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Educar em Revista

Print version ISSN 0104-4060On-line version ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub Apr 08, 2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75592 

DOSSIÊ - A dimensão biográfica como processo de formação e de compreensão de si e do mundo

Na escuta de estudantes-professoras: entre memórias e miudezas, retratos de formação estética1

Luciana Esmeralda Ostetto* 
http://orcid.org/0000-0002-1948-5090

Maria da Assunção Folque** 
http://orcid.org/0000-0001-7883-2438

*Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: lucianaostetto@id.uff.br

**Universidade de Évora. Évora, Portugal. E-mail: mafm@uevora.pt


RESUMO

A formação estética docente, relacionada a processos, experiências e repertórios que contribuem para alargar a sensibilidade e ampliar as possibilidades de interpretação e de atuação no mundo, é o foco do presente artigo, resultado de investigação realizada com professoras em formação inicial. Situado no campo teórico-metodológico das abordagens autobiográficas, o estudo articulou fundamentos de uma pedagogia da autonomia e práticas artísticas. O trabalho com múltiplas linguagens sustentou os saberes-fazeres de encontros-ateliê, principal dispositivo de geração de dados biográficos, arquitetado para perscrutar a questão: O que marca a educação das sensibilidades de professoras em formação inicial? Caracterizado como espaço para o exercício de rememorar e tecer narrativas de processos formativos, nos encontros-ateliê fez-se uso de artefatos artístico-expressivos, até chegar à escrita narrativa. Os percursos visibilizados indicam que: a formação estética vai sendo tecida, desde a infância, com miudezas, com fios não apenas da arte, mas sobretudo da/na natureza; as experiências estéticas, que conectam sensibilidade e cognição, fazem-se com a presença de figuras de ligação que ajudam a ampliar sentidos e significar a vida pelo afeto. Um aspecto da metodologia também foi ressaltado: a forma e o conteúdo dos encontros-ateliê, apoiando a escuta de professoras em formação por meio de fazeres artísticos-artesanais-corporais, além de validar um singular dispositivo para a pesquisa autobiográfica, legitimam um instrumento de formação que propicia mais do que um conhecimento de si, a prática de si.

Palavras-chave: Narrativas autobiográficas; Formação estética docente; Pesquisa-formação: metodologia; Encontros-ateliê; Memória: infância

ABSTRACT

Teacher aesthetic education, related to processes, experiences and repertoires that contribute to broaden the sensitivity and expand the possibilities of interpretation and enactment in the world, is the focus of this paper, the result of research carried out with teachers in initial education. Located in the theoretical-methodological field of autobiographical approaches, the study articulated the foundations of a pedagogy of autonomy and artistic practices. The work with multiple languages supported the knowing-doings of encounter-ateliers, the main device for generating biographical data, designed to investigate the following question: What marks the education of the sensibilities of teachers in initial training? Characterized as a space for the exercise of remembering and weaving narratives of formative processes, in the encounter-ateliers, artistic-expressive artifacts were used, until reaching the narrative writing. The displayed routes indicate that: aesthetic education has been woven, since childhood, with delights, with threads not only from art, but mainly from/in nature; the aesthetic experiences, which connect sensitivity and cognition, take place with the presence of connecting figures that help to expand meanings and signify life through affection. An aspect of the methodology was also highlighted: the form and content of the encounter-ateliers, supporting the listening of teachers in training through artistic-handicraft-bodily activities, in addition to validating a singular device for autobiographical research, legitimize an instrument of training that provides more than knowledge of oneself, the practice of oneself.

Keywords: Autobiographical narratives; Teacher aesthetic education; Research-training: methodology; Encounter-ateliers; Memory: childhood

À escuta de professoras para pensar a formação das sensibilidades

No campo da formação docente, seja na pesquisa, seja na intervenção, seja na prática dos cursos de licenciaturas ou de formação contínua, há tempos vem sendo apontada a necessidade de considerarmos as histórias, as experiências e as singularidades inscritas nos percursos de vida de professores e de professoras (JOSSO, 2006; NÓVOA, 2007). O pressuposto de que cada pessoa produz seus processos formativos de maneira singular, constituídos por elementos que lhe são próprios e apropriados ao longo da vida, nas interações com o grupo social do qual faz parte, em tempos e espaços que expandem ou contraem suas possibilidades de ser e de dizer, está colocado como absolutamente relevante quando discutimos formação.

Com o objetivo de identificarmos e compreendermos processos formativos docentes, particularmente no que diz respeito à educação das sensibilidades, a pesquisa que dá base ao presente artigo foi conduzida a partir de questões que têm direcionado o conjunto de nossos interesses de estudo: Como nossa sensopercepção é fiada e refinada? Como o mundo - a cultura, a arte, a natureza - afeta nossas maneiras de perceber e de significar, inteligível e sensivelmente, o vivido? Respondermos a essas perguntas é perscrutarmos o que temos chamado de formação estética, relacionada a processos, experiências e repertórios que contribuem para dilatar a sensibilidade, que colaboram com a ampliação das possibilidades de interpretação e de atuação no mundo, na sociedade, na escola. Como discutido por Hermann (2005):

[...] uma sensibilidade estética aguçada pode interpretar valores morais (a igualdade, o respeito humano, a tolerância), de modo mais efetivo, pela possibilidade de fazer uso da imaginação. Só dando chances à sensibilidade, é possível a alguém perceber que as diferenças de culturas e de contextos de vida cotidiana modulam o princípio da igualdade e permitem reconhecer e respeitar as diferenças (HERMANN, 2005, p. 70).

De tal forma, um dos focos da investigação foi buscarmos e analisarmos as marcas da educação das sensibilidades de estudantes-professores em formação inicial. Participaram da pesquisa estudantes dos cursos de Licenciatura em Educação Básica (LEB), de Mestrado em Educação Pré-escolar e de Mestrado em Educação Pré-escolar e Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico da Universidade de Évora[2], Évora, Portugal.

