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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75571 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Temporalidades na vida e na autoformação de uma professora-pesquisadora

Marlene de Alencar Dutra* 
http://orcid.org/0000-0001-5347-1381

Jacques Therrien* 
http://orcid.org/0000-0001-5458-365X

Silvia Maria Nóbrega-Therrien* 
http://orcid.org/0000-0001-7511-2507

*Universidade Estadual do Ceará. Programa de Pós-graduação em Educação. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: marlene.dutra@ifce.edu.br. E-mail: jacques@ufc.br. E-mail: silnth@terra.com.br


RESUMO

Delineamos como objetivo deste estudo apreender as temporalidades na vida e na formação na itinerância aprendente de uma professora-pesquisadora como dimensão autoformadora pela narrativa de si. O aporte teórico está fundamentado nas formulações de autores como Pineau (1983, 1987, 2004, 2005, 2006, 2012), Josso (2004) e Souza (2006). Constituímos uma investigação descritiva, matizada pela abordagem (auto)biográfica, com estreitamento para uma pesquisa-formação. A narrativa de si, por uma professora-pesquisadora, tomada como corpus hermenêutico crítico, resulta de um movimento heurístico e reflexivo em uma comunidade de pesquisa. Em uma ecologia cognitiva constituinte e constituída no exercício autopoiético, pelo investimento (auto)biográfico em que apreendemos a narrativa de si no processo de reflexividade crítica, reconhecemos uma estrutura complexa das dinâmicas nas temporalidades da vida e da formação, em movimento de intercompreensão de fluxos e de circulações de conhecimentos e saberes. Esse desvelamento de uma pesquisa-formação em processos auto-organizáveis, coletivos e partilhados, levaram-nos a uma ação pesquisante em empreendimento dos sentidos e dos significados, para além das amarras academicistas, encontrando o tempo para a nossa autoformação, que nos coloca em um paradigma antropoformador na constituição identitária docente.

Palavras-chave: Abordagem (auto)biográfica; Autoformação; Temporalidades na formação; Narrativa de si; Professora-pesquisadora

ABSTRACT

We have outlined as the objective of this study to apprehend the temporalities in life and training in the learning itinerancy of a professor-researcher as a self-education dimension through the self-narrative. The theoretical framework is based on the formulations of authors such as Pineau (1983, 1987, 2004, 2005, 2006, 2012), Josso (2004), and Souza (2006). We constituted a descriptive investigation, nuanced by the (auto)biographical approach, narrowing to a training-research. The self-narrative of a professor-researcher, taken as a critical hermeneutic corpus, results from a heuristic and reflective movement within a research community. In a cognitive ecology that constitutes and is constituted in the autopoietic exercise, through (auto)biographical investment in which we apprehend the narrative of oneself in the process of critical reflexivity, we recognize a complex structure of the dynamics in temporalities in life and training in movement of the intercomprehension of flows and circulation of knowledge and expertise. This unveiling of a training-research in self-organizing, collective, and shared processes led us to a research action in undertaking the senses and meanings beyond the academicist bonds, finding the time for our self-education, which puts us in an encounter with an anthropoformative paradigm in the constitution of the teaching identity.

Keywords: (Auto)biographical approach; Self-education; Temporalities in training; Self-narrative; Professor-researcher

Tempos, temperos e conversas introdutórias

A autoformação docente é compreendida a partir das transações de sentido com os “outros” (heteroformação) e dos elementos acontecimentais da Vida (ecoformação) criando um ambiente dialético de tensões multirreferenciadas na perspectiva de autonomização educativa, as quais podem promover a emancipação da pessoa do professor a partir de uma autonomia reflexiva e da reflexão sobre a autonomia (JOSSO, 2004; PINEAU, 2005). O encontro com o outro, favorece a alteração de si, a alteridade.

As transações de sentido, no decurso da vida, desvelam as itinerâncias aprendentes sobre as temporalidades da formação (PINEAU, 2004), a partir de um processo tripolar: o eu, o outro, e o meio (PINEAU, 1983, 1987, 2006), importante para o acesso à realidade dialética de um devir (trans)formador, de compreensão de si próprio e do mundo, em um movimento autopoiético (MATURANA; VARELA, 2001). A palavra Vida é dotada de força. Conforme afirma Bachelard (1996, p.154), “[...] qualquer outro princípio empalidece quando é possível invocar um princípio vital”.

Essa é a significação que assumimos como objeto da ação pedagógica e pesquisante: A vida e autoformação docente, que se inscrevem no e sobre o tempo, compreendido “como medida do movimento”, não apenas o tempo da sua “contabilização, sua média, mas também sua afinação, seu ritmo, seu tom, sua qualidade, seu sentido” (PINEAU, 2004, p. 13).

