O corpo se tornou um objeto de pesquisa que extrapolou os limites das ciências naturais e adentrou o campo das ciências humanas e, consequentemente, o domínio da história. Conforme Clever e Ruberg (2014), nos anos 1980 e 1990,
o “giro corporal”, oriundo especialmente da sociologia e da filosofia feminista contribuiu para consolidar o corpo como um objeto de estudo das ciências humanas, inclusive da história, onde encontrou grande recepção, especialmente entre os adeptos da história cultural.
Este interesse pelo corpo, entretanto, pode ser rastreado desde o início do século XX. Le Goff e Truong (2015) lembram que esse interesse começou pelas mãos de historiadores ligados à Escola de Annales, principalmente Lucien Febvre e Marc Bloch. Bloch inclusive afirmava que a história “(...) foi por muito tempo história despojada do seu corpo, da sua carne, de suas vísceras, de suas alegrias e desgraças. Seria preciso, portanto, dar corpo à história. E dar uma história ao corpo” (LE GOFF; TRUONG, 2015, p. 10). Segundo Le Goff e Truong (2015), a concepção de corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na vida cotidiana sofreram modificações em todas as sociedades. Por isso, fazer a história do corpo era fazer uma história de um esquecimento.
Ao longo do século XX, diversos autores das ciências humanas contribuíram para a consolidação dessas “aventuras do corpo”. Além dos já mencionados Lucien Febvre e Marc Bloch, podemos destacar o antropólogo francês Marcel Mauss, o sociólogo alemão Norbert Elias, os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer e o filosofo francês Michel Foucault. Parece haver um consenso de que especialmente os estudos de Elias sobre o processo civilizador e a obra de Foucault foram essenciais neste processo de transformação do corpo em objeto de estudo das ciências humanas (CLEVER; RUBERG, 2014; COOTER, 2010; GALÁN TAMÉS, 2009, SANT’ANNA, 1993). Estes autores contribuíram para colocar temas como as técnicas do corpo, as funções corporais e os diferentes mecanismos de repressão e controles dos impulsos corporais em lugar de destaque tanto de pesquisas historiográficas como sociológicas. Posteriormente, historiadores como Georges Duby, Paul Veyne e Jacques Le Goff também se mostraram atentos a uma história do corpo. Esta consolidação do corpo como um objeto de estudo das ciências humanas em geral é bastante recente, ganhando força especialmente a partir das duas últimas décadas do século XX. Em texto publicado originalmente em 1991, quando este campo ainda estava em construção, Porter1 apontava para a necessidade de “enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares, tanto privados quanto públicos, por eles mesmos alterados através dos tempos” (PORTER, 1992, p. 295). Naquele momento, o autor nos alertava para o fato de que uma história do corpo não poderia ser limitada a pensar suas estatísticas físicas ou suas representações. Pensar uma história do corpo seria, para Porter, “um chamado para a compreensão da ação recíproca entre os dois” (PORTER, 1992, p. 301). Vinte anos mais tarde, ao revisitar o texto original, o autor mantém sua posição de que os estudos sobre a história do corpo deveriam atentar-se às interrelações entre representações e aspectos físicos. Ao analisar a produção referente a estas questões, aponta para a necessidade de não deixar que a história do corpo se reduza “a rastrear ainda mais formas por meio das quais o corpo tem sido inquirido, normalizado, disciplinado, policiado e punido” (PORTER, 2001, p. 237).
Observação similar é feita por Clever e Ruberg (2014, p. 550), ao afirmar que “nos últimos vinte anos, abordagens construcionistas sociais e discursivas sobre o corpo se tornaram muito influentes, mas também sofreram ataques devido a sua presumida falta de atenção à experiência corporal individual”. Esta preocupação com uma ênfase potencialmente excessiva na questão dos discursos e representações sobre o corpo é compartida por Cooter (2010), ao apontar que alguns estudos da área, ao entender o corpo exclusivamente como uma representação, acabam transformando-o apenas em “atos discursivos”, deixando de lado sua materialidade. Neste sentido, estes autores apontam para a necessidade de pensar não apenas as representações sobre o corpo, mas também as práticas que incidem sobre ele.
