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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 06-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77004 

DOSSIÊ - Corpo e História: os múltiplos processos de educação do corpo

A produção da Education Physique Sportive Generalisée na França: o esporte como possibilidade educativa

Luciana Bicalho da Cunha* 
http://orcid.org/0000-0001-8997-241X

* Secretária Municipal da Educação de Praia Grande. Praia Grande, São Paulo, Brasil. E-mail: luciana_bicalho@yahoo.com.br


RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar o processo de formulação da Education Physique Sportive Generalisée (EPSG) na França, colocando em foco os sujeitos e os princípios que nortearam a sua elaboração. Para tanto, foram empregados principalmente periódicos e livros relativos ao debate conceitual e metodológico vivido pela França nas décadas de 1940 e 1950, assim como manuais do período que ampliaram e refinaram as análises da elaboração da EPSG. Pode-se perceber que a EPSG foi tomada como forma de reconfigurar outros modos de fazer Educação Física, reordenando as estruturas e as práticas conformadoras do processo de ensino e centralizando o papel dos jogos e dos esportes na formação dos jovens.

Palavras-chave: Educação Física Desportiva Generalizada; Método de ensino; História da Educação Física; França

ABSTRACT

The present paper aims at analyzing the processes of formulation of Education Physique Sportive Généralisée [Physical Education Generalized Sport] (EPSG) in France, focusing on the subjects and principles that guided its elaboration. For such, we used specifically scientific journals and books related to the conceptual and methodological debate held in France, from the 1940’s to the 1950’s, as well as handbooks of the period that have amplified and refined the analysis of the elaboration of EPSG. We can observe that EPSG was taken as a form to reconfigure other ways of doing Physical Education, reordering the structures and practices that shape the teaching process and focusing on the role of games and sports for youth training.

Keywords: Physical Education Generalized Sport; Teaching Method; History of Physical Education; France

Introdução

“O esporte possui virtudes, mas virtudes que são ensinadas” (BAQUET, 1951, p. 11). Essa sentença, de Maurice Baquet, fora citada inúmeras vezes por diferentes autores, seus contemporâneos ou não, a fim de representar a corrente teórico-metodológica da Educação Física francesa que defendia os jogos coletivos e os esportes como meios de formação e educação para a vida social. Denominada de Éducation Sportive (Educação Esportiva), essa corrente abrigou autores e instituições de ensino que, a partir da década de 1940, passaram a investir no debate e na elaboração de princípios e proposições para o ensino do esporte na Educação Física escolar na França. A ideia do esporte como meio de formação para a vida é uma referência que se destaca como chave de leitura para a compreensão dessa produção teórico-metodológica que se inicia na década de 1940, mas reverbera, principalmente, nas décadas de 1950 e 1960 no campo da Educação Física escolar francesa. A possibilidade de uma formação social a partir do esporte, a qual tinha por objetivo “reencontrar os elementos culturais que abrem o acesso a uma formação social autêntica”, parte de uma representação do esporte produzida no e pelo clima cultural desses anos (DUMAZEDIER, 1980, p. XX).

Tal aspiração também foi percebida na elaboração de políticas e ações em que o esporte e a Educação Física ganharam destaque, se tornaram parte importante da estratégia nacional de renovação da França, tanto no Governo Vichy (1940-1944) quanto após a Liberação e o retorno do Governo Republicano (WIEDER, 2008). É importante destacar que o esporte já havia aparecido, embora timidamente, nas prescrições do Estado como conteúdo para o ensino escolar em 1925 com o Método Francês e, posteriormente, sob o regime da Frente Popular (1936-1938) com a elaboração do Brevet Sportif Populaire e com a criação do Office du Sport Scolaire et Universitaire.

Para Thierry Terret (1998), o Brevet Sportif Populaire foi uma tentativa de estabelecer um “esporte para todos” que se propôs a incentivar uma conscientização nacional com a organização regular de eventos esportivos para que todos pudessem participar. Léo Lagrande indica no prefácio do Brevet, que a intenção era “liderar as massas do movimento juvenil à educação física e iniciação esportiva” (TERRET, 1998, p. 342).

Na década de 1940, com a criação do Commissariat à l’Éducation Générale et Sportive, durante o Governo, e as Instruções Oficiais (I.O.) de 1945, que são para o Sistema Público de Ensino francês um conjunto de textos que versam sobre a estrutura do ensino, os horários e os programas que devem ser seguidos na escola (CHOBAUX, 1967), inaugurou-se o uso da expressão Éducation Physique et Sportive (Educação Física e Esportiva) nos documentos oficiais e, portanto, fixou de vez o esporte na escola, ainda que no âmbito das prescrições (ARNAUD, 1995).

Trata-se de uma mudança significativa para a Educação Física, como disciplina escolar que passou a carregar a conotação esportiva em seu nome, consagrando novas perspectivas no processo de organização da atividade escolar. As I. O. de 1945 colocaram fim à obrigatoriedade do Método Natural como único método para o ensino da Educação Física, imposta para todos os professores durante o período Vichy de 1941 (ARNAUD, 1995).