O grupo constituído reuniu 13 estudantes, sendo nove estudantes da LEB e quatro estudantes do Mestrado Pré-escolar e Primeiro Ciclo da Educação Básica, todas do sexo feminino, com idades entre os 19 e os 25 anos. É importante marcarmos que as participantes eram provenientes de diferentes regiões de Portugal: três do Algarve, seis do Alentejo, três da região central de Portugal e uma do Ribatejo.

O desenho teórico-metodológico do estudo implicou, antes de tudo, colocarmo-nos à escuta das estudantes, de forma a abrir espaço para rememorações e narrativas e, assim, suscitar a identificação de elementos que contribuíram para a formação de suas sensibilidades, nomeadamente na infância. Tal escuta foi viabilizada no tempo-espaço de encontros-ateliê, dispositivo metodológico privilegiado para a produção dos dados. Foram quatro encontros-ateliê oferecidos às participantes organizadas em dois grupos, realizados com periodicidade quinzenal, entre os meses de outubro e dezembro de 2018. Os encontros-ateliê aconteceram de forma extracurricular - para além da carga horária das disciplinas acadêmicas que cursavam regularmente - e a participação foi livre, com inscrições a partir de convite às turmas dos cursos já citados. Os encontros foram documentados por meio de registros, diversos em sua forma e complementares em seu alcance, permitindo maior amplitude na captação de dados: pequenos vídeos, fotografias, relatos orais transcritos, notas em caderno de campo. A documentação gerada por meio de tais registros compôs o corpus de análise, o qual será detalhado a seguir.

Os encontros-ateliê: memórias, narrativas e linguagens expressivas

Para tecer a metodologia, serviu-nos de inspiração os fundamentos da proposta do ateliê biográfico, os princípios teórico-práticos do ateliê de arte, sobretudo quanto à utilização de materialidades e de linguagens expressivas, e os princípios gerais de uma pedagogia da autonomia.

O “ateliê biográfico de projeto”, como dispositivo investigativo-formativo, propõe em seus procedimentos uma dinâmica prospectiva dos relatos das histórias de vida, ligando “[...] o passado, o presente e o futuro do sujeito e visa fazer emergir o seu projeto pessoal, considerando a dimensão do relato como construção da experiência do sujeito e da história de vida como espaço de mudança aberto ao projeto de si” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 359). O conjunto de procedimentos desenhados suscita e potencializa a “reflexividade biográfica”, uma vez que ativa processos de “biografização” instaurados pelos relatos de histórias de vida e de formação.

Da proposta formulada pela autora, detivemo-nos nos seus fundamentos, os quais nos ajudaram a pensar e a definir dispositivos de pesquisa-formação que contribuíssem, pela via de participação coletiva em um conjunto de encontros articulados, para a produção de narrativas autobiográficas, para a organização de seu itinerário espaciotemporal e para a apresentação e a interpretação de si mesmo. Não foi uma preocupação do estudo trabalhar de modo prospectivo, em direção a um projeto, ao futuro, embora considerássemos que os caminhos propostos articulassem as temporalidades, haja vista que as participantes estavam em um processo regular de formação docente, estavam cursando Licenciatura ou Mestrado profissional.

Os princípios do ateliê de arte assumidos na pesquisa advêm do diálogo com o projeto educativo das escolas de infância de Reggio Emilia, na Itália, no qual o ateliê é concebido como uma ideia e um lugar, um veículo cultural para o desenvolvimento de crianças e de professores (VECCHI, 2017). Tomar o ateliê de arte como uma ideia e um lugar é sobremaneira importante, pois carrega consigo uma visão integrada dos processos: se, por um lado, o ateliê aparece como tempo-lugar para explorar variações de linguagens, com instrumentos, técnicas e materialidades que as potencializam, para sensibilizar o gosto e o sentido estético da pessoa, sejam adultos ou crianças; por outro lado, é visível que, na defesa da pluralidade das linguagens expressivas e de suas conexões, identificamos a via régia de combate à hierarquia de saberes e de campos de conhecimento. Nesse lugar-ideia, a importância dos materiais é destacada: eles portam memórias e significados, suscitam sugestões e construções interpretativas do real. Como disse Vecchi (2017, p. 64): “A matéria, por intermédio de um processo de memórias polissensoriais, de conexões de caráter perceptivo, pode aludir a certa realidade, reevocando-a, contando-a ou representando-a”.

Esses princípios do ateliê de arte complementam a perspectiva discutida por alguns autores do campo dos estudos autobiográficos, segundo a qual os fazeres artesanais, a experimentação corporal, o contato com materialidades diversas, a fruição de um tempo empático-criativo, aberto à expressividade livre de tensões modelares, amplificam o espaço de narrativa e interpretação de si (FORMENTI, 1996; RUGIRA, 2008; OSTETTO; BERNARDES, 2015; OSTETTO, 2016).

Por sua vez, uma “pedagogia da autonomia”, marcada, entre outras características, pelos princípios da ética, da estética e da política; que compreende a precedência da leitura de mundo à leitura da palavra; que defende a autenticidade, a abertura e a disponibilidade à produção de conhecimento, a curiosidade e a inquietação como elementos imprescindíveis aos processos de significação e de apropriação de saberes, aponta para o necessário reconhecimento do humano “[...] como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos [...]” (FREIRE, 2011, p. 42).

