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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 31-Oct-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.83438 

DOCUMENTOS - Centenário de Paulo Freire

O que Paulo Freire tem a nos dizer há cem anos do seu nascimento 1

Massimiliano Fiorucci* 
http://orcid.org/0000-0002-9927-6095

* Università degli Studi Roma Tre. Roma, Itália. E-mail: massimiliano.fiorucci@uniroma3.it


RESUMO

A contribuição centra-se na figura de Paulo Freire cem anos após o seu nascimento, com o objetivo de enfatizar a importância da leitura deste autor para compreender e decodificar o presente e trazer à tona as formas de opressão ainda presentes no mundo contemporâneo. A contribuição também destaca a relação entre educação e política em Freire e seu compromisso profético com as questões da educação intercultural.

Palavras-Chave: Paulo Freire; Educação intercultural; Itália

RIASSUNTO

Il contributo si sofferma sulla figura di Paulo Freire a cento anni dalla sua nascita con l’obiettivo di sottolineare come sia importante ancora oggi leggere questo autore per comprendere e decodificare il presente e far emergere le forme di oppressione ancora presenti nel mondo contemporaneo. Il contributo, inoltre, evidenzia il rapporto tra educazione e politica in Freire e il suo impegno profetico sui temi dell’educazione interculturale.

Parole Chiave: Paulo Freire; Educazine interculturale; Italia

ABSTRACT

The present paper focuses on the figure of Paulo Freire one hundred years after his birth. It aims at emphasizing how nowadays it is important to read Freire to understand and decode the present and to bring to light the forms of oppression that are still present in contemporary world. This contribution also highlights the relationship between education and politics in Freire’s philosophy and his prophetic commitment related to issues of intercultural education.

Keywords: Paulo Freire; Intercultural education; Italy

Pensar a história como possibilidade significa reconhecer a educação como possibilidade. Significa reconhecer que, mesmo que a educação não possa fazer tudo sozinha, certamente pode, porém, alcançar alguns resultados. A sua força está na sua fraqueza. Paulo Freire (1971).

Há cem anos, em 19 de setembro de 1921, nascia no Brasil Paulo Freire, destinado a se tornar uma pedra miliar da pedagogia mundial, com uma visão e uma perspectiva - que lhe custaram inclusive o exílio - que influenciaram fortemente o modo de entender a educação em chave emancipadora. Em uma inédita elaboração intelectual, bem nutrida pelo estudo do personalismo, do marxismo, da teologia da libertação, por um horizonte cultural intimamente cristão e sensível às instâncias anticolonialistas, Freire se colocou, desde os anos 1960, como um grande inovador do pensamento pedagógico, com uma teoria e uma visão da práxis que ainda hoje, com as contradições do mundo contemporâneo, parecem falar tanto ao tempo presente como ao futuro.

O mundo em que atua Paulo Freire é o da guerra fria e da decolonização e, mais especificamente, aquela realidade tão densa de injustiças que é o Brasil da época. Nascido no Recife, após uma formação jurídica, mas também filosófica e psicológica, em 1946 é nomeado Diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social do Estado de Pernambuco. Já nesse momento, em um contexto em que o direito ao voto é garantido a quem possui instrução, Freire começa a demostrar forte atenção aos adultos analfabetos, em uma moldura teórica não distante da teologia da libertação, em que confluem a sua fé cristã e uma visão próxima ao marxismo gramsciano. Bem no início dos anos 1960, a aplicação do seu método para permitir a sujeitos adultos que aprendessem a ler e a escrever estimula o nascimento de milhares de círculos culturais dedicados à luta contra o analfabetismo. Chegam, com a ditadura militar, os anos do exílio, durante os quais se empenhou no Movimento Cristão Democrático de Reforma Agrária no Chile. É nesse período que Freire começa a escrever as suas mais importantes obras, destinadas a se tornar uma referência imprescindível para a pedagogia mundial e para aqueles universos da educação em tensão com as grandes injustiças e as desigualdades: “A educação como prática da liberdade” (1967), “A pedagogia do oprimido” (1968), “Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido” (1992).