Tais Instruções preconizaram grande liberdade na organização e condução da aula, ficando a cargo do professor escolher um ou mais métodos de ensino que melhor se adequassem aos seus interesses e personalidade. Além disso, o esporte se tornou conteúdo de ensino oficial. No corpo do texto das I.O. de 1945, o esporte aparece como conteúdo e como trato metodológico (iniciação esportiva) da meia-jornada ao ar livre. A partir daquele momento, os esportes e a educação esportiva passaram a ser garantidos no currículo escolar. Garantia essa reforçada e ampliada a cada reformulação das I.O. nos anos de 1959, 1962 e 1967. Para alguns autores como Thierry Terret (1998) e Pierre Arnaud (1995) a reformulação de 1967 é a consagração do esporte na escola.

A possibilidade de escolha metodológica proporcionada pelas novas diretrizes da educação francesa, via I.O. de 1945, e a crescente defesa da presença do esporte na Educação Física escolar, colocaram em evidência a corrente esportiva, centrada na defesa de um esporte educativo e capaz de educar para a vida em sociedade, ganhando cada vez mais adeptos e mais aparato conceitual. O esporte é retomado como peça fundamental para a renovação do sistema educativo francês e formação de sua juventude. Porém, nessa perspectiva que começou a ser desenhada na década de 1940 e ganhou maior notoriedade na década de 1950, o a priori educativo do esporte não era algo intrínseco a toda e qualquer manifestação. O esporte seria um excepcional meio de educação desde que orientado, ou seja, desde que fossem feitas adaptações próprias para que ele ocupasse seu lugar no ambiente escolar. Como afirmou Baquet (1951, p. 11) o “[...] esporte é um poderoso meio de educação e faz-se necessário precisar como ele pode ser utilizado”.

É nessa ambiência que a Education Physique Sportive Generalisée (EPSG), no Brasil reconhecida como Educação Física Desportiva Generalizada (EFDG), fora pensada e sistematizada no Institut Nacional des Sports (INS), tendo como autores principais Maurice Baquet e Auguste Listello. Dessa forma, este artigo tem por objetivo analisar o processo de formulação da EPSG no INS, colocando em foco os sujeitos e os princípios que nortearam a sua elaboração.

Para tanto, foram empregados prioritariamente periódicos e livros relativos ao debate conceitual e metodológico vivido pela França nas décadas de 1940 e 1950, assim como documentos de natureza didática, como manuais, que ampliaram e refinaram a análise da configuração da EPSG1. Tais fontes foram capitais para interpretar as formas de representação e apropriação das ideias de uma educação esportiva na formulação de recomendações e prescrições, encerradas em um método de ensino, a partir dos códigos e intencionalidades de uma instituição e seus sujeitos2. A investigação possibilitou novas compreensões sobre os usos, estratégias e desafios enfrentados por professores e por instituições de ensino para ressignificar sua atuação no campo. Nessa operação historiográfica, o INS e os sujeitos nele envolvidos, em suas escolhas, laços e interesses profissionais, possuem papel substancial para a compreensão da elaboração da EPSG. Realizada na e pela tentativa de ligar os múltiplos fragmentos que dão ao todo uma forma, mesmo que ela não possa expressar a realidade vivida tal como se deu, intenta-se aqui uma operação de impregnação, conexão e imaginação histórica. Sobre essa ideia, Sabrina Loriga (2011, p. 227) afirma que

[...] a história pode evocar um processo de metamorfose pictórica que repousa essencialmente em duas operações: a impregnação (poderíamos dizer que o historiador deve estender o seu eu para além de si mesmo) e a conexão (para imaginar e, talvez, preencher as lacunas do passado que nos é dado apreender).

Da inserção de Maurice Baquet e Auguste Listello no INS à organização da EPSG

O INS3 foi uma instituição composta por diferentes frentes de trabalho que compartilhavam o mesmo objeto, o esporte, mas que também possuíam finalidades diversas. Era formado por: um centro de pesquisas científicas e experimentais destinadas às técnicas desportivas; uma escola de formação de treinadores de alto nível; um colégio de atletas de nível nacional; uma Escola Superior de Esgrima e um estabelecimento de formação de mestres em Educação Física e Esportiva (FORTUNE, 2012; LEVET-LABRY, 2007). Ao mesmo tempo, preconizava um diálogo com as demais instituições superiores de Educação Física para o estabelecimento de novos conhecimentos e diretrizes da área. De acordo com a placa de apresentação do Instituto, ele se propunha a dialogar com

escola normal de professores de educação física, escolas normais de mestres, centros regionais de educação física e esportiva, líderes do movimento da juventude, grandes empresas estatais, mas também todos aqueles que estão lutando com as realidades da vida (LEVET-LABRY, 2007, p. 132).

Esses diferentes direcionamentos vinculavam-se a um projeto maior de regeneração social através do esporte. Para a nova gestão do Ministère de la Jeunesse et des Sports (Ministério da Juventude e dos Esportes), os “numerosos fracassos esportivos”, que creditaram “ao estado de degeneração do povo francês”, eram resultado do “insucesso e da falta de penetração dos métodos de educação física” na população de uma maneira geral (LEVET-LABRY, 2007,

p. 132). Era urgente a implementação de ações que objetivassem “evoluir certas ideias e concepções” de ensino da Educação Física, conferindo ao esporte certa importância nesse processo. Essa ambição de abrangência se expressou em ações que pretenderam fortalecer a população através da prática esportiva procurando alcançar e educar a massa, ou seja, crianças e jovens de todas as camadas sociais.

