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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75623 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

“Como eu vou fazer pesquisa sozinha?” O processo de inserção na pós-graduação evidenciado nas narrativas de uma professora

“How do I go to research alone?” The insert process in post-graduation evidenced in narratives of a teacher

*Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: claudiastarling@ufmg.br. E-mail: keli.conti@gmail.com

**Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil. E-mail: Célia@ufpo.edu.br


RESUMO

Este trabalho é fruto de uma investigação que objetiva compreender os processos de inserção de professores no magistério superior em universidades federais, em uma perspectiva longitudinal. Neste artigo, de natureza (auto) biográfica, analisamos os processos de inserção de uma professora, a partir de suas narrativas, durante os primeiros anos de exercício da profissão, de 2016 a 2020. O olhar interpretativo desses relatos recai para como, em cada narrativa escrita, as experiências vividas vão sendo rememoradas, em um “ir e vir” da temporalidade. Enfatizamos a reflexão sobre a inserção na docência e na pós-graduação, especificamente nas atividades de pesquisa e orientação. Os resultados evidenciaram tensões em relação à complexidade do exercício profissional no contexto universitário. A história (re)contada do período de transição no estágio probatório traz elementos que marcam o processo de constituição identitária docente, e reforça a percepção sobre como os processos interativos são propulsores de novas possibilidades de atuação e inserção dos docentes na pós-graduação.

Palavras-chave: Pesquisa (Auto)biográfica; Narrativas de si; Dimensão da temporalidade; Docência e formação

ABSTRACT

This work is the result of an investigation that aims to understand the processes of insertion of teachers in higher education in federal universities, in a longitudinal perspective. In this (self) biographical article, we analyze the insertion processes of a teacher, based on her narratives, during the first years of the profession, from 2016 to 2020. The interpretive look of these reports falls to how, in each written narrative, the lived experiences are being remembered, in a “coming and going” of temporality. We emphasize the reflection on the insertion in teaching and post-graduation, specifically in research and guidance activities. The results showed tensions in relation to the complexity of professional practice in the university context. The (re) told story of the transition period in the probationary stage brings elements that mark the process of teacher identity constitution, and reinforces the perception about how interactive processes are propellers of new possibilities of performance and insertion of teachers in graduate school.

Keywords: (Self) biographical research; Self narratives; Dimension of temporality; Teaching and academic formation

RÉSUMÉ

Ce travail résulte d’une investigation qui cherche à comprendre, dans une perspective longitudinale, les processus d’insertion des professeurs dans l’enseignement supérieur des universités fédérales brésiliennes. Dans cet article, de nature (auto) biographique, nous analysons les processus d’insertion d’une professeure à partir de récits rédigés pendant les premières années de l’exercice de la profession, de 2016 à 2020. Le regard interprétatif de ces récits révèle que, pour chacun d’eux, les expériences vécues sont évoquées dans un « aller et venir » de la temporalité. Nous mettons en relief la réflexion sur l’insertion dans l’enseignement et les cours de master et doctorat, surtout dans les activités de recherche et direction de travaux de recherche. Les résultats ont montré des tensions par rapport à la complexité de l’exercice professionnel dans le contexte universitaire. Le récit de l’histoire de cette période de transition pendant le stage probatoire apporte des éléments qui marquent le processus de constitution identitaire enseignante et renforce comment les processus interactifs mènent à de nouvelles possibilités d’action et d’insertion des enseignants dans les cours du cycle master-doctorat.

Mots clés: Recherche (auto)biographique; Récits de soi; Dimension de la temporalité; Enseignement et formation

Conversa inicial

Iniciamos este artigo narrando como é desafiador fazer pesquisa. Sim, pesquisa se faz, é ação! É uma ação compartilhada. Nós, autoras, com trajetórias similares, mas também com tantas singularidades, nos encontramos para discutir a própria formação. A partir da perspectiva da escrita (auto) biográfica e a partir da leitura das narrativas reforçamos que “a escrita de si”, neste contexto, incorpora as vozes de outros atores sociais.

No contexto universitário, de acordo com o artigo 207 da Constituição Brasileira de 1988, há a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Essa tríade deve caminhar de forma articulada e equivalente: “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988). Atualmente, diante do contexto em que vivemos de ataque à autonomia universitária e a consequente necessidade de defesa de uma universidade pública, de qualidade, pautada na democratização e na justiça social, discutir a inserção na docência e a construção da identidade docente no contexto universitário torna-se fundamental.

Reforçamos o debate acerca da educação como um bem público e como direito social, pois, segundo Dias Sobrinho (2013, p. 110), isso “faz parte do reconhecimento da grande responsabilidade que as Instituições de Educação Superior (IES) têm relativamente à formação ética, científica e técnica dos indivíduos no marco da construção da sociedade”. Neste sentido, o autor reforça que a valorização e melhoria dos processos formativos e de trabalho são essenciais para a construção de um sistema educativo de qualidade, e, também, fundamental para a construção de uma educação democrática.

