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Educar em Revista

Print version ISSN 0104-4060On-line version ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub Apr 08, 2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75205 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Fios de memórias... Sobre possibilidades de escritas de si e invenção de mundos...1

Carlos Eduardo Ferraço* 
http://orcid.org/0000-0002-4019-591X

*Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação em Educação. Vitória, Espírito Santo, Brasil. E-mail: ferraco@uol.com.br


RESUMO

Trata-se de artigo que tem como objetivo problematizar diferentes acontecimentos vividos na imanência de uma vida, a partir de alguns fios de memórias assumidos como possibilidades de escritas de produção de si e de invenção de mundos. Nesse sentido, busca escapar, das representações e das explicações que se insinuam como atestados de verdade do vivido, aliados à hipertrofia do Eu, marcas do capítulo da Modernidade que celebra o surgimento de um sujeito autocentrado e dotado de uma consciência plena. Para tanto, busca enredar diferentes temporalidades que se constituíram como processos de autoformação, em meio a epistemologias e experimentações de vida, assumidas como dobras que nos permitiram evidenciar questões afetas às rupturas e às descontinuidades, de modo a nos ajudar a defender que uma vida está sempre em excesso em relação a qualquer escrita que se faça sobre ela. Se, ao final da leitura, surgir um fio de Ariadne que se mostre como um enredo preestabelecido por nós trata-se, certamente, de um efeito que reverberou com o próprio ato da escrita e não como efeito de uma intenção-causa primeira. Se me perguntarem: Houve esse memorial ou você inventou? Eu diria: Se não houve, agora, porque escrevi, passou a existir. Ele nunca aconteceu como verdade a priori para que possa insurgir como invenção, quantas vezes forem necessárias.

Palavras-chave: Memória; Invenção; Escritas de si; Autoformação; Experiência

ABSTRACT

This article aims to problematize different events experienced in the immanence of a life. It is based on some threads of memories assumed as possible written productions of one's self and the invention of worlds, seeking to escape the representations and explanations that are implied as attestations of truth of what has been lived, allied to the hypertrophy of the Self, which are marks of the chapter of Modernity that celebrates the emergence of a self-centered subject who is endowed with mindfulness. To this end, it seeks to intertwine different temporalities that were constituted as processes of self-education, in the midst of epistemologies and life experiments, assumed as folds that allowed us to highlight issues related to ruptures and discontinuities, in order to help us advocate that a life is always in excess in relation to any writing produced about this life. If, at the end of the reading, a thread of Ariadne appears as a plot pre-established by us, it is certainly an effect that reverberated with the act of writing itself and not as an effect of a prior intention-cause. If I am asked: Was there this memorial or did you make it up? I would say: If there wasn't, now, because I wrote, it came into being. It never happened as a priori truth so that it can rise as an invention, as many times as necessary.

Keywords: Memory; Invention; Writings about one's self; Self-education; Experience

Memória Amar o perdido deixa confundido este coração.

Nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do não.

As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão.

Mas as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão.

(ANDRADE, 1959, p. 21).

O que nos força a escrever?

Inspirado em Carlos Drumond de Andrade, defendemos2 que a escrita deste artigo não pretende se constituir nem como atestado de verdade do vivido, nem como hipertrofia do Eu (LYOTARD, 1996). Não nos interessa representar ou explicar o acontecido, muitas vezes presente nas escritas autobiográficas pois, para Foucault (2008), esse tipo de escrita possui um caráter normalizador que busca dar coerência àquilo que acontece à nossa revelia, por mais que queiramos ter o controle de nossas vidas.

De fato, não visamos a uma redação que siga linearmente os rastros de um desenvolvimento, apesar de termos usado alguns acontecimentos temporais como recortes, como dobras (DELEUZE, 2009) que nos permitiram problematizar questões importantes para nós. Como alerta Foucault,

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia [...] se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada (FOUCAULT, 2008, p. 14).

Apesar de concordar com Foucault sobre a impossibilidade de se garantir coerência ao acaso da vida, também não nos interessa, com esta escrita, responder à pergunta “Como nos tornamos o que somos?”, até porque somos, diuturnamente, agenciados por descontínuos e diferentes processos de subjetivação que nos constituem, a cada momento, algo diferente do que éramos antes, o que torna a questão posta pelo autor irrespondível.

Comungando com o capítulo da Modernidade que celebra o surgimento do sujeito autocentrado e dotado de uma consciência plena, a escrita (auto)biográfica, de modo geral, compartilha de um gênero discursivo que busca dar coerência para a experiência que é, por si mesma, feita de descontinuidades e de rupturas, difusa, fragmentada, rizomática, múltipla e cataclísmica, não se constituindo como desenrolar previsível de nossa vida, mas como insurgências, mutações inaugurais. Uma vida (DELEUZE, 2002) está sempre em excesso em relação a qualquer escrita que se faça sobre ela.

Desse modo, a feitura deste artigo tentou escapar, sempre que possível, da ideia de que somos movidos por intencionalidades e enredos preestabelecidos por nós ou para nós e que atravessariam nossa vida, ou seja, a existência de um fio de Ariadne que nos ajudaria a não nos perder nos labirintos dos acontecimentos, uma espécie de linha condutora que nos guiaria e nos permitiria olhar retrospectivamente de modo a dar um sentido de coerência ao vivido.