Uma “pedagogia da autonomia” é testemunhal, pois tem na base a pessoa, sua palavra existencial, inscrita na dialética de fazer e de pensar sobre o fazer, para então reafirmar caminhos ou mudar de direção. É, também, uma pedagogia relacional, pois “[...] estar no mundo necessariamente significa estar com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2011, p. 57, grifos do autor) e, por isso, pressupõe a escuta atenta, que dá continente e valida as diferenças e a incompletude constitutivas do ser humano. Nesse contexto, a escuta é um elemento fundamental: “Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro” (FREIRE, 2011, p. 117). Escuta, liberdade, imaginação, responsabilidade, diálogo são palavras-chave que definem e sustentam uma pedagogia dialógica e foram assumidas na estruturação e no desenvolvimento dos encontros-ateliê da pesquisa.

Com tais princípios, os encontros-ateliê foram realizados em uma sala de aula comum da Universidade de Évora. Para tanto, o ambiente era arrumado a cada sessão: com o afastamento das mesas, deixávamos um espaço central vazio no qual eram dispostas as cadeiras em círculo para que pudéssemos desenvolver as atividades com maior mobilidade, ora sentando, ora levantando, ora caminhando, ora dançando, conforme a proposta. Em um canto da sala, foi montado uma espécie de miniateliê, composto por materiais expressivos básicos, tais como tesouras, cola, lápis de cor, canetinhas coloridas, recortes de revistas (palavras e imagens), folhas coloridas, disponibilizados como apoio à criação de narrativas em múltiplas linguagens.

Conforme fundamentação já explicitada, a tônica das propostas realizadas em cada sessão esteve voltada à experimentação de fazeres criativos e linguagens poéticas, de modo a entrelaçar teoria e prática, reflexões e contato direto com diferentes materialidades expressivas. Cantigas e danças de roda, desenhos, tecelagem e literatura fizeram parte das propostas.

As cantigas geralmente faziam-se presentes no início de cada encontro, como forma de saudar o grupo constituído, convidar à conexão. Era como um chamamento do grupo para a roda, uma espécie de harmonização para o trabalho coletivo que se seguiria. Essas cantigas também podiam ser dançadas. As coreografias, assentadas em movimentos simples, simbólicos e integradores, contribuíam para reforçar o chamado à presença, a trazer o corpo inteiro para roda. Compreendemos, com Rugira (2008), que o corpo e a sensorialidade são elementos importantes a serem considerados na pesquisa-formação de matriz autobiográfica. A autora defende que “[...] a relação com o corpo constitui-se um pilar incontestável dos processos de formação e de criação coletiva [...]. A relação com o corpo [...] restitui nossas capacidades de aprender, de nos adaptar e de reagir” (RUGIRA, 2008, p. 73). Em um dos encontros, esteve no centro da ação de rememorar, quando as participantes trouxeram cantigas que ouviam ou cantavam na infância, que estavam marcadas em seus repertórios afetivo-culturais.

Quanto às histórias lidas, citamos Guilherme Augusto Araújo Fernandes (FOX, 1995) e Os cinco sentidos (QUEIRÓS, 2009), cujos enredos contribuíram para o trabalho de evocação da memória e para o diálogo sobre como apreendemos o mundo por meio de todos os nossos sentidos, que são canais pelos quais afetamos e somos afetados, construindo experiências estéticas.

Da dinâmica assumida nos encontros, destacamos dois dispositivos que dela fizeram parte e constituíram espaços por excelência de narrativas de si: “Como se fora meu retrato: a imagem da arte fala de mim” e o “Caderno de memórias & miudezas”. A proposta “Como se fora meu retrato: a imagem da arte fala de mim” tinha por objetivo suscitar as primeiras narrativas de si, a partir da visualização de uma imagem de arte. Assim, no primeiro encontro, também como uma forma de apresentação pessoal, passou de mão em mão uma caixinha contendo inúmeros cartões postais com reproduções de obras de arte, de diferentes artistas. Aleatoriamente, sem escolher, cada participante apanhava um postal. Quando todo o grupo tinha em mãos o seu cartão postal, o convite foi formulado: olhar a imagem que lhe coube, convocar a imaginação e, em um exercício de reflexão sobre características e modos pessoais de ser, falar de si “como se”. E então, no diálogo com as cores, as formas e os temas estampados no cartão que tinham em mãos, as participantes, uma a uma, apresentavam-se ao grupo como se, ali, naquela imagem/obra, estivesse estampado o seu retrato. Além de ser uma provocação para ampliar olhares sobre si mesmas e se imaginar, estabelecendo conexões subjetivas, pertencentes a cada uma em particular, era um convite para que reavivassem histórias e tecessem narrativas, enunciando ao grupo um retrato de si, pela palavra falada.

Por sua vez, como dispositivo de geração de dados biográficos, o “Caderno de memórias & miudezas”, baseado no trabalho de Ostetto e Bernardes (2019), foi proposto como um espaço pessoal que pudesse ativar atos de memória e convidasse ao registro de histórias e miudezas - detalhes, fios soltos, lampejos de lembranças, sentimentos e imagens, como aquilo que parece não servir para nada, mas que se coloca evidente no processo. Sua criação articulou duas modalidades de caderno de registro: o caderno de artista e o diário de práticas pedagógicas, os quais são encontrados nos campos da Arte e da Educação, respectivamente.

Do campo da arte, mais diretamente relacionada aos fazeres de artistas, advém a prática de manter um caderno de notas, como suporte para ideias, observações, esboços, descrições e/ou imagens criadas pelo seu autor. Conhecido como “Caderno de artista”, geralmente é constituído pela utilização de pequenos cadernos ou blocos de papéis, cujas maleabilidade e portabilidade permitem ao artista carregá-los consigo, a qualquer tempo e lugar. Afigura-se como um espaço de experimentação e de documentação dos processos de criação de seu autor (JORENTE, 2009). A organização visual é um elemento preponderante, e sua composição expressiva está assentada, principalmente, nas linguagens visuais, com desenhos, colagens, esboços, pinturas, fotografias.