As reflexões que balizam este artigo fazem parte de uma pesquisa que, em uma perspectiva longitudinal e de natureza (auto)biográfica, objetiva compreender o processo de inserção na docência de professores, com pouco tempo de doutoramento, que ingressam no magistério superior em universidades federais por concurso público. Portanto, busca-se investigar a formação docente, identificando os desafios na atuação no início da carreira universitária. Neste artigo, portanto, mantendo a perspectiva longitudinal, nosso objetivo é construir um panorama reflexivo do percurso vivenciado por uma das professoras participantes da pesquisa, a partir das suas narrativas produzidas no início e logo após o final do estágio probatório, de 2016 a 2020. Nossa escolha justifica-se pela presença marcante em seus relatos sobre o seu processo de inserção na pós-graduação. Para tal empenho, optamos por apresentar as narrativas da professora enfatizando a reflexão sobre a inserção na docência e na pós-graduação, especificamente nas atividades de pesquisa e orientação. Assim, buscamos acompanhar e re(contar) a história relatada pela professora em seus textos (auto)biográficos, identificando as marcas de temporalidade, o tempo vivenciado, os sentimentos, os desejos e as tensões.

De acordo com Souza (2008), a pesquisa (auto)biográfica potencializa a reflexão sobre as singularidades e regularidades das experiências vivenciadas em uma dimensão formativa. Assim, consideramos que ao socializar as narrativas, possibilitamos o diálogo com outros pesquisadores, professores, estudiosos e profissionais interessados na temática sobre a docência universitária, além de envolvidos e interessados no campo da pesquisa (auto)biográfica. A investigação na perspectiva biográfica-narrativa conta com um narrador que se dispõe a contar e partilhar suas experiências, e com um investigador que realiza a leitura dos relatos e elabora um informe - textos - para os leitores (BOLIVAR, 2012, p. 80).

Com essa perspectiva, nosso olhar interpretativo recai para evidenciar como, em cada uma nas narrativas produzidas pela professora universitária durante o estágio probatório, as experiências vividas vão sendo rememoradas, em um “ir e vir” da temporalidade. E é neste emaranhado de vozes que construímos uma nova narrativa: considerando a importância do processo de biografização para a construção identitária, a possibilidade de a escrita sobre as experiências vivenciadas implementarem processos formativos e a reflexão sobre a constituição da identidade docente no contexto universitário.

Segundo Delory-Momberger (2012, p. 342), esses processos de biografização “estão sempre presentes e sustentam a impressão que temos de nós mesmos no decorrer do tempo”, baseada na nossa experiência pessoal. A partir dessa perspectiva, do tempo humano como um tempo recontado, Paul Ricoeur (1991) apresenta três categorias analíticas que ele chama de semelhanças miméticas: a ideia do tempo de ação e vivido, o tempo de invenção (ou armação) da intriga e o tempo da leitura. E é neste contexto teórico-metodológico que desenvolvemos este artigo. Reforçamos os questionamentos e argumentos do autor ao indagar: “o que é uma história que se conta? E o que é “seguir” uma história?” (RICOEUR, 1991, p. 214).

Nesse sentido, inicialmente, retornamos aos relatos produzidos pela professora universitária e percebemos que eles evidenciavam, principalmente, as tensões no campo da docência universitária, especificamente nas atividades de pesquisa. Assim sendo, indagamos: como compreender a docência universitária, sustentada pelo tripé pesquisa, ensino e extensão, a partir da participação nos grupos de pesquisa e na inserção na pós-graduação? Como estabelecer um processo dialógico entre orientadora e orientandos? Como pensar a orientação e a pesquisa no campo da pesquisa (auto)biográfica?

Para tentar responder a esses questionamentos, estruturamos este artigo em duas partes: a primeira conta com reflexões sobre o exercício profissional, discutindo a complexidade de ser professor universitário; e, posteriormente, apresentamos e refletimos acerca das narrativas escritas pela professora enfatizando o percurso vivenciado, a inserção na pós-graduação, as atividades de pesquisa e o período de finalização do estágio probatório. À guisa de conclusão, ao final do texto, problematizamos as tensões vivenciadas pela professora no exercício de suas atividades profissionais durante o período probatório.

Exercício profissional: a complexidade de ser professor universitário

A docência no Ensino Superior é um tema que tem despertado interesses de vários pesquisadores, como podemos perceber com os estudos de Veiga (2006) e Isaia (2006), que revelam críticas quanto à desvalorização, ou até mesmo à inexistência, de uma formação docente universitária pautada em políticas públicas. Portanto, consideramos que este debate sobre a carreira docente nas universidades públicas é um tema que exige luta e resistência constantes para que o professor, além de buscar não perder direitos adquiridos, possa alcançar melhores condições de trabalho e de formação.

Em relação à trajetória da carreira acadêmica nas universidades públicas no Brasil, considerando que a maioria dos professores ingressam no magistério após concurso público com exigência de título de doutorado, Passeggi, Souza e Vicentini (2011) sinalizam que essa trajetória pode ser globalmente assim representada:

Fonte: Passeggi, Souza e Vicentini (2011, p. 373).