Não mesmo! Não se trata de uma linha-guia, mas de múltiplas redes tecidas por muitos fios, que vão nos formando na diferença, a partir de acasos, acontecimentos, encontros e experiências vividas como potências-força de disposições-indisposições surpreendentes com a eterna novidade do mundo, como tentativa esquizofrênica de produzir sentido sobre o caos. Trata-se, então, de possibilidades de escritas de produção de si e de invenção de mundos.

Escritas de si e invenção de mundos como bricolagens de experiências e produção de possíveis e não como desvelamento de sentidos ocultos no passado. Escritas-invenções que não visam a uma analítica da verdade, mas que insurgem em meio às redes tecidas, como efeitos de verdade que, no momento, nos interessam produzir.

Enfim, escritas de si e invenção de mundos não como descrição fiel dos fatos, mas como ficção, arte de narrar (CERTEAU, 1994), como no poema “Explicação” de Cecília Meirelles (1958):

A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.

A estrela sobe, a estrela desce...

- espero a minha própria vinda.

Navego pela memória sem margens.

Alguém conta a minha história

e alguém mata os personagens (MEIRELES,1958, p.11).

Se, ao final da leitura deste texto surgir um fio-guia, trata-se, certamente, de um efeito que reverberou com o próprio ato da escrita e não de uma intenção-causa primeira. Trata-se de uma invenção (CERTEAU, 1994), das artes anônimas, efêmeras, caóticas, insurgentes e sorrateiras de escrever-fazer-pensar-falar dos praticantes da vida cotidiana que somos e que irrompem com vivacidade e não se deixam capitalizar. Parafraseando Adélia Prado (2003), se me perguntarem: Houve esse memorial ou você inventou? Eu diria: Se não houve, agora, porque escrevi, passou a existir. Ele nunca aconteceu como verdade a priori para que possa insurgir como invenção, quantas vezes forem necessárias.

O Curso Científico e a licenciatura em Física

Ando devagar porque já tive pressa

E levo esse sorriso

Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe

Só levo a certeza de que muito pouco sei, ou nada sei [...]

Penso que cumprir a vida seja simplesmente

Compreender a marcha e ir tocando em frente

Cada um de nós compõe a sua história

Cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz

(SATER; TEIXEIRA,1990).

A entrada para o Curso de Licenciatura em Física da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em 1977, trouxe-nos, de início, a possibilidade de, finalmente, realizar o desejo de nos tornar um professor-cientista diferente das representações-clichê a que, até então, tínhamos tido acesso nas aulas de Física, Química, Biologia e Matemática do antigo Curso Científico. Em geral, as imagens que nos eram apresentadas com os currículos oficiais dessas disciplinas, mas não só nesses, reforçavam visões estereotipadas de ciência e de cientista, situando-as fora da maioria do mundo dos mortais.

Assim, essas representações-clichê produziram discursos que atribuíam aos cientistas comportamentos considerados como padrões necessários à boa prática científica, tais como impessoalidade, neutralidade e objetividade. Vestidos com seus jalecos brancos, de óculos na ponta do nariz e abnegados de desejos, os homens da ciência se comportavam, como observa Thuillier (1994, p. 17), “[...] como se não tivessem um perfil psicológico singular, como se não tivessem afetividade, paixões, cultura, convicções pessoais herdadas de seu meio e de sua educação. Como se não tivessem história nem tampouco, inconsciente”.

Por sua vez, a ciência se constituía como algo transcendental, inatingível e superior à vida cotidiana. Um caminho harmônico, linear e gradativo, só possível de ser percorrido por homens especiais com seus experimentos e teorias também especiais. Nesse sentido, as visões de ciência e de cientista veiculadas em nossa formação “científica”, em geral, oscilavam entre o sobrenatural e a experimentação, o divino e o cognitivo, a fantasia e a razão.

Ao discutir as tradicionais visões de ciência, Thuillier (1994) faz referência a esses dois enfoques denominando-os de “místico” e “empírico”. No primeiro caso, a ciência se traduziria em conhecimento sagrado, protegido por rígidos tabus, na qual uma longa tradição convidaria os profanos a venerá-la como ação de qualidade superior imaculada (a Imaculada Conceição). Aqui, o cientista seria um missionário ou vidente, possuidor de truques quase miraculosos. No segundo caso, a ciência se afirmaria por meio do método experimental que, por si só, garantiria a legitimidade dos resultados obtidos. O cientista não seria mais um sacerdote, mas um observador atento. Uma humilde abelha que buscaria, laboriosa, sua imensa provisão no campo das experimentações. Em ambos os casos, imparcialidade, contemplação, perfeição, dedicação e devoção seriam requisitos necessários para o outorgue de cientista.

Ao mesmo tempo em que tínhamos acesso à produção discursiva de um dado modelo clichê de ciência e de cientista nas aulas do Curso Científico, as atitudes do nosso professor de Física colocavam sob suspeita o próprio modelo. Por exemplo, a crítica que ele fazia à sua formação em termos do rigor das aulas e as artimanhas de que se valia para passar de ano, se distanciavam do ideal que o próprio professor defendia nas aulas, evidenciando uma situação na qual a vida cotidiana produzia, de modo aleatório, quebras no próprio modelo.