O exercício autopoético que nos conduziu a um investimento (auto)biográfico acerca de pensar a constituição do ser professor(a)-pesquisador(a), as transações da vida e a autoformação, partiu de reflexões tecidas no percurso de doutoramento, a partir da disciplina Escrita Acadêmica e Hermenêutica Crítica do Curso de Doutorado em Educação, no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) de uma universidade pública, no semestre letivo de 2018.2, em que nos questionamos: O que revela o investimento (auto)biográfico na constituição do ser professor(a)-pesquisador(a) em processo de autoformação? Como as temporalidades da vida e formação marcam as itinerâncias de professores(as)-pesquisadores(as), retirando deles as experiências fecundas que delineiam os caminhos heurísticos, metodológicos, científicos e epistemológicos para reconhecimento e pertencimento identitário?

Pondo em movimento os questionamentos circundados por nós, delimitamos como objetivo, para este estudo: Apreender os acontecimentos e as temporalidades na vida e formação, na itinerância aprendente de uma professora-pesquisadora, como dimensão autoformadora pela narrativa de si. Referimo-nos ao termo aprendente, conforme explicita Josso (2004), dando ênfase ao ponto de vista de quem aprende e ao seu processo de aprendizagem. Nesse investimento da relação singular-plural, realizamos o processo de escrita desse trabalho enfatizando a narrativa no singular (Eu) para explicitação das transações da professora-pesquisadora em sua constituição autoformativa e ampliamos as relações aprendentes no plural (Nós) em ideação de uma escrita reflexiva e colaborativa (DUTRA; FERREIRA; THERRIEN, 2019) com os demais (co)autores.

Dito de outra forma, em enredamento metafórico, desvelamos as temporalidades do cozer da vida e autoformação docente de uma professora-pesquisadora, cujas recordações-referências (JOSSO, 2004) sinalizam os cheiros, temperos, tempos, as provas, os dissabores, que conferem um sentido de sustento, magia, alquimia, aventura, força e resistência, em aventura pensante de experimentação de saberes e sabores. Desse modo, saboreamos uma dimensão concreta, ou visível, pautada para as nossas percepções, ou para as imagens sociais, e uma dimensão invisível, que apela para as emoções, os sentimentos, o sentido ou os valores.

Processos teórico-metodológicos em ebulição

Constituímos uma investigação descritiva, matizada pela abordagem (auto)biográfica com estreitamento para a pesquisa-formação, em que “[...] cada etapa da pesquisa é uma experiência a ser elaborada para quem nela estiver empenhado possa participar de uma reflexão teórica sobre formação e os processos por meios dos quais ela se dá a conhecer”, nos ensina Josso (2004, p. 141).

A narrativa de si, feita por uma professora-pesquisadora, é tomada como corpus hermenêutico crítico, resultante de um movimento heurístico e reflexivo a partir de uma comunidade de pesquisa constituída por professoras-pesquisadoras em doutoramento, no PPGE, cuja disponibilidade de “sentir-pensar” (MORAES; TORRE, 2018) os acontecimentos e as temporalidades na vida e formação docente produziram interrelações entre o saber dialógico e a racionalidade da práxis (THERRIEN, 2006), conduzindo-nos à materialização sensível do processo de constituição da narrativa de si, por meio de um diário reflexivo biográfico, que nos levaram às questões apresentadas na seção anterior.

Dito isso, desejamos pôr em evidência os acontecimentos e as temporalidades na vida e formação, como registros de expressões do vivido pela narrativa de si feita por uma professora-pesquisadora, cuja elaboração se deu em função de sensibilidades particulares em dado período (JOSSO, 2004). Sobre as expressões do vivido, Delory-Momberger acrescenta que:

A percepção e o entendimento do seu vivido passam por representações que pressupõem uma figuração do curso de sua existência e do lugar que nela pode ocupar uma situação ou um acontecimento singular. Essa atividade de biografização aparece assim como uma hermenêutica prática, um quadro de estruturação e significação da experiência por intermédio do qual o indivíduo atribui uma figura no tempo, ou seja, uma história que ele reporta a um si mesmo. Esses espaços-tempos biográficos não são, entretanto criações espontâneas nascidas unicamente da iniciativa individual: trazem a marca de sua inscrição histórica e cultural e têm origem nos modelos de figuração narrativa e nas formas de relação do indivíduo consigo mesmo e com a coletividade, elaborados pelas sociedades nas quais se inscrevem (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 27).

Desse modo, a apreensão dos acontecimentos e as temporalidades na vida e na formação pela narrativa de si, da professora-pesquisadora, evocam uma relação de práxis social, como sujeito-autora, estruturam e significam a experiência vivida, marcando sua inscrição histórica e cultural. Utilizamos, para análise da narrativa, a figuração da “leitura em três tempos” proposta por Souza (2006, p. 79), por considerar o tempo de lembrar, narrar e refletir sobre o vivido. E apresentamos como leitura temática, em inferência das unidades de análises descritivas: O cozer da vida e seus interiores, implicações da existência e subsistência na infância e adolescência; A vida e o cozer de uma professora pesquisadora: Implicações organizadas de resistência na vida adulta, cujo investimento interpretativo-compreensivo se move nas seções que seguem, e nas quais assumimos a voz verbal do Eu, dando relevo à dimensão singularizante da professora-pesquisadora, mas não perdendo de vista o plural, que se constitui nas notas/reflexões de introdução e (in)conclusão.