Desde 1980, tendo voltado ao Brasil, dedica-se à atividade política com o Partidos dos Trabalhadores, ocupa cargos de responsabilidade na área da educação e continua a sua honrosa obra no campo pedagógico. Morre em 1997. Supérfluo sublinhar o quanto a sua pedagogia do oprimido tenha sido relevante para inspirar o grande diretor brasileiro Augusto Boal a afinar as perspectivas e as técnicas do conhecido Teatro do oprimido.

A cem anos do nascimento de Paulo Freire se pode considerar ainda atual a sua pedagogia? O seu método educativo pode contribuir para o esclarecimento dos problemas educacionais nas hodiernas cidades consumistas e globalizadas? Por que continuar a ler Paulo Freire? Era exatamente este o título do prefácio de Moacir Gadotti à nova edição italiana de “A pedagogia do oprimido”, lançada em 2002, à distância de mais de trinta anos da primeira edição, a de 1971, organizada e com introdução de Laura Bimbi (FREIRE, 1971). Hoje a pergunta de Moacir Gadotti permanece válida e de rigorosa atualidade: é necessário ler e/ou reler Freire porque são ainda tantas as formas de opressão (mais ou menos evidentes) presentes nas nossas sociedades, e Freire nos recorda que a educação, a cultura, a ciência são, antes de tudo, um instrumento de libertação e de emancipação.

Não é possível, nesta sede, identificar todas as formas de opressão presentes na nossa sociedade, mas com certeza podem ser identificadas algumas categorias de sujeitos oprimidos: aqueles que possuem fracos níveis de instrução e que não têm condições de realizar escolhas totalmente livres e conscientes, os migrantes que, na maior parte dos casos, veem-se obrigados a aceitar e a realizar os trabalhos chamados de 5 P (precários, pesados, pagam pouco, penalizados socialmente, perigosos) em um quadro geral de integração “subalterna” ou de inclusão subordinada, as mulheres que - com paridade de títulos de estudo - ganham menos do que os homens e somente raramente conseguem alcançar posições superiores, os NEET (Not in Education, Employment or Training), uma parte dos jovens, os precários e assim por diante.

Alguns dados sobre a instrução na Itália podem ajudar a definir melhor a questão. Os dados dramáticos sobre a evasão escolar e sobre os chamados NEETs são muito eloquentes a propósito2. Uma situação tão grave não caracteriza somente a escola obrigatória. Se se considera o número daqueles que possuem um título de estudo universitário, a Itália se coloca no final das classificações europeias. Mais um elemento crítico diz respeito à população adulta e ao que é definido como “analfabetismo funcional”: os cidadãos italianos se colocam no final da classificação sobre os saberes essenciais para se orientar na sociedade do terceiro milênio. A identidade real do sistema social e formativo como o italiano - que ainda realiza uma distribuição diferenciada dos conhecimentos com base em fatores de orem social, de gênero, territorial e de nacionalidade - contradiz a autorrepresentação que a nossa sociedade tem de si mesma como de uma sociedade moderna que forneceria a todos as mesmas oportunidades de vida e de trabalho. Trata-se, em outros termos, de uma sociedade ainda fortemente dividida entre opressores e oprimidos, para usar uma terminologia introduzida por Paulo Freire. Isso determina uma situação bastante perigosa, em que há algumas pessoas (poucas) capazes de realizar escolhas livres e conscientes, exercendo o pensamento crítico e tantas outras (demasiadas) que não dispõem dos instrumentos mínimos para desconstruir as falsas representações e as fáceis simplificações das demagogias e dos populismos.

O que, então, pode nos dizer Paulo Freire hoje?

