SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.37Uma moral “corporal” generificada nos manuais escolares franceses de moral e de higiene (1880-1974)“Não pode casar ainda/só depois que se formar”: controle do corpo e formação de professoras normalistas na capital do Brasil (1920-1950) índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77812 

DOSSIÊ - Corpo e História: os múltiplos processos de educação do corpo

Identidades masculinas, expressão corporal e educação física na França entre 1967 e 19851

*Université de Strasbourg - França, Laboratoire E3S, UR 1342. Email: nicolas.iffrig@hotmail. fr - E-mail: jsaintmartin@unistra.fr


RESUMO

No coração da França dos anos 1970, momento marcado por uma onda de convulsões ideológicas e culturais, a expressão corporal constitui uma experiência inovadora e única na Educação Física diante da hegemonia do esporte na área. Através de sua abordagem desregulamentada, pessoal e emancipatória, a expressão corporal marca uma ruptura na gestão do corpo das crianças em idade escolar. Por meio dela, os alunos tiveram acesso a novas práticas envolvendo o sensível e o expressivo. Essa concepção de Educação Física também afetou a representação da identidade masculina desse período. Dominante, corajoso, autoritário e principalmente reproduzido pelo ensino do esporte, o ideal masculino foi então redefinido e questionado. Ao denunciar o caráter reprodutivo e desigual do esporte, os promotores da expressão corporal masculina objetivam não apenas dessacralizar o modelo patriarcal, mas também buscar a emergência de um novo ideal masculino, voltado para mais emancipação e realização pessoal. Além disso, os autores notam o surgimento de novas masculinidades que eles qualificaram como subordinadas ou mesmo marginalizadas, e que encontram no ensino da expressão corporal um terreno inédito de predileção. A análise exaustiva de periódicos profissionais (Cahiers du GREC, Revue Esprit, Revue EP.S) e as entrevistas de vários atores da expressão corporal (em particular JB. Bonange) tornam possível destacar uma predominância das relações de classe social sobre as de gênero, na medida em que a expressão corporal surge principalmente na França em círculos privilegiados como as universidades, e não consegue disseminar nos círculos populares, locais de resistência de uma masculinidade hegemônica tradicional.

Palavras-chave: Expressão corporal; Educação Física; Identidades masculinas; França

RÉSUMÉ

Au cœur de la France des années 1970 marquée par une vague de bouleversements idéologiques et culturels, l’expression corporelle constitue une expérience novatrice et unique en Education Physique et Sportive (EPS) face à l’hégémonie du sport en EPS. Par son approche dérégulée, personnelle et émancipatrice, l’expression corporelle marque une rupture dans la gestion du corps des enfants scolarisés. Par son intermédiaire, les élèves ont ainsi accès à de nouvelles pratiques sollicitant le sensible et l’expressif. Cette conception de l’EPS bouleverse en outre la représentation de l’identité masculine de cette époque. Dominant, courageux, autoritaire et principalement reproduit par l’enseignement du sport, l’idéal masculin se trouve alors redéfini et remis en question. En dénonçant le caractère reproductif et inégalitaire du sport, les promoteurs de l’expression corporelle masculine visent non seulement à désacraliser le modèle patriarcal mais recherchent aussi l’émergence d’un nouvel idéal masculin, tourné vers plus d’émancipation et d’épanouissement. Au demeurant, les auteurs constatent l’émergence de nouvelles masculinités qu’ils qualifient de subordonnées voire marginalisées, et qui trouvent dans l’enseignement de l’expression corporelle un terrain inédit de prédilection. L’analyse exhaustive des revues professionnelles (Cahiers du GREC, Revue Esprit, Revue EP.S) et les entretiens de divers acteurs de l’expression corporelle (notamment JB. Bonange) permettent de mettre en évidence une prédominance des rapports sociaux de classe sur les rapports sociaux de genre, dans la mesure où l’expression corporelle émerge essentiellement en France dans les milieux favorisés tels que les universités, et ne parvient pas à se diffuser dans les milieux populaires, lieux de résistances d’une masculinité hégémonique traditionnelle.

Mots Clés:  Expression corporelle; Éducation Physique Identités masculines; France

ABSTRACT

In the heart of France in the 1970s, marked by a wave of ideological and cultural upheavals and in the face of the hegemony of sports in this school subject, body language constitutes an innovative and unique experience in Physical Education. Through its deregulated, personal and emancipatory approach, body language marks a change in school children’s body management. It allows students to access new practices involving both the sensitive and the expressive. This conception of physical education also deregulates the representation of the Masculine Identity of this period. Dominant, courageous, authoritarian and mainly reproduced in the teaching of sport, the masculin ideal is hence redefined and questioned. By denouncing the reproductive and unequal nature of sport, the promoters of male body language not only aim to desecrate the patriarchal model but also seek the emergence of a new male ideal, geared towards more emancipation and fulfillment. Moreover, the authors note the emergence of new masculinities which they qualify as subordinate or even marginalized, and which find in the teaching of body expression an unprecedented field of predilection. The exhaustive analysis of professional journals (Cahiers du GREC, Revue Esprit, Revue EPS) and the interviews of various specialists in corporal expression (in particular JB. Bonange) make it possible to highlight a predominance of social class relations over social relations of gender. In France, body language emerges mainly in privileged circles such as universities, and does not succeed in spreading to popular circles, places of resistance and of traditional hegemonic masculinity.

Keywords: Body language; Physical Education; Masculine Identities; France

Introdução

A França dos anos 1960 ainda era marcada por suas tradições rurais e cristãs (BAINVILLE, 2007). A pátria do General de Gaulle foi construída em torno de sua figura paterna (JACKSON, 2019). O modelo de família, marcado pela autoridade do pai, estrutura a sociedade por papéis definidos na exaltação de um interesse coletivo e nacional2. Este mundo, duradouro e estável para alguns, foi descrito como esclerótico e obsoleto por certas parcelas da população: “O velho mundo com suas pátrias, seus memoriais de guerra, seus soldados muito conhecidos ou muito desconhecidos, está em processo de decadência” (BOUJUT, 1968, p. 23).

As populações desclassificadas e contestatórias, impulsionadas pelo “consumo de massa e os valores que ele veicula” (LIPOVETSKY, 2004, p. 29), e atingidos pela crise econômica emergente, unem-se para derrubar este sistema político e econômico que os oprime (CASANOVA, 1968). As reclamações visam “atacar em toda parte [...] as partições e segregações entre ricos e pobres, governantes e governados, trabalhadores intelectuais e manuais” (HOCTAN, 2008, p. 102), durante uma atualização da luta de classes (SIMON, 1968). Entre tradição e modernidade, campo e cidade, jovens e velhos, homens e mulheres, uma parte da população francesa, já dividida, opõe-se e revolta-se. As greves operárias, “o maior movimento grevista do século 20” (PUDAL; RETIÈRE, 2008, p. 209), seguidas de manifestações estudantis, formaram a “revolta da liberdade contra a opressão do Estado” (ZANCARINI-FOURNEL, 2008, p. 82) e pressionaram o governo de Charles de Gaulle a diminuir sua política social (BANTIGNY, 2018).