Numerosos autores vêm se dedicando a pensar estas questões, e a variedade de publicações que abordam as numerosas práticas e representações sobre o corpo são um indício da consolidação desta temática no âmbito historiográfico. Exemplo disso é a coleção “Historie du corps”, organizada pelos historiadores Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello e publicada no ano de 2005. Estes autores, acompanhados de Jean-Claude Schmitt, Jacques Revel, Jean-Jacques Courtine, entre outros, têm constituído a base teórica para as reflexões de pesquisadores brasileiros e sul-americanos que vêm se dedicando a investigar temas relacionados à história do corpo e, mais especificamente, dos processos que o educam.
Soares (2001) indica que o corpo é educado por toda a realidade que o circunda. A autora evidencia que a educação do corpo se trata de um fenômeno polissêmico e marcado por uma série de prescrições científicas e pedagógicas. Afinal, a educação do corpo “(...) dá-se não só por palavras, mas por olhares, gestos, coisas, pelo lugar onde vivem (SOARES, 2001, p. 110)”. Neste, diferentes pedagogias foram estabelecidas tendo em vista diferentes objetivos e finalidades, principalmente aqueles ligados à educação e à saúde.
Nesse sentido, a noção de educação do corpo formalizada por Soares (2014) indica que a mesma se caracteriza pela progressiva repressão das manifestações corporais, tornando o corpo adequado ao convívio social, inserindo-o em processos de aprendizagens que buscam encobrir e apagar uma natureza rebelde e trazer à luz uma natureza pacificada. A autora salienta que, para ser exibido, o corpo precisa ser educado, e essas ações pedagógicas percorrem múltiplos caminhos, elaborando práticas contraditórias, ambíguas e tensas, que muitas vezes configuram verdadeiras formas de constrangimentos das pulsões.
No Brasil, assim como em alguns países sul-americanos, a noção de educação do corpo vem sendo trabalhada de forma sistemática e polissêmica no campo da Educação ao longo dos últimos anos, especialmente em pesquisas da corte historiográfico. Também no campo da Educação Física, área de formação inicial das duas organizadoras do presente dossiê, esse debate cresce e se adensa. Um número significativo de autores na área vem mobilizando noções, conceitos e ideias que tocam essas questões, de forma que é possível perceber, nos diversos fóruns acadêmicos e científicos, um crescente número de pesquisas, que resultam em publicações, dissertações e teses, sobre a história da educação do corpo, ou sobre os modos como os corpos vem sendo educados social e culturalmente pelas instituições, pelas práticas, por diversos dispositivos.
Para contar as histórias sobre essa educação, diverso material empírico tem sido mobilizado e se constituído como fontes pelas mãos de pesquisadores e grupos de pesquisa. Se, nos últimos 30 anos, muitas investigações, a partir de diferentes problematizações, vêm debruçando-se sobre esse inesgotável tema2, mais recentemente, nos últimos dez anos, percebemos também o indagar de novas questões, nascidas também em interface com diversos outros campos, como a Educação, a História, a Antropologia, as Artes, entre outros. Esse profícuo diálogo tem gerado perguntas diversas e novas hipóteses, para além daquelas que já há alguns anos permeiam o tema, potencializando contarmos outras histórias, que ainda estão por serem narradas. Nesse aspecto, ressaltamos os espaços destinados a debater a História da Educação Física, dos esportes, dos divertimentos, onde é nítida a problematização do campo.
O que este dossiê, ora organizado, nos revela? Que da escola ao circo, dos manuais de ginástica às histórias em quadrinhos, foram múltiplos os intentos de educar os corpos da população, especialmente de crianças e jovens. E essa multiplicidade se vê refletida nos 14 artigos selecionados para compor este dossiê. Com contribuições de autoras e autores de múltiplas regiões do país, assim como de argentinos, franceses e uruguaios, os artigos aqui reunidos olham para processos de educação do corpo a partir de diferentes fontes, recortes temporais e instituições, ora apontando para estes processos como mecanismos de disciplinamento, ora demonstrando como eram permeados por momentos de alegria e divertimento.
