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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 02-Sep-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77155 

DOSSIÊ - Bases Nacionais e o Ensino de História embates, desafios e possibilidades na/entre a Educação Básica e a formação de professores

O banho, a água, a bacia e a criança: história e historiadores na defenestração da primeira versão da Base Nacional Curricular Comum de História para o Ensino Fundamental

* Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa, Paraná, Brasil. E-mail: lfcronos@, yahoo.com.br

**Universidade Estadual do Centro-Oeste. Guarapuava, Paraná, Brasil. E-mail: paulaecosta@, gmail.com


RESUMO

A primeira versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) de História para o Ensino Fundamental foi causa de uma intensa controvérsia. Indicava uma escolha por deslocar o foco das fórmulas eurocêntricas da história do Brasil, aprofundando seus laços com as origens ameríndias e africanas, o que restringiu o espaço para a história antiga e medieval, por exemplo. O documento foi alvo de uma combinação diversificada de críticas demolidoras de editores e autores de livros didáticos, políticos conservadores, religiosos fundamentalistas e jornalistas sensacionalistas, mas também de associações acadêmicas e historiadores individuais. Publicadas após o golpe de 2016, a segunda e a terceira versões saíram menos inovadoras que a proposta curricular anterior, os Parâmetros Curriculares Nacionais, dos anos 1990. O objetivo deste ensaio crítico é revisitar esse debate e buscar nele alguns padrões significativos da problemática relação entre os historiadores e o mundo da sala de aula e da política educacional, partindo da hipótese de que o contexto sociocultural que vivemos, de progressiva polarização em todos os campos e temas, afetou de modo nefasto o debate curricular. Propõe-se, ao final, algumas linhas gerais para equacionar os problemas que resultam do processo discutido.

Palavras-chave: Currículo; Ensino de história; Eurocentrismo; BNCC

ABSTRACT

The first version of the Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [Common National Curriculum Base] of History for Elementary School was the cause of intense controversy. It chose to shift the focus away from Eurocentric formulas of Brazilian history, deepening its ties with Amerindian and African origins, which restricted the space for ancient and medieval history, for example. The document was the target of a diverse combination of devastating criticism not only from publishers and authors of textbooks, conservative politicians, religious fundamentalists and sensationalist journalists but also from academic associations and individual historians. Published after the coup of 2016, the second and third versions were less innovative than the previous curriculum proposal, the 1990s Parâmetros Curriculares Nacionais [National Curricular Parameters]. The objective of this critical essay is to revisit this debate and observe significant patterns on the problematic relationship between historians and the world of the classroom and educational policy, starting from the hypothesis that the sociocultural context we are settled, of progressive polarization in all fields and themes, has adversely affected the curricular debate. Lastly, we propose some general lines to solve the problems that emerged from the discussed process.

Keywords: Curriculum; History teaching; Eurocentrism; BNCC

Introdução: a criança

Em 2016, um golpe parlamentar, jurídico e midiático derrubou a presidenta Dilma Rousseff e, entre suas múltiplas consequências, impôs-se uma profunda restruturação do sistema educacional, envolvendo diversas atitudes, como a reforma do Ensino Médio e a aprovação da versão definitiva da BNCC - Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Fundamental. Embora o desrespeito às discussões e acúmulos transformadores seja uma infeliz constante na história do Brasil, não é ao golpe de 2016 que se devem os maiores retrocessos na BNCC, especialmente de História, originalmente lançada em setembro de 2015. As perspectivas inovadoras da primeira versão da BNCC História/Ensino Fundamental (doravante BNCC-H/EF), de reduzir drasticamente os conteúdos de história antiga e medieval, foram alvo de ataques desde o primeiro momento, começando pelo então Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, até os setores mais radicalmente conservadores da sociedade, passando por entidades de historiadores. O modelo quadripartite (Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea) retornou triunfante já na segunda versão, ainda sob o governo de Rousseff, em maio de 2016, e seu desenho mais canônico foi restaurado na versão final, de janeiro de 2017.

Este texto reflete sobre este movimento aparentemente contraditório, por meio de uma recuperação de documentos e debates em torno do tema e da busca de sentidos para o amplo e às vezes estridente debate de fins de 2015 e início de 2016.

A primeira versão da BNCC-H/EF fez a opção de privilegiar a história do Brasil e a história recente. Tratou-se, em nosso ponto de vista, de uma opção, oportuna e legítima. Primeiro, é importante entender o que queremos dizer com “opção”. A definição de currículos e, principalmente, do tipo de documento que é a BNCC, uma listagem estruturada de direitos de aprendizagem, conteúdos, metodologias e conceitos, é uma questão de escolha do que manter e do que abandonar, do que destacar e do que considerar secundário. Embora todo currículo funcione assim, pode-se dizer que a primeira versão finalmente rompeu com um cânone do “código disciplinar da história” (CUESTA FERNÁNDEZ, 1997). A opção pelo foco no Brasil não correspondeu a um abandono da história geral, nem a um projeto vulgarmente nacionalista de ensino, mas uma mudança de foco e de prioridades de conteúdo. A opção pelo recorte cronológico inicial no século XVI não impossibilitaria referências aos períodos anteriores em diversos espaços, culturas e contextos, mas iria submetê-los a uma nova lógica de organização dos conteúdos.