Com isso, apesar de não correspondermos ao perfil de cientista padrão e, também, de não conseguirmos um desempenho além de regular para bom nas aulas de Física, Química e Biologia, imaginávamo-nos incorporando um dado espírito científico, ao entrarmos em nosso laboratório improvisado no fundo do quintal da nossa casa. Lá, na maioria das vezes sozinhos e, às vezes, acompanhados dos olhares curiosos dos irmãos, misturávamos produtos, fazíamos experiências com cores, sabores, aromas de diferentes produtos, e observávamos minúsculos seres com lupas improvisadas, pois não tínhamos condições de ter um microscópio, objeto de desejo que, quando ganhamos, nos possibilitou atualizar as memórias dos dias passados naquele espaço improvisado de experimentações de vida.

De modo diferente da maioria das experiências passadas como atividades de casa ou das que constavam nos livros didáticos, as experimentações que tivemos em nosso laboratório de fundo de quintal produziam sensações que nos levavam a ficar lá por horas, agenciados pela expectativa de poder descobrir algo, de nos surpreender com o inesperado, como quando fabricamos pólvora pela primeira vez. Lembranças de invencionices de infância.

Ao entrarmos para o Curso de Licenciatura em Física, percebemos que as experiências vividas por nós naquele laboratório improvisado não passavam de diversão, de brincadeira ou, como disse um professor de Física Experimental I, de senso comum, em que prevaleceria o conhecimento empírico, quando o importante seria o conhecimento sistematizado.

O modelo de produção cientifica “correto” não era aquele em que a imaginação, a criação e a liberdade de ação nos possibilitavam fazer o que quiséssemos, sem nos preocupar se estávamos trabalhando com Física, Química, Biologia, Arte ou Culinária. Mais uma vez, os conceitos de ciência e de cientista evocavam um sentido formal, fechado com divisões dentro das quais eram realizadas as pesquisas, com hierarquias e pré-requisitos necessários de serem cumpridos, caso quiséssemos atingir o status acadêmico.

Uma das hierarquias mais marcantes vividas em nossa formação estava no fato de as disciplinas experimentais só serem cursadas a partir do segundo ano, quando, então, os pré-requisitos teóricos já estariam “assimilados”, como dizia uma professora de Física IV: “Sem teoria vocês não vão muito longe nas experimentais”. O que não era verdade, pois, para cada Física Experimental (no total eram seis), havia um roteiro preestabelecido a ser seguido e que era planejado segundo uma lógica do simples ao complexo, do particular ao geral, e que não tinha nada a ver com as disciplinas teóricas já cursadas. Ou seja, as disciplinas experimentais também se constituíam como teóricas.

As dicotomias impostas na graduação em Física entre teoria x prática, senso comum x ciência, ciência x imaginação, natureza x sociedade, conhecimento empírico x conhecimento sistematizado,3 entre outras, foram problematizadas no decorrer do Curso de Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), com a leitura de diferentes obras, tais como: “O senso comum da ciência”, de Jacob Bronoswki (1997), e “Como conhece o homem o mundo que o rodeia?”, de Korshunova e Kirilenko (1986). Por exemplo, para Bronowski (1997), as ideias de ordem, causa e acaso, apesar de presentes no discurso científico, têm sua origem no senso comum. De acordo com o autor

Nenhuma dessas idéias é peculiar à ciência, e muito menos a de ordem. Todas têm aplicação na ciência; mas todas são mais antigas que essas aplicações. Todas são mais largas e profundas do que as técnicas em que a ciência as exprime. São idéias do senso comum. Pretendo dizer com isso que são generalizações que todos fazemos no dia-a-dia e que usamos continuamente para nos ajudarem a governar a vida.

Infelizmente, o senso comum não tem história documentada. Supomos muitas vezes que nem sequer tem evolução e que aquilo a que hoje chamamos senso comum foi sempre o senso de toda a gente o que não é verdade.

A ciência registra tudo isso mais adequadamente. A ciência tem uma história em que se pode nitidamente discernir o desenvolvimento dessas idéias (BRONOWSKI, 1997, p. 19).

Por sua vez, ao discutirem as ideias de criatividade, lampejo, imaginação, descoberta, intuição, acaso e erro, Korshunova e Kirilenko (1986) afirmam que esses conceitos são todos inerentes ao processo de produção da ciência. Para elas, o ato de criação não se reduz aos processos cognitivos, racionais, a provas e erros. É necessário, também, que se levem em conta os elementos não conscientes, como a intuição, a imaginação e o acaso. Não se trata de cair em uma visão da criação como atividade arbitrária e livre da ação do homem, anulando o papel da consciência, mas de superar a ideia de criação como algo eminentemente racional, que se realizaria e se deduziria preponderantemente pela razão.

Um dos temas destacados pelas autoras no processo criativo é a imaginação. Para elas, o poder de imaginar é inato ao humano, sem o qual não seria possível o trabalho e a criação, uma vez que a imaginação permite relacionar elementos sensoriais e racionais do saber. O sentido heurístico da imaginação se mostraria, ainda, na possibilidade de estabelecer conexões entre diferentes temporalidades, entre acontecimentos presentes, passados e futuros, de modo a criar possibilidades para que a imaginação, em seu vínculo com o tempo, possa potencializar, na vivência dessas temporalidades, elementos ilusórios, inventados em meio a conexões que não têm, necessariamente, analogia com a realidade.4

Não se iludam, não me iludo

Tudo agora mesmo pode estar por um segundo

Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei

Transformai as velhas formas do viver

Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei

Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei

(GIL, 1984).