Em meio às múltiplas frentes de trabalho no seio do Instituto, a produção de uma concepção de Educação Física legitimada por um conjunto de ideias, prescrições e práticas que circulavam na França instituiu uma forma de didatização do esporte reconhecida no país e fora dele. No curso das negociações de sentidos que se estabelecia naquele espaço, a consideração de alguns sujeitos e ações permite ver como essa nova sistematização da educação esportiva foi modelada para, então, perceber como ela participou desse novo projeto educativo e social. Nesse movimento, destaco dois autores que foram importantes para a elaboração da EPSG nessa instituição: Auguste Listello e Maurice Baquet.

Nascido em 1897, Maurice Baquet foi um dos autores mais referenciados quando se trata da pedagogização do esporte na França. Praticante assíduo de diferentes esportes durante sua juventude, como futebol, atletismo e natação, sua trajetória profissional reverbera a relação que ele estabeleceu com o esporte durante toda sua vida. Ao longo do seu trabalho aliou o ensino do esporte à formação de professores como monitor adjunto de boxe, atletismo e futebol na Escola de Joinville, em 1919; como professor de Educação Física na École Hoche em Versalhes (1931); e, na Université de Paris (1931-1933), com a função de treinador esportivo, responsável pela equipe de atletismo polonesa para os Jogos Olímpicos (1921-1924). Nesse período, já conquistava representativo reconhecimento profissional dentro e fora da França (FORTUNE, 2012).

Imediatamente após a criação do INS, foi nomeado seu diretor técnico, permanecendo no cargo até 1960. É importante destacar que, ao longo de sua jornada profissional, Maurice Baquet ficou conhecido por seus contemporâneos, e mesmo por professores que vieram a lhe suceder, como um sujeito militante, engajado na defesa do papel social do esporte na educação formal da juventude. No INS, ganhou espaço e suporte para desenvolver algumas ideias relativas à concepção de educação esportiva que já vinha organizando antes de sua entrada nessa instituição, mais precisamente aquelas publicadas no livro Éducation sportive, initiation et entraînement (Educação esportiva, iniciação e treinamento) de 1942 e, no livro Précis de l’initiation sportive à l’usage de l’enseignement primaire e des organisations de jeunesses (Princípios da iniciação esportiva ao emprego no ensino primário e nas organizações da juventude), de 1943.

Após a sua inserção no INS, Baquet continua a publicar regularmente suas ideias, principalmente em dois periódicos: as revistas Héraclès e Cahier Technique et Pedagogique INS. Ora dedicando-se a tratar da concepção de educação esportiva que elaborou em parceria com outros professores do INS, ora abordando outros temas, usualmente ligados ao papel social do esporte, Baquet toma esses dois veículos como porta-vozes de suas ideias, principalmente entre os anos de 1946 e 1955. Por certo, as ideias de Baquet antes de sua inserção no INS foram basilares para a elaboração da concepção desenvolvida pela instituição. No entanto, se elas foram, num primeiro momento, inspiradoras da proposta, é fundamental reconhecer que a sistematização de uma educação esportiva que viria a ser conhecida como Éducation Physique Sportive Generalisée extrapolou suas origens. Isso se deu por duas razões: a institucionalização da proposta, pois, a partir do momento em que Baquet se inseriu no INS, ela passou a ser domínio e referência da instituição e não mais apenas de um autor; e a co-autoria de outros professores, em especial Auguste Listello, que incorporou outras visões e proposições.

Nascido no ano de 1913, na cidade de Boghar, Argélia, Auguste Listello deixou definitivamente seu país no ano de 1928 para residir e trabalhar na França. Neste ano, se insere na Marinha Francesa, assumindo diferentes funções, muitas delas vinculadas ao esporte, até o ano de 1945. Em 1941, concomitantemente a seu trabalho na Marinha Francesa, estagiou no Collège National des Moniteurs et Athlètes (Colégio Nacional de Monitores e Atletas - CNMA). Durante os anos de 1945 a 1958, Auguste Listello dedicou seu trabalho ao INS, onde ocupou as funções de professor, de diretor técnico-pedagógico e de chefe da comissão Educação Física Esportiva (Estudo e Experimentação) para a elaboração de “[...] uma certa concepção de ensino e de educação à partir das atividades físicas, esportivas e de lazer” (LISTELLO, 1999, p. 4). Concomitantemente ao seu trabalho no Instituto, na década de 1950 assumiu a responsabilidade de ministrar cursos nos Estágios Nacionais da Union Sportive de l’Enseignement del Premier Degré (União Esportiva de Ensino do Primeiro Grau - USEP). As diferentes inserções com o esporte parecem ter influenciado as formulações individuais e coletivas de Auguste Listello sobre a concepção de educação esportiva que desenvolveu no INS.

Das ideias basilares à organização da EPSG

O debate e a promoção de novos modos de fazer esporte na escola configuraram-se como uma prática cultural, em que sujeitos e instituições, em seus múltiplos movimentos, possibilitaram a produção de sentidos para esse encontro entre esporte e escola. Dentre as experiências provocadas por esse novo fazer educativo, o INS e seu corpo docente se mostraram precursores ao elaborar uma proposta de educação esportiva já em meados da década de 1940.