O cozer da vida e seus interiores: implicações da existência e subsistência na infância e adolescência (1973 a 1989)

Onde você nasceu? “Na cama de vó”. Essa é minha naturalidade. Até hoje, quando alguém me faz essa pergunta, seja em repartições públicas, cadastros on-line, ou conversas informais, essa é a resposta que vem à minha mente automaticamente. No dia 16 de maio de 1973, às 13h00min, nasci na cama de vó, o que me trouxe a força e o aconchego de uma pernambucana que cuidou de mim, mimou, castigou e colaborou com a minha educação de Menina de Vó. Pois foi com ela que primeiro reconheci o amor maternal, uma vez que minha mãe não tinha maturidade para essa experiência, que dela usurpava a mocidade e impunha a realidade de construir uma família.

Assim, neta de pernambucana, filha de uma baiana e um carioca, ainda pequena, fui entendendo as diversidades regionais deste imenso país, em uma cidadezinha do interior baiano, que meus olhos de criança definiam como o mundo. Santa Bárbara (Bahia) não só dava nome ao meu mundo, mas era padroeira e, para ela, todas as honras e homenagens. A Mãe do Entardecer, como também é reconhecida no candomblé, Santa Bárbara assim é saudada: Oyá, Iansã!!! Mulher guerreira e forte que, com seu tabuleiro, criou seus filhos vendendo quitutes no mercado.

Rodeada pela força e determinação dessas mulheres, é que da cama de vó, fui viver minha meninice e juventude nas cozinhas de “minhas mães”, cujo plural representa a duplicidade maternal sobre a relação do Eu. Essas cozinhas são demarcações de espaços que possibilitam “tridimensionar o tempo (passado, presente e futuro)” (FREIRE, 2019) em busca do ser mais: os bolos cheiros, os doces de ambrosia, pastéis, bananas-reais, requeijão de corte, goiabada cascão, doce de leite... eram diariamente preparados para abastecer o Bar e Restaurante Recife, no qual minha vó criou seis filhos. Foi também nesse ‘bar de beira de estrada’ que minha vó separou uma área e deu para ‘mainha e painho’ constituírem nossa família com dignidade, sem depender dela.

E era lá na cozinha que eu sempre apreciava as panelas imensas, os caldeirões, as prateleiras cheias de alumínio, que brilhavam mais do que espelho. Catar feijão era uma das minhas tarefas. Confesso que, no primeiro quilo, até que era bom, mas quando eu achava que ia terminar, lá chegava mais outro, outro, até completar cinco quilos, colocados em partes, para a tarefa não ser rejeitada de imediato. Mas, a melhor parte, era o agrado.

Com esses pequenos serviços, ganhávamos (os primos) pedaços de carne, verduras e temperos, para preparar nosso próprio cozido. Aí, o quintal se transformava em festa, pois era no fogão a lenha, no fundo da casa, que fazíamos nossas primeiras receitas. Não me lembro se comíamos, mas guardo a alma alimentada por essas aventuras. A estratégia de dosar as tarefas dadas, desafiar os limites e garantir recompensa não era ação de quem estudou o comportamentalismo ou outras teorias de aprendizagem. Eram, sim, estratégias de mães que sempre diziam estar nos preparando para a vida. Nascer e crescer na cozinha de um restaurante de beira de estrada não me trouxe apenas o gosto pela cozinha. Ali, fui criada, entre funcionários, pedintes, viajantes, e uma multiplicidade de histórias, que só quem é educado em um lugar de trânsito consegue entender e sentir a força e influência da comunicação, do silêncio e silenciamento.

Foi-se o tempo a passar e, entre temperos, cheiros, sabores, doces, amores e desamores, acompanhava as estações do ano e as colheitas de época, que garantiam anualmente suculentas iguarias, as quais rendiam lucros para a complementação do orçamento, assim como alegrias e aventuras para toda a ‘primalhada’ (eram muitos os primos, e todos vizinhos de rua, casa grudadinha e brincadeira cotidiana do amanhecer ao anoitecer).

Teve o tempo do doce de umbu. Isso implicava a colheita nos umbuzais, hoje em extinção. Sacas eram cheias e levadas para serem lavadas, trabalho da criançada. Depois, a massa era cozida, misturada ao açúcar, na medida de dois para um. Agora, sim, o tacho estava pronto para ir ao fogo. E, no fogo, acontecia a magia, havia um misto de ansiedade e medo despertado pelos sentidos do cheiro doce perfumando a casa, envolvido na expectativa para raspar a panela e sentir aquele azedinho a invadir as papilas e acertar em cheio meu cérebro.