A década de 1970 começou com as reformas legais necessárias para enfrentar as questões postas por esse cenário de contestação. O artigo 6º da lei de 4 de junho de 1970 enterrou definitivamente o “poder paterno” e celebrou a autoridade parental conjunta, “pondo fim à inferioridade jurídica da mãe” (BAUBÉROT, 2011, p. 179). As reivindicações feministas são impostas no campo político (ARON et al., 2018). Contudo, conforme aponta Smadja (2011, p. 28), “nenhuma reforma pode adaptar a velha instituição aos anseios das novas gerações que a consideram desatualizada”. A ruptura com o modelo familiar paternalista e tradicional institucionalizava-se e parecia irremediável: “a voz do pai ressoou pela última vez” (MURRAY, 1999, p. 135). Os eventos assistidos pelos franceses concluíram a passagem para uma sociedade “pós-moderna”, marcada por uma “ideologia individualista hedonista” (LIPOVETSKY, 2004, p. 31), ou seja, que de certa forma celebrava a vitória do privado, da sociedade do desejo (CLOUSCARD, 1973), do espetáculo (DEBORD, 1992) e da mercadoria sobre uma dimensão pública (DEBRAY, 1978).

Modelada por práticas tradicionais (atividades físicas, atléticas, de combate e esportes coletivos), a oferta esportiva cultural permanecia bastante diferenciada por gênero e as transgressões ainda eram raras. Aqui, novamente, a modernidade trazia novas atividades que modificavam a relação com a prática, com o meio ambiente e consigo mesmo, por meio de uma busca desenfreada pelo desenvolvimento pessoal. Além disso, o esporte, descrito por Terret (2005) como uma “cidadela masculina” por reproduzir a dominação social masculina, estava ameaçado por essa contestação. A “contracultura” (ZANCARINI-FUREL, 2008) resultante de maio de 68 promoveu essas novas atividades e tentou introduzi-las na escola por meio da Educação Física. Nesse sentido, muitos de seus atores são conhecidos por suas inovações educacionais durante o que se denominou de “anos 60”3. O movimento GREC (Groupe de Recherches en Expression Corporelle/Grupo de Pesquisa em Expressão Corporal) em Toulouse simbolizava essa busca por uma inovação educacional. Por se opor concretamente ao modelo esportivo, se tornou um modelo crítico e alternativo, carregado pela ideologia disseminada pelo movimento iniciado em maio de 1968 (DAMAMME et al., 2008).

Com efeito, o grupo liderado por Jean-Bernard Bonange ofereceu um ensino da expressão corporal a jovens (homens e mulheres), futuros professores de Educação Física4. Sua prática mista é transgressora na medida em que a separação dos sexos na Educação Física ainda é uma realidade atual: “Até o final da década de 1970, pelo menos, a organização predominantemente não mista da Educação Física e do esporte revelava a resistência da escola às mudanças sociais em curso” (OTTOGALLI-MAZZACAVALLO; LIOTARD, 2012, p. 107). Sendo assim, novas questões surgiam, em particular aquelas que se referiam ao confronto entre a identidade masculina patriarcal e a atividade física feminina: qual a apropriação da expressão corporal por esses homens marcados pelo paternalismo e pela competição esportiva? Que modelos de masculinidades eram transmitidos e promovidos dentro desses grupos contestadores e inovadores? Existia resistência por parte de professores e alunos frente à disseminação dessas novas práticas femininas e autocentrados?

Na França, por um lado, a introdução da expressão corporal na escola foi uma das ferramentas para desenvolver de forma duradoura a imagem de homem e o ideal masculino na sociedade. Nesse período, os promotores da expressão corporal, ao denunciarem o caráter discriminatório e a violência das atividades esportivas para as mulheres, aspiravam dessacralizar o modelo patriarcal que se reproduzia graças a presença do esporte na escola. Ao questionar o modelo esportivo e propor alternativas, os professores adeptos das pedagogias libertárias e envolvidos nos movimentos contestatórios que surgiram a partir de maio de 1968, buscaram uma mudança de paradigma no interior do espaço escolar. Ao introduzir novas práticas na Educação Física francesa, esses atores visavam influenciar os textos legislativos, que regiam a Educação Física e, em última instância, os modelos de masculinidade promovidos pela disciplina e pela escola.

Por outro lado, os promotores masculinos da expressão corporal (GREC de Toulouse) se apropriam dessa prática, na linha do esporte contestatório, para favorecer a emergência de um novo ideal masculino. Este último promoveu um modelo mais igualitário em relação às mulheres e levantou a questão da emancipação dos homens no que se refere a essas novas práticas corporais. Esta apropriação seria algo original e inovador em relação ao modelo feminino de expressão corporal e envolveria este “novo homem” na sua singularidade, na sua emancipação e no seu prazer.

Esporte e masculinidade hegemônica

O trabalho pioneiro de Raewyn Connell (1995) contribuiu para elucidação sobre esse conceito de identidade masculina, no que diz respeito às relações de gênero. Ao definir uma masculinidade hegemônica que “garante a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres” (CONNELL, 2014,

p. 74), o autor se insere em uma lógica cultural da hegemonia emprestada de Antonio Gramsci. Mas isso não é o mesmo que dizer que “aqueles que ostensivamente incorporam a masculinidade hegemônica são sempre as pessoas mais poderosas. Eles podem ser modelos, atores de cinema, e até mesmo figuras imaginárias” (CONNELL, 2014, p. 74).

Assim, a masculinidade promovida na sociedade francesa na década de 1960, entendida, segundo indicam McKay e Laberge (2006, p. 3), como uma “forma culturalmente idealizada do corpo masculino”, sofreu grandes modificações na década seguinte. “A imagem de um corpo operário, masculino, poderoso, pronto para trabalhar e lutar, se impõem no imaginário político” (PILLON, 2011, p. 311) e encarna a masculinidade hegemônica dos anos 1960. Esta última definição conforme aponta Terret (2004, p. 212), “constitui um tipo particular de masculinidade, momentaneamente em posição dominante e cujos vários atores institucionais ou individuais se esforçaram para manter sua posição diante da feminilidade e outras formas de masculinidade”.