Apesar de o discurso hegemônico moderno (NAJMANOVICH, 2001) ter pretendido exterminar a imaginação, a intuição, os erros, os sonhos, os absurdos e as fraudes da produção cientifica, inúmeros são os exemplos da força dessas dimensões do pensamento humano nessa produção. Trata-se de outra história da ciência contada por autores e autoras que se situam a partir de outros referenciais que não aqueles consagrados pela própria racionalidade moderna. Trata-se de pensar a produção científica a partir, quem sabe, de uma didática da invenção:

Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios. Repetir, repetir - até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo. As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul - Que nem uma criança que você olha de ave. Lembro um menino repetindo as tardes naquele quintal

(BARROS, 1993).

Nessa direção, nos cursos de Mestrado e de Doutorado em Educação fomos nos dando conta de que a racionalidade moderna ocupa um lugar privilegiado na sociedade, situando-se como resultado decorrente da luta do homem contra as concepções sustentadas pelos dogmas religiosos. O discurso moderno passou a ser referência em oposição ao religioso, dominante até então. Com as luzes (FOUCAULT, 2015), o poder do discurso religioso começa a declinar sem, no entanto, desaparecer. Prescindindo da hipótese mágico-divina e fortalecida pelo determinismo rigoroso e absoluto, o discurso hegemônico moderno objetivava explicar tudo.

Assim, a modernidade estaria não só em condições de fundar uma ética comum, mas também de possibilitar aos homens viver melhor, tanto nos termos do conforto oriundo de seus benefícios, quanto na definição da verdade sobre tudo o que nos cerca. Em sua defesa de uma lógica cognitivo-instrumental, o discurso hegemônico moderno validou a técnica voltada para a dominação e a manipulação da natureza, sem contar que essa dominação resultaria na dominação e no extermínio da própria vida (SANTOS, 2000).

Se, no discurso hegemônico da modernidade, a razão também produziu mecanismos de opressão da raça humana, os discursos da ciência pós-moderna têm nos alertado no sentido de buscar garantir a perpetuação da espécie em uma proposta de encantamento do mundo. Encantar-se como escuta poética da natureza, um processo de produção e de invenção. Encantamento possível até onde, de fato, acreditemos que também as ideias conduzem o mundo..

Ciente de que as ciências também se fazem com sonhos e ideais, todo um grupo de pesquisadores de diferentes áreas tem conspirado em favor de um conhecimento prudente para uma vida decente (SANTOS, 2000). Uma ciência que possa se ver como capaz de proporcionar melhores condições de vida aos seres humanos, comprometida que está com a produção de mundos possíveis de vidas bonitas.

Voltando às lembranças escritas-inventadas de nossa formação pensamos que, mesmo com todo o amadorismo e ingenuidade de nossas vivências cotidianas naquele laboratório no quintal de nossa casa, havia um sentimento que nos movia e que se nutria da criatividade, da ludicidade e do prazer pela condição de enredar ação, imaginação e emoção. Nesse sentido, é interessante pensar que, no Curso de Doutorado, tivemos a oportunidade de ler, por indicação de nosso orientador, Alberto Vilanni, o livro “A vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos”, de Bruno Latour e Steve Wolgar, publicado em 1997.

Na obra, Latour (1997) se situa em uma vertente da história da ciência que se opõe às ditas correntes macrossociológicas, ao propor uma abordagem de pesquisa que considera o cotidiano vivido pelos pesquisadores na produção científica. O mais curioso é que, apesar de Latour (1997) fazer referência às formas de convivência nos diferentes espaços-tempos de um laboratório (espaço para lanches, cozinha, cafezinho etc.), em suas análises ele não levou em conta, por exemplo, as conversas informais, os pequenos gestos e acontecimentos que se dão nesses outros espaços-tempos, priorizando apenas o espaço formal do laboratório.

A observação que fizemos em relação à visão de cotidiano de Latour (1997) só foi possível porque, ao mesmo tempo, estávamos lendo, por sugestão de Nilda Alves, o livro “A invenção do cotidiano I: artes de fazer”, de Michel de Certeau (1994), para quem o cotidiano tem uma dimensão político-inventiva imanente, não se reduzindo a um lugar físico. Ou seja, há uma epistemologia inventiva do cotidiano que, a nosso ver, Latour (1997) não viu.

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra

(ANDRADE, 2002, p. 3).

A experiência no magistério e a entrada para o mestrado em educação

No mesmo ano em que iniciamos a graduação em Física, começamos a trabalhar como professor monitor5 de Matemática do Ensino Fundamental na Escola Estadual Itagiba Escobar no município de Cariacica, no Estado do Espírito Santo. Com uma carga horária semanal de 30 horas e cursando, em média, cinco disciplinas por semestre, revezávamo-nos entre as salas de aula da universidade e da escola pública, além de atuar na monitoria de disciplinas, e ainda participar de eventos, como a 33ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (UFBA, 1981) e o V Simpósio Nacional de Ensino de Física (UFMG, 1982), e de ajudar o Centro Acadêmico de Física Galileu Galilei, tendo sido orador dos formandos de 1982.

Ainda em 1982, concluída a licenciatura, continuamos como professor contratado do Estado e fomos efetivado por decreto, uma vez que não havia concurso, na Rede Municipal de Ensino de Vitória, atuando em diferentes escolas até a nossa entrada para o Mestrado em Educação da UFF, em 1985. Foi um período de intensa atividade docente, trabalhando, por vezes em três turnos, em contextos socioeconômicos diversos, o que nos ajudou a ampliar e a potencializar, ainda mais, nossa relação de trabalho-afeto com a escola pública. Uma relação pautada por um compromisso ético-estético-político com todos e todas que nos ajudaram em nossa caminhada. Um sentimento de eterna gratidão, de uma saudade que não tem fim, de uma dívida impagável com o ensino público, que tantas lembranças e alegrias nos deram.