Tivemos o tempo do doce de umbu de corte (transparente e verdinho), do doce de caju (com calda grossa e polpa durinha), do queijo de coalho feito em casa quando da fartura do leite, dos bolos de puba e aipim, das pamonhas (nos festejos juninos), das linguiças suíças produzidas com a carne dos porcos criados no quintal, dos geladinhos de fruta da estação, dos licores... e aqui a memória fixa-se nos licores e escapa a lista, que tento compor, mas, como sei que poderei retomar essas recordações-referências (JOSSO, 2004), vou me embebecer com as lembranças do licor.

Nos primeiros anos, achava estranho que lá em casa estivesse sendo feito licor para vender. Uma bebida alcoólica que não tinha relação com as comidas, os doces, salgados, as costuras e os artesanatos que invadiam a minha infância como brincadeiras e lições de vida. Isso porque, com cada nova experiência e aprendizagem do ofício ensinado, eu passava a valorizar as pequenas coisas, cuidar dos detalhes, da delicadeza e pensar no outro, respeitar quem iria, de alguma forma, apreciar, ou mesmo se embelezar com nossas artes. Mais uma vez, minhas mães apresentavam, para mim, “o ofício sem saber” (GAUTHIER, 2014), os quais despertavam em mim a estética, ética e as contradições da vida.

Mas, e o licor? Minha Vó nunca bebeu e se orgulhava de trabalhar em um restaurante bar e nunca ter colocado “um gole de álcool na boca”. Realmente, em seus 92 anos de vida, eu não tenho lembrança de nenhuma festa em que ela tenha bebido, nem mesmo a taça de vinho da Semana Santa, no período pascoal. E a contradição? Para fazer o licor, ela precisava provar, apreciar e chegar ao ponto certo da cachaça. Isso me incomodava, era um ato marginal, inclusive, porque, por ser criança, precisava sair da cozinha, pois só o cheiro já embebedava.

Cheiro de jenipapo (que ficava na infusão durante um ano), cajá, maracujá, tamarindo, moscatel, e de rosas vermelhas. Sim, de rosas. Colhíamos as rosas no jardim de casa e ela preparava uma infusão alcoólica capaz de perfumar o hálito de quem bebe demais. Essa era uma renda certa, todos os anos, pois vendíamos muito licor e ficou a tradição. De todas as artes e feituras, essa foi a que ela preservou até o fim da sua vida. O licor não tinha mais o mesmo sabor, o Alzheimer dava pontos e tons diferentes à bebida, que continuava sendo engarrafada. Pouco importava a degustação, mas seus clientes fiéis iam buscar seu licor e o dedo de prosa que era servido junto.

Agora, retorno à cozinha da minha outra mãe, a mainha! Ela era mãe dos meus irmãos, claro! Mas, foi e sempre será a Minha Mãe. Uma verdadeira guerreira, que fez dos seus dons e magias na arte de cozinhar a força para criar seus filhos e construir um casamento. Esse era o seu horizonte. Ninguém cozinhava como ela, tudo o que preparava tinha muito sabor, sabia pegar os ingredientes mais exóticos e transformar em iguarias. Da comida salgada aos doces de festa, era sempre chamada para os preparativos. A cozinha de Minha Mãe era uma festa, sempre com fartura e invencionices, que ela buscava aprender. Não me lembro dela me ensinando a cozinhar, sempre estive na cozinha tratando galinha, cortando tempero, salgando a carne, enrolando o pastel, batendo o bolo, dessalgando o bacalhau, ou, simplesmente olhando, ajudando e fazendo companhia. Pois, sim, éramos companheiras, cúmplices e amigas, nem parecíamos ter dezesseis anos de diferença, na idade. O ensinamento não foi por aulas sistematizadas e intencionais, mas por partilha, respeito e cumplicidade. Assim me sentia ao lado dela.

A intensidade de Minha Mãe transbordava em tudo o que ela fazia. E o exagero se fazia presente na cozinha, nunca conseguiu fazer pouca comida, pois sempre tinha a quem alimentar, com quem repartir, mesmo nos nossos períodos financeiros mais difíceis, ela compartilhava e acolhia quem estivesse precisando. Assim, minha casa também era espaço de trânsito e renascer de dignidade humana: a jovem que o pai colocou para fora porque não era mais virgem; o rapaz, homossexual, que não tinha emprego na cidadezinha do interior e foi contratado para ser o cuidador dos meus irmãos menores; a prima, também bissexual, que o pai expulsara de casa; a criança que não tinha onde ficar porque a mãe precisou ir para São Paulo tentar a vida. Todos e todas lá em casa tinham guarida e compreensão.

Essas realidades encontravam-se e desencontravam-se comigo, com minha infância, meninice e juventude. Cresci entre viajantes, andarilhos, pedintes, marginalizados socialmente, gente em busca de dignidade com suas multiplicidades de histórias.