Durante a década de 1960, esse modelo de masculinidade das classes populares e médias manteve-se hegemônico por ser quantitativamente o mais difundido entre a população francesa, especialmente pela virilidade existente dentro das classes operárias e camponesas. Este último representa um modelo para os homens desta época e se distanciava visivelmente do dandismo burguês (CARASSUS, 1990) pela utilização necessária da força física na esfera do trabalho. Mas também porque está solidamente consolidado na sociedade há muitas décadas. Os jovens “mantêm uma relação com a masculinidade que, em muitos aspectos, se estende a dos jovens trabalhadores e camponeses das décadas anteriores” (BAUBÉROT, 2011, p. 186). Ela se define paralelamente à feminilidade em uma relação de complementariedade dentro do casal (WALCH, 2003). “O gênero é apresentado de forma fortemente estereotipada e reflete uma clara demarcação entre os sexos” (BAUBÉROT, 2011, p. 187). Durante os anos 1960, a dominação econômica, política e social do homem sobre a mulher permaneceu, e esse modelo foi amplamente perpetuado através da prática esportiva.

O esporte: uma “cidadela masculina”?

O esporte, desde o seu desenvolvimento na segunda metade do século XIX, foi, antes de mais nada, um lugar de expressão masculina, conforme sublinhava Pierre de Coubertin (1992, p. 132): “O esporte parece ser o próprio símbolo da virilidade”. “Os primeiros atletas dificilmente pensavam no feminino. A prática feminina permaneceu por muito tempo confinada, rigorosamente orientada” (COURTINE, 2011, p. 237). Essa separação entre homens e mulheres tendia a reproduzir e perpetuar os valores viris do esporte. As representações ligadas à virilidade dos anos 1960 foram propagadas pela exaltação dos valores da guerra por meio da competição e da performance. “Vigor tanto quanto sua aplicação monitorada, músculo tanto quanto seu uso moral, a exemplificação dos confrontos [...] Uma questão se impõe no cerne da excelência: a virilidade” (COURTINE, 2011, p. 232). É por isso que Thierry Terret (2005) descreveu o esporte como uma “cidadela masculina” inexpugnável para o “sexo mais fraco”.

Essa dominação se reproduzia ainda mais à medida que tomava forma em toda a sociedade. A imprensa esportiva ecoava essa hegemonia masculina: “A imprensa esportiva francesa consolida as bases de uma construção social das relações de gênero” (HUMBERT, 2005, p. 261). Além disso, a escola participou desse movimento por meio do ensino de educação física e esportes amparada numa perspectiva de gênero5.

Assim, ao promover o esporte, os homens procuram perpetuar um modelo a seu favor: “ele veicula de forma duradoura e massiva um sistema de valores em que encontramos as características dos grupos dominantes que o instituíram, os de uma burguesia jovem, branca, cristã, liberal e masculina” (TERRET, 2005, p. 11).

Ultrapassando o modelo tradicional de esporte

Em face a esse modelo estabelecido, surgem alternativas que Connell (1995) qualificou como masculinidade subordinada. Ao comentar os conceitos levantados por Connel (1995), Terrret (2004) salienta que:

Por masculinidade subordinada, Connell se refere a masculinidades que estão claramente em uma posição dominada, se não oprimida. Uma boa ilustração desse modelo são as masculinidades homossexuais, situadas mais distantes da hierarquia de gênero, onde são assimiladas à feminilidade (TERRET, 2004, p. 231).

A década de 1970 tornou-se gradativamente o berço dessas novas demandas liberais-libertárias (CLOUSCARD, 1973) e revelou a vontade das mulheres, mas também de certos homens, de se libertarem dos padrões da masculinidade hegemônica, de modificá-los de forma duradoura para uma sociedade mais respeitosa em relação às diferenças.

Durante a década de 1970, a imagem do corpo masculino se modificou, “as velhas imagens de dureza autoritária foram gradualmente apagadas” (VIGARELLO, 2004, p. 232) para dar lugar a um novo ideal masculino. Na busca pela igualdade entre os sexos, as representações relativas aos homens mudaram e se distanciaram dos modelos de masculinidade tradicionais. Por um lado, “o corpo masculino se adelgaça, se suaviza” (VIGARELLO, 2004, p. 232). Às causas econômicas e sociais somam-se a divulgação pela mídia de novos ideais: «Muitos sinais emprestariam do feminino: o perfil por exemplo dos Beatles de jeans e cabelos longos na companhia de garotas de jeans e cabelos na altura dos ombros» (VIGARELLO, 2004, p. 233). De outro lado, o corpo da mulher também estava se transformando, conforme sublinha Vigarello (2004) no seguinte trecho:

(...) as descrições do corpo feminino conseguiram apagar formas excessivamente sexuais no último terço do século, acentuando o apagamento dos quadris, cultivando a discrição do peito e acima de tudo, e o que é mais original, desdobrando uma densidade muscular evidente (VIGARELLO, 2004, p. 232).

Destas importantes mutações nascerão uma “ilusão andrógina” (VIGARELLO, 2004), ou seja, as identidades de gênero, pelo menos no nível de suas imagens e de suas representações, vão visivelmente se aproximar, e às vezes se fundir. “A feminização dos músculos, a masculinização da magreza não podem, é claro, reduzir-se a dois modelos idênticos” (VIGARELLO, 2004, p. 233).

As mutações nas identidades de sexo e gênero podem ser explicadas por suas origens sociais. Os acontecimentos de maio de 1968, de origem estudantil, marcaram um combate ideológico entre uma juventude apaixonada pelas frivolidades em face do poder e das normas dominantes. “Maio de 1968 foi de fato uma revolta dos sujeitos contra as normas, nomeadamente no sentido da afirmação da individualidade contra a reivindicação dos padrões à universalidade” (FERRY; RENAUT, 1985, p. 121). No cerne dessa luta geracional existiam queixas de vários tipos. Elas acabam sendo seguidas por desenvolvimentos para o status do denominado “segundo sexo” (BEAUVOIR, 2008). Uma extensão dos direitos das mulheres entrou em vigor durante o decênio, que começou em 1967 com a lei Neuwirth, autorizando a contracepção, seguida pela descriminalização do aborto pela Lei do Veil de 17 de janeiro de 1975.