Em vez de discutida em termos do que efetivamente propunha e significava em termos curriculares e educativos, a opção da primeira versão da BNCC-H/EF foi, à esquerda e à direita, na comunidade acadêmica e na comunidade externa (guardadas as proporções e intensidades), pejorada no debate como “brasilcentrismo”. O neologismo buscava identificar a opção com o eurocentrismo, como sua contraparte, mas na mesma categoria de significante e significado. Entretanto, a maior parte das críticas acadêmicas e progressistas assentia que a proposição de uma alternativa ao eurocentrismo, embora a considerassem inábil, era um passo adiante. Portanto, o eurocentrismo, para esse campo, não era a alternativa para o “brasilcentrismo”, ainda que permanecesse, sim, uma alternativa para as críticas mais conservadoras, tanto historiográfica quanto politicamente. Qual seria, então, a opção, de fato? Uma narrativa policêntrica? “Acêntrica”? Haveria precedente ou base, na história dos currículos e das narrativas didáticas, para uma estrutura de conteúdo com vários centros ou sem centro algum? Estariam os críticos do “brasilcentrismo” efetivamente propondo concretamente outros focos narrativos? O fato é que não foi preciso fazer efetivamente nenhuma contraproposta de modo a obter vantagem no debate: bastou criar o neologismo e associá-lo com outra forma de discurso de alta aceitação no momento do impeachment, o de negação da ciência por meio de uma condenação antecipada dos cientistas de Humanas e Sociais por “excesso de ideologia”. Essa falácia ad hominem dispensa o atacante de discutir efetivamente a proposta e de oferecer alternativas e soluções e tem sido largamente usada por organizações como Escola Sem Partido (FRIGOTTO, 2017). Evidentemente, trata-se de uma aproximação bastante incômoda, não por ser identificada, mas por sua própria existência: uma estratégia argumentativa comum entre uma organização da sociedade civil que pratica uma forma de negacionismo científico (contra as Ciências Humanas) e associa-se com outras (contra as Ciências Biológicas e Exatas, nos casos de confronto entre as narrativas religiosas e as científicas), estratégia argumentativa da qual se aproximaram perigosamente alguns setores da própria academia. Cleto (2016), por exemplo, identifica que as primeiras críticas daqueles historiadores à proposta estão embaladas numa concepção conservadora (formalista e não substantiva) de igualdade, como base para a cidadania. A intervenção de Magnoli e Barbosa (2015) também traz, de modo subjacente, a rejeição à política de cotas para negros, ligada à perspectiva formalista de igualdade.

Apesar de muitas manifestações, ao longo do debate, quanto à falta de transparência no critério para formação das equipes que redigiram a versão preliminar, o fato é que a leitura do material deixa claro que a maior parte destas equipes foi composta por representantes das secretarias municipais e estaduais de Educação, com a assessoria de professores universitários de diversas regiões do país. Ou seja, trata-se de um critério voltado a garantir a representatividade dos órgãos executivos que ficariam responsáveis por implantar a BNCC, mais que a representatividade de entidades de historiadores. Se acaso as equipes fossem times de acadêmicos reconhecidos, principalmente, se representassem apenas uma linha de pensamento, provavelmente o documento resultante seria menos suscetível às críticas que recebeu dos professores universitários e suas entidades. Teria, provavelmente, maior coerência interna e sintonia com os grandes debates historiográficos e educacionais do momento. Nada disso, entretanto, foi suficiente para que modelos anteriores, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), fossem efetivamente acolhidos nas várias esferas do sistema educacional e colocados em prática. O custo, entretanto, foi um documento cheio de flancos para a crítica tipicamente acadêmica (mas não típica do debate curricular ou da política educacional), que pretendemos explorar um pouco melhor adiante.

Em Portaria de nº 19 de 10 de julho de 2015 (BRASIL, 2015) nomeou-se doze especialistas1 para a comissão, mas de acordo com Silva e Meireles (2017, p. 13)2 esta trabalhou somente com dez componentes. Os membros da equipe, regional e academicamente diversa, com representantes de estados e municípios e com o eixo deslocado para o Norte e o Nordeste, pode explicar uma parte importante da ousadia que ela assumiu em reduzir drasticamente os conteúdos de história antiga e medieval e reenfocar os conteúdos da História do Brasil. No nosso ponto de vista, a explicação para isso é mais simples do que todas as teorias e acusações levantadas. Tratou-se simplesmente de procurar enfrentar os efeitos deletérios do tratamento da disciplina História em sala de aula como uma espécie de ônibus lotado em que, a cada tempo, novos passageiros insistem em subir. O primeiro desafio enfrentado, portanto, foi o de escolher conteúdos em detrimento de outros, visando a reduzir a gigantesca carga de assuntos dos quais professores e estudantes devem (ou deveriam) dar conta, tarefa inglória e geralmente malsucedida. Procurar vencer todos os conteúdos é a garantia de um ensino e de uma aprendizagem superficial e mnemônica, do tipo útil para ser aprovado em exames concorridos e esquecer logo em seguida.