Figura 1 ETAPAS DE TRANSIÇÃO ESTATUTÁRIA E IDENTITÁRIA 

Estes elementos apresentados como marcos relacionados à trajetória acadêmica, envolvendo etapas tanto da alçada formativa quanto profissional, revelam os processos da constituição de identidades do professor universitário. Estes marcos evidenciam “etapas de transição estatutária e identitária, suscetíveis de se revelarem nas escritas de si” (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 373).

O contexto em que este artigo se situa e, especificamente, relacionado aos marcos apresentados por Passeggi, Souza e Vicentini (2011) do ingresso do professor no Magistério Superior Federal e aos três primeiros anos que corresponde ao estágio probatório1. De acordo com a Constituição Federal (1988), esse período corresponde aos três primeiros anos de exercício profissional: “são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público” (BRASIL, 1988). Durante esse período, o professor é submetido a processos avaliativos que objetivam a permanência efetivada no cargo.

Em relação à pesquisa (auto)biográfica e a pós-graduação, Passeggi, Souza e Vicentini (2011, p. 382) afirmam que “a pesquisa (auto)biográfica tem se firmado, marcadamente, pela diversidade de entradas e modos singulares adotado nos programas de pós-graduação, em suas linhas e grupos de pesquisa”. E é nesse contexto que os pressupostos teórico-metodológicos vinculados à dimensão formativa, à profissionalidade docente e a melhoria das condições de trabalho e de formação têm ganhado ênfase.

Portanto, acreditamos ser de extrema relevância para esta pesquisa o contexto político atual. A universidade vem enfrentando ataques constantes em relação à sua autonomia e vivenciando processos de precarização do trabalho docente. Em relação à carreira docente, esses ataques têm sido mais evidentes no que diz respeito à aposentadoria e aos processos de promoção e progressão funcional, principalmente em relação aos docentes que ingressaram após 2013.

Escritas de si e a constituição da identidade

Como já sinalizado, para enfatizar a reflexão sobre a inserção dos docentes nas atividades de ensino e pesquisa, discutindo especificamente a inserção na pós-graduação, apresentamos trechos das narrativas escritas pela professora, durante os anos de 2016 a 2020, considerando o nosso olhar interpretativo sobre a importância da escrita de si para a constituição da identidade e da experiência vivida.

Delory-Momberger (2012, p. 33) sinaliza que “a narrativa de si inscreve-se no contexto geral de um mundo no qual a narrativa invade todos os setores da vida coletiva e aparece como uma das formas privilegiadas da mediação social e política”. Sanches (2010), baseado nas reflexões de Ricoeur (1991), considera a “narrativa como imitação recriadora de ações e paixões da vida”, sendo uma síntese de diversos elementos que possibilitam “a mediação entre ações, acontecimentos inesperados, mudanças de fortuna ou destino, as indecisões, amarrados numa história como início e fim, uma totalidade significativa” (SANCHES, 2010, p. 111). Portanto, “o Si assume várias identidades: o tu dialogal, o ele impessoal, o nós coletivo” (SANCHES, 2010, p. 112).

Para a realização da (re)construção da história narrada nos baseamos no referencial teórico-metodológico do campo da pesquisa narrativa, como Bolivar (2012) que menciona a possibilidade de unir os textos narrados seguindo marcas temporais e temáticas, compreendendo as experiências no contexto. De acordo com o mesmo autor, para tal empenho, portanto, é importante reconstruir o tempo subjetivo do narrador para o tempo objetivo, aglutinando situações, para assim configurar uma rede. Nesta perspectiva, buscamos (re)criar a história relacionando as partes com o contexto global, como a lente de uma câmera que consegue capturar o ambiente - contextos - e as pessoas, construindo imagens onde é possível identificar as dimensões particulares de suas histórias (BOLIVAR, 2012).

A Figura 2, intitulada a “Escrita de si e a dimensão da temporalidade”, apresenta a nossa proposta investigativa. Selecionamos cinco relatos narrativos escritos pela professora no início do seu estágio probatório, cada um referente a um ano, no período de 2016 a 2020, para identificar os percursos da professora na carreira docente e, então, observá-los. Novamente, ressaltamos a importância de pesquisas deste cunho para, por meio dos aspectos evidenciados, reforçar as discussões do campo teórico-metodológico da pesquisa (auto)biográfica, principalmente por enfatizar a relação da escrita de si e a dimensão da temporalidade, como mostra a Figura a seguir:

Fonte: elaborado pelas autoras.

FIGURA 2 ESCRITA DE SI E A DIMENSÃO DA TEMPORALIDADE 

De acordo com a Figura 2, após a sinalização do ano, partimos para a análise dos relatos (auto)biográficos da professora em cada ano. Suas narrativas resultaram em histórias singulares, mas, ao mesmo tempo, carregadas de histórias que são facilmente reconhecidas pelos seus pares. Isso porque ela “ordena os acontecimentos no tempo e constrói entre eles relações de causa, de consequência, de fim, dando, assim, um lugar e um sentido ao ocasional, ao fortuito, ao heterogêneo” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 39).