Essa evolução na sociedade francesa não foi isenta de consequências nas relações sociais entre os sexos. Com efeito, a série de reformas jurídicas resultou em grandes convulsões sociais, em particular na representação tradicional do casamento: “A função do casal não é mais a reprodução social, mas a confirmação da identidade pessoal” (WALCH, 2003, p. 206). O acesso ao trabalho assalariado e terceirizado para as mulheres, onde ocorreu uma passagem da dominação do marido para a do patrão, participou do relativo reequilíbrio de forças dentro do casamento, o homem até então tinha tirado seu domínio do trabalho e da sua autonomia financeira. Enfim, a redução das tarefas laboriosas pela automação na fábrica e no campo e pela terciarização do emprego tiveram uma influência irremediável na sua aparência física: “Para o campesinato e mundo operário, o status de homem estava intimamente ligado ao uso da força como parte de uma atividade produtiva” (COURTINE, 2011, p. 176).

Assim, de uma construção de identidade diferenciada antes de 1960 aos modelos hegemônicos de gênero que se fundiram na década de 1970, as relações sociais de sexo e, portanto, as identidades de gênero foram questionadas. Foram destas profundas mudanças sociais que nasceram novas práticas, especialmente as corporais.

A emergência da expressão corporal

Graças ao “regime de igualdade e seus efeitos” (COURTINE, 2011, p. 249), no coração da década de 1970, as mulheres conseguiram realizar atividades que até então lhes eram interditas (ARNAUD; TERRET, 1996). Isso resultou no desenvolvimento de novos valores, direcionados ao desejo de desenvolvimento pessoal e à promoção de uma nova relação com o corpo. “Para que aparecesse a explosão de frivolidades, era necessária uma revolução na representação das pessoas e no sentimento de si, perturbando mentalidades e valores tradicionais” (LYPOVETSKY, 1987, p. 67-68). Essas novas preocupações levaram à emergência de novas práticas, provenientes de ambientes onde a autoconsciência e o individualismo já haviam se desenvolvido na sociedade: “O entusiasmo pelas temáticas relativas ao corpo e sua libertação levou, no início da década de 1970, à multiplicação de novas práticas corporais importadas dos Estados Unidos” (TRAVAILLOT, 1998, p. 46). Com o surgimento dessas atividades, conhecidas como “práticas californianas”, houve uma contestação do modelo esportivo, do paradigma patriarcal e de forma mais generalizada da própria sociedade como um todo:

O objetivo de todas essas práticas é o de ajudar, graças a um trabalho sobre o corpo, os indivíduos afetados neuroticamente pela sociedade a encontrar a normalidade e a saúde, sendo que a definição desta tende a ampliar e a aproximar o bem-estar e o prazer (TRAVAILLOT, 1998, p. 47).

Neste contexto, a expressão corporal respondeu a essas expectativas. Descrita como “não sendo uma técnica em si, mas uma reflexão, uma prática entre a mímica, a ioga, o psicodrama e a espontaneidade pessoal” (VIGARELLO, 1982, p. 71) esta atividade se opunha ao “corpo concebido apenas como um instrumento” (TONELLA, 1974, p. 2), se inserindo numa perspectiva holística e reichiana, associando “o viver, o movimento [...] e a emoção” (BERNARD, 1978, p. 110). Graças à expressão corporal, qualquer pessoa pode experimentar, deixar o movimento acontecer e romper com as técnicas pré-estabelecidas, permitindo que dessa ruptura emergisse um novo indivíduo. Segundo Vigarello (1982, p. 71), a expressão corporal possibilitou às pessoas um “brincar com suas angústias, seus medos, suas coisas não ditas, falar com seu corpo”. Essa definição permitiu compreender tanto a novidade quanto a complexidade dessa atividade corporal que emergiu no contexto francês durante as décadas de 1960 e 1970. De um corpo objeto de performance e medição nos anos 1960, a década seguinte deu lugar a um corpo sujeito, ou seja, não mais o meio, mas a finalidade da atividade física: “Os esportes mais praticados nas classes altas [...] têm como principal função manter o indivíduo em forma” (BOLTANSKI, 1971, p. 224). A corrente de expressão corporal se opôs de certa maneira ao mundo dos esportes competitivos, principalmente pela reivindicação de uma concepção alternativa do corpo. Segundo Tonella (1974, p. 2), “o corpo concebido apenas como instrumento, sem levar em conta o corpo imagem, imaginado e imaginante, o corpo como centro de emergência de uma atividade criativa e assimilativa”. O objetivo era oferecer uma alternativa ao modelo dominante, esportivo e masculino. O estudo realizado por Gil Mons na Universidade de Strasbourg em 1983 confirma as representações ligadas a esta prática6: “a expressão corporal é inofensiva porque se refere a um fundamento cultural feminino que regula o código local e a violência individual” (MONS, 1983, p. 57).

Além disso, a expansão das ciências cognitivas (Piaget, Wallon, Schmidt) durante este período acabou considerando as emoções como parte integrante do desenvolvimento do indivíduo (WALLON, 1963). Segundo Boltansky (1971, p. 224), “as mulheres parecem mais atentas que os homens às suas sensações mórbidas, ouvem-se mais que os homens, à forma como os membros das classes altas se ouvem mais prontamente do que os membros das classes populares”. Na Educação Física e nos esportes, o desenvolvimento da expressão corporal ocorreu principalmente em algumas universidades, em particular a Unidade de Ensino e Pesquisa em Educação Física de Toulouse, onde Jean-Bernard Bonange criou o Grupo de Pesquisa em Expressão Corporal, mas também na Unidade de Ensino e Pesquisa de Ciências Humanas Clínicas de Paris VII, onde trabalhava Claude Pujade-Renaud (FERREZ, 2005). Esta nova forma de prática corporal, uma alternativa real às modalidades esportivas então dominantes na época, questionava abertamente o modelo de masculinidade que era defendido e promovido. “O impulso vem de Jean-Bernard Bonange, professor de educação física masculina: o fato não deixa de ter importância, na medida em que, muitas vezes, de acordo com o modelo sociocultural dominante, a expressão corporal é indexada às chamadas atividades femininas” (PUJADE-RENAUD, 1974, p. 75).