Solidariedade, indignação com as injustiças sociais, respeito à diversidade e, sobretudo, ao ser humano, fui constituindo o meu ser não por palavras bonitas ou lições de moral, mas, sobretudo, pelo exemplo, pela percepção e reflexividade, que se apresentavam nas contradições e choques de gerações entre Minhas Mães, pois uma Vó-Mainha recriminava tanta “gente perdida” (assim, ela definia os marginalizados), que andava na minha casa e conosco convivia, e a Minha Mãe ponderava, argumentava e também se calava, mas continuava na desobediência resistente.

Assim era minha casa. Local de acolhimento, sensibilidade e apoio diante das injustiças. Lá sempre convivi com respeito e tolerância às diferenças, reconhecendo o valor e a importância de se impor em uma sociedade machista e patriarcalista. Apesar de toda a brutalidade do meu pai, para se impor, eu reconhecia que era minha mãe que conduzia os processos de ordenamento e construção do nosso ser. Nem ela sabia disso.

Minha Mãe foi uma referência de luta e coragem, contudo, não de professora, pois apesar de também ter feito o Magistério, nunca exerceu a profissão. Lembro-me de quando ela foi me matricular pela primeira vez na escola. Eu tinha apenas cinco anos. Era o ano de 1978. Ao retornar da escola, ela me contou, toda orgulhosa, que também havia se matriculado, pois precisava superar a relação de superioridade e poder que meu pai exercia sobre ela porque era mais estudado. Assim, tive o prazer de cursar a quinta série e estudar no mesmo prédio e horário em que ela fazia seu último ano de Magistério. Compartilhei com ela e seus colegas momentos de recreio e, no caminho de ida e volta para casa, o orgulho recíproco sempre nos acompanhou. Um turbilhão de sentimentos alimentava essa cumplicidade da relação mãe e filha. E se fez marcante em meu processo de alfabetização.

Não importava que minha professora de Alfabetização não conhecesse a psicogênese da língua escrita, a imagem de que ela era a melhor alfabetizadora do mundo acompanhou meu imaginário por todo o período inicial da minha formação docente. Ela trazia para mim um mundo de sonhos, brincadeiras e imaginação que não vivia em minha casa.

Descobrir a leitura por meio de processos mnemônicos não foi simples, porque gerava em mim um sentimento de farsa que me deixava inquieta e angustiada. Sentia uma culpa enorme, chegava a chorar sozinha, porque Minha Mãe e a Pró (assim chamamos, na Bahia, as professoras na Educação Infantil e no Ensino Fundamental) diziam que eu já sabia ler aos cinco anos de idade. Contudo, eu tinha consciência de que não era verdade (eu não sei como!). Lembro-me das lições da Cartilha Sodré, especialmente da primeira: ‘A pata nada’. Essa pseudo-leitura, própria do processo de aquisição da leitura e escrita, tornou-se, para mim, um grande tormento, por causa da minha relação afetiva com o Outro. Diante de tantas lições e palavras soltas, eu entendia que não sabia ler, tinha as palavras treinadas, na ordem ou fora da sequência, e me empenhava muito nesses exercícios de memorização para não decepcionar.

A Pró, nesse processo, tinha orgulho, mas de forma experiente também acolhia. Não me lembro de suas palavras, entretanto, tenho viva a lembrança do seu colo. E mesmo no movimento louco de frustação, culpa, medo e vergonha, elas não me imobilizaram, mas fizeram com que eu realmente vencesse as barreiras do processo de decodificação da escrita. Hoje, ainda sou assim, questiono meu saber, minhas verdades provisórias e tenho dificuldade em aceitar o que já constitui enquanto conhecimento. Um espírito inquieto e buliçoso, provocado pela exigente pessoa que vai se configurando em um rigor outro (MACEDO; PIMENTEL; GALEFFI, 2009), na vida e na profissão de professora-pesquisadora.

Assim, vou seguindo meus estudos, envolvida em leituras e frequentando os Grupos de Maria, na igreja católica. Catequista pelas localidades da zona rural, apenas com 10 anos, já iniciava minhas primeiras aulas (estudava, planejava e organizava cada momento dos encontros da catequese), as orações, parábolas e histórias do Novo Testamento, que eram interpretadas e discutidas com gente grande. Fui me acostumando a ter esses espaços para a oratória. Nesse contexto, a normalista foi se constituindo em percurso natural.

Em processo de desvelamento do mundo, comecei a estudar História da Educação, Sociologia, Filosofia, numa escola pública estadual administrada por freiras e com fortes marcas tradicionais e autoritárias. Nessa contradição, passei a não aceitar imposições e me tornei uma ‘rebelde domesticada’. Aqui, uma professora que eu tive, do Ensino Médio, exerceu papel fundamental. Uma paulista que chegou ao Nordeste e fez Curso Supletivo, cursou a universidade e passou a ensinar, por concurso, em uma cidade do interior.