Seguindo, à direita da figura 2, na coluna do centro, apresentamos alguns tensionamentos vivenciados neste percurso e, logo após, são sinalizados os tópicos de discussão que abordamos neste artigo: percurso vivenciado, inserção na pós-graduação, atividades de pesquisa, primeiras orientações e final do estágio probatório. Assim, a narrativa vista de forma panorâmica apresenta um processo que denominamos de “ir e vir”, ou seja, transita pelas diferentes marcas temporais e tópicos abordados.

A partir disto, buscamos seguir as marcas temporais, as temáticas e as tensões que foram evidenciadas nas narrativas escritas pela professora, apresentando nossas reflexões. Para isso, compartilhamos a ideia de Ricoeur (1991) quando discute sobre a “tessitura da intriga”, pois, segundo o autor, para construir uma história é preciso compreender as ações e os sentimentos narrados, levando em consideração o contexto e as interações vivenciadas. Ricoeur (1991) considera o tempo como um elemento fundamental para a construção de sentidos, defendendo a relação entre narratividade e temporalidade. Segundo o autor, “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1991, p. 15). Por isso, nestas próximas seções, iremos apresentar e discutir alguns elementos presentes nas narrativas da professora durante os anos de 2016 a 2020, objetivando (re)construir a história.

Ano de 2016 - “Já sou professora há muitos anos!”: percurso vivenciado pela professora

A narrativa escrita pela professora em 2016, ano que tomou posse no Magistério Superior, evidencia suas experiências formativas e docentes anteriores. Podemos dizer que corresponde à escrita de um memorial. Os seguintes trechos ilustram essas observações:

Iniciei meu trabalho na Educação Básica quando eu tinha 15 anos, e entrei no curso de magistério. Eu era ajudante de uma turma de Educação Infantil [...] Desde aquela época, nunca mais deixei de trabalhar em escola. [...]. (Trecho da Narrativa da Professora, 2016).

Minha carreira no ensino superior foi em uma instituição privada, no ano de 2008, assim que comecei a fazer o mestrado. [...] No Ensino Superior trabalhei durante 10 anos, ministrando diferentes disciplinas, a cada semestre praticamente era uma disciplina nova. Lembro dos amigos, das amizades, das discussões...[...]. (Trecho da Narrativa da Professora, 2016).

Nestes excertos das narrativas da professora há vários pontos de reflexão acerca da docência. Dois deles são: como o aprendizado inicial da docência pelos professores refletem no exercício da profissão? Como esta professora foi construindo seu percurso de exercício profissional na Educação Básica e em quais condições formativas? Os seguintes trechos “quando eu tinha 15 anos”; “entrei no curso de magistério”; “era ajudante de uma turma de Educação Infantil”; “em uma escola particular”, sinalizam marcas importantes no percurso da professora. Investigar suas primeiras experiências docentes e seu percurso acadêmico permite refletir sobre tópicos fundamentais, tais como: por que ela fez a opção pelo Magistério? Por que trabalhava aos 15 anos de idade? Como pensar a Educação Infantil em instituições privadas que recrutam pessoas para “ajudar” na docência? Quais eram as atividades que a professora exercia na instituição de EI e em quais condições? São muitas questões que poderíamos problematizar, mas, como sinalizamos, nosso objetivo é compreender o processo vivenciado pela professora de maneira mais global.

Quando a professora relata o trecho “Já sou professora há muitos anos!” fica evidenciado o que Pereira (2010, p. 125) menciona sobre o trabalho com a memória: ela imprime também as marcas mobilizadas do momento em que são recuperadas e, sendo assim, elas são “transmutadas em outra coisa que não é mais o acontecimento que as gerou, mas um novo movimento e uma nova configuração para a qual elas contribuem, em suas novas performances” (PEREIRA, 2010, p. 125).

Outro tópico que merece destaque é a inserção da professora na docência universitária e a relação com a vida acadêmica na pós-graduação. Novamente, a instituição privada entra em cena. Esse foi o primeiro contexto de aprendizado da docência na educação básica dela e também no Ensino Superior. Aqui, cabe problematizar as mesmas questões levantadas anteriormente somadas à discussão sobre a entrada no mestrado como possibilidade de atuação na docência universitária, pois a professora sinaliza que a experiência universitária aconteceu “assim que comecei a fazer o mestrado”. O trecho a seguir, da narrativa de 2016, evidencia ainda mais esta discussão sobre a relação entre a entrada na pós-graduação e o aprendizado da docência universitária.

Desde que entrei no mestrado tinha interesse em investir na docência universitária em uma federal, realizar pesquisa, orientar [...], já estava trabalhando em faculdades particulares, mas não há muitas possibilidades de pesquisa [...] (Trecho da Narrativa da Professora, 2016).

Outro tópico evidenciado na narrativa da professora foi a questão do concurso público para o ingresso no Magistério Superior, conforme o seguinte trecho:

Estudei muiiito para o concurso e ao longo da preparação fiz outra coisa: pensei em estratégias para fazer a prova didática, e aí pegava temas que eu considerava mais difícil. [...] Após o sorteio do ponto da prova didática.... [...] Já quase à noitinha eu não tinha rendido nada. [...] Quando terminei de dar a aula e fazer a arguição saí feliz, pensei, posso não ter conseguido a vaga, mas fiz o meu melhor! [...] Fiquei pensando o que fiz de errado nos outros que não fui aprovada. [...] No dia do resultado, eu só chorava porque não entendia nada daquela leitura das notas [...] Hoje refletindo sobre esse tempo digo ainda bem que não vou precisar passar por isso de novo durante o resto da minha vida [...] Outro dia me peguei falando para meus alunos dessa minha trajetória e eles fizeram várias perguntas sobre esse processo [...] (Trecho da Narrativa da Professora, 2016).