Historicamente, o ensino escolar de História no Brasil tem significado lidar com uma estrutura canônica de conteúdos originalmente construída na Europa, enxertada no sistema educativo de um estado monárquico e nobiliárquico, para formação de quadros de elite no “mundo dos brancos”. Desde então, esse modelo tem sido mantido com poucas mudanças estruturais, sendo que as iniciativas de história temática não tiveram suficiente difusão para confrontá-lo. Terminado o contexto que lhe deu origem, o modelo seguiu, agora sustentado por si próprio, preso à lógica interna ao sistema educacional, mais autorreferenciado que dialógico, reproduzindo-se na formação de estudantes, que por sua vez se tornariam pais, professores e historiadores, gerando um vicioso círculo de ferro. Assim, seguimos eurocêntricos, curiosamente nacionalistas (reivindicando nesse nacionalismo quase exclusivamente a herança europeia) e lineares. Outras formas de enfrentamento desse modelo tendem a somar a ele novas demandas, como uma árvore de Natal à qual agregamos cada vez mais enfeites. A eficiência desse ensino de história confuso e enciclopédico, carregado de temas e conteúdos sem fim, caminha para a nulidade. Num tsunami de fatos, informações, conceitos, imagens, considerando as poucas aulas de história, é difícil estabelecer outra relação que não o memorizar, o zapping de conteúdos e o aligeiramento. Para os estudantes, principalmente do Ensino Médio, (em que as aulas são poucas e o conteúdo se repete), do Big Bang até a manhã de hoje, a história faz escasso sentido. Essa “seleção” de conteúdos pouco auxilia a ler o mundo, dificulta muito e, até mesmo, não permite o letramento histórico.

É sintomático que esse problema não tenha sido discutido em nenhum dos textos que debateram a primeira versão que pudemos levantar, à exceção do texto de um professor da Rede Estadual do Paraná, Fabrício Maoski, que indicou o enfrentamento de um problema relevante para os professores: “A disciplina de História, tradicionalmente, apresenta algumas pegadinhas para o professor. A primeira é a trava temporal da organização do conteúdo, ou seja, como diria um amigo meu, você começa em Adão e Eva no sexto ano e segue até hoje no terceiro ano do Ensino Médio” (MAOSKI, 2016).

As discussões e críticas em torno da primeira versão preferiram se ater à questão do que ensinar, que História privilegiar, não equacionando a realidade escolar e seus principais sujeitos envolvidos: professores e alunos. Se a dimensão escolar e a aprendizagem histórica fossem de fato consideradas na disputa do currículo prescrito teríamos um debate significativo sobre educação e história que impactaria nossa escola, a formação de professores e os rumos dos cursos de licenciaturas.

A água e o banho: cartas, manifestos, denúncias em artigos de jornal e intervenções da ANPUH

Os últimos meses de 2015 e os primeiros de 2016 foram ocasião para uma verdadeira onda de textos contrários à primeira versão. Não poderia ser muito diferente, já que a parte de História da BNCC atrasou em relação às demais, e logo de saída foi alvejada pelo próprio Ministro da Educação de então, Renato Janine Ribeiro, que cortou a fita inaugural das críticas sobre o que faltava na proposta de História. Com efeito, a crítica pela falta foi o mote principal do debate. Mas não apenas isso. O fato de o ministro falar que a proposta de História era muito “ideológica”, além de uma crítica superficial, foi a senha para que movimentos e órgãos de imprensa tradicionalmente alinhados à direita concentrassem suas baterias no aspecto político da primeira versão. Aqui destacamos outro ponto de contato com a negação da ciência: ignorou-se deliberadamente (já que a Janine Ribeiro não falta erudição) toda a discussão sobre ideologia, partidarismo e objetividade nas Ciências Humanas e Sociais. Ao fazer uma escolha por um discurso politicamente mais fácil, Ribeiro abriu as comportas para críticas conservadoras, superficiais e ignorantes do debate acadêmico, apenas algumas destas feitas por não acadêmicos, em que a ignorância do acúmulo sobre o tema da objetividade seria compreensível.

Alguns dos historiadores que vieram montados em órgãos da grande imprensa, e trouxeram em seu arsenal críticas mormente políticas contra o “lulopetismo” ou o governo petista. Olhando em perspectiva no presente, não é inusitado somar essas manifestações ao conjunto dos atos de guerra política destinado a criar as condições para o golpe de 2016. Mais do que uma escolha deliberada por ignorar todo o debate acadêmico acumulado sobre o problema da neutralidade, ativeram-se à estratégia falaciosa de definir o oponente de modo simplista e descrever seus argumentos de modo aligeirado e incorreto, um verdadeiro espantalho.

Por ordem cronológica, a primeira crítica nesses termos veio de Demétrio Magnoli e Elaine Barbosa, com um título dramaticamente panfletário: “Proposta do MEC para o ensino mata a temporalidade” (MAGNOLI; BARBOSA, 2015). Citando Janine Ribeiro e Aloizio Mercadante, os autores argumentam que, ao “retirar” história antiga e medieval e privilegiar África e indígenas, o documento significaria um rompimento da “gramática da temporalidade”. Para eles, a “retirada” significaria evitar o estudo da trajetória ocidental, onde se consagraram os princípios democráticos como a igualdade perante a lei. O sociólogo e a historiadora escolheram ignorar (pois aqui não se pode falar em falta de conhecimento ou de competência técnica) primeiro que ainda restou muito de Ocidente na primeira versão da BNCC, e que os princípios democráticos se consagraram e ganharam a forma que conhecemos hoje no período moderno, com evidentes consequências na história do Brasil. Em outros termos, a acusação de assassinato da temporalidade só seria procedente caso achassem o cadáver, mas a temporalidade (não a quadripartite) foi encontrada viva e com saúde na proposta curricular. Portanto, longe de uma crítica pertinente e colaborativa, o artigo inaugurou o linchamento da primeira versão, recorrendo a um termo corrente e cheio de implicações nos discursos de direita: “doutrinação”, prestando um desserviço aos debates.

