tão longo’. Isto se ligava às limitações e à pobreza de nossas condições de vida em minha adolescência. Nesse ponto, porém, deparamos com a solução do pequeno problema da causa pela qual, já em Trieste, interferíamos em nosso regozijo pela viagem a Atenas. Pode ser que um sentimento de culpa estivesse vinculado à satisfação de havermos realizado tanto: havia nessa conexão algo de errado, que desde os primeiros tempos tinha sido proibido. Era alguma coisa relacionada com as críticas da criança ao pai, com a desvalorização que tomou o lugar da supervalorização do início da infância. Parece como se a essência do êxito consistisse em ter realizado mais do que o pai realizou, e como se ainda fosse proibido ultrapassar o pai” (FREUD, 1996, p. 295).

Não é minha intenção elaborar interpretações psicanalíticas e sim demonstrar que apesar de ser, a meu ver, incorreto tratar o trânsfuga como uma categoria social cujas características (preferências políticas, estéticas, ideológicas, etc.) pudessem ser sociologicamente decretadas em consideração à sua trajetória social, é razoável supormos que a experiência de afastamento (mais ou menos radical) do mundo de origem motiva impactos afetivos significativos, e muitos deles estão ligados à culpa por ter superado o pai e à dor do estranhamento sentido nos lugares de destino (do espaço social ou geográfico) e nos momentos de retorno, ou no retorno definitivo, quando ele ocorre.

A questão central explorada nesse trabalho, que se desdobra em muitas outras, é a de como Juscelina, com todas as singularidades de que é feita a sua história, viveu a condição de trânsfuga de classe, a qual também marcou a existência de pessoas tão distantes dela. Apesar de serem tão diferentes as biografias, por exemplo, de Sigmund Freud, Richard Hoggart e Juscelina, eles certamente entenderiam um ao outro se pudessem conversar sobre alguns momentos e aspectos de suas vivências; compreenderiam um ao outro se trocassem confidências sobre o mal-estar sentido ao frequentar lugares que seus pais nunca poderiam frequentar, ao viver experiências (falar línguas estrangeiras, apresentarem-se em palestras, ocuparem posições profissionais de grande prestígio) que seus pais nunca viveriam.

Há outro ponto fundamental que deriva dessa questão central. Trata-se da análise de como ela realiza o retorno à cultura paterna, experiência mais comumente tratada pela sociologia nos casos de intelectuais que provém das classes trabalhadoras. No Brasil são vários os intelectuais que se valeram da pesquisa sociológica para compreenderem melhor a própria trajetória. Florestan Fernandes (2008), com sua vasta obra sobre cultura popular e formação da sociedade de classes no Brasil e José de Souza Martins (2011), com trabalhos assentados em experiências autobiográficas, são alguns exemplos. Esse movimento inicial de afastamento cultural da origem em direção a um mundo desconhecido e sedutor, sucedido pelo regresso, lento e cheio de perigos, à terra (ou classe) natal é nomeado por Pierre Bourdieu (2006b) no texto “A odisseia da reapropriação”, sobre o poeta argelino Mouloud Mammeri. Sobre isso, ele diz: “Essa odisseia é, a meu ver, o caminho que todos os filhos de uma sociedade dominada, de uma classe ou região submetidas a sociedades dominantes, devem percorrer para encontrar-se ou reencontrar-se” (BOURDIEU, 2006b, p. 94).

Mouloud Mammeri, por meio de trabalho etnológico no qual apropriou-se da cultura paterna, conseguiu superar o que o sociólogo francês qualifica como uma forma muito específica de dominação simbólica, a vergonha de si. Sob a orientação da vergonha o sujeito ambiciona a cultura legítima “aquela que não é preciso qualificar e aparece a si mesma como universal” (BOURDIEU, 2006b, p. 94) - e realiza a morte simbólica do pai. Na biografia aqui analisada, nada mais emblemático desse processo do que a sentença de Juscelina: “Eu nasci aos 19 anos” - idade em que ela chegou ao Sudeste e iniciou a construção de sua carreira profissional. Porém, a experiência de resgate do passado, expressão utilizada pela própria biografada, não é privilégio somente de intelectuais. Os recursos reflexivos que a atividade intelectual mobiliza certamente podem colaborar para uma autoanálise que conduza a uma ressignificação do passado, ou mesmo a um esclarecimento (sempre limitado) de suas culpas e ressentimentos. Porém, há outras formas de fazê-lo. Uma delas se daria no processo terapêutico; mas há ainda outras possibilidades que a pesquisa sociológica, na análise desse tipo de trajetória, é capaz de esclarecer. No caso de Juscelina, acredito, o processo de pesquisa e vários de seus efeitos foram elementos presentes na crise que culminou com o retorno à Paraíba.