Lembranças das professoras e dos professores mais próximos, dos estudantes mais queridos e também dos mais odiados. Lembranças do cheiro da merenda, do dia da vacina, dos castigos, das brigas, do barulho das salas, do suor das aulas de Educação Física, do hino cantado às quintas-feiras, das gritarias e empurrões nas filas, das reuniões com os pais, do conselho de classe. Lembranças dos ensaios da quadrilha, dos concursos de rainha da primavera, das festas surpresa nos aniversários e nas comemorações no Dia do Mestre e do Estudante. Lembranças de cheiro de álcool das provas rodadas no mimeógrafo, das torcidas nos jogos e gincanas das turmas, das aventuras nos passeios, do primeiro beijo, do primeiro amor. Lembranças recentes6 por ocasião de nossa pesquisa, como a homenagem feita pela turma de 8a série, em uma formatura comovente e singela quando, do pequeno pátio da escola, os alunos, emocionados, cantaram pela janela da sala dos professores:

Já está chegando a hora de ir, venho aqui me despedir e dizer

Que em qualquer lugar por onde eu andar, vou lembrar de você

Só me resta agora dizer adeus, e o meu caminho seguir

O meu coração aqui vou deixar, não fique triste se acaso eu chorar

Mas, agora, adeus... (CARLOS, 1974)

Cenas que tecem diferentes tempos-espaços cotidianos, que não saem das nossas memórias e são atualizadas cada vez que falamos sobre elas. Lembranças que marcam essa nossa vida de professor e que se confundem com as histórias que são narradas pelos sujeitos com os quais pesquisamos.

Lembranças que ficam na tristeza pela despedida dos colegas quando o ano termina e na alegria de conhecer, a cada início de ano, um novo amigo. Lembranças que moram na saudade que temos dos nossos tempos de escola que nunca vão embora. Tempos que sempre se atualizam e não nos deixam esquecer que nossa história se confunde com a da escola pública.

Por tanto amor, por tanta emoção

A vida me fez assim

Doce ou atroz, manso ou feroz

Eu, caçador de mim

Preso a canções

Entregue a paixões que nunca tiveram fim

Vou me encontrar longe do meu lugar

Eu, caçador de mim

(MAGRÃO; SÁ, 1981)

Movido, então, pelas experiências de afeto e de compromisso político e, também, pelo sentimento de esperança por um mundo melhor, entramos para o Curso de Mestrado em Educação da UFF, na Área de Métodos e Técnicas de Ensino, em março de 1985, a partir de uma licença com vencimentos.7 Na ocasião, já tínhamos uma experiência de oito anos como professor de Matemática e de Física em escolas públicas, tendo participado, uma única vez, de uma reciclagem de professores, expressão usada na época para se referir à formação continuada de educadores.8

Também não havíamos recebido qualquer orientação didática e/ou político-pedagógica das equipes das Secretarias de Educação para as quais trabalhávamos, a não ser uma listagem de conteúdos curriculares de Matemática organizados de 5ª a 8ª séries, usada pela Secretaria Municipal de Educação de Vitória (SEME/PMV).

Assim, as referências teóricas que tínhamos da área educacional, até a entrada para o mestrado, reduziam-se às leituras feitas nas disciplinas cursadas no Centro Pedagógico da Ufes que, de modo geral, se voltavam ou para a psicologia piagetiana da aprendizagem ou para temas correlatos ao tecnicismo.

À época do mestrado, a temática que vigorava na educação se referia ao processo de construção do conhecimento, pensado não só a partir do enfoque cognitivista (Piaget) mas, sobretudo, da prática social (Vygotsky), tendência que nos parecia mais instigante, até por conta das experiências vividas por nós tanto no científico quanto na licenciatura.

Além disso, nosso envolvimento com as leituras indicadas, sobretudo nas disciplinas cursadas com Nilda Alves, Regina Leite Garcia, Gaudêncio Frigotto e Victor Vicent Valla, aproximaram-nos da teoria do materialismo dialético, com ênfase à questão do conhecimento. Esta aproximação nos levou a propor um projeto cujo objetivo central era discutir a relação entre teoria e prática, de modo a nos aproximar ainda mais da discussão que nos rondava há tempos: a dicotomia conhecimento empírico x conhecimento sistematizado.

Outro fator determinante na constituição de nosso campo problemático de pesquisa, resultando em capítulo na dissertação, decorreu de nossa atuação como pesquisador, já no primeiro ano do curso de mestrado, no projeto de pesquisa "O cotidiano do livro didático: a articulação do conteúdo e do método nos livros didáticos”, coordenado por Nilda Alves, e que tinha como principal objetivo analisar as dez coleções mais compradas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), tendo como referencial teórico-metodológico o materialismo dialético,9 resultando em nossa primeira publicação em um periódico (FERRAÇO, 1987).