No campo da educação, sobretudo relacionado às práticas docentes, o exercício de tomar notas sobre processos e experiências tem sido apontado como um fecundo espaço-tempo de reflexão sobre o vivido e de projeção do viver a relação pedagógica. O “caderno de registro”, ou “diário de práticas”, ou simplesmente “registro diário”, pode ser definido “[...] como instrumento do trabalho pedagógico, como um documento reflexivo de professoras e professores, espaço no qual marcam o vivido - conquistas, descobertas, incertezas, perguntas, medos, ousadias -, e em cuja dinâmica podem apropriar-se de seus fazeres [...]” (OSTETTO, 2017, p. 19). Warschauer (1993) pondera que, ao registrarmos, deixamos marcas, tecemos histórias, afirmamos a experiência compondo um retrato do vivido. E, continua a autora, esse exercício é fundamental para o processo de autoformação docente, pois “[...] o retrato do vivido proporciona condições especiais para o ato de refletir” (WARSCHAUER, 1993, p. 61, grifo da autora). Nas perspectivas enunciadas, o registro vem sendo utilizado pelos professores como base para a documentação de percursos, para a teorização da prática e como dispositivo de autoformação permanente.

Registro, memória, história, narrativa, imaginação e criação são elementos que se articulam no exercício de produção de um diário o qual, por sua vez, abre caminhos para o exercício e a afirmação da autoria docente. Ao contrário do “caderno de artista”, no qual a imagem e a organização visual do conteúdo são marcas preponderantes; no “caderno de registro”, a linguagem escrita é principalmente utilizada, ainda que possa vir marcada por diferentes gêneros textuais e com o estilo de quem a produz.

Considerando os objetivos da investigação, que focalizou narrativas de formação estética, a definição de dispositivos de produção de dados que dialogassem com o campo artístico colocou-se como exigência da coerência metodológica. De tal modo, aproximamos práticas da educação e da arte e, a partir do citado trabalho (OSTETTO; BERNARDES, 2019), o “Caderno de memórias & miudezas” foi concebido como suporte para acolher achados da memória, abrigando-os em forma de palavras e de imagens. Um espaço para compor um mosaico de elementos considerados importantes para a formação da sensibilidade das narradoras.

No caderno projetado para nossa pesquisa, foram marcados intencionalmente aspectos relacionados aos cinco sentidos, pelos quais, considerando o aporte teórico adotado, poderiam ser acessadas e reverberadas memórias de experiências estéticas. De tal forma, foram dispostos, ao longo das páginas do pequeno caderno com folhas sem pauta, selos com palavras-chave que, em seu conjunto, configuravam um script ao modo de um convite a rememorações: Sabores, Cheiros, Cores, Texturas, Um objeto para lembrar, Meus brincares, Afetos, Cantar cantigas, Sítios preferidos, Mapa do meu quintal, Uma saudade, Uma história inesquecível. Cada palavra-chave abria um determinado número de páginas em branco, a serem preenchidas no processo pelas narrativas das participantes, em diálogo com o que suscitavam as palavras indicadas.

De posse de seu “Caderno de memórias & miudezas”, cada participante foi compondo suas memórias, pouco a pouco, ao longo dos quatro encontros-ateliê. No início de cada sessão, enquanto aguardavam o grupo todo chegar, ou, ao final, enquanto se organizavam para sair, o miniateliê montado na sala era frequentado para compor o caderno, sendo feito com os ritmos próprios de cada participante, se assim o desejassem e sem tempo fixado. Algumas narrativas foram compartilhadas em roda de conversas, outras ficaram recolhidas nos cadernos.

O material biográfico reunido e disponível foi organizado em quadros, seguindo o script sugerido no caderno, de modo a figurar um panorama das narrativas fertilizadas ao longo dos encontros-ateliê, dando à matéria do vivido e seus temas. Como um mapa, pretendeu acentuar as linhas de experiências que permitem espreitar tramas, composições e enredos que, no conjunto, apontam percursos de formação estética. Construído principalmente a partir da leitura dos cadernos de memórias & miudezas, da reunião/organização dos elementos nele presentes seguindo as já citadas palavras-chave, o mapeamento realizado também recorreu às narrativas orais ou escritas, produzidas nas rodas de conversa dos encontros. Desse modo, por meio da organização dos dados biográficos em tabelas integrativas, o conteúdo dos cadernos e das narrativas orais e/ou escritas apresentadas foi sistematizado para gerar uma visão de conjunto. Ao buscarmos perceber as particularidades e/ou as semelhanças de elementos registrados, a análise foi tecida a partir das conexões estabelecidas entre os elementos biográficos visibilizados dos registros narrativos, os contextos de sua produção e os objetivos da investigação.

Nos rastros da formação estética: experiências e sentidos reconhecidos

Das linhas que contornam a formação da sensibilidade estética, na presente análise, focalizamos as experiências de ativação dos cinco sentidos, identificadas nas notas de memórias e miudezas da infância das participantes. São relevos de oportunidades sensoriais e perceptivas compartilhadas no convívio familiar, na escola e em meio à natureza. São cheiros, sabores, texturas; brinquedos e brincadeiras, objetos e afetos, cantigas e lugares que ecoam na lembrança, miudezas que, aparentemente, ficariam lá no terreno de coisas do passado, quiçá irrelevantes. As experiências com as linguagens artísticas, as oportunidades de contato com a arte, na casa e na escola, também são visibilizadas e serão aqui consideradas, formando o grande painel de sensibilidades ativadas em experiências.