A primeira publicação sobre a sistematização do ensino da educação esportiva do INS foi veiculada na Revista Héraclès, em 1946. O artigo intitulado La doctrine d’Éducation Sportive, escrito por Baquet, foi dividido em dois números dessa revista - 01 e 02 - e teve por pretensão apresentar os fundamentos básicos da concepção empreendida. Segundo Baquet, tal elaboração partiu de uma demanda do Ministério da Educação Nacional, tendo como propósito inicial a promoção do esporte na sociedade:

Face ao exposto, a Direção de Esportes nos encarregou de estudar, em acordo com os técnicos de cada federação esportiva, uma doutrina de educação esportiva destinada às sociedades esportivas e se propondo a preparar o esporte pelo esporte. [...] Trata-se de obter de nossos adolescentes o que eles são capazes de praticar, fora a natação e o atletismo que são obrigatórios, um esporte individual ou ao ar livre, um esporte coletivo e um esporte de combate. O projeto estabelecido e experimentado pelo Instituto Nacional de Esportes inclui dois tipos de sessão:

  1. Uma educação esportiva

  2. A outra, de treinamento ou de especialização esportiva (BAQUET, 1946b 4).

Como motivação política, a educação esportiva pretendida pelo INS atendeu também as prerrogativas da Direção Geral da Juventude e Esportes, ligada ao Ministério, que constatou certa carência na formação dos alunos das escolas francesas relativa à baixa inserção de jovens na prática esportiva. A elaboração dessa proposta se apresentou, portanto, como uma experiência possível diante das demandas social, política e cultural cada vez mais fortes em favor do esporte na França.

Uma análise dos artigos publicados por Listello e Baquet nos periódicos franceses, principalmente as revistas Cahier Technique et Pedagogique INS, Héraclès, Les Stagiaires e Éducation Physique et Sports, possibilitou reconhecer nuances das diferentes fases da construção das ideias basilares da Éducation Physique Sportive Generalisée. Tais publicações colocaram em evidência um conjunto de argumentações e formulações pedagógicas que pareceram ser fundamentais a esses autores, tanto pela sua recorrência nos diferentes artigos, quanto pela forma com que eram apresentadas.

Um dos elementos recorrentes em seus textos era a defesa da função educativa dos jogos e esportes na formação das crianças e jovens. Os autores afirmavam que se os esportes fossem trabalhados de maneira coerente e direcionados por professores qualificados, poderiam proporcionar a “formação de um ser humano equilibrado, integrado harmoniosamente à sociedade”, ao “agir utilmente sobre os corpos, o espírito e a personalidade” das crianças, dos jovens e também dos adultos (BAQUET, 1947, p. 8, grifos do autor). Nessa linha de pensamento, os autores se mostraram preocupados em atuar na educação de jovens e de crianças compreendendo as “diversas manifestações da vida e o indivíduo de uma maneira integral” e não apenas a partir de uma visão limitada ao “domínio técnico e/ou anatômico” de seus corpos. O valor formativo do esporte se apresentava tanto do ponto de vista “físico” e “técnico”, quanto “social”, “intelectual” e de formação da “personalidade” (BAQUET, 1946a). Para tanto, eles se fundamentavam na compreensão de que o esporte é uma importante manifestação da vida coletiva e, como tal, não poderia ser esquecida e ter suas possibilidades educativas menosprezadas nos tempos e espaços relativos ao ensino da Educação Física.

Expressões como “Educação Física através do esporte” e “o esporte como meio de formação” foram representativas no anúncio das ideias de Listello e Baquet. O esporte não era em si, na proposição desses professores, a razão final nem o conteúdo absoluto da Educação Física. Sobre tal entendimento, Listello publicou um artigo em que sintetizou as principais preocupações suas e de Baquet na elaboração da proposta e esclareceu algumas questões que parecem ter sido colocadas a eles:

Os exercícios que nós preconizamos são o resultado da experiência e de uma longa observação do trabalho corporal em todas as suas formas (educação física, ginástica de manutenção, iniciação esportiva). Eles são uma síntese destas diferentes atividades e marcam uma evolução que nós constatamos, de fato, em muitos países.

Em outras palavras, não é um novo método como alguns têm pensado, mas uma sábia utilização de velhos sistemas de educação física.

Em função do poder atrativo que o esporte exerce sobre o espírito dos jovens e até mesmo dos adultos, nós o consideramos tanto como um objetivo quanto como um meio; é por isso que, como o Sr. Baquet escreveu, nós queremos ganhar as mentes de milhares de jovens (meninos e meninas) para a prática de atividades físicas (LISTELLO, 1948, p. 19, grifos nossos).

Ao enxergá-la como síntese, Listello estabeleceu um modo de conciliar, propor e legitimar a premissa de que as diferentes formas de trabalho corporal da Educação Física eram partes indissolúveis de um todo. Porém, anunciar os jogos e os esportes como objetivo e meio era necessário para o projeto de incorporação dessas práticas ao cotidiano de crianças e de jovens para, consequentemente, torná-la uma prática cultural imbricada em diferentes tempos e espaços sociais. Isso implica considerar a Éducation Physique Sportive Generalisée mais que uma simples convenção metodológica para o ensino dos esportes. A proposta, que pretendia “ganhar as mentes de milhares de jovens”, tanto meninos quanto meninas, pode ser lida como uma das bases de um processo de convencimento para uma mudança de costumes. Essa passagem retoma a ideia, anunciada por Dumazedier (1980) e demais autores, de formação social pelo esporte. Tomando essa ideia como referência, a prática esportiva torna-se parte de um processo de educação social, na medida em que possibilita o acesso de toda uma sociedade a elementos culturais importantes para sua dinâmica. Ela também serviria como ponto de partida para variadas reflexões, principalmente se tal modo de olhar para a educação esportiva se iniciasse na infância e nas escolas. Esses debates são aqui tomados como ponto de convergência entre uma visão sociológica e uma visão pedagógica do esporte: transformação da vida cotidiana, possibilidade de emancipação, sentimento de coletividade, educação da vontade. Ambas as visões, a partir de direcionamentos diferentes, mas não contrários, anunciaram possibilidades educativas capazes de modificar hábitos e costumes.