Entre 1967 e 1985, os promotores da expressão corporal tentaram se libertar dos conteúdos escolares considerados “padrões corporais preconizados pela instituição” (LEMONNIER, 2014, p. 138): “A educação física busca identificar e circunscrever o corpo, estimar sua potência produtiva. A dança e a expressão corporal falam de um corpo que está sempre em outro lugar” (PUJADE- RENAUD, 1974, p. 85). Na verdade, sua prática feminina assemelha-se à dança, que “conserva uma franja comum com a expressão corporal” (PUJADE- RENAUD, 1974, p. 72). No entanto, este último tende muito mais a escorregar para o informal, em particular porque os praticantes procuram uma “motricidade portadora de sentido, afetividade, comunicação” (PUJADE-RENAUD, 1974, p. 79). De acordo com Jean-Louis Blein, um dos membros fundadores do GREC, eles apelaram então ao seu habitus (BOURDIEU, 1980a) técnico construído dentro de uma Educação Física desmixada. “As meninas muitas vezes tinham um passado na técnica de dança”, conforme descrito por Jean-Louis Blein (IFFRIG, 2015, p. 99)7. Os alunos formados na Unidade de Ensino e Pesquisa de Ciências Clínicas Humanas de Paris VII por Claude Pujade-Renaud eram “muito bons técnicos em termos de expressividade corporal” para Jean-Bernard Bonange (IFFRIG, 2015, p. 83)8, chegando ao ponto de almejar “formas de atividade social de expressão corporal de alto nível” de acordo com Michèle Baffalio-Delacroix (IFFRIG, 2015, p. 112)9.

De uma prática feminina de expressão corporal influenciada pela bagagem cultural de suas promotoras surgiu a questão da apropriação masculina dessa disciplina, na medida em que os homens não encontraram, neste momento, a atividade de dança no ambiente escolar.

Jean-Bernard Bonange e a emergência da expressão corporal masculina

Eu acredito que o gênero do professor teve uma influência. Eu não tive a mesma bagagem cultural em relação à dança. Eu era originalmente teatral, improvisado, então eu diria que é menos o gênero do que a cultura que portávamos. Mesmo que essa cultura dependesse do gênero!”. Com essa observação, Jean-Bernard Bonange (IFFRIG, 2015, p. 83-84) confirma a especificidade de uma expressão corporal masculina. Se a prática feminina é construída a partir de um habitus influenciado pela dança, os homens também se valem de sua cultura e formação para se apropriar da expressão corporal e fazê-la corresponder a outras ambições.

No interior do Grupo de Pesquisa de Expressão Corporal de Toulouse, os homens estavam interessados nesta atividade com o objetivo de propor um modelo esportivo alternativo. Assim, basearam sua prática no que conheciam, ou seja, na sua própria cultura. Estas últimas apresentavam uma linguagem técnica menos desenvolvida, pois não eram ligadas à dança, prática tradicionalmente feminina. Essa falta de técnicas corporais expressivas seria compensada pela utilização de intermediários: “Fomos sem dúvida muito menos técnicos, mas mais criativos, no sentido da inovação, utilizámos suportes, materiais, cenografias, passámos mais pela improvisação!” (IFFRIG, 2015, p. 83). Esta estratégia permitiu destacar-se da tendência proposta por Claude Pujade-Renaud que privilegiava o uso de mediações como objetos e temas, a intervenção descentralizada do afastamento do professor da sessão, a dinâmica de grupo, a pedagogia aberta, “a ausência de técnica ou acesso a uma linguagem corporal e a falta de capitalização de conhecimentos” (FEREZ, 2005, p. 57), elementos que indicam a originalidade da corrente de Toulouse. Além disso, a dimensão cômica e burlesca, muito pouco presente na expressão corporal feminina, foi acrescentada como prerrogativa masculina. Para Bonange: “Introduzimos um corpo cômico e burlesco que era mais masculino do que feminino” (IFFRIG, 2015, p. 84). Essa característica é confirmada por vários professores, conforme entrevista de Patricia Vidil-Grenier: “Na verdade os meninos eram, em geral, mais criativos do que as meninas porque não se enredavam em considerações estetizantes” (IFFRIG, 2015, p. 102-108)10. Se se definiam vazios de antecedentes relacionados à dança, o habitus dos promotores masculinos da expressão corporal tirava suas referências “na cultura das colônias de férias, onde os grandes jogos coletivos, os esquete, as cenas, as canções, eram elementos que contribuíram para que me voltasse para atividades artísticas, jogos e expressão, teatro” (IFFRIG, 2015, p. 76).

Essa apropriação masculina de uma atividade com conotação feminina impôs uma redefinição do ideal masculino. Até então limitado à força física, robustez, coragem, o gênero masculino iria adquirir visivelmente características até então indicadas às mulheres. Segundo o sociólogo Christian Pociello (1982, p. 20), “estamos, portanto, a assistir, [...] ao desenvolvimento de um fenómeno surpreendente, mas que não é, no entanto, completamente novo: a graça masculina”. Sem assumir explicitamente esta expressão de graça masculina, Jean-Bernard Bonange, confirma, no entanto, que “a expressão corporal permite a afirmação do masculino, mas também de um mundo muito mais sensual, a sua parte feminina pode ser vista. Porque a sensibilidade que atribuímos à feminilidade está obviamente presente no corpo masculino” (IFFRIG, 2015, p. 84). A expressão corporal masculina permitiria, assim, diversificar a motricidade dos homens, que até meados da década de 1960 se limitava à técnica esportiva e à reprodução mais fiel desta. Com esta prática corporal alternativa que perturbou códigos sociais e representações coletivas, surgiu então a questão da hierarquia dos modelos masculinos pós 1968, conforme atesta o seguinte depoimento de um dos membros do GREC, Guy Tonella: “Eu penso que esse tipo de atividade questiona o gênero masculino na medida em que abre a possibilidade de múltiplas e complexas expressões de gênero, até a linha tênue onde o masculino se diferencia do feminino” (IFFRIG, 2015, p. 93)11.

Na passagem para os anos 1970, a prática da expressão corporal facilitou, portanto, o surgimento de uma nova masculinidade na França, longe do modelo hegemônico perpetuado pelo esporte competitivo, mas também distinto do padrão feminino: “Uma dupla demarcação face aos gestos próprios dos esportes mais popularizados e face aos gestos reputados como os mais afeminados” (POCIELLO, 1982, p. 20). Nesse sentido, as experiências educacionais do GREC de Toulouse favoreceram a emancipação de novas características e identidades masculinas, explorando uma masculinidade mais pessoal, em uma perspectiva centrada na autorrealização.

Enfrentando muitas resistências...

Da distinção de uma expressão corporal masculina nasceu uma nuance sociológica fundamental. De fato, o objetivo dos membros do GREC de Toulouse foi o de democratizar sua prática para todos os alunos a serem formados no sistema de ensino francês após maio de 1968. Ideia também compartilhada por uma professora de expressão corporal, Michèle Baffalio-Delacroix e que destacou esse impulso em favor da democratização de novas práticas, por meio de estágios, colóquios, encontros entre professores de Educação Física, organizados pela Fédération Sportive et Gymnique du Travail (FSGT), ainda fortemente apegada à tradição esportiva (GOIRAND et al., 2005). Para Baffalio-Delacroix: “A FSGT sempre se preocupou com a democratização da prática esportiva e na busca por novas formas de prática. Ela queria atender às demandas dos trabalhadores e de suas famílias” (IFFRIG, 2015, p. 112).