Nas narrativas que se reportam a cheiros, entre a casa e a escola, os cheiros da natureza aparecem em quase todas as memórias narradas (apenas uma participante não faz referência à natureza). Contam sobre o cheiro do mar e/ou maresia; da chuva; da terra molhada; de flores; de frutas; do campo; do orvalho da manhã; da vindima; do pinhal; da fogueira/lume. São cheiros do mundo, como diz o poeta, que conduzem a histórias, ao passado, mas também podem sonhar o futuro: “Com o nariz sentimos os cheiros do mundo. /Cheiros que passeiam pelos ares/Se a chuva cai, o cheiro da terra molhada/nos leva a pensar na alegria das raízes. [...]. / O cheiro nos leva a sonhar com mais longe” (QUEIRÓS, 2009, p. 12-13).

Da vida familiar, as lembranças de cheiros ligam-se, predominantemente, à casa dos avós - seja de comida preparada pela avó, seja da atmosfera da casa, seu perfume, seja dos frutos e das flores da horta ou do jardim. Esses aspectos estão presentes nos relatos de metade das participantes.

Com relação à vida escolar, os cheiros dos materiais utilizados no cotidiano educativo - da plasticina, da caneta de feltro, da cola em bastão, da cola líquida e do papel utilizado nos trabalhos e atividades; o perfume da professora; o cheiro dos elementos dos espaços externos, junto à natureza (cheiro da relva do parque infantil, do barro do jardim de infância, o cheiro da água clorada nas aulas de natação) estão no conjunto nomeado. Aparecem também referências gerais que nos reportam ao ambiente: “lembro do cheiro da escola”, escrevem duas participantes, sem darem maiores detalhes.

Os sabores evidenciados são relacionados a afetos, e as comidas preparadas por familiares aparecem em quase todas as narrativas: a avó, a mãe, a tia são as figuras parentais responsáveis pelos sabores da infância. Como nos versos do poeta, os gostos portam memórias, são histórias: “Com a boca sentimos o sabor das coisas:/o doce, o amargo, o azedo, o suave, o forte. /Mas o sabor acorda nossa memória. [...]. /O sabor encurta o tempo. /Descobrimos que cada gosto/guarda uma história” (QUEIRÓS, 2009, p. 14).

Mais da metade das narradoras lembram das texturas de elementos da natureza, como areia do rio, areia da praia, terra, casca de árvore, folhas, relva, pedras; e de pelos de animais, como cavalo, gato e ovelha. Os tecidos também são lembrados, como as roupas macias de dormir, lençóis quentinhos, pelos dos peluches, tecidos de costura da avó, fralda de adormecer. Sim, a pele é porta de entrada, raiz, conexão com o mundo ao redor: “Pela pele experimentamos/ as sensações de calor, frio, dor, prazer. /Pisando a terra, nossos pés/sentem a sua aspereza ou suavidade. [...]. / A pele é raiz cobrindo o corpo inteiro” (QUEIRÓS, 2009, p. 16-17).

Dos sítios da lembrança, onde gostavam de estar quando crianças, aparecem, nas narrativas de todas as participantes, espaços onde o corpo todo se envolve, se entrega, se embala, desfruta de experimentações que reverberam na pele sensações de pertencimento, de prazer e alegria. São predominantemente lugares na natureza, como praia, rio, campo, herdade, horta, jardim e quintal. No geral, esses lugares estão associados à companhia de figuras familiares, sobretudo avós. Também ligadas à natureza e a espaços abertos, livres, há lembranças de jogos e de brincadeiras, como subir em árvore, brincar com água, terra, folhas, galhos, pedrinhas...

Além do envolvimento com os espaços na natureza, na memória, trazem brinquedos e brincadeiras, feitos objetos e relações de afetos: bicicleta, bonecos e bonecas, urso de pelúcia, computador de brinquedo; livros, lenço de escoteiro, sapatilhas de ballet, almofada do Jardim de Infância. Quando os relatos contam sobre as brincadeiras preferidas, a ampla maioria fala de jogos de faz de conta (casinhas, bonecas, médico, pais e filhos, cozinheira, professora).

Das cantigas lembradas, foram nomeadas: cantigas tradicionais infantis, cantigas de filmes e desenhos animados aos quais assistiam na televisão, cantigas do repertório dos adultos, cantigas do cancioneiro popular/rancho folclórico. São paisagens sonoras, desvendadas a partir do ato de cantar/ouvir as cantigas compartilhadas nos encontros-ateliê. O poeta diz que:

“Com os ouvidos nós escutamos/o silêncio do mundo. [...]. /Se escutamos música, /nosso corpo descansa com a melodia das notas. [...]. /Quando nós escutamos, /imaginamos distâncias, /construímos histórias, /desvendamos novas paisagens” (QUEIRÓS, 2009, p. 10-11).

E as possibilidades de expressão e de experimentação na infância, nos espaços escolares? As narrativas contam de possibilidades reduzidas, sobretudo relacionadas às produções, materiais e técnicas reconhecidamente do campo artístico. Dizem, por exemplo, que seguir modelos era regra e, por isso, as propostas suscitavam experiências pouco significativas, ou, no testemunho de duas participantes[3]:

“[...] não havia incentivo para criar, apenas se preocupavam em que não saíssemos dos riscos e em considerar os trabalhos bonitos ou feios” (Carmen);

“[Na infância] atividade era pintar, desenhar, fazer prendas, arranjar a sala; pintura de desenhos prontos e tinha-se que pintar no risco. Eram experiências pobres...” (Cândida).

A expressão “não sair do risco” denota práticas escolares tradicionais no trato do campo expressivo, geralmente sustentada por uma compreensão equivocada das linguagens artísticas, englobando a visão da arte como um fazer que se põe a serviço de outras áreas de conhecimento, resultando no distanciamento do sujeito aprendente com o desenho, por vezes provocando até a repressão da autoria gráfico-pictórica. Podemos perceber essa marca nas narrativas de outras participantes da pesquisa, quando se reportam à atividade de desenhar, uma das linguagens primeiras da infância.