Para tanto, era necessário reformular, no plano mais concreto, as orientações didáticas e metodológicas, assumindo a presença do esporte como um modo possível de fazer Educação Física. O direcionamento dessa sistematização do processo de ensino tomou como referência a possibilidade de formar cidadãos, obviamente, mas cidadãos emancipados, capazes de agir, capazes de escolher e com senso de coletividade e de solidariedade. Ideias que associavam a disciplina, o civismo, mas também a vontade, manifestada pelo querer agir em prol de algo que é coletivo. Os novos tempos pediam indivíduos capazes de agir e, uma concepção da Educação Física que adotava a centralidade do fortalecimento e do desenvolvimento muscular, não seria capaz de cumprir tal objetivo, pois formava apenas sujeitos individualistas.

Esse era, por sinal, um dos principais argumentos dos autores a favor da educação esportiva quando confrontada com outros sistemas de ensino caracterizados pela rigidez, pela obrigatoriedade da prática e limitados à reprodução de exercícios corporais que visavam apenas o desenvolvimento físico. Afinal, como conseguiriam formar sujeitos emancipados se o sistema educativo constrangia a todo momento seus sujeitos em formação? De fato, para os autores da EPSG, a presença dos jogos e dos esportes nas aulas de Educação Física era importante, pois promovia situações de ensino em que problemas e dificuldades poderiam ser superados e também proporcionavam oportunidades de aprendizado que tinham como foco o agir coletivo em prol de um objetivo comum.

As características comumente associadas por Listello e Baquet a fim de conferir aos jogos e aos esportes a sua potencialidade como meio de formação foram a auto emulação, forma de luta contra si mesmo, e a competição, forma de luta contra o outro. Para esses autores, a iniciação esportiva compreendia a aprendizagem da vida, uma vez que, assim como os jogos e os esportes, ela comportava momentos de luta e enfrentamento com os outros e consigo mesmo. Os atos de comparar e concorrer proporcionados pela prática esportiva eram, portanto, a base do conhecimento de si e dos outros. Era nesses momentos de luta que impulsos e instintos nocivos à vida social poderiam surgir e, com isso, caberia a ação do professor: educar e disciplinar para uma competição sã e honesta (BAQUET, 1949a). Nesse sentido, a auto emulação e a competição parecem ter sido elementos indissociáveis para o conhecimento e para o domínio de si mesmo. Conhecer a si e aos outros para controlar o seu corpo, a sua ação no mundo. Conhecimento esse mediado pelo olhar e pela ética do professor. Nesse emaranhado, modos de agir e de estar no mundo aparecem como lugares de ação educativa orientados pelo e com o esporte.

Para a análise da elaboração da EPSG foi também preciso considerar a questão do léxico, pois ele possibilita pensar implicações muitas vezes imperceptíveis a uma leitura desavisada. Nesse sentido, é importante ponderar que a mudança de nomenclatura não assegura necessariamente uma alteração automática das práticas e significações, assim como o seu contrário também é válido, ou seja, a mudança de costumes não implica em mudança de nomenclatura (BLOCH, 2001). No entanto, nesse caso, as diferentes nomeações escolhidas para designar a proposta do INS parecem profícuas para pensar o seu papel no movimento interno à instituição, através dos seus sujeitos, e externo a ela, vinculado a questões mais amplas da área, como o debate com os defensores da ginástica.

A designação do qualitativo “generalizada” parece dialogar com duas questões caras aos seus autores. A primeira delas relaciona-se às críticas direcionadas à educação esportiva, principalmente aquelas realizadas por Hébert (1943) e seus seguidores. Tais posicionamentos contrários baseavam- se na especialização provocada pelo esporte. Para eles, o esporte era perigoso porque levava à especificação de movimentos importantes a uma ou outra modalidade esportiva, provocando fragilidades motoras no desenvolvimento geral do corpo. De acordo com os defensores do movimento natural do corpo, entendido como todo movimento que respeita a anatomia e a fisiologia humanas, o movimento do esporte certamente fugiria a esse conceito, sendo, portanto, nocivo à saúde física do homem.

A segunda questão, em complementaridade à primeira, remete à estruturação da proposta pelo ensino das diferentes modalidades esportivas, ou pelo menos de um conjunto de esportes que desenvolveriam qualidades físicas e técnicas diferentes, caracterizadas por eles como esportes de base. Mesmo ressaltando preferência pelo atletismo e pela natação, Listello e Baquet afirmavam que as modalidades esportivas poderiam ser selecionadas a partir de três grupos: esportes coletivos, esportes individuais e esportes de combate (para meninos) e de ritmo (para meninas)5. A escolha entre os três grupos garantiria não apenas maior variedade de gestos esportivos como também a possibilidade do aluno acessar diferentes esportes e, futuramente, escolher algum para se especializar, que melhor lhe conviesse e que lhe desse prazer.