No entanto, a substituição da expressão corporal pela dança nos textos oficiais do ensino de Educação Física nos colégios franceses, em 1985 (LEMONNIER, 2014) sancionou o fracasso da promoção e escolarização da expressão corporal masculina no espaço escolar. Dentre as interpretações possíveis, aquela baseada em uma abordagem sociológica do corpo aparece como a mais provável. Com efeito, segundo indica David Le Breton (2012), a constituição de uma prática física ou esportiva depende sobretudo da relação com o corpo da classe social em questão. Segundo Bourdieu (1980b, p. 240), “um esporte tem mais chances de ser adotado por integrantes de uma classe social se não contrariar a relação com o corpo naquilo que tem de mais profundo e mais profundamente inconsciente”. Em outras palavras, trata-se de construir e, em seguida, fortalecer uma relação de afinidade entre os membros de uma classe social e determinadas práticas corporais. Para Blouin le Baron (1982, p. 62), entretanto, esse parece ser o caso no início dos anos 1980: “a expressão corporal porta a marca emblemática do grupo social que constitui o seu núcleo expressivo”. A expressão corporal constitui, assim, uma atividade física adaptada aos usos do corpo das classes privilegiadas, mas que labuta para se impor às classes populares, tão marcadas pela valorização da diferença entre os sexos, notadamente na exaltação da força e da coragem para meninos em atividades atléticas ou esportes coletivos.

Além disso, as dificuldades encontradas para democratizar a expressão corporal também eram de ordem ideológica. As novas formas de prática, voltadas para o lúdico, sacodiram concepções educacionais e para Bonange: “A escalada na corda era como o balanço da corda no estilo Tarzan (risos). A pouca prática que tive no secundário tentei ser consistente, mas eu era observado pelos colegas (risos)” (IFFRIG, 2015, p. 88). Essa visão desviada e lúdica das práticas físicas dificilmente se ajustava à rigidez da instituição escolar, onde os professores não podiam fazer o que queriam (SAINT MARTIN; TERRET, 2019). Conforme, Bonange: “Houve uma verdadeira resistência. Desestabilizou as concepções, a ideologia dominante na Educação Física. Existia um medo da desordem na Educação Física, somos de origem militar [...] O que quisermos, somos trabalhados por uma certa moral e uma certa concepção do corpo que deve ser eficiente” (IFFRIG, 2015, p. 88). Especialmente porque a expressão corporal dificilmente atende aos padrões da escola: “Uma desconfiança em relação à expressão corporal persiste: suspeita porque não se presta bem a uma programação e uma avaliação. Perturbador porque apresenta o imaginário e um corpo sensorial, pulsional, que a Educação Física tende justamente a neutralizar” (PUJADE-RENAUD, 1982, p. 82).

Essa crítica da Educação Física realizada pelos promotores da expressão corporal fazia parte de um movimento mais geral de denúncia do esporte e de suas pedagogias (LIOTARD, 2000), destacando a ambivalência entre as finalidades universais e educacionais da Educação Física e as atividades esportivas baseadas na competição:

É completamente ilusório atribuir à Educação Física um propósito puramente humanista, a busca do desenvolvimento total de um homem livre e criativo, enquanto os meios teóricos e práticos à sua disposição são de uma sociedade cujos imperativos são ditados por interesses que não o fazem necessariamente ir na mesma direção (BERNARD, 1975, p. 728).

Essa ambiguidade sublinha a presença de duas concepções educacionais e ideológicas em tensão. A essas dificuldades se agregaram novas resistências, especialmente no que diz respeito aos valores veiculados pela expressão corporal e as reivindicações estudantis que afirmavam abertamente serem movimentos contestatórios. De acordo com Jean-Louis Blein: “Inegavelmente, o GREC nasceu de uma corrente pós-1968, carregada por aspirações libertárias. Um desejo tanto de lutar contra várias pressões e injustiças sociais quanto o de encontrar liberdade e auto-realização” (IFFRIG, 2015, p. 98). Se esses atores pertenciam e participavam desses movimentos de protesto, seus ideais políticos inspiravam suas práticas de ensino. Para Guy Tonella: “Parece-me que as influências ideológicas mais evidentes têm a ver, por um lado, com uma posição política de esquerda, mesmo de extrema esquerda, e, por outro lado, com uma atração por tudo o que não é esportivo e mais voltado para atividades psicomotoras e criativas(IFFRIG, 2015, p. 92).

A análise política (GLEYSE, 2004) dessas clivagens permite definir dois grandes movimentos ideológicos. Aqui nascem as principais divergências entre uma relação com o corpo “de esquerda” ou mesmo “de extrema esquerda”, promovendo a emancipação de cada um dentro de uma masculinidade escolhida e desejada, promovida pelos promotores da expressão corporal12 e uma relação com o corpo de “direita”, visando uma masculinidade patriarcal, eficiente e competitiva e defendida pelo poder em vigor, em particular pelo governo do General de Gaulle antes da sua renúncia em 1969.

Conclusões

A análise das masculinidades promovidas ou reprimidas pelos diferentes atores da expressão corporal nos permite definir na França várias questões ideológicas que permeiam o ensino da Educação Física nas escolas. De uma análise à primeira vista sexista, este trabalho de pesquisa buscou demonstrar a predominância de relações de classes sociais e de sexo na definição de uma cultura corporal oferecida nas instituições de ensino francesas entre 1967 e 1985. Apesar da originalidade de um discurso positivista e emancipatório, os promotores da expressão corporal masculina esbarraram, em seu projeto de disseminação dessa prática alternativa nas práticas esportivas competitivas, resistências ligadas à existência de uma masculinidade hegemônica que deixava pouco espaço para masculinidades subordinadas no discurso e nas práticas profissionais dos professores de Educação Física.

Esses atores, todos membros do GREC Toulouse enfrentaram muitas dificuldades e obstáculos que tornaram difícil, senão impossível, questionar esse ideal masculino dominante, erigido na França como modelo hegemônico desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, a força das normas e práticas da instituição escolar, aliás bem estudada por Arnaud (1989), por meio de seu modelo de análise da ortodoxia escolar, dificulta consideravelmente seu desejo de inovação e mudança na Educação Física, ao mesmo tempo que notamos a tímida integração da dança nos programas escolares em 1985 (OTTOGALLI- MAZZACAVALLO; LIOTARD, 2012).