Concluído o projeto sobre o PNLD, fomos convidado a participar, como auxiliar de pesquisa pela área de Física, do projeto "Formação de professores para as primeiras séries: proposta de ação e de pensar”,10 também coordenado por Nilda Alves, cujo objetivo central era realizar, em escolas de diferentes municípios do Rio de Janeiro, momentos de formação continuada. Pensando, hoje, sobre como íamos para as escolas envolvidas com essa pesquisa, nos damos conta de que já estávamos praticando, mesmo sem nomear como tal, as pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares e, mais que isso, com o uso das conversas como procedimento metodológico de “coleta” de dados. Em diferentes ocasiões, fazíamos rodas de conversas nas escolas, de modo a possibilitar que falassem, sem hierarquias ou necessidade de autorização, sobre questões afetas às necessidades e aos problemas enfrentados.11

Se podemos inferir que a primeira experiência de pesquisa no mestrado nos ajudou, mais diretamente, na definição de nosso tema da dissertação, também é possível afirmar que nossa segunda experiência como pesquisador nos estimulou a propor uma metodologia que ia ao encontro da criação de alternativas para os problemas enfrentados nas salas de aula pelos praticantes das escolas, isto é, problematizava questões que emergiam nos cotidianos das escolas pesquisadas, o que, de certo modo, pode ser visto no texto da dissertação:

Como pudemos observar, a nossa entrada para o cotidiano da escola foi algo que veio se dando de forma gradativa, ao longo desses anos, e que continuará se dando depois de nossa saída. Ou seja, a nossa ação direta no cotidiano da escola, na sala de aula, aconteceu à medida que nossa presença nesses espaços foi necessária, no sentido de acompanhar, assessorar, avaliar e planejar as atividades desenvolvidas por professores, especialistas e alunos. Em momento algum entramos na escola sem o respaldo dos profissionais que lá atuavam (FERRAÇO, 1990, p. 128).

O tempo de moradia no Rio, além das atividades do mestrado, também nos proporcionou realizar alguns sonhos, como voltar a jogar voleibol e desfilar em uma escola de samba.12 Um tempo de bons encontros, de uma vida bonita e cheia de planos futuros. Tudo ainda estava por vir, pensávamos nós... Um tempo de ir à praia em plena segunda-feira, de fazer curso de modelo e manequim, de ir para Niterói de barca, de tomar chopp escuro no Amarelinho. Um tempo do carioquês e dos encontros sempre animados na casa de Nilda.

Toda despedida é dor.

Tão doce, todavia,

Que eu te diria boa noite.

Até que amanhecesse o dia

(SHAKESPEARE, 1998)

O retorno à Secretaria Municipal de Educação de Vitória (SEME/PMV)

Com a defesa do Mestrado retornamos, em março de 1989,13 à Secretaria Municipal de Educação de Vitória, quando então fomos convidado a compor a equipe do Departamento de Ensino, ficando responsável por assessorar as escolas a partir das demandas que chegavam e, também, contribuir com o trabalho da coordenação de área de Matemática. Em novembro de 1990, assumimos a chefia da Divisão de Orientação Pedagógico-Educacional, ficando no cargo até janeiro de 1993, quando ocupamos a Direção do Departamento de Ensino, até a nossa entrada como professor da UFES, em março de 1994.

O Curso de Mestrado possibilitou-nos desenvolver várias ações na SEME/PMV sobre formação e currículo, forçando-nos a pensar movimentos de composição desses campos tendo como principal referência teórico-epistemológica a visão construtivista do conhecimento. No entanto, à medida que frequentávamos as escolas de modo a interagir com os acontecimentos e as experiências que insurgiam em seus cotidianos, começamos a considerar a necessidade de uma teorização outra que assumisse as dimensões de diferença, de multiplicidade e de acaso das práticas realizadas pelos sujeitos que lá estavam sob a tutela do construtivismo.

Não se tratava de negar, mas de problematizar a visão construtivista do conhecimento, de complexificá-la, de ampliar suas possibilidades para além dos limites estabelecidos pelos textos prescritivos curriculares, inclusive os que ajudamos a escrever. Tratava-se de tentar trazer para as prescrições curriculares pistas do que estava sendo vivido nos cotidianos das escolas pelos sujeitos praticantes, meio que caracterizando os textos das propostas não apenas como prescrições, mas também como descrições efêmeras do vivido. Enfim, tratava-se do movimento, nomeado mais tarde por Alves (2001), de virar de ponta-cabeça, no qual a teoria é vista como limite da prática e não como forma de explicá-la e/ou prescrevê-la.

Ou seja, mesmo que não nos déssemos conta do ponto de vista teórico-metodológico, nossas problematizações indicavam a necessidade de uma epistemologia sustentada, como já dito, pelas dimensões de multiplicidade, de diferença e de acaso para as relações estabelecidas na produção dos conhecimentos, de modo a defender que não se trata de uma “construção”, nem arquitetônica e nem mesmo com aporte no social, mas de uma tessitura de múltiplos fios, de redes de saberes-fazeres, ideias já presentes nos grupos de pesquisa do mestrado e que foi ampliada com a disciplina Tópicos de Epistemologia, ministrada por Nilson José Machado em nosso primeiro semestre do Curso de Doutorado.14

A entrada como professor na UFES e o Doutorado em Educação na Universidade de São Paulo (USP)

Nossa entrada para o Departamento de Supervisão e Administração Escolar do Centro Pedagógico (Dase/CP) se deu em 8 de março de 1994, após um longo e exaustivo processo de seleção para uma única vaga a um total de 14 candidatos. Sendo o concurso na área de administração escolar, a bibliografia incluía muitos autores cujas obras desconhecíamos, fato que nos levou a ficar um bom tempo isolados fazendo leituras. Ao ser nomeado, ministramos disciplinas em diferentes licenciaturas e em cursos de especialização, ao mesmo tempo em que nos dedicávamos a continuar nossos estudos nos campos do currículo, da formação inicial e continuada e do ensino-aprendizagem. Esses temas compuseram os campos problemáticos das pesquisas que coordenamos na época: “Conhecimento curricular de matemática: os eixos científico, lúdico, pragmático, econômico, cultural e político” e, “O ensino de matemática na pré-escola e no 1º grau: análise do desempenho de professores e alunos”.