Sem que se visse o contraponto na grande imprensa, seguiram-se outros textos na mesma linha: Ronaldo Vainfas (2015), historiador e autor de livro didático, já conhecido no debate público de polêmicas no ensino de História como a do livro didático “Nova História Crítica” (LEMLE, 2007), acusou a proposta de ser a nova face do autoritarismo e trouxe à baila dois novos termos que colaboram para o esclarecimento da linha de argumentação: “lulopetismo” e “brasilcentrismo”, este último assimilado e repetido com frequência no debate na comunidade de historiadores. Nos textos de Magnoli e Barbosa (2015) e Vainfas (2015) pode-se notar que a crítica é feita pela identificação do que “falta”, que foi chamada de retórica da perda, que indica o apego ao modelo quadripartite, escondendo sua historicidade, bem como se nota a ignorância deliberada de que currículo é seleção, portanto melhorá-lo não é o mesmo que preenchê-lo com o que não está lá. Segue-se o texto de um autor menos famoso, Rafael Diehl (2015), na Gazeta do Povo, essencialmente com a mesma argumentação. Respeitado o recesso de fim de ano, manifesta-se o historiador Marco Antonio Villa (2016), vergastando o “lulopetismo” e alimentando a crítica da falta. Marcelo Rede (2016), professor de história antiga na USP, arremata o ciclo no mês de Momo, denunciando outro assassinato, agora o da História.

Críticas políticas à esquerda também houve, com circulação obviamente menor. Foi o caso de Calil (2015), que denunciava a falta de marxismo, socialismo e gênero na versão preliminar e, com isso, o leitor podia perceber que a “revolução cultural do PT” (VILLA, 2016) não era assim tão perigosa quanto a menção da revolução cultural chinesa poderia indicar.

Cremos que esse primeiro ciclo de críticas públicas não foi corretamente dimensionado em suas consequências, principalmente ao condicionar, de um modo ou de outro, as demais críticas dos outros sujeitos e com outros interesses e compromissos, que se seguiram. Os elaboradores da primeira versão estariam mais preocupados com as críticas de caráter mais acadêmico e menos político, mas o fato foi que a primeira onda deu o tom das seguintes, tanto nos subterrâneos das redes sociais, em que alimentou movimentos como o Escola Sem Partido e diversos blogs reacionários (uma busca pelos títulos dos artigos acima conduz facilmente a esses endereços, em que foram reproduzidos e comemorados), quanto no debate acadêmico. Antecedidos por estes exemplos, gostando ou não deles, o fato foi que a ampla maioria dos textos que vieram em seguida da comunidade universitária compartilharam o caráter de crítica demolidora, salvo as raras exceções de praxe. Poucos textos legitimaram a primeira versão como digna de diálogo e de contribuições para o seu necessário aperfeiçoamento: não se verificou disposição para compreender que era necessário o recorte de conteúdos para evitar a sobrecarga enciclopedista, a retórica da perda foi usada à exaustão, e a crítica política à primeira versão teve destaque. Nesse último aspecto, apareceu, por exemplo, a crítica extemporânea à própria ideia de construção de uma BNCC, definida anos antes, no Plano Nacional de Educação (PNE), dentro de um longo processo, legitimado pela Conferência Nacional de Educação (CONAE), discutida desde os municípios, envolvendo as mais diversas entidades ligadas à área. Mas em geral, a crítica destrutiva seguiu parâmetros típicos na academia, remontados à disputatio em que vencer o oponente com as armas da lógica formal e da retórica é um objetivo que supera a busca sincera e desinteressada pela verdade, no sentido de melhor e mais fundamentado argumento. A segunda forma de debater figurou mais raramente e consiste em identificar os problemas e propor soluções conjuntamente, buscar consensos mínimos possíveis. Nesse andar da carruagem, a crítica à primeira versão aderiu (acriticamente) ao tom polarizado politicamente, ainda que fosse registrada formalmente a recusa em ocupar a mesma trincheira de organizações como o Escola Sem Partido, a grande imprensa e os neoconservadores em geral. Ainda assim, sustentou-se o fogo no mesmo alvo que o deles, o que, na prática, significou tanto uma escolha do inimigo imediato quanto dos aliados de ocasião.

A predisposição contrária à versão preliminar na comunidade acadêmica também se deveu a uma avaliação de que o processo estava demasiadamente influenciado por fundações privadas, seus interesses e seus modelos de educação e sociedade pautados pelo mercado, principalmente concentradas no Movimento pela Base. Este movimento foi de fato um dos sujeitos coletivos, mas dividiu espaço com entidades de dirigentes do setor público (MORENO, 2016). O fato de que tais fundações se satisfizeram com as versões posteriores é um indicativo de que a influência delas foi contornada pela equipe da versão preliminar da BNCC-H/EF.

Não é possível, para um texto como este, dar conta de todos os debates, temas e nuances das dezenas de documentos produzidos no âmbito das comunidades universitária, escolar e editorial. Assim, destacaremos os aspectos relevantes para a argumentação que se desenvolverá daqui em diante, atinente à relação complexa entre os historiadores e o ensino de História. Não se tratará, também, de ignorar as muitas fragilidades da primeira versão, boa parte das quais pode ser creditada à heterogeneidade da equipe, o pouco tempo para elaboração e as dificuldades referentes ao modelo geral de redação da base e a limitação do tamanho do texto, que não deixou espaço para justificativas e argumentações. Por isso, boa parte das críticas foi baseada no exercício hermenêutico de tentar deduzir o que os formuladores quiseram expressar, e em que eles teriam se baseado. Esses exercícios geraram resultados diversos.