O trecho anterior complementa a trama que estamos (re)construindo, a partir do nosso olhar, sobre os relatos da professora durante o estágio probatório. Nesse momento, a professora rememora as situações vivenciadas anteriormente ao início de suas atividades, como o concurso público. E nesses relatos, são explicitados pela professora os sentimentos de angústia, evidenciando a questão da dimensão formativa da escrita de si, pois a reflexão sobre os processos vivenciados possibilita novas narrativas em outros contextos. Como no trecho em que a professora sinalizou: “outro dia me peguei falando para meus alunos dessa minha trajetória e eles fizeram várias perguntas sobre esse processo de entrada”. Nesse trecho da narrativa da professora, com a narração de tempos vividos em diferentes contextos, percebemos a ideia desse “ir e vir” temporal bem presente.

Pereira (2010, p. 126) compreende o processo formativo como “a vivência de princípios organizadores da prática” e que “compreende a totalidade do tempo circunscrito entre o instante da concepção e o momento atual”. O autor ainda argumenta que, em relação à formação, as marcas vividas durante o percurso e as novas experiências são frutos das escolhas feitas pelo sujeito e do contexto em que elas foram feitas.

Ano de 2017 - “E eu? Estava me sentindo tão sozinha, tão sem ninguém”: inserção na pós-graduação

Ao parar depois de um dia corrido, como sempre kkkkk para narrar minha trajetória me vejo perplexa diante de tantas coisas que gostaria de escrever. Me lembro do tempo da defesa da tese e logo em seguida a preparação para o concurso. Sem dinheiro e com muitas expectativas. Algumas frustradas [...]. Mas, afinal, aqui estou. Hoje, professora, legitimada por um concurso. [....] (Trecho da Narrativa da Professora, 2017).

Neste trecho, a professora rememora novamente situações vivenciadas anteriormente, reforçando o nosso argumento, aqui defendido, de que, apesar de encontrarmos certa linearidade nos fatos relatados, as narrativas da professora vão se construindo e se completando. Esses relatos trazem entrelaçamento de memórias, movimentos constantes de fatos e situações vividas, registros de marcas que, naquele momento narrado, foram selecionados para o registro escrito.

Vou começar a registrar pelo dia de hoje então. Como foi a entrada no mestrado [...]? Percebo que no início foi bem triste. Via meus colegas já envolvidos em projetos, na pós e escrevendo artigos. E eu.. parece que parei ano passado. O ano de 2016 parece que não existiu, foi um ano muiiito difícil. AFF!!!! Ficava triste em ver meus colegas já inseridos em projetos e eu ali paralisada. Vi que eles foram inseridos porque já tinham relações, ou porque os tutores ou professores os incluíam. E eu? Estava me sentindo tão sozinha, tão sem ninguém. Em sala, estava feliz, meus estudantes sempre me davam feedback que estavam gostando e eu me agarrei nisso, que considero super importante... [...] (Trecho da Narrativa da Professora, 2017).

Neste excerto, a professora demonstra sentimentos de tristeza na relação entre os pares na inserção profissional: “Ficava triste em ver meus colegas já inseridos em projetos e eu ali paralisada”, rememorando situações vivenciadas no ano anterior. Para Delory-Momberger (2012, p. 31), o processo de socialização exige tomada de posição pelos próprios sujeitos, pois o “curso da vida” se institui “como o lugar de processos de seleção, de organização e de integração mediante os quais os indivíduos se inscrevem no mundo social e trabalham para a sua própria socialização” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 31). Neste processo de biografização, ao rememorar suas experiências, a professora também sinaliza mudanças em relação ao tempo vivido:

Aí não sei bem como isso tem mudado. Acho que agora, hoje, especificamente dia 14 de novembro de 2017, me vejo mais inserida, e por isso falo cheia de orgulho: Estou na pós! [...] Concorri a um edital de solicitação de materiais ou bolsistas. Foi minha oportunidade [...]. Como eu fazer pesquisa sozinha? [...] Pela primeira vez poderia ter bolsistas o que significava para mim a inserção na pesquisa, uma pesquisa que fosse coordenada por mim [...]. Que alegria!!! Ao invés de pedir material, brincava com meus colegas, quero gente, quero gente comigo!!!!! [...]. (Trecho da Narrativa da Professora, 2017).