Finalizado o período de estágio probatório, candidatamo-nos ao processo seletivo do Curso de Doutorado em Educação da USP, tendo sido aprovado na área de concentração de Didática, sob a orientação do professor Alberto Villani, com início em março de 1996. Nos três primeiros meses, em função de ainda termos atividades na UFES, viajávamos semanalmente para São Paulo para frequentar as disciplinas. Após três exaustivos meses de deslocamentos com 14 horas de viagem, decidimos morar em São Paulo, quando, então, pudemos experimentar uma sensação de anonimato e, ao mesmo tempo, de fascínio por uma cidade que acontece por todos os cantos e momentos. Uma metrópole que faz diferir o aparente mesmo e que faz o esperado ser acaso.

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto

É que Narciso acha feio o que não é espelho

E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho

Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo

Afasto o que não conheço

E quem vem de outro sonho feliz de cidade

Aprende depressa a chamar-te de realidade

Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso (VELOSO, 1978).

Morando em São Paulo nos foi permitido participar intensamente do cotidiano das atividades do doutorado, bem como explorar a própria cidade em termos de tudo o que ela tinha a nos oferecer. Agenciados, então, pelos sentimentos de estranhamento, de anonimato e de encanto pela cidade, permitimo-nos vivenciar as diferentes redes possibilitadas pelo Curso de Doutorado e, também, de outras tantas que, cotidianamente, nos faziam sentir a potência das dimensões de incompletude, caos e acaso que nos produzem.

Pensamos que as experiências-encontros que tivemos com os diferentes espaços-tempos da grande metrópole foram fundamentais não só para a composição dos sentidos que produzimos com as leituras que fizemos no curso mas, sobretudo, foram determinantes na constituição do campo problemático que fez insurgir nossa tese de doutorado. De fato, é como se as vivências em meio às redes cotidianas de escrituras da cidade, que se entrecruzavam compondo histórias múltiplas, sem autorias nem espectadores, como disse Certeau (1994), nos forçassem a pensar o tema da pesquisa de modo a explodir as objetificações, identificações e representações de escola, fazendo com que o objeto-tema “currículo” se pulverizasse, se diluísse e se expandisse pelas redes de escrituras da cidade, se enredasse às multiplicidades e diferenças que compõem os espaços-tempos praticados pelos sujeitos.

Ou seja, a condição de nos assumirmos como sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do conhecimento que produzimos possibilitou-nos, mais uma vez, problematizar as dicotomias teoria x prática e homem x natureza, forçando-nos a buscar outras possibilidades para pensar o currículo. Não se tratava de afirmar um sentido fenomenológico, mas de apostar em uma dimensão que o considerasse em meio às efemeridades, multiplicidades e insurgências que se instituem cotidianamente e com as quais estamos, de algum modo, envolvidos.

Se pensarmos na multiplicidade dos contextos com os quais vivemos, como aqueles experimentados-praticados em São Paulo, e nas relações estabelecidas nesses contextos entre conhecimentos, ações, afecções e produção de desejos, vamos assumir, de fato, que currículo não se reduz a um documento prescritivo, mas sim tem a ver com a produção de um campo de experimentações efêmeras e que, portanto, são impossíveis de serem antecipadas e não se deixam capitalizar. Currículos em redes, que só são possíveis de serem pensados em suas tessituras, em suas insurgências, em seus efeitos e suas expansões, uma vez que são fugidios, imprevisíveis, heterárquicos, múltiplos, efêmeros, metamorfoseados, permanente devir que não pode ser antecipado, nem planejado, muito menos idealizado ou prescrito.

Agenciado, então, pelas vivências no doutorado, interessou-nos propor uma pesquisa que pudesse afirmar nosso compromisso ético-estético-político com a escola pública, como fizemos no mestrado. Uma pesquisa que fosse uma forma de elogio e uma aposta política na força dos educadores e dos estudantes que, a cada dia, inventam a escola pública. Uma tese que expressasse nossa gratidão por tudo que a escola pública nos possibilitou e, também, que assumisse o seu cotidiano como espaço-tempo de produção e de tessitura de micropolíticas de currículo e de formação, constituindo-se como resistência às políticas governamentais que são impostas a esses cotidianos e que, recorrentemente, desqualificam os seus praticantes. Com isso, “Escola Nua: ou sobre a força e a beleza das ações cotidianas” (FERRAÇO 2000) nos pareceu, no momento, um título que pudesse dar conta de nossa proposta de invenção de outros discursos sobre a escola pública e, por efeito, pudesse inventar outros mundos.

Mundos mais solidários, mais fraternos e plurais, comprometidos com a produção de vidas bonitas. Vidas em que o exercício da diferença esteja não na submissão e anulação do Outro, mas na força dos bons encontros que tornam o conhecimento o mais potente dos afetos, pois, afinal, ninguém sabe ao certo a resposta da questão: “o que pode um corpo?”, posta por Espinosa (DELEUZE, 2002).