Em Educação do corpo - apontamentos para a historicidade de uma noção, artigo que abre este dossiê, Carmen Lúcia Soares tem como objetivo demonstrar como, em uma longa duração, diferentes sujeitos e instituições buscaram incidir na formação de processos educativos que tinham como finalidade intervir sobre o corpo, seus gestos e aparências. Para esta tarefa, mobiliza um variado conjunto de fontes produzidas entre os séculos XVII e XVIII, que permite visualizar como diferentes representações e formas de intervenções sobre o corpo foram se construindo nas sociedades ocidentais. Muitos destes preceitos estudados por Soares foram amplamente difundidos a partir de manuais de moral e higiene, e estes são justamente o principal objeto de estudo de Jacques Gleyse e Avelino Aldo de Lima Neto em Uma moral “corporal” generificada nos manuais escolares franceses de moral e de higiene (1880-1974). Os autores se debruçam sobre manuais escolares de moral e higiene publicados na França, a partir de finais do século XIX, analisando como estas obras contribuíram, naquele período, para a construção de uma moral “generificada” a partir de prescrições bastante específicas sobre os corpos e comportamentos esperados de meninos e meninas. Poderíamos dizer que esta moral generificada, em certa medida, permanece na França ao longo do século
XX. Conforme indicam Jean Saint-Martin e Nicolas Iffrig em Identidades masculinas, expressão corporal e educação física na França entre 1967 e 1985, a partir de uma análise exaustiva dos principais periódicos profissionais da área de educação física e esporte publicados na França, entre as décadas de 1960 e 1980, os embates entre o esporte hegemônico e as novas propostas que privilegiavam uma educação a partir da expressão corporal colocaram em disputa a representação da identidade masculina vigente neste período.
Esta relação entre uma moral generificada e a educação do corpo não era encontrada apenas em manuais escolares de moral e higiene, ou em revistas profissionais da área de Educação Física na França, mas também faziam parte dos próprios processos de formação de professores no Brasil. Em “Não pode casar ainda/ só depois que se formar”: controle do corpo e formação de professoras normalistas na capital do Brasil (1920-1950), Fábio Souza Lima analisa uma série de normatizações vigentes na capital brasileira entre 1920 e 1950 que, em grande medida, se constituíam como formas de controle dos corpos das professoras normalistas formadas neste período, chegando a interferir, inclusive, na esfera privada da vida destas docentes.
Poderíamos dizer que uma das técnicas de educação do corpo que surgem ainda no século XIX é a ginástica, objeto de estudo explorado por Iara Marina dos Anjos Bonifácio e Anderson da Cunha Baía. Em Escritos de L.G. Kumlien e os indícios de variadas ginásticas suecas, Bonifácio e Baía analisam a difusão da ginástica sueca a partir da atuação de Ludvig Gideon Kumlien como divulgador das propostas elaboradas pelo Instituto Central de Ginástica de Estocolmo. A partir de manuais escritos por Kumlien e de notas publicadas em periódicos, os autores nos permitem compreender como a ginástica sueca, ao circular em contexto francês, ganhou novos contornos, transformando-se, assim, num novo método. Assim como a ginástica, os jogos ao ar livre também ocuparam lugar de destaque na França do início do século XX, especialmente no âmbito escolar. Em Jogos ao ar livre nas escolas primárias de Metz (1919-1932), Laurent Grün, ao analisar as escolas primárias de Metz, na fronteira entre França e Alemanha, evidencia como uma cultura física ao ar livre buscava contribuir para o desenvolvimento higiênico e moral das crianças, sem proporcionar distinções de gênero ou de religião, conformando um arcabouço de atividades pedagógicas menos estritas que aquelas tradicionalmente utilizadas pelos instrutores escolares.
As preocupações higiênicas e suas relações com a educação dos corpos, entretanto, não são um produto dos manuais dos séculos XIX e XX, e podem ser encontrados em contextos brasileiros já no século XVIII, como demonstra Maria Cristina Rosa. No artigo Diversão, doença e educação dos corpos na comarca de Vila Rica (século XVIII), a autora se utiliza de um conjunto variado de fontes civis e eclesiásticas para nos conduzir às discussões sobre diversão e doença, entendidas como “faces de uma mesma moeda” que tinha no controle dos excessos corporais seu maior objeto de intervenção.
A circulação de manuais foi, provavelmente, uma das formas mais comuns de dar visibilidade a propostas de educação dos corpos. Se no século XIX e primeiras décadas do século XX a ginástica era o tema principal destas publicações, aos poucos ela começa a compartilhar (e mesmo perder) espaço para o esporte. Entre os diferentes métodos que passam a dar centralidade ao esporte está a Educação Física Esportiva Generalizada, desenvolvida na França, em meados do século XX, e que teve repercussões também na educação física brasileira. Em A produção da Education Physique Sportive Generalisée na França: o esporte como possibilidade educativa, Luciana Bicalho Cunha explora os principais autores e princípios que pautaram a criação deste método, indicando como ele conseguiu estabelecer os jogos e esportes como elementos centrais no ensino da educação física.