A obra de Paulo Freire se caracteriza como uma visão pedagógica total: uma espécie de pedagogia do homem e do diálogo, densa de aspectos e de referências antropológicas, sociológicas e filosóficas. Freire, de fato, foi um alfabetizador e educador de adultos não somente no Brasil, mas também no Chile e na África das ex-colônias portuguesas, enquanto ao mesmo tempo mantinha contato com Universidades e outras instituições educativas norte-americanas, suíças e também italianas. Inclusive, em consequência desses elementos há quem tenha falado dele como um verdadeiro e próprio “educador do mundo” (TAGLIAVIA, 2011). Dentre as tantas referências do pensamento freiriano está o personalismo cristão do filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973) - uma influência que pertence sobretudo à primeira fase da sua elaboração; as teorias sobre a linguagem do psicólogo cultural soviético Lev Semenovic Vygotski (1896-1934) - com particular referência à parte do trabalho especificamente dedicada ao Método Paulo Freire; a teoria da hegemonia e da subalternidade do filósofo e político italiano Antonio Gramsci (1891-1937), que, além do mais, aproxima o pedagogo brasileiro à corrente dos estudos pós-coloniais.

Paulo Freire, no quadro das pedagogias do séc. XX, representa, sem dúvida, um dos autores que podem ser definidos como pensadores críticos. O importante pedagogo brasileiro, de fato, durante toda a sua atividade científica e militante identifica duas concepções de educação contrapostas entre si: a educação “depositária” (termo com o qual é traduzido o português bancária) e a educação “problematizadora”. Uma conserva e confirma, a outra produz consciência crítica e é o pressuposto da libertação. A educação, de fato, torna-se, para Paulo Freire, um percurso de libertação.

Freire escreve a sua obra principal, “A pedagogia do oprimido”, em 1968. Ele é uma testemunha significativa da América Latina dos anos 1960: um contexto objeto de muitas mudanças políticas e de reviravoltas autoritárias, que por vezes levaram, como no caso do Brasil em 1964, a violentas ditaduras militares. Freire, após ter participado como educador do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e de várias iniciativas de alfabetização das populações rurais, foi mandado para o exílio: viveu primeiro no Chile, onde publicou “A pedagogia do oprimido” e outras obras fundamentais da sua produção - entre as quais “A educação como prática da liberdade” - e depois na Suíça.

A educação bancária, segundo Freire, é um modelo de educação normativa e injusta, em que o educador educa e os educandos são educados, o educador sabe e os educandos não sabem, o educador fala e os educandos escutam docilmente. A educação problematizadora, ao contrário,

[...] é intencionalidade, porque é resposta ao que a consciência profundamente é, e, portanto, rejeita os comunicados e torna essencialmente verdadeira a comunicação... Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir conhecimentos e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação bancária, mas sim um ato cognoscente (FREIRE, 2002, p. 67-68).

Esta concepção dialógica da educação e do ato de ensinar, fundamental no pensamento freiriano, será retomada também em um dos últimos escritos do pedagogo brasileiro, “Pedagogia da autonomia”, inteiramente dedicado ao tema da formação docente, em que ele afirma que “quem ensina, no ato de ensinar aprende, e quem aprende, no ato de fazê-lo, ensina” (FREIRE, 2004, p. 21). E ainda:

[...] ensinar, aprender e pesquisar têm a ver com esses dois momentos do ciclo gnoseológico: aquele em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente, e aquele em que se trabalha na elaboração do conhecimento que ainda não existe. A “dodiscência” - a docência-discência - e a pesquisa acabam assim por ser práticas essenciais - e inseparáveis - desses momentos do ciclo gnosiológico (FREIRE, 2004, p. 25).

Também nesse livro, publicado pela primeira vez em 1996, confirma-se que

[...] um dos saberes indispensáveis é que quem é formado, desde o início da sua experiência, considere-se ele também um sujeito que produz saber, e se convença de uma vez por todas de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para produzi-lo ou construí-lo (FREIRE, 2004, p. 24).