O que se deu por meio da pesquisa foi uma mudança dos sentidos atribuídos àqueles conflitos existenciais vividos durante a trajetória. A atividade de colocar a sua vida na forma de narrativa, as entrevistas com amigos, colegas e familiares presentes nos textos lidos por ela, as visitas aos lugares da memória (ruínas do Sítio Cancão, onde passou sua infância, sindicato dos trabalhadores rurais, a rua do pensionato onde morou em João Pessoa, etc.) e a aproximação à idade de aposentadoria e ao fechamento de um ciclo de vida marcado pela dedicação extrema à vida profissional, todos esses fatores, levaram a que o sentido atribuído à Caiçara (um lugar de onde quero distância), à imagem de si antes do início da vida no Rio de Janeiro (uma aberração da natureza) e à relação com a família entrassem em acelerado processo de ressignificação.

O barroco das biografias

A elaboração da biografia exigiu aprofundamento teórico e metodologia específicos. Como ocorre em qualquer trabalho empírico, em muitos momentos a teoria me forneceu matéria-prima para a escolha dos métodos. Percebi desde o início que precisaria ter acesso a um material que fosse além dos discursos da própria pesquisada, considerando que meu interesse não era a elaboração de uma história de vida, propriamente, mas sim um estudo biográfico cuja dimensão de descrição das estruturas objetivas que contornam o percurso individual não fosse deixada de lado ou tratada apenas como tópico, e não elemento da análise. A pesquisa que idealizava construir, deveria estar acompanhada de dados sobre os principais contextos socializadores, entrevistas com o maior número possível de pessoas que fizeram parte da vida da pesquisada, documentos os mais variados, fotografias, e entrevistas com a própria personagem central sobre os mais diversos assuntos, realizadas no maior número possível de contextos. Tudo isso superaria em muito a simples ordenação cronológica das narrativas e me encaminharia para a compreensão do “devir biográfico” (PASSERON, 1989, p. 17) como o produto de um duplo movimento, o da ação social dos indivíduos e o de determinismo social das estruturas.

A discussão em torno da utilização da biografia como método sociológico tem como uma de suas principais referências o célebre texto de Pierre Bourdieu, de 1986, sobre o que o autor denomina de “ilusão biográfica”. Segundo o sociólogo francês, a biografia sofreria de uma espécie incontornável de mal de origem: ela sempre seria apresentada como um percurso coerente através do qual o biografado busca justificar a sua posição social no momento em que relata a sua história de vida. Daí viriam as ideias de coerência do percurso e de sentido existencial concretizado num projeto original. Este, por sua vez, seria realizado em etapas cronologicamente reconstituíveis. Tratar-se-ia, em suma, da ideologização de uma trajetória.

Como aponta Schwartz (1990), a ideia bourdieusiana de ilusão biográfica comporta três dimensões: “ilusão teleológica”, sob o efeito da qual o narrador superestimaria a coerência de sua vida e acreditaria poder alcançá-la e organizá-la sob a forma de uma história; “ilusão de ipseité”, caracterizada pela crença de que existiria um eu constante no tempo e no espaço, o qual, não obstante a multiplicidade de estados (momentos identitários relativamente distintos, com seus dilemas e possíveis soluções) e de fases da vida, pudesse ser sintetizado por meio da narrativa; “ilusão do próprio”, segundo a qual a narrativa possibilita o acesso à autenticidade inalienável do eu.