Nessas condições, a disseminação da expressão corporal masculina permaneceu dependente do distanciamento entre o discurso liberal-libertário promovido por seus atores e as representações vinculadas ao ideal masculino popular e hegemônico corporificado pelo lugar dominante ocupado pelo esporte e suas práticas tradicionais. No entanto, os efeitos de maio de 1968 começaram a se fazer entender quando se trata de refletir sobre o lugar do corpo na aprendizagem dos alunos, principalmente quando eles estavam com dificuldades na escola. No início da década de 1980, era claro que havia uma relação cada vez mais explícita entre a cultura corporal de classe e a lógica da atividade corporal. Poderíamos então estender nossas investigações para demonstrar a importância do habitus nas práticas físicas e esportivas dos indivíduos e nas relações sociais de gênero, qualificando a importância da leitura de gênero na Educação Física e na escola republicana francesa que também é cruzada por muitos debates ideológicos (ROBERT, 2015).

REFERÊNCIAS

ARON, Jean-Paul et al.(org.) Commémorer Mai 68, Paris: Gallimard, 2018. [ Links ]

ARNAUD, Pierre. Contribution à une histoire des disciplines d’enseignement : la mise en forme scolaire de l’éducation physique. Revue française de pédagogie, [s.l.], n. 89, p. 29-34, 1989. [ Links ]

ARNAUD, Pierre; TERRET, Thierry. Histoire du sport féminin. Paris: L’Harmattan, 1996. [ Links ]

BAINVILLE, Jacques. Histoire de France (1924). Paris: Tallandier, 2007. [ Links ]

BANTIGNY, Ludivine. 1968: De grands soirs en petits matins. Paris: Seuil, 2018. [ Links ]

BAUBEROT, Arnaud. On ne naît pas viril, on le devient. In: CORBIN, Alain; VIGARELLO, Georges; COURTINE, Jean-Jacques(org.). Histoire de la virilité: La virilité en crise ? Le XXè - XXIè siècle. Paris: Seuil, 2011. p. 159-184. [ Links ]

BEAUVOIR, Simone. Le deuxième sexe. Paris: Gallimard, 2008. [ Links ]

BERNARD, Michel. L’ambivalence du corps. Esprit, [s.l.], n. 446, v. 5, p. 724-738, 1975. [ Links ]

BERNARD, Michel. Quelles pratiques corporelles maintenant ?Paris: Corps & culture, 1978. [ Links ]

BLOUIN LE BARON, Jacqueline. L’expression corporelle. Revue EPS, Paris, n. 178, p. 58-62, 1982. [ Links ]

BOLTANSKI, Luc. Les usages sociaux du corps. Annales. Economies, Sociétés, Civilisations, [s.l.], n.1, p. 205-233, 1971. [ Links ]

BOUJUT, Pierre. Réveillez-vous ! Ou la révolte contre le désespoir. La Tour de feu, Paris, n. 98, p. 21-34, juil./sept.1968. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. Questions de sociologie. Paris: Editions de Minuit, 1980a. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre. La distinction. Paris: Edition Minuit, 1980b. [ Links ]

CARASSUS, Emilien. Dandysme et aristocratie. Romantisme, [s.l.], v. 20, n. 70, p. 25-37, 1990. [ Links ]

CASANOVA, Antoine. Ouvriers, intellectuels et étudiants. La Nouvelle Critique, Paris, 3 juin1968. (Numéro Spécial). [ Links ]

CLOUSCARD, Michel. Néofascisme et idéologie du désir. Paris: Gonthier, 1973. [ Links ]

CONNELL, Raewyn Connell. Masculinities. Berkeley: University of California Press, 1995. [ Links ]

CONNELL, Raewyn Connell. Masculinités: Enjeux sociaux de l’hégémonie. Paris: Editions Amsterdam, 2014. [ Links ]

COUBERTIN, Pierre. Essais de psychologie sportive. Grenoble: Jérôme Millon, 1992. [ Links ]

COURTINE, Jean-Jacques. Impossible virilité. In: CORBIN, Alain; VIGARELLO, Georges; COURTINE, Jean-Jacques (org.). Histoire de la virilité. Tome 3. Paris: Editions Seuil, 2011. p. 8-11. [ Links ]

DAMAMME, Dominique et al. Mai Juin 68. Paris: Les éditions de l’Atelier, 2008. [ Links ]

DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992. [ Links ]

DEBRAY, Régis. Modeste contribution aux cérémonies du dixième anniversaire. Paris: Maspero, 1978. [ Links ]

FEREZ, Sylvain. Mensonge et vérité des corps en mouvement: L’œuvre de Claude Pujade-Renaud. Paris: L’Harmattan, 2005. [ Links ]

FERRY, Luc; RENAUT, Alain. La pensée 68: Essai sur l’anti-humanisme contemporain. Paris: Gallimard, 1985. [ Links ]

GLEYSE, Jacques. La gauche et la droite en éducation physique en France au XXè siècle. In: LECOQ, Gilles; GLEYSE, Jacques; CEBE, Didier. L’EPS: de ses environnements à l’élève. Paris: Vigot, 2004. p. 357-443. [ Links ]

GOIRAND, Paul et. al. Les stages Maurice Baquet 1965-1975: Genèse du sport de l’enfant, Paris: L’Harmattan, 2005. [ Links ]

HOCTAN, Caroline. Mai 68 en revues. Paris: Imec 2008. (Collection Pièces D’Archives). [ Links ]

HUMBERT, Henri. La presse sportive française et l’encouragement à l’hégémonie masculine (1900-1970). In: TERRET, Thierry; LIOTARD, Philippe. Sport et Genre. Excellence féminine et masculinité hégémonique, 2005. v. 2, p. 241-262. [ Links ]

IFFRIG, Nicolas. Virilité et expression corporelle en EPS de 1967 à 1985. Mémoire de Master. Strasbourg: Université de Strasbourg, 2015. [ Links ]

JACKSON, Julian. De Gaulle: une certaine idée de la France, Paris: Seuil, 2019. [ Links ]

LE BRETON, David. La sociologie du corps. Paris: PUF, 2012. [ Links ]

LEMONNIER, Jean-Marc. L’indétermination de la danse à l’école. In: ATTALI, Michaël; SAINT-MARTIN, Jean(org.). A l’école du sport: Epistémologie des savoirs corporels du XIXè siècle à nos jours. Paris: De Boeckm2014. [ Links ]

LIOTARD, Philippe. Compréhension du corps et dénonciation du sport (1968-1979). In: TERRET, Thierry (org.). Éducation physique, Sport et loisirs 1970-2000. Paris: Editions AFRAPS; Chamalières, 2000. p. 121-138. [ Links ]

LIOTARD, Philippe(org.). Le sport dans les sixties: pratiques, valeurs, acteurs. Reims: EPURE, 2016. [ Links ]