Neste trecho, percebemos indagações feitas pela professora diante das condições de pesquisa do professor principiante como, por exemplo, “Como eu vou fazer pesquisa sozinha?”. Essa indagação corresponde a situações vividas por diversos professores, principalmente no início de suas carreiras, envolvendo o debate sobre a precarização do trabalho do professor universitário. Estudos sobre a reestruturação do trabalho, as legislações que orientam o trabalho universitário e as condições em que o professor realiza seu trabalho reforçam a percepção de que o contexto onde o professor atua, ou seja, a etapa na carreira em que ele se encontra, vai determinar o nível de apoio às suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. Além disso, as etapas da carreira docente também apresentam diferenças em relação à intensificação do trabalho e à oferta de recursos humanos e financeiros para realizar pesquisa. Estes são identificados como elementos propulsores para o adoecimento entre professores universitários (MAUÉS, 2010; SANTOS, 2012).

Nos relatos (auto)biográficos da professora também identificamos as tensões em relação à construção do processo identitário:

No grupo [...], começamos a construir uma linha de pesquisa para entrar na pós-gradução, uma linha nova, [...]. Eu amei e vi aí uma oportunidade de sair daquele conflito que estava em relação a meu campo de estudos. Eu estudava o quê? Queria ser reconhecida como o quê? [...] Me senti útil, me envolvi, ajudei a construir o programa das disciplinas da linha, a ementa etc. Me vi. Me achei! [...]. Eu me senti incluída e feliz, tinha encontrado um caminho que eu gostava e que me identificava mais.

Assim, minha inserção em grupos de pesquisa com meus bolsistas de graduação e agreguei mais quatro estudantes voluntárias.... me deu outro astral. [...]. Hoje então, estou aqui, após ler quase 100 projetos de seleção... vou poder orientar no próximo ano [...]. (Trecho da Narrativa da Professora, 2017).

Nestes excertos evidenciamos os sentimentos vivenciados pela professora diante das relações que estavam sendo estabelecidas, pois “ser tomado por uma desconfortável sensação de não estar sendo como se gostaria e, na continuidade, ser assaltado por um impulso de providenciar algo novo é uma evidência dessa descontinuidade” (PEREIRA, 2010, p. 127).

Nesse contexto, consideramos que a escrita de si ganha força como um dispositivo (auto)formativo. Segundo Souza (2008. p. 1), a narrativa é ao mesmo tempo um dispositivo de investigação e um “processo de autoformação e de intervenção na construção identitária de professores”. Para Pineau (2014), a autoformação perpassa por uma dimensão dialética, vista como uma força que está entre a heteroformação, correspondente à ação do outro, e a ecoformação, proveniente no meio ambiente. Assim, percebemos que a autoformação está relacionada às questões de poder, pois elas estão “definindo-a formalmente como a apropriação por cada um do seu próprio poder de formação” (PINEAU, 2014, p. 1). Essa definição é antagônica à ideia de responsabilização da formação pelo próprio sujeito. Assim sendo, Pineau (2014) salienta que é em um processo reflexivo que se efetiva, na esfera individual e coletiva, a exigência para que o sujeito se liberte de amarras, estereótipos e preconceitos produzidos socialmente. Nesse processo, o sujeito “torna-se objeto de formação para si mesmo” (PINEAU, 2014, p. 95).

Ano de 2018 - “ É um processo de relacionamento, de negociação, de inserção nos grupos”: atividades de pesquisa na pós-graduação

O trecho a seguir apresenta elementos que contribuem para construir o panorama do percurso da professora, enfatizando a inserção na pós-graduação, objetivo que nos propusemos a tecer neste artigo:

Vejo que meus estudantes estão gostando das minhas aulas, isso me faz feliz hoje. Mas e a pesquisa? [...]. Fico aqui me perguntando: quando irei participar de uma banca de mestrado ou doutorado? O que eu poderia ajudar em um trabalho? O que eu sei e poderia contribuir? [...] Fico feliz porque já participei de duas bancas, como suplente kkkkk um dia eu chego lá... Então, penso... não é só uma questão de saberes [...] mas também é um processo de relacionamento com outro professores, com outras universidades, requer negociação, inserção nos grupos e no campo de estudo. Ou seja, as pessoas que te conhecem é que te chamam kkkkkkk. [...] E hoje meu amigo me ligou dizendo de um trabalho que eu poderia ser da banca [...]. Fiquei feliz com a possibilidade. [...] Hoje, me vejo animada e feliz! Mas, não foi assim durante o primeiro ano e sei que amanhã poderá não ser tão bom! (Trecho da Narrativa da Professora, 2018).

Neste trecho podemos evidenciar os seguintes tópicos: os sentimentos em relação ao exercício da profissão, ensino e pesquisa, com a fala “vejo que meus estudantes estão gostando das minhas aulas”; e em relação à inserção nas atividades próprias da pós-graduação (orientação e bancas), com a fala “Fico feliz porque já participei de duas bancas, como suplente”. Podemos evidenciar, também, a relação com o grupo e entre pares, como processos de socialização que interferem na inserção nas atividades de pesquisa ao observar a fala: “mas ser chamada ou não é também devido às relações que você estabelece como os outros professores daqui e de outras universidades”.