Todas essas dimensões poderiam ser resumidas na ideia de “ilusão do sujeito”, que vai ao encontro de um de seus projetos intelectuais maiores, o de demonstrar sociologicamente que todo e qualquer indivíduo é historicamente situado e que o conjunto de representações e práticas que dão inteligibilidade às suas formas de pensar, agir e crer, o habitus, pode ser empírica e analiticamente acessado. Partindo de uma perspectiva que Schwartz denomina de “antinarcisista”, Bourdieu procura provar em toda a sua obra que não somos capazes de prever a nossa trajetória, que não escolhemos os caminhos para os quais a vida nos levará, muito pelo contrário, somos levados a eles pelas determinações sociais que sobre nós pesam, e que qualquer percurso é muito menos autêntico do que uma visão da vida como romance poderia supor.

Podemos concluir, se cruzarmos os argumento do referido texto com a praxiologia bourdieusiana, que se o indivíduo que conta sobre si mesmo não é capaz de dar coerência e previsão à sua vida, o sociólogo certamente pode, desde que conceba, pesquise a analise o percurso como uma série de posições, ocupadas num espaço estruturado, por um indivíduo fabricado por um passado incorporado na forma de disposições devidas à sua posição original de classe e ao seu prestígio relativo no campo profissional. “Compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez” (BOURDIEU, 2005, p. 40), disse o sociólogo em sua autobiografia, cuja epígrafe afirma: “Isto não é uma autobiografia”. Porém, considerando que no esquema bourdieusiano o habitus, chave de acesso ao eu (historicamente situado) e ao seu percurso, seria definido muito mais pela posição ocupada no esquema do analista (espaço social e campo) do que pelo conteúdo mesmo das experiências vividas (LAHIRE, 2010), eu me encontrei num impasse. Como trabalhar, sem reduzi-los, os riquíssimos relatos e dados que, na hipótese de continuar a pesquisa com um só indivíduo, poderia obter?

Tendo construído meu percurso nos estudos de Sociologia predominantemente na tradição bourdieusiana, foi a Bernard Lahire e à biografia sociológica de Franz Kafka que recorri para tentar encontrar o início de um caminho (teórico e metodológico) que, sem deixar de afirmar a fabricação social do indivíduo, me orientasse a como aproximar-me da complexidade e infinitude das experiências e fases que constituem uma trajetória individual sem reduzi-las ao esquema bourdieusiano, baseado na reconstrução das posições ocupadas ao longo da vida. Muito útil para o estudo de grupos sociais, tal esquema analítico carece dos instrumentos necessários quando a escala de análise é reduzida até o indivíduo e suas interações, contradições e conflitos inter e intrapessoais, ou seja, quando o que se pretende é a investigação da sociogênese de um indivíduo singular. Precisava escapar do risco de metrópoles construir um percurso artificial por pressupor a onisciência do esquema espaço social/campo/habitus. Não poderia, porém, encarar o risco oposto, o de transformar uma trajetória num romance. A articulação entre elementos macro e microssociológicos (jogo de escalas de análise) e a reconstituição de sistemas categoriais passados a partir do sistema categorial presente, acredito, afastam o estilo teleológico com que as histórias de vida são contadas. A maneira como reconstruídos processos estudados demonstram isso. Assim, por exemplo, Juscelina, em nossas primeiras entrevistas, categorizava sua origem social como paupérrima. A pesquisa etnográfica e histórica, entretanto, aliada às entrevistas de pessoas que se valiam de outras categorias para definir a situação familiar, ajudaram-me a escavar elementos objetivos que apontavam para uma situação social relativamente privilegiada naquele espaço social específico em que a família foi constituída. Seu pai era um homem livre (em oposição a um morador4) e alfabetizado. Além disso, sua família sempre teve o que comer, apesar de Juscelina lembrar-se de maneira pungente da situação de fome. O sistema categorial presente de Juscelina não foi negado, mas complexificado a partir da pesquisa sociológica. O mesmo deve ser dito quanto às categorias mobilizadas por seus familiares.