Formar, em outros termos, é muito mais do que adestrar uma pessoa, grande ou pequena, jovem ou adulta, ao uso de algumas habilidades. Ensinar exige compreender que educar é uma forma de intervenção no mundo; educação nunca foi, não é, nem pode ser neutra, “indiferente”. Freire enfatiza como não há ensino sem aprendizagem e, portanto, ensinar exige pesquisa, capacidade crítica e reflexão crítica sobre a prática. Ensinar, como se disse, não é transferir conhecimento, e exige curiosidade, passando de uma curiosidade ingênua a uma curiosidade epistemológica. Ensinar, como enfatiza Freire, é uma peculiaridade humana e exige que nos comprometamos, compreendendo que educar é uma forma de intervenção no mundo. Os professores e os educadores devem saber escutar e estar disponíveis ao diálogo, reconhecendo que a educação é ideológica, tomando posição sobre as questões importantes.

As temáticas principais enfrentadas por Freire no livro “A pedagogia do oprimido” dizem respeito à interpretação da realidade como dinâmica de opressão/libertação, à concepção problematizadora da educação, ao conceito de diálogo e de anti-diálogo, aos aspectos metodológicos do processo de alfabetização. Este último é considerado central não somente como método “científico” para aprender a ler e a escrever, mas também como condição prioritária para a participação política, e a consequente libertação, do oprimido. A dialética oprimido/opressor remete, como evidencia explicitamente o próprio Freire, à dialética hegeliana servo/senhor: o oprimido, para Freire como para Hegel, adquirindo a própria humanidade com o processo de libertação, restitui humanidade inclusive ao próprio opressor, libertando-o. As duas fontes principais do pensamento de Freire são, portanto, o personalismo cristão de J. Maritain e o marxismo (a realidade como dialética opressores/oprimidos e a educação como instrumento de transformação da realidade).

No que diz respeito ao método Paulo Freire, em particular, ele se baseia nas “palavras geradoras” e nas “imagens-situação”. Estas duas estratégias permitem focalizar a atenção em um tema que permite primeiramente um processo de “conscientização”, por parte do analfabeto, da sua condição de oprimido - através da discussão sobre temas suscitados por um debate: a casa, a saúde, o trabalho, a natureza, os processos culturais, etc. - e, em seguida, o processo de escrita e de alfabetização, que conduz ao que Freire chama de “libertação”. A libertação nunca acontece em solidão: é toda a comunidade do “círculo de cultura” que se liberta em conjunto, tomando consciência dos mecanismos injustos da sociedade.

A relação entre educação e política no pensamento de Freire põe, de modo eficaz, interrogações sobre a questão da gestão do poder. Educação e política são duas dimensões da experiência humana estreitamente conectadas no seu pensamento, assim como na vida do pedagogo brasileiro. Na proposta pedagógica de Freire, elas são unidas pelo processo de conscientização, porque somente através do desenvolvimento de uma consciência crítica e dialógica o indivíduo pode empreender ações significativas no plano sócio-político.

Freire enfatiza assim os riscos de uma educação “neutra”, que não se defina, que não tome posição, da qual devem ser reconhecidas as inadequações e responsabilidades históricas justamente por ter contribuído para sustentar regimes políticos opressores: deve ser, então, reforçada a função social da educação, que consiste essencialmente em produzir política e sociedade novas.

Para evitar a reprodução e a manutenção da ideologia dominante, a ação educativa, não sendo neutra, impõe a escolha de lados: o educador adere, aceita, convive ou com os interesses dos dominadores ou com os dos dominados, cujos direitos são negados. Não é possível invocar a neutralidade diante da relação opressor-oprimido, porque inevitavelmente se favoreceria o poder e, com ele, o opressor. Toda educação ou está a serviço da opressão ou então, se quiser evitar isso, deve necessariamente se comprometer em um processo de libertação; a própria ideia de liberdade, além disso, adquire o seu pleno significado somente quando se identifica com um compromisso concreto dos homens pela sua libertação.

Deve-se ainda considerar o fato de que o projeto de alfabetização de Freire produzia consequências políticas em um país como o Brasil, onde, nos anos 1960, diante de um baixo número de eleitores (cerca de 15 milhões, em uma população com idade acima de 18 anos de 34,5 milhões de pessoas3), uma vez alfabetizada, a população mais pobre estaria em condições de votar.

Os questionamentos que hoje Freire obriga a encarar são essencialmente dois: quando educamos, como administramos o poder que possuímos? E além disso, a nossa ação educativa contribui para a manutenção da ideologia dominante ou propõe a mudança no mundo de estruturas e mecanismos iníquos?