Na escola, o desenho era olhar e copiar” (Bela).

Tinha que seguir o modelo. Fiquei com a ideia de que não tenho jeito para desenhar, mas gosto de pintar” (Caetana).

Não sei se vem da escola ou não, mas acho que não é fácil desenhar. Eu até desenho, se preciso for, mas não me sinto à vontade desenhando” (Antónia).

Na escola eu desenhava o que era obrigada, fazia sem gosto. Lembro que a professora ajudava a arranjar o desenho que não estava bem” (Manuela).

Minha irmã mais velha desenha muito bem. Mas eu não tenho jeito, não sei fazer. Eu ficava olhando os desenhos dela e gostava” (Dora).

Certa vez, na escola, a professora reclamou com a minha mãe que eu não sabia pintar, que eu não combinava as cores. Eles tinham um livro de pintura, valia nota. Então eu tinha que pintar direito, dentro da linha, no limite e com as cores certas” (Cleo).

No contexto da escola, os modelos e a falta de sentido fazem-se evidentes nas experiências rememoradas e carregam consequências no distanciamento da criação gráfico-pictórica da vida adulta.

A formação estética dá-se entre miudezas e mediadores

Entre os dados biográficos produzidos nos ateliês, parte dos quais foram apresentados na sessão anterior, destacamos para análise disparadores de experiências sensoriais significativas e/ou marcadores importantes da formação das sensibilidades, aspectos constitutivos dos percursos de formação estética: a presença de mediadores das experiências, o contato com elementos da natureza como iniciação estética, as oportunidades e/ou limites de experimentação das linguagens expressivas, o corpo, sua contenção e/ou expansão.

Entre os mediadores das experiências, as figuras parentais são lembradas e nomeadas nos relatos de ativação dos sentidos: pais, avós, tias aparecem como ligação primordial com o mundo ao redor, mormente na infância. Os avós são as principais “figuras de ligação” presentes nas narrativas, tendência já observada em relatos de formação nas pesquisas de Josso (2006). Ao considerar as histórias de vida como revisitação dos elos que nos habitam, a referida pesquisadora assinala: “Os laços de parentesco são, indubitavelmente, os mais evocados nos relatos [...]. É preciso mencionar aqui o lugar bem particular que ocupam os avós na quase totalidade dos relatos” (JOSSO, 2006, p. 376).

Os gestos, os sentimentos e a participação que envolvem a descoberta do encantamento pelo mundo aparecem em grande parte no encontro afetivo com os avós e os territórios em que habitam - a aldeia, a casa, a horta, o quintal, o jardim -, são citados como lugares preferidos na lembrança das crianças que foram.

A aldeia dos avós era meu sítio preferido. Saudades tenho do avô e a cumplicidade de brincar com ele” (Amália).

Vivendo eu num apartamento, não tenho quintal, mas desenhei o da casa dos meus avós. Atualmente a estrutura mantém-se, mas já não temos estes animais todos. Mas quando eu era pequena, era assim” (Sueli).

“[Levo comigo o] gosto da tarte de amêndoa da tia Joaquina, e da comida feita pela avó. E o sabor dos figos apanhados diretos da figueira da tia-avó. O cheiro do pinhal, o cheiro da vindima” (Manuela).

Meu sítio preferido era o campo, onde ia procurar cogumelos junto com meu pai. Parecia muita aventura. Gostava de estar, de participar com ele” (Cleo).

A figura [recortada e colada no caderno] é por lembrar do rio onde eu ia com meu avó; era perto da casa, tinha pedras e ramagens” (Carmen).

Pistas sobre a formação estética estão nos tempos, nos lugares e nas materialidades que atravessaram a ativação dos sentidos na infância: as lembranças contam de fazeres de corpo inteiro, com água, terra, árvores, folhas, frutos que compunham, por assim dizer, um território que convidava à experimentação. A natureza, povoada de campos, quintais, pomares, jardins, converte-se em ateliês, lugares de provar sensações, de deleitar-se com os elementos naturais e suas propriedades, que provocam os sentires de qualquer criança que está a descobrir o mundo, a experimentar seus sabores e cheiros e texturas e cores e sons - areia do rio e da praia, terra molhada, casca de árvore, folhas, relva, pedras; os animais (o pelo do cavalo, do gato, da ovelha nomeadamente), árvores frutíferas, a chuva, são elementos que compõem as experiências sensoriais, de modo geral, por todas as participantes.

Essa presença dos elementos da natureza como experiências significativas, e, por isso, marcadas na memória, reitera percursos presentes em narrativas docentes evidenciadas em outros estudos. A pesquisa de Silva (2017), por exemplo, ouviu professoras da Educação Infantil sobre seus itinerários de formação estética, e os conteúdos visibilizados por meio de entrevistas narrativas apontam os espaços da natureza e o contato com elementos naturais - água, terra e fogo - como eventos potenciadores da educação da sensibilidade, como tempo e lugar privilegiados de iniciação estética. A autora analisa que:

A relação com o corpo na vida e na natureza, em diferentes tempos, envolve criatividade, sensibilidade, imaginação e sentimentos. São momentos em que as professoras reconhecem que aprender sobre o mundo se dá de maneira estética, desde o prazer do contato com o meio ambiente às possibilidades de imaginação e criação. [Nas narrativas] Vemos o lugar da poesia ser nutrido na interação com o mundo natural, revelando a vitalidade de continuarmos, enquanto adultos, ligados à natureza. (SILVA, 2017, p. 175).