Conhecendo as obras anteriores de Lahire (2010, p. 38) sobre a constituição do patrimônio disposicional5 e “economia psíquica” do indivíduo, sabia que uma das tarefas principais seria a de reconstituir tal patrimônio, o que exigiria uma longa e detalhada pesquisa. Além disso, estudando a biografia sociológica de Franz Kafka, comecei a encontrar uma orientação para lidar com a questão que desde a primeira entrevista me pareceu central, e que antes mesmo dessa interessava-me enquanto hipótese de trabalho. Refiro-me à relação do trânsfuga com o seu passado, mais especificamente com a sua classe, família, amores, sonhos e dramas daquela época da vida que antecedeu o início da trajetória de ascensão social (no caso de Juscelina coincidiu com o deslocamento migratório). Lahire (2010) demonstrou que apesar da multiplicidade de experiências que fabricaram Franz Kafka, e sua literatura, uma questão atravessou todas elas. Trata-se da já referida problemática existencial (LAHIRE, 2010). No caso do escritor tcheco ela consistia na relação ambígua e conflituosa com seu pai, questão matricial que esteve na origem de várias outras batalhas que o autor travou consigo mesmo ao longo de toda sua vida, dentre elas as ligações complexas com as mulheres e com o casamento, as contradições entre a vida profissional (funcionário de uma companhia de seguros) e o isolamento necessário à prática literária, a sensibilidade do artista aos diversos tipos de dominação, algumas das quais ele mesmo estava submetido.

Acredito que a “problemática existencial” de Juscelina deva ser compreendida no registro de um tempo não linear, de uma fagulha sempre presente, independentemente do tempo cronológico. Gostaria de voltar a um aspecto sobre a pesquisa biográfica destacado por Schwartz e negligenciado por Bourdieu. Trata-se do elemento barroco das biografias, notadamente daquelas em que estão presentes os relatos vivos do biografado. Um dos grandes desafios de tratar sociologicamente uma história de vida é o de ter claras as intersecções entre a história que nos é narrada pelo biografado e as apropriações interpretativas que fazemos dela por meio das nossas descrições e das abstrações elaboradas a partir dos fatos narrados e das práticas e disposições observadas. Mesmo nos casos em que há uma transcrição da narração, como ocorre na obra “Los Hijos de Sánchez” (LEWIS, 1965), a escolha dos trechos que serão transcritos, assim como a forma de organização da narração, pressupõe uma hierarquização entre os dados, construída a partir de escolhas normativas e teóricas do pesquisador. Esse impasse nos afasta da literatura, já que numa obra ficcional o autor é soberano, ele tem grande domínio sobre os desejos, conflitos e decisões dos personagens. Pode dar a eles virtudes, defeitos, destinos ou discursos.

Porém, jogando luz sobre o outro lado, o do biografado, devemos admitir que quando ele narra ao pesquisador a sua história há, inevitavelmente, uma dose de mitificação da própria vida. A organização da narrativa de si demanda um grau de reflexão que não é acionado nas práticas e discursos mais corriqueiros, nos quais nos valemos de um pano de fundo de informações e consensos já naturalizados. E esse esforço reflexivo segue em busca da atribuição de sentido a um percurso que, imerso num mundo cheio de contingências, contrariedades, inconsistências e acasos, tende a ser caótico. As memórias pessoais são construções de sentido geradas pelo motor dos afetos (POLLACK, 1989) e é razoável pressupor que essa construção se dá na direção da autojustificação, ou seja, na construção de um discurso de justificação existencial sobre si e sobre sua vida.

Aqui é onde há espaço para uma carga de invenção, de criação de uma imagem de si mesmo. Porém, somos todos formados por uma variedade de afetos e emoções. O sentimento que impulsiona o desejo de uma narrativa heroica convive com a culpa, a vergonha, o arrependimento, o remorso. Nos momentos em que narrou as privações que teve que enfrentar no início da vida na metrópole, o tom da narrativa de Juscelina é de autoglorificação. Entretanto, mesclada a ela há a admissão de momentos em que sentiu vergonha da família, em que se arrependeu de atitudes hoje consideradas cruéis, em que sentiu remorso, etc. Mesmo que as falas sobre as atitudes e sentimentos menos nobres sejam seguidas de uma justificativa, cabe ao analista interpretar a tentativa sistemática de justificá-los.