Quando a professora indaga: “Mas e a pesquisa?”, observamos que ela traz nesse questionamento o viés da docência universitária, que vai além de atividades relacionadas ao ensino, pois visa articular ensino, pesquisa e extensão. Já no momento em que a professora continua indagando: “quando irei participar de uma banca de mestrado ou doutorado?”, “O que eu poderia ajudar”? “O que eu sei e poderia contribuir?”, observamos que ela sinaliza sentimentos que envolvem o sentimento de pertencimento aos grupos e ao reconhecimento, ao dizer: “as pessoas que te conhecem é que te chamam kkkkkkk.”, ressaltando a percepção da necessidade de parcerias e negociações.

Nesse contexto, podemos compreender que a dimensão temporal na narrativa pode ser evidenciada por várias “cicatrizes” presentes nos relatos da professora. Usamos “cicatrizes” porque nos remete à questão da dor de situações conflituosas e da superação dessas situações vivenciadas, que marcaram seu percurso no processo de construção indenitária naquele momento, em relação às atividades de pesquisa. O trecho “Hoje, me vejo animada e feliz! Mas, não foi assim durante o primeiro ano e sei que amanhã poderá não ser tão bom!” traz o ir e vir da dimensão da temporalidade e das situações vivenciadas de forma não tão harmônica, no contexto universitário. Sanches (2010), apoiado nos estudos de Ricoeur (1991), afirma que o sujeito vai se constituindo ao contar sua história, sendo fiel a si mesmo diante da posição do outro.

Ano de 2019: “A cada encontro, eu ficava mais apaixonada e apavorada”: as primeiras orientações

Dando continuidade à construção da narrativa, os relatos de 2019 apontam para o processo de inserção na pós, com as primeiras orientações, no processo de qualificação e defesa dos trabalhos.

Esta semana finalizei as bancas de qualificação das minhas primeiras orientandas. Que alegria! Sucesso! Fiquei tão feliz, mas tão feliz esta semana. [...] Mas este prazer em orientar me trouxe também grandes desafios. As questões teóricas que rondam o processo de orientação: indicar leituras, acompanhar a pesquisa, redirecionar, discutir, avançar... Agora é hora de me dedicar mais ao campo teórico. Vejo que como orientadora consegui o objetivo, mas no fundo penso quanta coisa ainda preciso estudar, conhecer. A cada encontro novas perguntas. E comecei a perceber que muitas dúvidas, que inclusive me angustiava muito, não... não eram só minhas. Comecei a ver que muitas questões eram também questões do campo de pesquisa. [...] A participação e criação do grupo [...] sobre pesquisas narrativas juntamente com outros três professores, foi um marco importante que me ajudou muito na orientação. [...] A cada encontro com meus orientandos ou nos grupos de pesquisa eu ficava mais apaixonada, mas ao mesmo tempo apavorada, com as discussões. [...]. Fui investindo em leituras e discussões e hoje posso dizer que dei um salto (Trecho da Narrativa da Professora, 2019).

Até aqui, neste processo de construção de uma narrativa global possibilitando a construção de uma visão panorâmica sobre o processo vivenciado pela professora, a partir da escrita de si, como pontuado por Passeggi, Souza e Vicentini (2011, p. 373), é possível refletir sobre as vivências no contexto universitário, pois “escrever e interpretar o que foi significativo para determinar modos de ser, seja como aluno seja como professor, são atividades formadoras e podem dar acesso ao mundo da academia visto pelos olhares de seus protagonistas” (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 373).

Nesta caminhada, continuando na construção de uma visão panorâmica das narrativas produzidas pela professora, apresentamos e discutimos os trechos das narrativas do ano de 2020, após o término do estágio probatório, possibilitando conhecer mais um pouco sobre a inserção da professora no contexto universitário.

Ano de 2020: “Hoje me identifico como professora do campo da didática e da narrativa!”: o fim do estágio probatório

Hoje, após as defesas das minhas primeiras orientandas e em isolamento social devido ao Coronavirus, estou aqui escrevendo minha narrativa e pensando na minha pesquisa que começou no inicio do estágio probatório. [...] Com certeza também porque estou mais inserida nos campos que auto. [...]. Tenho mais duas orientandas que estão para qualificar, uma iniciando e três orientandos de TCC. Todos meus orientandos estão trabalhando na perspectiva (auto)biográfica, o que tem contribuído também para o meu crescimento. [...] Tantas outras dúvidas e conflitos surgem. Fico me perguntando sobre o meu papel como orientadora: Será que estou no caminho certo? Eu percebo que acabo convencendo os meus orientandos a trabalharem na perspectiva metodológica que tenho utilizado na minha pesquisa. Isto está adequado? [...] Às vezes penso que sim, às vezes fico em conflito. [...] Mas hoje me identifico como professora do campo da didática e da narrativa!... então é isso aí!!!! (Trecho da Narrativa da Professora, 2020).