Um ano antes de findar o prazo do doutorado, decidimos voltar para Vitória para que pudéssemos estruturar nossa vida e, aos poucos, nos acostumar com a despedida de São Paulo, o que nunca conseguimos totalmente. Despedida dos encontros do grupo de pesquisa, das horas que ficávamos no ônibus a caminho da USP e das leituras feitas pra passar o tempo. Despedida das caminhadas no Ibirapuera, das exposições de arte, das feiras de artesanato, das performances de rua, das peças de teatro e dos espetáculos de dança.

Despedida do tempo que, de repente, fazia noite ao meio dia anunciando temporal. Despedida dos metrôs superlotados, da corrida de São Silvestre, das livrarias da Paulista, dos camelôs e do raio de sol na varanda do apartamento no Largo do Arouche que nos fazia lembrar de Vitória. Despedida da turma do vôlei jogado às terças e quintas no SESC, cujas lembranças sempre são atualizadas em nossas conversas na tentativa de (re)viver o que nos movia a estar lá, completamente tomados pelo simples prazer de jogar. Despedida da noite gay paulistana, onde conheci o Marco, com quem estou casado há 25 anos.

Era um rapaz, estranho e encantador rapaz Ouvi que andara a viajar, viajar, toda a terra e o mar Menino só e tímido, mas sábio demais.

Eis que uma vez, num dia mágico o encontrei E ao conversarmos lhe falei sobre os reis, sobre as leis, e a dor E ele ensinou... Nada é maior que dar amor e receber de volta o amor.

(AHBEZ, 1979)

Despedidas são sempre difíceis, mas são necessárias para que possamos viver a sensação de que o universo, com seus acasos, sempre nos reserva algo diferente e que nos diz que sempre vale a pena seguir em frente. Seguir em frente de um jeito diferente, nem melhor nem pior do que o antes vivido. Seguir em frente para que a vida valha a pena!

Sou apego pelo que vale a pena

e desapego pelo que não quer valer. Acho que devemos fazer coisa proibida

- senão sufocamos. Mas sem sentimento de culpa

e sim como aviso de que somos livres. Te nho que ter paciência para não me perder dentro de mim:

vivo me perdendo de vista.

Preciso de paciência porque sou vários caminhos,

inclusive o fatal beco-sem-saída

(LISPECTOR, 2004)

1Bolsista produtividade de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

2Por uma questão estética, durante a escrita usaremos, alternadamente, a primeira pessoa do plural e a primeira pessoa do singular.

3A dicotomia “conhecimento empírico x conhecimento sistematizado” nos acompanhou durante boa parte de nossa formação. Foi nosso objeto de estudo na pesquisa de mestrado, cujo título expressa a solução encontrada, naquele momento, para a dicotomia: “Conhecimento empírico x conhecimento sistematizado: a busca por uma unidade entre teoria e prática no ensino de matemática e ciências (física) no 1º segmento do 1º grau”.

4Muito tempo depois como professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFES, ampliamos a discussão do acaso na produção científica com a obra “A sabedoria do caos”, de Jonh Briggs e David Peat (2000), e, ainda, a discussão sobre a invenção e a intuição no conhecimento, com Virginia Kastrup (1999) na obra “A invenção de si e do mundo”, e com Henri Bergson (1990) em “Matéria e memória”.

5Na época, essa era a designação usada pela Secretaria Estadual de Educação (SEDU) para se referir ao professor contratado por tempo determinado e que não tinha concluído a graduação. Como a área de Matemática possuía uma grande defasagem no quadro docente, sempre havia a possibilidade de contrato, cujo processo ficava sob a responsabilidade das escolas.

6Após 17 anos retornamos a essa escola e encontramos colegas de nossa época. Nada é mais gratificante para o professor que o reconhecimento pelo seu trabalho e o prazer de reencontrar velhos amigos de escola.

7Fomos um dos pioneiros, senão o primeiro professor da rede municipal de Vitória, a obter licença com vencimentos durante o Curso de Mestrado.

8Durante os oito anos de trabalho como professor nas redes municipais e estadual participei de uma única “reciclagem de professores”, cujo objetivo era a reorganização dos conteúdos de matemática de 5ª a 8ª séries.

9A pesquisa aconteceu de novembro de 1985 a outubro de 1986, na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso - Programa Brasil), com financiamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira do Ministério da Educação (INEP/MEC).

10A pesquisa foi realizada de novembro de 1987 a novembro de 1988 no Mestrado em Educação da UFF, com financiamento do MEC).

11Mesmo já praticando as pesquisas nos/dos/com os cotidianos há algum tempo, essa atitude só vai aparecer de forma instituída, isto é, publicada, a partir do livro “Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes”, organizado por Nilda Alves e Inês Barbosa de Oliveira em 2001.

12Nosso primeiro desfile foi no ano de 1986, na Caprichosos de Pilares, em uma ala com o nome de “Canariquitos”, dentro do enredo: Brazil com Z, não seremos jamais, ou seremos?

13Apesar de, oficialmente, retornarmos às nossas atividades na Secretaria de Educação em março de 1989, a realização de nossa pesquisa demandou nossa presença em Vitória durante todo o ano de 1988, uma vez que nossa produção de dados incluía a realização de oficinas, grupos de estudos, encontros e também assessorias na área de Matemática e Ciências aos professores das séries inicias do 1º grau de todas as escolas da rede municipal.

14Iniciamos o Curso de Doutorado em 1996 na USP.

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Recebido: 14 de Julho de 2020; Aceito: 21 de Setembro de 2020

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