Dessa maneira, a atenção ao termo “generalizado” é dada pelos seguintes motivos:

A educação esportiva deve ser realizada na sua forma inicial generalizada por duas razões:

  1. É necessário iniciar pelas formas variadas de exercícios, porque ninguém sabe como será o crescimento e a evolução morfológica, fisiológica e mental de cada indivíduo;

  2. Além disso, é necessário corrigir automaticamente pelos esportes de compensação e de equilíbrio as repercussões adversas que se pode ter eventualmente pela prática exclusiva de um só esporte (BAQUET, 1949b, p. 3).

Nos termos apresentados, a demarcação de uma educação esportiva generalizada se mostrou contrária a uma concepção orientada pelo desenvolvimento biológico do corpo. A ideia de que “[...] é necessário iniciar pelas variadas formas de exercício porque ninguém sabe como será o crescimento e a evolução morfológica, fisiológica e mental de cada indivíduo” (BAQUET, 1949b, p. 3), organizou certa maneira de olhar para a formação dos alunos para além do caráter físico. Ainda que pensada a partir de uma perspectiva reparadora, tal educação esportiva, sob a forma generalizada, se mostrou uma construção pedagógica próxima de uma visão mais abrangente do esporte e da própria Educação Física.

Sistematizando o fazer: os modelos de ensino, as sessões de aprendizagem

e as formas de trabalho

Modelos de ensino foram dispositivos utilizados recorrentemente para a apresentação do que seria uma aula estruturada sob a orientação do INS. Do ponto de vista de seu conteúdo, eram essencialmente descritivos e enfatizavam uma sequência pedagógica direcionada pela técnica dos movimentos específicos de cada modalidade esportiva. Ao traduzir essas ideias para o leitor, os autores se apoiaram na linguagem visual. Cada etapa da aula era apresentada com descrições dos exercícios acompanhadas da sua representação gestual, conforme mostrado na Figura 1.

FONTE: CAHIER TECHNIQUE ET PEDAGOGIQUE INS, 1947.

FIGURA 1 MODELO DE SESSÃO EDUCAÇÃO ESPORTIVA GENERALIZADA 

A primeira parte, denominada Mise en train (Aquecimento), corresponde aos exercícios considerados por eles como de efeito higiênico: preparação muscular, articular e nervosa, além de informar ao corpo, de maneira prudente, sobre o início do exercício. A segunda parte, denominada Assouplissement et Développment musculaire (Flexibilidade e Desenvolvimento muscular), considerada como a parte formativa, consiste em exercícios de efeito morfológico, como os de flexibilidade e tonificação muscular. Agilité e Cran (Agilidade e Cran), como é chamada a terceira parte, caracteriza-se pelo efeito sobre o caráter por meio de atividades técnicas capazes de desenvolver o gosto pelo risco, adquirir a confiança em si e o domínio do corpo. Por fim, a Applications Sportives (Aplicações Esportivas), como o próprio nome sugere, destina-se à realização de jogos, esportes individuais, coletivos e de combate, considerando suas formas competitivas e recreativas, tendo caráter de emulação coletiva (BAQUET, 1951, p. 14).

Em conjunto, essas quatro partes possuíam uma lógica que era processual, sendo cada uma delas considerada dimensão formativa importante para o ensino do esporte. Nesse sentido, fez-se notar que a tradição francesa em relação aos exercícios ginásticos não é necessariamente abandonada, mas sim, reconfigurada, tendo em seu horizonte não mais o aprendizado do gesto corretivo, mas sim, o aprendizado do gesto esportivo.

Tanto nos artigos de cunho mais conceitual quanto nos modelos de sessões de ensino veiculados nas páginas desses periódicos, parece evidente que a formação promovida pelos autores do INS enfatizava os conteúdos esportivos a partir de processos de aprendizado técnico. A ideia de progressão dos exercícios ao longo da sessão (ou das sessões) para que, ao fim, o aluno pudesse realizar a execução correta do gesto esportivo foi importante na organização do ensino. A fragmentação do gesto esportivo era considerada pelos autores da EPSG como uma maneira simplificada, porém eficaz, de fazer com que os alunos “assimilassem e progredissem rapidamente” no aprendizado das diferentes técnicas esportivas (LISTELLO et al., 1949, p. 14).

O “bom aprendizado” da técnica implicava uma “boa preparação” para formas mais complexas de jogos e atividades físicas esportivas. E a utilização de jogos e esportes nas aulas de Educação Física promovia uma educação voltada para o desenvolvimento do esforço e do gosto, características fundamentais para o exercício da vida social, segundo esses autores. Nesse sentido, a técnica se junta a outros dois elementos: o esforço e a formação social, para compor o corpo central da proposta. É através dessas três características que os autores acreditavam que se chegaria a uma educação plena, capaz de “desenvolver atitudes e hábitos” e de criar “bons automatismos sociais e morais” (BAQUET, 1951, p. 12).

Operando com a ideia de tornar automáticos hábitos e atitudes, sejam eles sociais, morais ou corporais, a proposta de Educação Física que se apresentava parecia dialogar de maneira próxima com as dimensões e com os processos formativos do esporte, dentre eles, o domínio da técnica, a eficiência do gesto, o gosto pelo esforço e o trabalho com e pelo outro. Essa constatação pode ser observada quando os autores sinalizam que a iniciação esportiva deveria propor a realização, simultânea ou sucessivamente, de três perspectivas de trabalho: a iniciação à vida coletiva e social, a iniciação ao esforço e a iniciação à técnica.