O trabalho de Corrêa (2018) também aponta o contato com a natureza como um elemento significativo de formação das sensibilidades. Ao buscar identificar o lugar da arte na história de vida e na docência de professoras da Educação Infantil, a autora encontrou, nas narrativas docentes, experiências com/na natureza que se mostraram vias importantes de formação estética. Nas palavras da autora:

O contato com a natureza aparece também como importante elemento de formação estética, surge como um espaço de inspiração, meio sensibilizador do olhar, incentivador da imaginação e da criação, despertando sensações e emoções que retomam a beleza. O quintal da casa traz memórias da infância que, no contato com a natureza, através das brincadeiras, é lugar de poesia [...]. A sensibilidade estética é tocada e cultivada não apenas no encontro com a arte e produções artísticas, mas no encontro com tudo que nos rodeia, sobremaneira os elementos, territórios e paisagens na natureza. (CORRÊA, 2018, p. 140).

Albano (2018), ao discutir imaginação e experiência artística na infância, retorna a sua própria infância e traz memórias de seu primeiro ateliê: a fazenda de seu avô. Sua narrativa poética corrobora as indicações referidas à natureza como um espaço-tempo de iniciação estética, reforçando a ideia de que as sensibilidades são tecidas nas relações com a natureza, a arte, a cultura, e mediados por “figuras de ligação” (JOSSO, 2006) significativas.

A fazenda Tabarana, do vovô Raul, foi meu primeiro ateliê [...]. O pomar era o “almoxarifado” do ateliê, sempre repleto de materiais disponíveis para nossas criações. Frutas ainda verdes transformavam-se em animais, que habitavam pequenos currais construídos com gravetos [...]. Fonte inesgotável de experiências sensoriais, a fazenda era pródiga em cores, texturas, aromas e sabores. [...]. As experiências sensoriais, com as cores, os aromas, sabores, texturas povoaram a minha imaginação, foram matéria prima para meus desenhos, minhas histórias, minha estética pessoal, que impregnou, mais tarde, minha concepção de infância e de experiência estética. (ALBANO, 2018, p. 9-11).

Como indicado na caracterização geral das participantes, vê-se que são provenientes de aldeias e vilas ou têm com elas muita proximidade, ligações familiares e afetivas fortes. Pensando na vida aldeã e em suas paisagens, um quadro com campos de plantações, cultivo da terra, produção de alimentos, criação de animais é facilmente pintado na imaginação. Certamente, por fazerem parte dessa geografia, as participantes têm franqueado o contato com a natureza e, portanto, revelam suas marcas na construção biográfica.

Ao tratar de biografia, corpo e espaço, Delory-Momberger (2012) chama atenção para o fato de que a dimensão espacial também constitui a experiência, a relação sensível que mantemos com o espaço, a partir da unidade espacial básica. Nosso corpo define pontos de vista, relações e modos de representação de si e do outro. Segundo a autora:

O espaço não é apenas um continente, um receptáculo de nossos estados e de nossas ações, ele é parte integrante de nossa experiência, é constitutivo de nossa experiência. Em primeiro lugar, o espaço é constitutivo de nossa experiência pelo fato de que nós mesmos somos espaço: nosso ser corporal pertence à extensão e à materialidade do espaço; somos, portanto, espaço no espaço. O núcleo original de nossas experiências é constituído por essa relação sensível e dinâmica de nosso corpo-espaço com o espaço que nos engloba e no qual encontramos outros corpos-espaço. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 66, grifos da autora).

Na textualização das experiências, as participantes de nossa pesquisa espacializaram recorrentemente o conteúdo narrativo: a sua casa, o seu quarto, o sótão da casa, a casa dos avós, o campo, a praia, o rio, a horta e o jardim dos avós, a cozinha da tia, o pátio da escola, a rua, delimitando uma geografia, como aponta Delory-Momberger (2012). Pelas suas características físicas e pela constituição de elementos socioafetivos abertos, tal geografia convidava à exploração sensorial, de certo modo definia a tipologia experiencial e, no relato biográfico, determinou o pensamento que deu forma à narrativa. Características físicas, sociais e culturais do espaço - urbano ou rural, central ou periférico, domésticos ou públicos, privados ou coletivos, abertos ou fechados etc. - oferecem recursos para determinados modos de pensar, de sentir e de agir, conduzindo a apropriações, representações e elaborações de retratos de si. As palavras da referida autora clarificam a questão:

Cada um de nós constrói e desenvolve uma cartografia que lhe é própria, descritível em termos de lugares, de sítios, de territórios, de redes, de conexões, de trajetos etc., que não é impossível de ser reconstituído. [...]. É no quadro dessa geografia pessoal que precisamos levar em conta aquilo que eu chamarei de espaço significado, isto é, o espaço tal como está aberto as nossas representações, às significações e aos valores que emprestamos a eles. (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 74, grifos da autora).

Os dados biográficos evidenciados em nossa pesquisa reforçam a centralidade dos lugares na natureza como espaços vivos, “espaços significados” pelas narradoras como territórios, trajetos, lugares de sensibilização primeira, experimentados com o corpo, todos os sentidos.

A discussão posta, sobre o corpo no/com espaço como dimensão da experiência biográfica, conduz-nos aos estudos de Rugira (2008), que trazem o corpo e a sensorialidade para a pesquisa, o trabalho e a discussão do campo das abordagens autobiográficas. De tal forma, a autora defende para as práticas autobiográficas procedimentos experienciais que contribuam não apenas o “conhecimento de si”, pela via reflexiva do pensamento, mas a “prática de si” (RUGIRA, 2008, p. 86), pela via da ação, que é corporal, sensorial, direcionada ao refinamento da percepção e da atenção, articulando sentir e pensar. Esse aspecto ajuda-nos a lançar luzes sobre algumas regiões que ficaram à sombra do processo mas que, identificadas, oferecem um campo fértil para a reflexão sobre formação estética docente. Conforme descrito na metodologia da pesquisa, a organização dos encontros-ateliê primava pelo contato com materialidades e propostas artístico-expressivas, que pressupunham o movimento do corpo, a experimentação sensorial, o deslocamento perceptivo e a provocação de processos criativos. De início, notou-se reações de desconforto, de pouca disponibilidade à entrega, à experimentação, à “prática de si” de corpo inteiro. Rabiscar, entrar na roda, cantar, contar com múltiplas linguagens pareciam ações corporais estranhas. Corpos pouco à vontade, nesse primeiro momento, os gestos revelados, entre receosos e contidos, foram interpretados como marcas de práticas sociais, sobretudo escolares, que operam pelo controle, pela uniformização e pelo silenciamento de expressividades e de linguagens autorais.