O texto da Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (ABRALE), ainda em 2015, na sequência de diversas críticas e sugestões gerais e específicas por disciplina, fez o seguinte balanço quanto à História: o aspecto positivo é tirar o foco excessivo do eurocentrismo, e o negativo

limita a oportunidade de o/a aluno/a conhecer uma herança cultural mais ampla por omitir alguns momentos da História; corre-se o risco de se perderem raízes culturais do Ocidente; apesar de deixar de ser eurocêntrico, o conteúdo passa para outro etnocentrismo (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS AUTORES DE LIVROS DIDÁTICOS, 2015, p. 23).

Não decorre imediatamente, entretanto, que uma proposta curricular centrada na história nacional seja uma história etnocêntrica, já que o Brasil, aí, pode ser entendido como resultando do concurso de diversas etnias e interações culturais. Lendo-se o inteiro teor da primeira versão, deduz-se facilmente que este é o caso, e que não se pode falar, para este documento, de um nacionalismo tradicional, etnocêntrico por seu eurocentrismo. Por definição, um etnocentrismo que admite etnias tão diferentes como “centro” não constitui etnocentrismo.

A Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) faz eco à declaração do ministro Janine Ribeiro, considerando relevante a sua crítica de que a proposta era muito “ideológica”. Aponta, entre outros itens, as possibilidades não eurocêntricas e multiculturais da história da África antes do século XVI, insistindo na tecla de que a seleção feita pela versão preliminar corresponde a combater o eurocentrismo, quando são escolhas relacionadas, mas não idênticas. A citação do documento, abaixo, é significativa de como a entidade, mas não apenas ela, revela completa falta de compreensão das identidades e especificidades entre a universidade e a educação básica, entre a pesquisa pós-graduada e o ensino escolar:

É tão evidente o equívoco dessa amputação que a própria Capes tem se inclinado ao fomento da História não nacional. Como fazer convergir a legitimidade e o reconhecimento da pesquisa nas áreas de Antiga e Medieval que a Capes e o CNPq têm dado a seus pesquisadores com a proposta do Ministério da Educação? (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS MEDIEVAIS, 2015, p. 3).

A Associação Nacional de História, seção Rio de Janeiro (ANPUH-RJ) em sua nota, pede a mudança da equipe da versão preliminar, ou sua ampliação, e isso se tornaria uma bandeira da diretoria nacional da entidade. No que tange à opção de conteúdos, estabelece que “Os estudos da pré e proto-histórias, assim como da Antiguidade e do Medievo que foram descartados como conteúdos curriculares relevantes - [não podem] ser confundidos com conteúdos eurocêntricos” (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA, RJ, 2015).

Neste exemplo, mas também em geral, a redução de antiga e medieval é entendida novamente como combate ao eurocentrismo, no que coincidem com os artigos de jornal acima mencionados, e nenhuma entidade ou historiador leva em consideração a desistência da versão preliminar em tentar abranger “toda a história” e seu assumir da disposição de fazer amplos cortes para possibilitar que os conteúdos escolhidos possam ser abordados com tempo suficiente, mudando para melhor a relação entre a quantidade de conteúdos e a disponibilidade de horas-aula.

Para Pereira e Rodrigues (2018),

Do ponto de vista do grupo mais restrito de intelectuais universitários que intervieram de forma intensa no debate, o efeito de uma tal reestruturação dos currículos do ensino básico também não seria desprezível. O caráter prático (e político) do passado tal como se configurava na primeira versão da BNCC poderia impactar a médio e longo prazos a constituição de grupos e verbas para pesquisa, afetando, portanto, a posição de lideranças acadêmicas e de seus “legados” para o campo (PEREIRA; RODRIGUES, 2018, p. 11).

O documento da Associação Nacional de História, seção Paraná (ANPUH-PR) foi o mais incisivo, exigindo “rejeição da proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em História apresentada pelo MEC, tendo em vista que em virtude do conjunto de observações críticas aqui enunciadas não é possível propor emendas ou ajustes à proposta em apreciação” (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA, PR, 2016).

Após diversas cartas, a ANPUH nacional, por fim, definiu as suas reivindicações ao Ministério da Educação quanto à BNCC, assumindo as bandeiras de historiadores e entidades de história de áreas específicas, pedindo o retorno dos conteúdos de história antiga e medieval, além de uma curiosa reivindicação, no primeiro item:

[...] considera-se importante que a segunda versão do documento preliminar do componente História/BNCC:

1) Não reforce as dicotomias tradicionais entre pesquisadores de Ensino de História e de outras áreas da historiografia, buscando arrefecer a clivagem e ampliar o diálogo entre as áreas, contribuindo para dirimir o descompasso identificado em muitas críticas e incorporando os debates historiográficos mais recentes (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA, 2016).