A primeira centrava-se fundamentalmente nos conceitos de auto emulação e de competição anteriormente discutidos. Sob a direção do professor, a prática esportiva poderia desenvolver o senso de coletividade e cooperação, caros à vida em sociedade. A segunda perspectiva, iniciação ao esforço, compreendia um trabalho “prudente e progressivo” preocupado em desenvolver “esforços” relativos à “destreza, velocidade, impulsão, flexibilidade e coordenação”. Para seus autores, essa iniciação não se direcionava apenas aos aspectos físico e fisiológico, mas também, com igual importância, à formação do caráter, uma vez que “o fato de se mensurar com seus semelhantes no decorrer da competição esportiva” provocaria o desenvolvimento da “vontade”, do “espírito de disciplina” e de “decisão” (BAQUET, 1951, p. 12). Por fim, na terceira perspectiva, compreendia-se que para a aprendizagem dos gestos técnicos era necessária a aquisição da técnica por meio de um trabalho de “concentração, atenção e força de vontade”. O ensino da técnica reclamava “muita perseverança, esforço paciente e tenaz”, incutindo nos jovens “bons princípios técnicos” sem, necessariamente, “exigir o gesto ideal do campeão” (BAQUET, 1951, p. 12).

Juntas, essas três perspectivas de trabalho objetivariam despertar o interesse das crianças e dos jovens, criando a necessidade e o hábito da prática esportiva. Como nos provoca a pensar Alexandre Vaz (2001), nas sociedades modernas, a técnica ganha destaque por seu papel na formação das subjetividades e na incorporação de padrões, como medida e critério que orientam a vida social. Talvez, o ensino da técnica tenha sido reconhecido nessa concepção de Educação Física como uma maneira eficaz de produzir outros modos de viver em sociedade, mediados pela ideia de domínio de si como condição para reconhecer e estar com o outro.

Há uma mudança de personagens a partir do ano de 1954 no que diz respeito a estruturação da EPSG. Após essa data, Auguste Listello e alguns colaboradores, como Roger Crenn e Pierre Clerc, assumiram, definitivamente, a função de estruturar e divulgar a EPSG, no formato de artigos em periódicos e no formato de livros. Em outro caminho, Maurice Baquet se voltou a publicar artigos relacionados à educação esportiva sem, no entanto, referir-se diretamente à EPSG. Entre os números 36 (1954) e 47 (1955) da Cahier Technique et Pedagogique INS esses dois autores continuaram a publicar sistematicamente suas ideias: Baquet denominando sua produção como Éducation Sportive e Listello como Éducation Physique Sportive Generalisée.

Essa reconfiguração de termos não provocou, necessariamente, rompimento total com a fundamentação teórica construída, em grande parte junto a Baquet, para o projeto de educação esportiva do INS. A EPSG continuava a defender um modelo de Educação Física próximo às proposições de Baquet. O que parece modificar-se na produção desses dois autores, a partir de então, é a organização do ensino. A proposta de educação esportiva então desenvolvida por Listello e colaboradores apresentava outra classificação de procedimentos pedagógicos, denominados por eles como “formas de trabalho”, que possibilitariam ao professor “enriquecer” seu ensino ao permitir uma “análise das vantagens” e uma “adaptação” dos exercícios de acordo com o objetivo estabelecido para cada aula e para cada turma (LISTELLO, 1955, p. 15).

Essa formatação da EPSG foi detalhadamente apresentada em dois livros publicados coletivamente pelos professores do INS sob a coordenação de Listello et al. (1956, 1959): “Récréation et Éducation Physique Sportive”, de 1956, e “Récréation et Éducation Physique Sportive: orientation sportive”, de 1959. Outro livro ainda fora publicado em colaboração com os professores do INS, em 1964, denominado “Éducation Physique pour tous”.

Nessas obras, o ensino da Educação Física com base nos pressupostos da educação esportiva foi organizado em duas grandes sessões de aprendizagem: a primeira, denominada educação esportiva geral ou educacional, era tida como a principal forma de organização do ensino da EPSG na escola. Nessa sessão, o ensino dos diferentes esportes e jogos era realizado em lições. Cada lição era composta pela sequência de atividades anteriormente citada: Aquecimento; Flexibilidade e Força; Agilidade e Cran e, por fim, as Aplicações Esportivas. A chamada “volta à calma” e as medidas de higiene corporais não eram componentes obrigatórios à lição de EPSG, mas poderiam ser realizadas a critério do professor.

Nesse primeiro momento intentava-se que os alunos tivessem conhecimento geral de todos os esportes, sem a preocupação de se especializar em nenhum deles. Isso era o foco da segunda sessão de aprendizagem. Chamada de especialização esportiva, nela eram enfatizados os aspectos técnicos e táticos de cada esporte, ficando a critério do aluno escolher e se especializar naquele que mais lhe interessasse (LISTELLO et al., 1956). Esse momento não deveria acontecer, necessariamente, dentro do programa curricular da escola. Poderia ocorrer em outros tempos e espaços escolares e até mesmo fora da escola, em clubes, por exemplo. Com isso, os autores chamam a atenção para o caráter contínuo e abrangente da sua proposta de educação esportiva. Afinal, poderia se iniciar na escola, mas não deveria nela se encerrar.