LIPOVETSKY, Gilles. L’emprise de l’éphémère : La mode et son destin dans les sociétés modernes. Paris: Gallimard, 1987. [ Links ]

LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004. [ Links ]

MCKAY, Jim; LABERGE, Suzanne. Sport et masculinités. Clio. Femmes, genre, histoire, [s.l.], n. 23, p. 239-267, 2006. [ Links ]

MONS, Gil. De l’expression corporelle aux transfigurations. Maîtrise en STAPS. Strasbourg: Université de Strasbourg, 1983. [ Links ]

MORALÈS, Yves; TRAVAILLOT, Yves; FEREZ, Sylvain. Le GREC (1968-1976), une contestation «par corps» de la formation des enseignants d’éducation physique et sportive. Sciences sociales et sport, [s.l.], v. 1, n. 13, p. 57-83, 2019. [ Links ]

MURAY, Philippe. Après l’Histoire. Paris: Les Belles-Lettres, 1999. [ Links ]

OTTOGALLI-MAZZACAVALLO, Cécile; LIOTARD, Philippe. L’apprentissage du genre en éducation physique. Devenir homme ou femme par l’exercice. L’éducation du corps à l’école. Mouvements, normes et pédagogies (1881-2011), [ s.l.], p. 93-113, 2012. [ Links ]

PEYREFITTE, Alain. C’était de Gaulle. Tome I. Paris: Fayard, 1995. [ Links ]

PILLON, Thierry. Virilité ouvrière. In: CORBIN, Alain; VIGARELLO, Georges; COURTINE, Jean-Jacques(org.). Histoire de la virilité. Paris: Seuil, 2011. v. 3, p. 303-325. [ Links ]

POCIELLO, Christian. Sportifs glisseurs et sportifs rugueux. Dans Le corps... entre illusions et savoirs. Esprit, [s. l.], n. 2, p. 20, p. 19-33, 1982. [ Links ]

PUDAL, Bernard; RETIERE, Jean-Noël. Les grèves ouvrières de 68, un mouvement social sans lendemain mémoriel. In: DAMAMME, Dominique; GOBILLE, Boris; MATONTI, Frédérique; PUDAL, Bernard. Mai Juin 68. Paris: Les éditions de l’Atelier, 2008. p. 207-221. [ Links ]

PUJADE-RENAUD, Claude. Expression corporelle: langage du silence. Paris: Éditions sociales françaises, 1974. [ Links ]

ROBERT, André Désiré. L’École en France de 1945 à nos jours. Grenoble: PUG, 2015. [ Links ]

SAINT-MARTIN, Jean; TERRET, Thierry (org.). Pierre Arnaud: Historien de l’EPS et du sport scolaire, Paris: L’Harmattan, 2019. [ Links ]

SIMON, Michel. Mai-Juin 68, deux mois de luttes de classes en France. La Nouvelle Critique, Paris, n. 197, p. 2-9, 1968. [ Links ]

SMADJA, Éric. Le couple et son histoire. Paris: PUF, 2011. [ Links ]

TERRET, Thierry. Sport et masculinité: une revue de questions. Staps, Paris, n. 4, p. 209-225, 2004. [ Links ]

TERRET, Thierry. La conquête d’une citadelle masculine. Sport et genre. Espaces et temps du sport. Paris: L’Harmattan, 2005. v. 1. [ Links ]

TERRET, Thiery; COGÉRINO, Geneviève; ROGOWSKI, Isabelle. Pratiques et représentations de la mixité en EPS, Revue EPS, [s.l.], v. 47, n. 4, p. 25-42, 2007. [ Links ]

TONELLA, Guy. Editorial. Les cahiers du GREC, n. 8-9, p. 2, 1974. [ Links ]

TRAVAILLOT, Yves. Sociologie des pratiques d’entretien du corps. Paris: PUF, 1998. [ Links ]

VIGARELLO, Georges. Les vertiges de l’intime. Esprit, [s.l.], n. 62, v. 2, p. 68-78, 1982. [ Links ]

VIGARELLO, Georges. Histoire de la beauté: Le corps et l’art d’embellir de la Renaissance à nos jours. Paris: Seuil, 2004. [ Links ]

WALCH, Agnès. Histoire du couple en France: de la Renaissance à nos jours. Paris: Ouest-France, 2003. [ Links ]

WALLON, Henri. Les origines de la pensée chez l’enfant. Paris: PUF, 1963. [ Links ]

ZANCARINI-FOURNEL, Michelle. Le moment 68: Une histoire contestée. Paris: Seuil, 2008. [ Links ]

1Tradução de Marcelo Moraes e Silva. E-mail: marcelomoraes@ufpr.br - Revisão de Anderson da Cunha Baia, Andréa Moreno, Daniele Cristina Carqueijeiro de Medeiros e Evelise Amgarten Quitzau.

2“Os franceses precisam se orgulhar da França”. Charles de Gaulle, citado por Peyrefitte (1995, p. 279).

3Sobre a temática do esporte e das atividades corporais e seu desenvolvimento na década de 1960 indica-se leitura do livro organizado por Liotard (2016).

4Sobre o GREC conferir o artigo escrito por Moralès, Travaillot e Ferez (2019).

5Por exemplo, as Instruções Oficiais de 19 de outubro de 1967, que regulamentavam o ensino da Educação Física no sistema educacional francês, estipulavam explicitamente que os esportes de combate eram reservados exclusivamente aos meninos, enquanto as diferentes formas de dança eram destinadas as meninas (TERRET; COGÉRINO; ROGOWSKI 2007).

6“Uma observação mais sintética permite identificar cinco relações estáveis entre as representações. Assim, estão ligados: [...] prospectivo, feminilidade e pensamento” (MONS, 1983, p. 55).

7Entrevista com Jean-Louis Blein realizada por email em 10 de abril de 2015. Mais detalhes sobre a entrevista conferir Iffrig, (2015).

8Entrevista com Jean-Bernard Bonange realizada em 21 de fevereiro de 2015. Conferir Iffrig (2015).

9Entrevista com Michèle Baffalio-Delacroix realizada em 13 de março de 2015. Mais detalhes disponíveis em Iffrig (2015).

10Entrevista com Patricia Vidil-Grenier realizada em 2 de junho de 2015. Mais detalhes conferir Iffrig (2015).

11Entrevista com Guy Tonella realizada em 2 de maio de 2015. Mais detalhes consultar Iffrig (2015).

12Sobre esta questão, ver em particular o número especial da revista STAPS, maio 68, n° 126, 2019.

Recebido: 10 de Novembro de 2020; Aceito: 02 de Março de 2021

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License