Tal reivindicação, que não corresponde a nada que deva constar no texto da BNCC, revela uma tensão que então se (re)estabeleceu, entre historiadores que historiografam e historiadores que fazem a reflexão didática e, portanto, não compõem uma área da historiografia. Essa relação foi apenas despertada de um sono latente, pois desde os anos 1980 a relação entre Ensino e Pesquisa e seu lugar nos cursos de licenciaturas permeia as discussões sobre a produção do conhecimento histórico, não obstante tal tensão ter como ponto crucial um momento de crise política, num processo de democratização do país, de retomada de direitos, em que as reformulações curriculares eram urgentes e redesenhavam por meio de debates e disputas, dentre outros aspectos, os rumos da educação brasileira pós-ditadura militar. Segundo Selva Guimarães (2012, p. 32), “saímos da década de 1980, período caracterizado como tempos do ‘repensar’, com um saldo rico, positivo e potencializador”

As inquietações atuais provocaram a emersão de antigos problemas e relevaram que algumas questões que se julgavam superadas assumiram uma roupagem que destaca a face da tradição e o peso que essa representa para os historiadores que não mais querem se diferenciar dos “historioeducadores”, expressão utilizada por Moreno (2016), mas sim que naturalmente continuam a ignorar o lugar, os sujeitos e os objetivos e significados de se ensinar e aprender história no Brasil hoje. A solicitação da diretoria da ANPUH para que se desconsiderasse a clivagem apenas revela que a clivagem segue viva e forte, e que a resposta encontrada diante dessa contradição para a tarefa de representar os associados foi ignorá-la e pedir para que fosse ignorada.

Os documentos citados aqui e muitos outros acabaram condicionando a segunda versão apresentada pelo Ministério da Educação (MEC) em maio de 2016, já sob a administração de Aloísio Mercadante, nos estertores do governo de Dilma Rousseff. O novo ministro, passando recibo da pressão sofrida, anunciou que precisamos dar ênfase à História Clássica, ao nosso pertencimento ao Ocidente, mas considerando também que Temos o terceiro país de maior diversidade étnica e racial do planeta, e essa cultura não tem tido espaço nas salas de aula (RODRIGUES, 2016). Nesse meio tempo, a ANPUH conseguiu indicar membros para ampliar a equipe responsável pela História na BNCC, mas estes indicados não aceitaram participar. Parte da equipe original foi então demitida, e a segunda versão publicada não correspondeu à revisão que ela estava fazendo, mas foi encomendada pela Secretaria de Educação Básica do MEC junto a profissionais que trabalharam em sigilo. Assim, perdeu-se a continuidade do processo, diante das pressões por modificar o texto da versão preliminar. Prevaleceu, no fim, o que reivindicou a ANPUH-PR: o abandono sumário da versão preliminar, bem como, parcialmente, o que reivindicou a ANPUH-RJ: a mudança da equipe.

A segunda versão, reconheceram novos avaliadores, significou um retrocesso a moldes anteriores aos PCN, e a versão atual aponta para o retrocesso aos anos 1970. Os remanescentes da equipe original não são autores do texto da segunda versão da BNCC- História, que foi feita por assessores ad hoc contratados pelo Ministério. Em reportagem do jornal O Estado de São Paulo, o depoimento da consultora em educação Ilona Becskehazy para os conteúdos de História é emblemático: “O mundo antigo, com mitologias, castelos e príncipes, atrai as crianças pequenas. Conforme elas crescem, vão ganhando maturidade para entender melhor a realidade atual. Quanto mais moderna e contemporânea é a história, mais ferramentas são necessárias para entendê-la” (BECSKEHAZY, 2017). As palavras da consultora evidenciam uma negativa e/ou desconhecimento de uma série de pesquisas em ensino de história que buscam centrar suas investigações para além de conteúdos, procurando considerar a aprendizagem histórica dos alunos. Neste sentido, conceitos como progressão e cultura histórica, entre outros, buscam objetivar as dimensões das funções e das finalidades de uma aula de história. Novamente, vemos a negação da ciência, ou do que ela tem a dizer sobre o ensino de História, uma vez que o seu atual estágio é solenemente ignorado.

Alguns debates e documentos, especificamente os que versaram sobre a primeira proposta que procuramos recuperar neste artigo, não enfatizaram tais estudos, mas sim se ocuparam da polarização, da escolha de uma narrativa em prol de outra, sem se preocupar com o espaço escolar, sua organização e condições e, principalmente, em seus diversos sujeitos. Afirmamos isso, pois como discorre Moreno (2016), as discussões provocadas impactam uma concepção de aula.

Neste sentido, a discussão provocada pelo texto da BNCC trouxe uma grande contribuição, ao deixar claro que é preciso abandonar a pretensão ou a ilusão de abarcar “toda a História” na Educação Básica. Isso se reforça ainda mais quando se pensa no tempo escolar. Não se trata apenas do número reduzido de horas semanais, mas diz respeito à concepção de como se produz aprendizagem. Muitos dos argumentos que defendem um currículo extenso baseado em trabalhar “toda a história” só podem fazer isto concebendo a “aula de História” como aula magna ou leitura seguida de exercício de livro didático. Imagina-se, com isso, alunos como ouvintes passivos (MORENO, 2016, p. 16).

Embora seja subentendida a ideia de uma concepção de aula na Educação Básica, os debates não tocaram nesse componente, que assume um caráter fulcral ao pensar o currículo: a dimensão cognitiva do que se ensina, articulada a como se ensina e para quem se ensina.

A bacia: a arena de disputas

Utilizando a expressão de Christian Laville (1999), a guerra das narrativas trouxe à superfície, por assim dizer, da bacia, a simbiose existente entre a universidade e a escola, pois embora uma série de resoluções sugiram modificações nos cursos de licenciatura desde 2015, foi a BNCC (e sua repercussão) que promoveu críticas vorazes e movimentou corpos arraigados, muitas vezes inertes na defesa de seu espaço. Ou seja, nesse momento evidenciou-se em forma de carta aberta vinculada às associações científicas, em entrevistas ou até mesmo em espaços colegiados, a temível aproximação entre a narrativa e a organização curricular das grades dos cursos de licenciaturas com o currículo escolar.