Atravessada essa primeira fase, o relaxamento dos corpos, a abertura e a disposição para entrar na roda, entrar no diálogo proposto de sentir e de pensar sobre a formação das sensibilidades pelas vias do fazer, fizeram-se evidentes nos gestos que se iam redefinindo. Por exemplo, um gesto primevo como o que marca o desenho apareceu nas narrativas como controlado, reprimido e, ao longo dos encontros-ateliê, foi sendo visibilizado. As noções cristalizadas do que é belo e do que é feio, do que é um desenho bom ou ruim, do que é certo ou errado no âmbito das práticas artísticas e, por consequência, das práticas docentes relacionadas à arte, ganharam espaço para serem trazidas à consciência, enunciadas e questionadas. Gostar ou não gostar de desenhar, de produzir desenhos ou de não desenhar, foram identificados como elementos que formavam suas sensibilidades e estavam impregnados na imagem de si como não capazes de criar, de produzir desenhos, particularmente.

Contudo, como bem escreveu uma participante:

É preciso fazer para gostar de arte; fazendo pode-se desmistificar a ideia de que não se tem jeito, ou de que não se gosta disso e daquilo. Por exemplo, a dramatização: alguém pode não ter jeito, mas vai achando. Porque [a arte] é um conhecimento, necessário para o educador da infância” (Manuela).

No caso dos encontros-ateliê, a disposição para colocar-se em experiência de corpo inteiro foi essencial para provocar sentidos, rememorar, narrar e projetar a possibilidade de construir outros significados - com relação aos seus processos criativos e à arte na escola, na vida - o que é como tarefa, contínua, de cada uma.

Da metodologia a implicações para os cursos de formação: considerações finais

Para finalizar, tecemos considerações sobre a metodologia, sobre a dimensão estética e, a partir destas, sobre implicações para os cursos de formação docente. A metodologia, assumindo a forma de ateliês, propiciou o contato com fazeres-saberes artísticos-artesanais e, assim, ofereceu oportunidades para a abertura de canais expressivos do sujeito aprendente, de corpo inteiro e multidirecionado. Consideramos que a forma e o conteúdo dos procedimentos que sustentaram os encontros-ateliê os validaram não apenas como dispositivo para a pesquisa, mas como um instrumento de formação que propicia, além de um conhecimento de si, a prática de si (RUGIRA, 2008). Esse modo de fazer e dizer-se utilizando múltiplas linguagens (artísticas, artesanais, científicas) desloca os sujeitos aprendentes de simples leitores e consumidores de produções culturais para autores, como nos diz Sérgio Niza, na entrevista concedida a Peças (2005), como produtores das suas linguagens e narrativas. Essa mudança de lugar no processo formativo, como possibilidade de alargar a percepção, contribui para cada um e cada uma (re)ver-se como ser sensível, capaz de adentrar-se no domínio de diversas linguagens - de modo a conhecer, fruir e produzir no diálogo com a arte e a cultura, e não apenas falar, de modo distanciado e não implicado, sobre elas.

Sobre a dimensão estética nas histórias de vida, reiteramos que vai sendo tecida com miudezas, não apenas com os fios da arte, mas, sobretudo, da natureza, elemento formativo preponderante na infância das participantes. As experiências que conectam sensibilidade, cognição e afeto se fazem com a presença de figuras de ligação, em vínculos que ajudam a ampliar sentidos e significar a vida. Quiçá pudessem os professores dos cursos de formação se constituírem em figuras de ligação, que aproximassem as dimensões sensíveis implicadas no ato educativo!

Os resultados da pesquisa também apontam para a essencialidade de colocar-se à escuta de professores em formação, abrindo espaço para narrativas de memórias e miudezas que constituem seus itinerários de formação estética, prestando atenção e acolhendo sua inteireza. Os cursos de formação docente precisam garantir oportunidades para a reconexão do adulto com suas linguagens, pela experimentação e expressão com o corpo inteiro, todos os sentidos, para que ganhem confiança nas suas potencialidades criativas. É preciso apoiar processos de (re)reconhecimento de experiências e saberes artístico-culturais de professores em formação, para que possam acolher e potenciar, nos estudantes com quem virão a trabalhar, as múltiplas possibilidades de expressão e de sensibilidade estética, contribuindo para se construírem autores.

1A investigação que dá base ao presente artigo foi desenvolvida junto à Universidade de Évora - Portugal e contou com o apoio (bolsa de pesquisa) do Programa Professor Visitante no exterior da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior 2017/2018- CAPES nº 45/2017.

2Em Portugal, a habilitação para a docência na Educação Infantil e no Ensino Fundamental configura-se em duas fases: Licenciatura em Educação Básica de três anos, comum a todos os docentes (Educação Infantil e Ensino Fundamental 1ª a 6ª série), mais um Mestrado de 3 ou 4 semestres conforme se opte, respectivamente por habilitação para Educação Infantil ou Ensino Fundamental (1ª a 4ª série) ou por uma habilitação que combina as duas valências (caso do Mestrado em Educação Pré-escolar e Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico). Para outras informações, consultar: Folque (2018).

3Os nomes próprios foram substituídos, conforme acordo no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) assinado pelas participantes.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Aceito: 28 de Setembro de 2020

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