Com essa professora, tive os primeiros contatos com autores clássicos da Sociologia e Filosofia e aqui descobri que o currículo é vivo. Ao ensinar Organização Social e Política Brasileira (OSPB), uma disciplina imposta pela ditadura militar, a professora contextualizou sua função, demarcou críticas e reconduziu o processo para a análise da conjuntura política da minha cidade e do país, que iniciava uma abertura política, contudo, a escola, no ano de 1989, ainda mantinha marcas implantadas pela Lei 5.692/1971 (BRASIL, 1971) que fixava as Diretrizes e Bases para o Ensino de Primeiro e Segundo Graus. A partir das exigências e rigorosidade dessa professora, comecei a estudar legislação educacional, elaborei um relatório de estágio sem as figurinhas decorativas (tradição no Curso Normal), isso porque era preciso relatar, analisar e fazer reflexão. Brigamos muito, porque ela me provocava a questionar a “autoridade” do professor e, no auge dos meus 16 anos, era um dos meus alvos preferidos.

O espírito questionador, inquieto e pronto para várias rupturas, constituem a professora primária que se torna normalista aos 16 anos de idade, ainda por completar os 17 anos (1990). Entre a negação de uma educação autoritária e o desejo de lutar contra as injustiças sociais, tive a juventude a meu favor, para alimentar meus sonhos e utopias de transformar o mundo.

Esses sentimentos contraditórios vêm cozendo as trajetórias de vida e alimentando a incompletude do meu ser. Assim é também a fome que se mantém diante da falta. Para Rubem Alves (2002, p. 1) “[...] é a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome”. Manter a fome insaciada é uma arte e a cozinheira tem que saber disso, para ativar o desejo, o afeto, o aparelho pensador e a fome, mesmo diante da comida, da fartura do banquete. E eu? Vou me constituindo resistência, me encantando e reencantando com a vida, em desvelamento de uma professora-pesquisadora.

A vida e o cozer de uma professora-pesquisadora: implicações de resistência na vida adulta (1991 a 2020)

Na alquimia das transformações dos alimentos, o tempo é senhor dos saberes e sabores. Respeitando esse senhor, conseguimos elaborar pratos mais intensos ou suaves. Nesse processo, o conhecimento/cozimento auxiliam nessa administração do tempo.

Como é de conhecimento, saber e sabor, em latim, têm a mesma etimologia, sapere, sapore, ter gosto. Curnonski citado por Barthes (1996, p. 21) diz que, na culinária, é preciso que “as coisas tenham o gosto do que são” e Barthes (1996, p. 21), a esse sabor no saber, complementa que “para que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras”.

Nesse contexto, no ano de 1991, ainda aos 16 anos, iniciei o Curso de Pedagogia, na Universidade Estadual do interior da Bahia. A graduação em Pedagogia foi intensa. Desde o primeiro ano participei como bolsista de projetos de extensão na área de Alfabetização. Fui monitora da disciplina de Filosofia da Educação e não podia deixar de me inserir no movimento estudantil, na direção do diretório acadêmico. E, para que tudo isso se justificasse e tivesse sentido para mim, era necessário um desdobramento que garantisse o compromisso e a participação efetiva em sala de aula.

A universidade, em meu processo de formação inicial, foi e está sendo fundante da professora que sou. Tenho imenso orgulho de ter me formado em uma instituição pública que me ensinou a importância do Ensino, da Pesquisa, Extensão e do Movimento Estudantil na formação profissional e pessoal.

No chão da sala de aula, vivenciei experiências extraordinárias, antes mesmo de concluir a graduação, pois meu primeiro concurso público estadual para professora de Ensino Fundamental nas séries iniciais ocorreu por volta de 1992. Com a maioridade, pude assumir o cargo em outra cidadezinha do interior da Bahia.

De lá para cá, já se vão mais de 25 anos de prática docente envolvendo os dilemas e desafios na Educação Infantil, no Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino Superior, na Educação a Distância e Formação de Formadores.

Meus melhores mestres foram os estudantes que me provocavam. Despertavam o desafio de compreender os processos cognitivos acionados pelo ensinar e aprender em diferentes áreas. Ao mesmo tempo em que me mostravam o lado afetivo, cúmplice, ético e de respeito recíproco. Em um momento de desafio e total dificuldade em lidar com o ensino de geometria é que iniciei minhas pesquisas na área da Didática de Matemática. A partir desse contexto de fragilidade docente, busquei os elementos epistemológicos, didáticos e metodológicos para desenvolver uma mediação de autoria no processo de ensino e aprendizagem dessa área. Isso porque as relações estabelecidas pelo entorno de cada criança, ao estudar geometria, foi desvelando uma subjetividade e complexidade enorme, na constituição do real desses meninos de apenas 7 anos e da professora, em constituição reflexiva.

Esses saberes experienciais da sala de aula promoveram a constituição da minha racionalidade da práxis pedagógica, em um movimento dialético e dialógico que se assemelha aos saberes experienciais do ato de cozinhar apresentado pelo mestre Paulo Freire:

O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibra para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro (FREIRE, 1996, p. 21).