Nesse e em outros casos não se discutiu o direito de aprendizagem dos alunos, mas o que se faria com os professores especialistas nessas áreas, caso a BNCC fosse aprovada da maneira como estava elaborada. A delicada questão expõe um dos problemas mais sérios da formação do professor historiador no Brasil: as maneiras como se aprende História nas universidades e faculdades e as maneiras como se ensina História na Educação Básica (SILVA; MEIRELES, 2017, p. 19).

O impressionante silêncio perante a segunda versão da BNCC-H/EF por parte de quase todos os envolvidos no debate da primeira versão, entidades, profissionais e grupos, de História da BNCC é indicativo de que a discussão interna à academia guiou-se principalmente pelo interesse corporativo, pela crítica demolidora e desinteressada da solução dos problemas da primeira versão, e na forma das primeiras críticas, as quais vieram de posturas políticas e acadêmicas conservadoras.

Como afirma, por exemplo, Lima (2019):

[...] é perceptível a redução das manifestações individuais e coletivas de medievalistas brasileiros desde a publicação da segunda versão da BNCC, o que pode estar relacionado ao retorno dos conteúdos de História Medieval para a Base, quiçá o principal objetivo imediato da mobilização; ao cenário político nacional, marcado pelo processo de impeachment presidencial da presidente Dilma Rousseff, ocorrido entre dezembro de 2015 e agosto de 2016, que passou a aglutinar as atenções dos historiadores em geral e deixou o tema da BNCC em segundo plano; ou à própria desmobilização dos professores em torno da questão da presença do medievo no currículo escolar nacional, um tema de crescente preocupação no meio acadêmico, mas que ainda ocupa um espaço secundário nas investigações dos medievalistas brasileiros (LIMA, 2019, p. 10).

Parte desse silêncio poderia ser atribuído ao momento em que se acirrou a discussão do impeachment, reconhecido como golpe pela ampla maioria da comunidade de Ciências Humanas e Sociais. Entretanto, cabe a incômoda tarefa de fazer esse questionamento: por atirar no mesmo alvo, ainda que buscando preservar uma trincheira diferente, pelo tom destrutivo da crítica, ainda que preservando que a destruição não era a mesma promovida por Villa e os outros historiadores acolhidos pela grande imprensa, pelo igual silêncio quando da apresentação da segunda e terceira versões da BNCC-H/EF, não teremos dado nossa cota de colaboração (ainda que preservada a condição de revelia) para o ponto onde chegamos em termos de currículo?

A expectativa é que dessa arena de ataques e disputas possamos ver além da superfície e unir forças em benefício de uma formação escolar e universitária sólida que permita para além de conteúdos e acúmulos de informações, pois “[...]o ensino não se reduz a documentos governamentais, isso não ocorreu sequer na ditadura anterior (1964/1985). Trancada a porta da sala de aula, professores e alunos são livres para pensarem. E pensam!” (SILVA, 2018, p. 1012).

Com o intuito de desenvolver o pensamento histórico dos brasileiros e brasileiras que lutam para sobreviver diariamente frente a tantas desigualdades, o ensino de história se reinventa construindo sentidos na relação passado, presente e futuro.

Considerações finais: ir buscar a criança de volta

Devemos fazer tabula rasa do passado? (CHESNEAUX, 1995). A comunidade de História demonstrou que não alcançou superar o esquema quadripartite. Consegue criticá-lo, mas não está pronta para superá-lo concretamente.

Foi injustamente generalizada a ideia de que o recorte de história antiga e medieval corresponde imediatamente a uma atitude antieurocêntrica. Na verdade, é possível que o eurocentrismo sobreviva nas outras partes do recorte. Por exemplo, a tradicional história do Brasil é eurocêntrica. Não se cogitou, portanto, de que não se tratava simplesmente de “trocar” antiga e medieval por África e indígenas, mas de descolonizar o ensino da História do Brasil redimensionando a contribuição de negros e índios para revisar a narrativa canônica, na escola, da tradicional história nacional. Assim, o pejorativo termo “brasilcentrismo” não constitui demérito da proposta, mas, novamente, uma escolha inovadora.

Em contextos como o vivido pela comunidade dos historiadores, a clivagem entre historiadores em senso estrito e historiadores dedicados substantivamente ao campo do ensino de História, como fica o poder de representação de uma entidade que reúne os dois grupos, como é o caso da ANPUH, quando tem que escolher a demanda de um deles para encaminhar ao poder público? A recomendação da diretoria nacional para que se evitasse considerar a clivagem entre pesquisadores de história e pesquisadores do ensino de história tem quais significados e consequências, efetivamente? Sempre que em disputa de concepções e/ou interesses, os primeiros terão sua posição representada pela entidade, dado que são em maior número de associados? Se não o fizer, a ANPUH pode ser considerada democrática? Teremos, nesse emblemático caso, chegado ao esgarçamento do limite das possibilidades de representação da entidade para esses dois grandes grupos? Se sim, a negação das suas diferenças é o único caminho para continuar representando ambos, mas este também é o caminho mais seguro para não representar o segundo grupo.

Deve-se considerar, ainda, que a discussão em tela foi feita no tom da conjuntura histórica especial em que se deu. No nosso ponto de vista, o excesso de considerações corporativas sobrepôs-se à necessidade de pensar e agir tática e estrategicamente, na sequência de uma boa análise conjuntural. Na ausência destes procedimentos, avaliamos que as críticas acadêmicas à primeira versão contribuíram com doses de deslegitimação e desestabilização que foram importantes para que se configurasse o retrocesso que significou a segunda, mas principalmente, a terceira versão da BNCC - História. Evidentemente, não se tratou de condição suficiente para tal, mas seu papel não pode ser menosprezado.