Discussões sobre o lugar da ginástica e do esporte na constituição da educação física foram centrais a partir da segunda metade do século XX, e influenciaram diretamente os currículos e a formação de professores na área. Isso é o que demonstram os artigos Los cambios curriculares desde los documentos oficiales en la formación del profesor de educación física en el Uruguay en la década del sesenta e Entre el “patio” y el “paper”. Un análisis sobre las propuestas curriculares para la formación de profesores de Educación Física, Argentina (1970-1989), de Paola Dogliotti e Alejo Levoratti, respectivamente. Ambos tomam fontes oficiais para analisar e compreender os processos de constituição dos currículos de formação dos professores de educação física de seus países. Se, por um lado, Dogliotti se concentra nos debates que determinaram quais saberes deveriam fazer parte dos currículos de formação dos professores de educação física uruguaios, por outro, Levoratti indaga sobre como estes debates influenciaram a construção da identidade dos professores de educação física argentinos, em um período em que se começa a pensar as tensões entre pesquisa e ensino.
Os documentos oficiais, manuais de ginástica e as revistas profissionais não foram os únicos artefatos da cultura material a veicular determinadas normas a respeito do corpo. Como demonstra Eduardo Galak, a produção cinematográfica pode contribuir na profusão de determinados aspectos éticos e políticos sobre o corpo, e, desta maneira, serem tomados como fontes sobre a história dos processos de educação do corpo. Em Luz, cámara... educación del cuerpo y del carácter en el cine documental informativo de Max Glücksmann (1913-1915), o autor analisa como os documentários produzidos por este cineasta colocavam em jogo elementos de uma educação do corpo e das sensibilidades na Argentina que perpassavam tanto o âmbito escolar como a formação do soldado. Por sua vez, em Os quadrinhos de Caxuxa e suas mensagens às crianças: considerações a respeito do corpo infantil na revista “Cirandinha” (anos de 1950), Fernanda Theodoro Roveri e Maria Walburga do Santos se debruçam sobre outro artefato da cultura material de grande circulação: as revistas infantis. Tomando como objeto a revista Cirandinha, um importante instrumento de “instrução e diversão” de meninas no Brasil dos anos 1950, as autoras lançam seu olhar especialmente sobre os quadrinhos que contam a história de uma menina negra, Caxuxa, analisando como seus gestos e comportamentos permitem identificar uma série de elementos relacionados aos valores e lições difundidos em outras seções da revista. De maneira similar, no artigo Um dândi nos trópicos: esporte e educação do corpo nas crônicas de Paulo Barreto (João do Rio), André Mendes Capraro e Marcelo Moraes e Silva se utilizam de outro gênero literário como fontes para pensar a educação do corpo: as crônicas. Utilizando-se especialmente das produções de Paulo Barreto, mais conhecido como João do Rio, os autores analisam como o esporte é utilizado nestes textos para representarem diferentes elementos da sociedade carioca, fazendo emergir elementos educacionais que correspondiam diretamente ao corpo.
Assim como os documentos oficiais e manuais não foram os únicos veículos para difusão de determinados valores relacionados ao corpo, a educação formal não foi o único espaço em que se buscou intervir sobre os corpos com o objetivo de educá-los. Datado das primeiras décadas do século XX, o movimento escotista fundado por Baden-Powell encontrou um solo fértil no Brasil, como indica Andressa Barbosa de Farias Leandro em Na trilha da educação norte- rio-grandense: a emergência das práticas escoteiras na cidade do Natal no início do século XX. A partir de um amplo conjunto de fontes, a autora explora a emergência do escotismo potiguar, destacando as redes de sociabilidade que permitiram sua consolidação como um modelo de educação neste contexto.
Deixamos às leitoras e aos leitores o convite para explorar alguns retratos dos múltiplos processos de educação do corpo que se desenvolveram nos diferentes tempos e espaços históricos escolhidos e analisados pelos 14 estudos selecionados para a composição deste dossiê.