Nesse contexto, os saberes experienciais nos mostra um percurso de saberes e sabores para se tornar mais experiente e, em complementariedade ao texto, compartilho da compreensão de outro mestre Rubem Alves (2000, p.143), quando diz que “[...] a cozinha é o útero da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer acontece, quente...Tudo provoca o corpo e os sentidos adormecidos acordam”.

Para lá é que sempre retorno (à cozinha para cozinhar), com a finalidade de pensar e repensar minha vida, meus percursos e reconduzir minhas trilhas, meus horizontes. Na cozinha, tenho ainda as tarefas não tão boas, mas necessárias... Isso porque as panelas, os pratos e tudo o mais precisam ser lavados e lembro-me de decisões importantes que tomei ao pé da pia, as quais também lavaram a minha alma. Com a alquimia das misturas de sabores, texturas e reinvenções na tradição culinária é que, como aprendiz de cozinheira, eu vou desenvolvendo meus processos heurísticos e criativos, para alimentar o desejo de compartilhamento e encantamento por meio dos alimentos.

O caminho é feito ao caminhar, já sinalizava o poeta Antônio Machado (1973) e não poderia ser diferente para essa “menina de Vó” nascida em 1973 e que se põe a trilhar o seu caminhar. O desejo e a inquietação da pesquisadora transformam-se em potência para mais uma vez realinhar a vida profissional e de pesquisadora com a de mãe e mulher.

Na defesa da dissertação (2005), fui indagada sobre a continuidade da pesquisa e dos grupos potenciais para prosseguir as investigações. Contudo, esses chamados não eram tão fortes quanto o desejo de viver outras experiências fora da academia. Queria ser mãe e pretendia que fosse intenso. Naquele momento da vida, um companheiro compartilhava comigo os sonhos e projetos futuros. Assim, na diáspora da maternidade, a professora-pesquisadora encontrou bifurcações e foi se aventurar nas incertezas.

Minhas filhas, hoje, começam a reconhecer que cozinhar é um ato de amor, que a mamãe não só faz comida, mas dá carinho quando prepara cada prato. Os saberes e sabores das magias transformadoras que acontecem em nossa cozinha são imediatamente percebidos por toda a casa. Não gosto de porta em cozinhas, pois entendo que o ambiente deve ser aberto, um local de alegria, experimentações, risos, folias vividas por todos, juntos. O cheiro é para incomodar e despertar o desejo, a vontade de experimentar, saborear, beliscar e correr para mim e tentar adivinhar a transformação dos alimentos que estão sendo processados: Mãe, o feijão é do dia? Vai ter carneiro? Fez feijoada? Frango à delícia? Tem carne de casca? E novos saberes são inventados em nosso cotidiano.

Retomo meus estudos com afinco e determinação e, sem perder o ritmo, busco reativar e realizar o doutoramento atenta as bifurcações que surgiram no caminhar, contudo nunca me fizeram perder de vista o horizonte da pesquisa.

Assim, após 12 anos da defesa da dissertação, sou aprovada em uma Universidade Pública, no Estado do Ceará. É como voltar para casa, para a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), ou para a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), pois sou formada, com muito orgulho, pelas universidades estaduais deste país, as quais, para mim, representam a resistência e luta por uma Universidade Pública, Gratuita, de Qualidade e Socialmente Referenciada. Viver o doutorado, nessa instituição, é um prazer da maturidade acumulada ao longo de uma vida, porque ser professora-pesquisadora em busca do doutorado é muito mais do que a exaltação do ego acadêmico. É um sentimento de felicidade e vida que se completa e se materializa nos desafios que cada etapa contempla, desde o seu processo seletivo.

Estar doutoranda representa uma cumplicidade e responsabilidade, que me exigem um rigor (outro) metodológico de pesquisadora que, mesmo desconfiando ser possível existir, eu não sabia que era capaz de constituir. A ousadia de manter meu espírito inquieto e buliçoso, em aventuras pensantes, só se concretiza porque o mestre (meu orientador) me permite flanar, abre as portas das gaiolas acadêmicas e, de maneira sensível, me faz retornar.

(In)tensamente, é o movimento constante da constituição da postura desta professora-pesquisadora que, em processo de autoformação, tem sido afetada pelos acontecimentos da vida cotidiana, acadêmicos e profissionais, retirando das experiências fecundas os caminhos heurísticos, metodológicos, científicos e epistemológicos, para reconhecer o ser e o saber na práxis transformadora.

Não se destituir enquanto autor-ator diante das práticas de pesquisa, desconfiando das formas monológicas de pesquisar, das interpretações ingênuas e dos engessamentos das posições teórico-metodológicas, tem sido um desafio constante, para a escuta sensível (BARBIER, 1998) e autoescuta (SOUZA, 2006) da polissemia crítica. A complexidade da tarefa vem requerendo uma análise hermenêutica crítica e rigorosa para a constituição de um quadro dinâmico com múltiplas ferramentas teóricas, epistemológicas e metodológicas que possibilitam, a esta pesquisadora, uma profundidade interpretativa no reconhecimento das teias de significados tecidas e negociadas no contexto da pesquisa da tese.