O silenciamento de debates e discussões das versões posteriores endossou a questão de que incorporar ao debate temas que permitiriam pensar o lugar de pertencimento do indivíduo na sociedade e, principalmente de compreender a construção de suas identidades não poderia sobrepor a determinados campos de pesquisas que se sentiram excluídos da narrativa da Base Nacional, embora, como já afirmamos no decorrer deste artigo, não se tratava da retirada de um em prol de outro, e sim de uma ressignificação, partindo de outros olhares sobre as narrativas históricas dos sujeitos e suas ações no tempo.

O lugar de partida foi palco das argumentações que se seguiram e trouxeram à baila controvérsias que não estavam resolvidas no universo acadêmico, o lugar do historiador ainda se constituía em, pelo menos, dois grupos: os que se dedicam ao ensino e os que se dedicam à pesquisa. Ainda que no discurso o papel do professor-pesquisador estivesse assegurado, os entraves das versões da BNCC impactaram e reacenderam a polarização do lugar de ambos na legitimação da escrita da história escolar.

Nessa disputa de narrativas, comuns aos entraves de redefinições de currículos e, neste caso, de construção de uma Base Nacional Comum Curricular, a preocupação com a aprendizagem dos estudantes em um país de largas dimensões territoriais ficou subentendida, relegada, ou seja, novamente presenciamos que no componente curricular de História ainda se atém à produção acadêmica da escrita da História, escondendo assim os avanços do ensino de História, que se preocupa em compreender e articular conteúdos, estudantes e métodos.

A cortina de fumaça, mesmo de forma indireta, reafirmou um ensino conteudista e distante da perspectiva do desenvolvimento do pensamento histórico do sujeito.

Por fim, convivemos com processos de negação da ciência que são culturais e disseminados pela sociedade e que serviram para o processo de deslegitimação da primeira versão e de seus autores. A senha foi a palavra “ideologia”, lançada pelo ministro Janine Ribeiro, associada, ato contínuo, ao termo “doutrinação”. A negação da ciência assume, no caso das Ciências Humanas e Sociais, a negação dos seus cientistas, pela acusação de “esquerdismo”, entre outras formas e estratégias. Mas o quanto há, internamente, de negação da ciência entre os historiadores? Como explicar que todas as especialidades em História se sintam confortáveis em discutir outra especialidade sem ler sua produção acumulada ou consultar seus especialistas? Fosse o caso de especialistas em ensino de História entrarem no debate sobre a historiografia antiga ou medieval ignorando a produção e o estado atual da questão, qual seria a reação dos pesquisadores dessas áreas? A sem-cerimônia com que foi ignorado o ensino de História como campo de pesquisa, de produção de conhecimento e de acúmulo de discussão de políticas públicas por tantos debatedores é um sintoma preocupante de que o campo não é reconhecido por amplos contingentes de historiadores, quiçá a maioria. Não é surpresa que essa negação da ciência produzida pelos “outros” seja compatível com um elemento muito presente na cultura laboral dos historiadores, que é a ideia de que o ensino é aplicação, é simplificação e didatização atrasada daquilo que o historiador produz. Parece-nos que o enfrentamento desse problema de identidade - pertinente aos dois grupos - será a questão decisiva a enfrentar se o que se busca é uma representação unitária e potente de todos os profissionais de História.

Todavia é importante mantermos nossas pesquisas, nosso diálogo com os professores da Educação Básica, que são nossos colegas de profissão e diariamente são desafiados a romperem com uma história que não atribui significado à vida prática dos sujeitos. Precisamos lutar para formação continuada, para a formação inicial que realmente articule e coloque para além do discurso uma formação que é constante do professor-pesquisador. A ideia do ensino e pesquisa como algo indissociável permitirá a esse professor transcender o conteúdo e trabalhar possibilidades de leituras de mundo. A reivindicação e a conquista de espaços curriculares para a Parte Diversificada em sala de aula constituem uma das estratégias mais importantes. Outra consiste na recriação coletiva do documento, reescrevendo-o de acordo com as necessidades e concepções da sala de aula, como exercício de projeção das transformações futuras que se deverá reivindicar.

A formação docente que integre tais elementos na sua formação, inicial e continuada e, principalmente, na sua vivência e experiência em sala de aula trará ganhos à aprendizagem histórica das futuras gerações, que atribuirão sentidos às suas orientações no tempo.

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1Especialistas nomeados: Antônio Daniel Marinho Ribeiro (Seduc-AL); Giovani José da Silva (Unifap); Leandro Mendes Rocha (UFG); Leila Soares de Souza Perussolo (Undime-RR); Márcia Almeida Gonçalves (UERJ); Maria da Guia de Oliveira Medeiros (Undime-RN); Marcos Antonio Silva (USP); Marinelma Costa Meireles (Seduc-MA); Reginaldo Gomes da Silva (Seduc-AP); Rilma Suely de Souza Melo (Seduc-PB); Sandra Regina Ferreira de Oliveira (UEL); Tatiana Gariglio Clark Xavier (Seduc-MG). As especialistas que se retiraram foram Márcia Gonçalves e Sandra Oliveira.

2As especialistas que se retiraram da comissão são Márcia Gonçalves e Sandra Oliveira.

Recebido: 05 de Outubro de 2020; Aceito: 28 de Dezembro de 2020

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