Este trecho nos remete à discussão cunhada por Sanches (2010, p. 112) sobre o dilema da intriga narrativa, pois “os sujeitos se perdem e se encontram no labirinto de uma história”. A professora questiona em seu relato: “fico me perguntando sobre o meu papel como orientadora: Será que estou no caminho certo?”, e apresenta reflexões acerca das próprias indagações: “às vezes penso que sim, às vezes fico em conflito”. A professora continua a trama construindo uma resposta naquele momento, argumentando com a própria afirmação identitária, em relação aos campos de conhecimento que está atuando: “hoje me identifico como professora do campo da didática e da narrativa!”, e sintetiza: “é isso aí!!!!” Esse processo de constituição identitária, como um elemento central docência universitária, traz marcas da profissionalidade como “o modo de ser que temos alimentado, como via fundamental, tanto para navegar em campos individuais quanto para colocar-se dentro da coletividade. E a memória é o principal dispositivo de acesso a esta marca, sua gênese e suas configurações” (PEREIRA, 2010, p. 129).

Real e Bolivar (2018), também apoiados nos estudos de Ricoeur (1996), discutem a identidade narrativa a partir da relação de permanência com o tempo e com a identidade pessoal, modificados ao longo do tempo. Segundo os autores, na narrativa há a dimensão da temporalidade presente ao longo do tempo, pois o narrador mantém certos elementos quando narra a si mesmo. Entretanto, não é estável, pois há variações em relação aos contextos e tempos vividos. Nesse sentido, ressalta-se a importância da mediação do outro no processo de autoformação e constituição da própria identidade: “A identidade para si, como processo biográfico, complementa-se como um processo social relacionado com o reconhecimento dos outros” (REAL; BOLIVAR, 2018, p. 5).

Palavras finais...

Nossa proposta neste artigo foi construir um panorama do percurso vivenciado por uma das professoras participantes da pesquisa, a partir de narrativas produzidas durante os anos de 2016 a 2020, (re)construindo as suas narrativas escritas durante o estágio probatório. Assim, foi possível identificar possíveis cicatrizes impressas em seus relatos com as marcas do vivido que foram sendo expressas no decorrer do tempo. Acreditamos que a constituição da nossa identidade docente vem se configurando a partir da reflexão das experiências vivenciadas ao longo da nossa trajetória. Assim, ao (re)construir a visão panorâmica do percurso da professora, a partir de suas narrativas ao longo dos anos, foi possível indagar: como as narrativas escritas pela professora sinalizam marcas do seu processo de transição durante o estágio probatório? Quais tensões foram marcadas em cada tempo vivenciado? Como o ir e vir temporal foi se constituindo nos relatos no seu processo de constituição identitária?

Alguns pontos que foram evidenciados nos relatos (auto)biográficos da professora universitária merecem destaque em relação à discussão apresentada ao longo do artigo. Um dos aspectos é como a dimensão da temporalidade estava presente na “escrita de si” e nos seu processo de biografização. Outro aspecto diz respeito ao empenho de (re)construirmos as narrativas da professora em novas narrativas, que possibilitaram identificarmos momentos durante o estágio probatório, de prospecção e reflexão sobre a inserção na pós-graduação. Momentos esses, que também sinalizaram tensões nas questões de orientação e do envolvimento nas atividades que envolvem a pesquisa, como participação em bancas. Durante a apresentação das narrativas, percebemos a existência de um “ir e vir” temporal, colocando suas vivências em novas perspectivas, que nos remete à ideia de Clandinin e Connelly (2011, p. 29), “no como a temporalidade (contextualizando tudo em relação ao tempo) conecta-se com transformação e aprendizagem e no como as instituições interferem em nossas vidas”.

Outro elemento marcante constatado por nós, diz respeito aos sentimentos expressos pela professora em seus relatos (auto)biográficos, como alegria, tristeza e sentimento de isolamento. Neste emaranhado de sentimentos, a professora sinalizou a importância do processo de socialização profissional e as interações entre os grupos de professores. Estes processos vivenciados reforçam como os processos interativos são propulsores de novas possibilidades de atuação e inserção nas atividades da pós-graduação.

A história (re)contada do período de transição que a professora vivenciou durante os três anos de estágio probatório, traz elementos que marcam o processo de sua constituição identitária docente. As discussões apontadas ao longo do artigo reforçam o conceito de formação como um processo contínuo e inacabado, como afirma Delory-Momberger (2012) ao dizer que os processos transacionais e de reconfiguração socioindividual evidenciam “a dimensão da atividade (auto)biográfica, o papel que ela exerce e a maneira pela qual os indivíduos se compreendem e se estruturam numa relação de colaboração de si com mundo social” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 95).

Concluímos que a “escrita de si”, no processo de (re)construção do panorama do percurso vivenciado pela professora, possibilitou a reflexão sobre as experiências relatadas e sobre as dinâmicas de “ir e vir” da dimensão da temporalidade. Assim, suas narrativas possibilitam o reavivamento de lembranças em uma dimensão transicional da própria experiência, em um processo de “escrever-agir a sua história” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 89), em um período de transição marcado pelo questionamento e afirmação da própria identidade docente.

1De acordo com Lei Nº 12.863, de 24 de setembro de 2013 (BRASIL, 2013), que dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreira e Cargos de Magistério Federal, o Magistério Superior é assim denominado: Professor Titular, associado, adjunto e assistente, com diferenciação entre níveis, exceto para o Titular, que é nível único.

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Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 28 de Outubro de 2020

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