Concluímos, concordando com Schwartz (1990b), que após o contato mais longo e íntimo com o pesquisado (condição essencial para a pesquisa biográfica), este, por sua vez, passa a construir narrativas nas quais estão presentes momentos de conflitos consigo mesmo, desordens, inquietações que de forma alguma podem ser encaixadas no registro de uma construção coerente de si, tal como Bourdieu denuncia ser a pesquisa com histórias de vida. Lidando com um sujeito em vida, em movimento, suas palavras demonstram tanto angústia e violência quanto elogio à trajetória. Numa longa e cuidadosa pesquisa, o narrador tende a apresentar-se não como uma unidade coerente, mas sim como um campo de forças atravessado por emoções e experiências múltiplas. Sua forma de contar a si mesmo, por isso, não tende ao linear, mas ao barroco. Acredito que as pesquisas biográficas em ciências sociais não precisam subsumir os relatos pessoais às dimensões estruturais que também explicam a trajetória (origem social e geográfica, cor, gênero, nível de escolaridade, etc), mas sim articular a riqueza barroca das visões de si, das relações construídas e do mundo observado e vivido à reconstrução dos constrangimentos estruturais que pavimentam os percursos individuais.

1Algumas revistas de comunicação interna do “Sistema Coca-Cola”, utilizadas na pesquisa de doutorado, comprovam essa característica de pioneirismo na ocupação de cargos predominantemente masculinos.

2A pesquisa de tese que é objeto deste texto ganhou versão em livro, cuja previsão de publicação é no primeiro semestre de 2021.

3É o caso do próprio Bourdieu e de vários outros intelectuais, como, por exemplo, o poeta Mouloud Mammeri sobre quem o sociólogo escreve no texto “A Odisseia da Reapropriação” (BOURDIEU, 2006b).

4O morador é alguém que vende sua força de trabalho em troca da ocupação de um pedaço de terra do proprietário. Além de trabalhar a maior parte da semana para o dono da terra, o morador, sob a ameaça de ser expulso, se submete a uma série de exigências impostas muitas vezes violentamente pelo proprietário. A condição análoga à de escravo é esclarecida na expressão nativa utilizada para caracterizar um não morador: homem livre

5Bernard Lahire oferece uma alternativa à visão estruturalista que fundamenta o habitus . Ele parte da defesa de que ao invés de pressupor a incorporação subjetiva das estruturas sociais, o analista disposicionalista deve se dedicar à investigação dos processos pelos quais as relações com o mundo social e com os outros são progressivamente incorporadas. O sociólogo de Lyon percebe que o habitus enquanto dispositivo conceitual e metodológico é definido mais por seu funcionamento e funções do que pelas experiências específicas que moldam este ou aquele determinado patrimônio de disposições. Lahire defende que ao postular a coerência e homogeneidade dos diferentes tipos de experiências incorporadas, o trabalho de Bourdieu privilegiou os princípios de sociação e negligenciou os princípios de individuação da constituição do patrimônio de disposições. Isso abre espaço para uma crítica da interpretação bourdieusiana sobre a moldagem socializativa da subjetividade individual e aponta a perspectiva de programa sociológico que, sem romper com a escola disposicionalista, revisa suas bases ao propor um estudo cada vez mais singular do social (LAHIRE, 2002). O instrumental teórico-metodológico desenvolvido por Lahire é fundamental para nossa pesquisa, uma vez que a investigação de travessias no espaço social demanda um arcabouço metodológico que aponte as pistas para a construção de relações entre a pluralidade de contextos sociais frequentados, a pluralidade de experiências incorporadas e a constituição cognitiva, afetiva e cultural do indivíduo. As obras “O Homem Plural: os determinantes da ação”, “Retratos Sociológicos”, “A Cultura dos Indivíduos: disposições e variações individuais”, “Dans les plis singuliers du social: Individus, institutions, socialisations” e “Franz Kafka: élements pour une théorie de la création littéraire” são alguns dos trabalhos dedicados à conceitualização e análise da sociogênese ou “fabricação social” do indivíduo

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 06 de Novembro de 2020

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