Nesse movimento constante de catarse e transformação do meu espírito científico, tenho, em Bachelard, inspiração para alinhar a razão ao sentir e pensar, uma vez que “[...] toda cultura científica deve começar por uma catarse intelectual e afetiva. Resta, então, a tarefa mais difícil: colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico” (BACHELARD, 1996, p. 14).

Este movimento desejante e permanente de querer saber mais impulsiona a capacidade de melhor questionar, ampliando as perspectivas dos horizontes e do espírito científico, pois sempre será possível variar as condições e perspectivas saindo da contemplação em um movimento interativo entre sujeito e objeto para a dialetização da experiência.

Não aprendi a cozinhar com receitas. Foi sempre transgredindo e desenvolvendo modos ordinários no cotidiano que passei a encontrar meu método, meu tempero. Nunca soube pegar sal com uma colher, porque preciso que minha mão sinta o peso, toque o alimento e, em extensão, identifique a medida certa para aquele momento, aquele prato. E será sem receitas que continuarei a desvelar os caminhos da pesquisa para embasar a tese de doutoramento.

Tenho aprendido, nesses processos heurísticos e inventivos, a vencer os desafios, criar novas aventuras, explorar as bifurcações, pegar ou abrir mão de atalhos, reconhecer meus limites e dos outros, mas, sobretudo, venho, em processo coletivo e colaborativo, me permitindo a alterar o meu Ser com o Outro, sem deixar de atentar para a coerência do ser humano, e assim minimizar as fragmentações da vida de mulher, mãe, professora e professora-pesquisadora, na invenção do cotidiano.

Destarte, é preciso sapiência, ciência saborosa, para desvelar os saberes-sabores das aventuras pensantes próprias às investigações nas Ciências. Precisamos experimentar, preparar, produzir e atentar para os sabores agradáveis que nos aproximam do êxtase e aos menos apreciados, que tendem a não mais serem provados. Mantenho a conexão com o mestre Rubem Alves (2000, p. 143) ao entender que: “Cozinha: ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando”.

Nesse prazer de contrabando é que a Menina de Vó, a Mocinha de Mainha, a Mãe de Nina e Sara, na alquimia de aprender a viver, de testar preparos diferentes, seguindo a intuição, remonta ao seu ponto de partida, busca sua autogênese nesse conjunto de experiências, para situar a concreticidade histórica e o compromisso com a sua existência de ser professora-pesquisadora em permanente constituição.

Sabores e saberes reinventados no cotidiano: notas inconclusivas

A existência do ser humano no mundo é um permanente “vir-a-ser”. A necessidade de desvelar esse mundo, de conhecê-lo, se faz presente em todos os momentos históricos. Para isso, o ser humano precisa interpretar a si próprio e ao mundo em que vive, buscando o sentido de sua existência. Nesse movimento de busca da compreensão do homem inacabado, a relação homem-mundo é mediatizada, a dimensão (auto)biográfica apresenta-se, possibilitando, pela experiência narrativa, configurar os momentos e períodos da vida em uma história.

Fazemos as escolhas dos temperos da vida e formação sempre com muito cuidado, para não exagerar ou perder o sabor dos alimentos, dando o tempo ao tempero para incorporar e ampliar as linhas gustativas da apreciação. Diante da imprevisibilidade da postura bricoleur (KINCHELOE; BERRY, 2007) de uma professora-pesquisadora tomamos a ousadia em inventar, descobrir os amargos e doces das temporalidades na formação, para que possamos nos surpreender com os sabores e saberes inventados no e pelo cotidiano. Manter a escuta sensível, o olhar atento e o paladar sempre apurado.

Numa ecologia cognitiva constituinte e constituída no exercício autopoético, pelo investimento (auto)biográfico para que apreendamos a narrativa de nós no processo de reflexividade crítica, reconheçamos uma estrutura complexa das dinâmicas nas temporalidades da vida e formação, em movimento de intercompreensão de fluxos e circulações de conhecimentos e saberes.

Significar o sentido da vida ancorado em recordações-referências (JOSSO, 2004) é uma possibilidade de reconhecimento identitário em processo autoformativo docente, uma vez que ao reconhecer a tomada de poder na constituição da (auto)biografia em seus espaços-tempos históricos e culturais desencadeiam ações autônomas e reflexivas sobre o “agir, compreender, mas também emancipar-se” (PINEAU; GRAND, 2012, p. 109). Esse desvelamento de uma pesquisa-formação em processos auto-organizáveis, coletivos e partilhados, nos levou a uma ação pesquisante em empreendimento dos sentidos e significados, para além das amarras academicistas, encontrando o tempo para a nossa autoformação, que nos coloca em encontro com um paradigma antropoformador ( PINEAU, 2005) na constituição identitária docente, apontando para uma racionalidade da práxis pedagógica, que se faz emergente como mudança sobre as temporalidades educativas.

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Recebido: 31 de Julho de 2020; Aceito: 18 de Setembro de 2020

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