As transições socioculturais do nosso tempo podem ser compreendidas e enfrentadas com as chaves interpretativas e de intervenção propostas por Freire.

A reflexão pedagógica encarou nestes anos as problemáticas relativas ao encontro entre as diversas culturas considerando-as uma temática de base. O compromisso pessoal de educador impõe ao pedagogo brasileiro que encare abertamente a cultura alheia, sem ceder a nenhuma tentação etnocêntrica e evitando qualquer invasão cultural evidente ou camuflada.

O programa pedagógico de Freire é, sem dúvida, um projeto “intercultural”, antes de mais nada na sua tentativa de dar início a um processo dinâmico de crescimento e de mudança no encontro com sujeitos de diversas culturas.

O pedagogo brasileiro age com respeito à individualidade do mundo de quem encontra, independentemente do seu grau de alfabetização: ele não procura transmitir os conhecimentos do mundo ocidental, mas favorecer nas populações do Sul do mundo o desenvolvimento de um senso crítico próprio.

O caráter de interculturalidade do projeto do pedagogo brasileiro se exprime ainda no seu compromisso moral para reestabelecer uma posição de real paridade entre as pessoas de diferentes culturas, tanto no Brasil quanto nas outras partes do Sul do mundo.

De fato, o debate pedagógico sobre a interculturalidade enfatizou, por várias vezes, que no encontro entre pessoas que fazem referência a diversas culturas um dos dois sujeitos se encontra, na realidade, em uma situação de subalternidade, porque pobre, no caso do Brasil, ou sujeito a mecanismos iníquos no Sul do mundo ou - poderíamos acrescentar - migrante ou pobre, no caso de um país no Norte do mundo.

Um projeto intercultural deve, portanto, estar ligado também a um empenho moral para reestabelecer equidade entre os dois sujeitos da relação, e o compromisso de Freire, através da dialética entre teoria e prática, reflexão e ação, é justamente voltado a esse sentido, ou seja, a permitir aos indivíduos a passagem a uma nova consciência crítica da própria situação e ao pleno exercício dos próprios direitos sociais e civis.

O próprio método de alfabetização de Paulo Freire aporta ainda uma outra contribuição importante ao debate pedagógico contemporâneo sobre a interculturalidade: em particular, a atenção voltada pelo pedagogo brasileiro à educação permanente e às linhas teóricas do seu método de alfabetização fornecem princípios e sugestões utilizáveis também nos processos educativos dos estrangeiros adultos no nosso país, por exemplo, na aprendizagem do italiano como segunda língua ou na formação profissional.

A pedagogia de Freire permanece, portanto, hoje, um válido instrumento voltado a todos os “oprimidos” do mundo, que precisam de uma práxis de libertação da subalternidade.

A contribuição de Freire está ligada, portanto, também às temáticas da educação intercultural, na medida em que a sua abordagem pedagógica pode se definir “desconstrutiva”: ela tende, justamente, a desconstruir mitos, preconceitos, esquemas mentais - sobre a superioridade dos ricos sobre os pobres, dos brancos sobre os negros, dos líderes políticos sobre as massas - que se difundiram profundamente em muitos países do Sul do mundo colonizado pelo Ocidente. Além disso, é muito importante o conceito de “cultura” como esforço criador contínuo do homem, que nunca se torna estático em um bloco monolítico e está em constante mutação e movimento. “a invasão cultural é a penetração dos invasores no contexto cultural dos invadidos, sem respeito pelas potencialidades do ser, que ela condiciona, quando eles impõem a visão de mundo deles e freiam a criatividade, inibindo a expansão dos invadidos” (FREIRE, 2002, p. 149).

Ao contrário,

[...] na síntese cultural, que é o oposto da invasão cultural, os ‘atores’ não chegam ao povo como invasores, enquanto na invasão cultural os atores entram do mundo deles no dos invadidos, levando com eles um conteúdo temático para a ação, extraído dos seus critérios de valor e da sua ideologia. Na síntese cultural os atores, mesmo que cheguem de um ‘outro mundo’, chegam para conhecê-lo com o povo e não para ‘ensinar’, ou transmitir, ou entregar algo ao povo (FREIRE, 2002, p. 180).