Para compor essas duas grandes sessões de aprendizagem, a EPSG pressupunha diferentes formas de trabalho que, tomadas em seu conjunto, conseguiriam atingir os objetivos propostos. São elas: forma de jogo, que implica em liberdade de ação e de competição; forma coletiva de trabalho, a qual objetiva a iniciação ou aperfeiçoamento esportivo a partir da intervenção do professor; forma de trabalho em pequenos grupos, pressupõe assistência, ajuda, participação e cooperação entre os integrantes; forma individual de trabalho, na qual o aluno realiza a atividade sem ajuda do professor (LISTELLO et al., 1956). Essas formas de trabalho organizam o ensino dos grupos de atividades selecionadas pela EPSG que são os jogos recreativos; corridas e saltos; lançamentos; agilidade; aparelhos; jogos de equipe com bola; luta e força; folclore; natação; grandes atividades ao ar livre. Propunham também que os exercícios físicos, executados até então por obrigação no ambiente escolar, passassem a ser realizados por prazer, pois seriam levados em consideração as experiências, as necessidades e os interesses dos alunos.

No livro “Éducation Physique pour tous”, os autores estabeleceram quatro pontos fundamentais que, segundo eles, todos os educadores deveriam levar em consideração para a organização de seu trabalho docente. O primeiro ponto diz respeito a todas as atividades físicas generalizadas que todo indivíduo precisa para viver saudavelmente; o segundo, refere-se às necessidades particulares provocadas pela especialização esportiva ou pelo estado físico de cada um, em caso de deficiências; o terceiro relaciona-se à prevenção do mal; e, por fim, o quarto ponto considera as atividades recreativas, complementares ou de diversão durante o aproveitamento das horas livres. Os jogos e as atividades desportivas, fundamentados em tais princípios, eram considerados como a base inicial para a organização do trabalho e como fonte de equilíbrio para o homem moderno (LISTELLO; CLERC; CRENN, 1964).

Considerações finais

Pode-se, à guisa de conclusão, inferir que, desde sua concepção, a EPSG foi tomada como forma de reconfiguração de outros modos de fazer Educação Física, reordenando as estruturas e as práticas conformadoras do processo de ensino e centralizando o papel dos jogos e dos esportes na formação dos jovens. Tudo isso em resposta a um complexo exercício de demarcação de lugares e estabelecimentos de novas práticas culturais e políticas, em que a adesão ao esporte pela escola foi gradativamente se realizando e sendo aceita pela sociedade francesa. Era necessário formar uma população que fosse capaz de lidar com os novos tempos e o esporte, tanto dentro quanto fora da escola, apresentou códigos necessários a essa transformação.

As fontes permitem confirmar que a elaboração de princípios para uma educação esportiva pelo INS se forjou a partir da conjunção de motivações internas e externas à própria instituição. Como escopo teórico, a proposta se baseou nos trabalhos de Maurice Baquet previamente desenvolvidos à sua entrada no INS. No continuum da divulgação da EPSG, pode-se perceber que os artigos escritos por Baquet se caracterizavam por uma explanação teórico- conceitual do que se tratava a EPSG, discutindo o papel dos esportes na formação, os objetivos e os alcances educativos possibilitados pela iniciação esportiva na educação das crianças e dos jovens. Já as publicações de Listello estavam direcionadas à organização do trabalho, à apresentação de modelos de sessão de ensino e de atividades adequadas a cada etapa da aula.

Cabe ressaltar, por fim, que o esporte não era em si, na proposição desses professores, a razão final nem o conteúdo absoluto da Educação Física. Para eles, o valor da Educação Física na escola, e na sociedade como um todo, era de “ordem corporal”, ou seja, vinculado aos seus fatores “funcionais, higiênicos e estéticos” e o esporte entrava nessa perspectiva como uma possibilidade de atrair e formar, “por prazer” e não “por dever”, os futuros cidadãos.

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1As fontes foram acessadas no arquivo da Biblioteca Nacional da França (BNF) e no acervo pessoal do professor Auguste Listello.

2Apoio-me em Roger Chartier (1990) para pensar os conceitos de representação e apropriação.

3Criado em 1945, o INS se localizava na cidade de Joinville, próximo à ENSEPS de formação de professores homens. O Instituto herdou do Collége National des Moniteurs et Athlètes tanto sua estrutura física quanto seu quadro de pessoal. Em sua concepção primeira, seu objetivo principal era o desenvolvimento de pesquisas com foco nas técnicas desportivas, visando o aperfeiçoamento e a formação de atletas. Contudo, desde o início, suas ações ultrapassaram esse raio de atuação, procurando também alcançar o sistema escolar. Essa ampliação possibilitou que, para além de se preocupar com o treinamento de atletas, o INS também se lançasse a elaborar uma concepção de Educação Física que tinha como eixo norteador o ensino dos esportes.

4Não há identificação da página na publicação original.

5De acordo com os autores, a prática esportiva poderia e deveria ser realizada por crianças e jovens de ambos os sexos, porém algumas modalidades, quando trabalhadas na etapa da especialização, não seriam indicadas ao gênero masculino ou feminino. Apesar dessa diferenciação, a temática de gênero não parece ter sido uma preocupação central dessa proposta. Nas diferentes publicações, dos artigos aos livros, poucas vezes são encontradas orientações didático-metodológicas diferentes para meninos e meninas. Percebem-se diferenciações mais significativas no que diz respeito à idade e ao nível de especialização da modalidade esportiva do que ao gênero.

Recebido: 02 de Outubro de 2020; Aceito: 06 de Janeiro de 2021

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