Tudo isso é afirmado por Freire na convicção de que

[...] toda ação cultural é sempre uma forma sistemática e deliberada de ação que incide sobre a estrutura social, ora no sentido de mantê-la como é, ora no sentido de transformá-la... A ação cultural ou está a serviço da dominação (consciente ou inconsciente por parte dos seus agentes) ou está a serviço da libertação dos homens (FREIRE, 2002, p. 179).

O empenho pedagógico, moral e político de Paulo Freire foi, indubitavelmente, “profético”: a leitura das suas obras, talvez frequentemente esquecidas, nos exorta ainda hoje a pensar e realizar uma pedagogia dos oprimidos.

Pelas razões acima expostas acima, mas não somente, a Sociedade Italiana de Pedagogia (SIPED) decidiu organizar uma conferência em sua homenagem na Universidade de L'Aquila nos dias 24 e 25 de junho de 2021. A conferência intitulada Pedagogia e política, por ocasião dos 100 anos do nascimento de Paulo Freire acolheu as comunicações de alguns dos principais estudiosos europeus (Peter Mayo e Marco Catarci), bem como de jovens e juveníssimos estudantes de pedagogia italiana. Uma conferência sobre Freire, mas também em torno de Freire, para explorar, aprofundar e relançar a grande lição do estudioso brasileiro, em que a relação entre pedagogia e política se torna inevitável, intrínseca a qualquer escolha, projeto, ação que se realiza na educação. Em Freire essa relação é, na verdade, muito próxima, numa visão de educação carregada de tensões utópicas e transformadoras, em que se constrói uma ideia de mundo que vê como projeto, precisamente político, a libertação dos constrangimentos da opressão, a conscientização dos mais fracos e excluídos, o uso pacífico e libertador da palavra como uma forma de se conscientizar, reivindicar e obter justiça, sem criar novos laços de opressão. Os Anais da Conferência estão em processo de publicação e, no entanto, a íntegra da Conferência está disponível no site da SIPED4.

REFERÊNCIAS

CATARCI, Marco. La pedagogia della liberazione di Paulo Freire. Educazione, intercultura e cambiamento sociale. Milano: Franco Angeli, 2016. [ Links ]

FREIRE, Paulo. L’educazione come pratica della libertà. Milano: Mondadori, 1977. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia in cammino. Milano: Mondadori, 1979. [ Links ]

FREIRE, Paulo. La pedagogia degli oppressi., Torino: EGA, 2002. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia dell’autonomia. Torino: EGA, 2004. [ Links ]

TAGLIAVIA, Alfredo. L' eredità di Paulo Freire. Vita, pensiero, attualità pedagogica dell'educatore del mondo. Bologna: EMI, 2011. [ Links ]

2Um recente Dossier de “Tuttoscuola” (La scuola colabrodo, setembro de 2018), comparando o número dos que entraram em institutos técnicos, profissionais ou liceus e quantos deles saíram com um diploma, cinco anos depois, de 1995 até hoje, mostra como a Itália perdeu, ao longo do caminho, três milhões e meio de estudantes. A Itália está também em primeiro lugar no que se refere aos NEETs: segundo Eurostat a Itália se confirma em último lugar na Europa em relação à quota de jovens entre os 18 e os 24 anos que não têm um trabalho nem estão inseridos em um percurso de estudos ou de formação. O nosso país foi o primeiro em 2017 na classificação europeia, com um percentual de 25,7%, diante de uma média europeia de 14,3%.

3F. Weffort em introduzione a L’educazione come pratica della libertà de Paulo Freire (1977).

4Disponível em: https://www.siped.it.

1Traduzido por Luiz Ernani Fritoli. E-mail: fritoli@ufpr.br

Recebido: 14 de Outubro de 2021; Aceito: 28 de Outubro de 2021

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