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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 06-Sep-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77129 

DOSSIÊ - Bases Nacionais e o Ensino de História embates, desafios e possibilidades na/entre a Educação Básica e a formação de professores

Ensinar História na Base Nacional Comum de Formação de Professores: a atitude historiadora convertendo-se em competências

Maria Aparecida Lima dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0001-8106-4978

( Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: maria.lima-santos@ufms.br


RESUMO

As políticas curriculares contemporâneas têm apresentado narrativas que projetam um perfil profissional voltado ao “novo” modelo de professor. Nesse processo, sentidos de docência têm sido fixados através da centralidade que alguns significantes vêm assumindo na estruturação dos currículos voltados à Educação Básica e à formação de professores. Neste artigo, observamos como o significante atitude historiadora, elemento central no discurso voltado ao componente de História presente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao ser aproximado do significante competência, presente na Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC-FP), incorpora, em processos de tradução e recontextualização de caráter híbrido, sentidos calcados na pedagogia neotecnicista. Nossa análise fundamentou-se na compreensão do currículo como uma prática cultural, o que envolve descrever o currículo como cultura, como um lugar de enunciação, em oposição a uma visão de currículo prescrito e privilegiado de uma concepção de poder linear. Observamos que, estando o ensino de História destituído de sua relação constitutiva com o conhecimento histórico pela sua transformação em técnica dada à primazia do como fazer na estruturação do currículo, incorre-se na constituição de cursos de licenciatura limitados ao treinamento de professores para ensinar História, o que destitui o ensino de sua dimensão formativa e política, e a formação inicial do domínio dos fundamentos da Ciência História e de seus modos de produzir conhecimento.

Palavras-chave: Ensino de História; Base Nacional Comum Curricular; Base Nacional Comum de Formação de Professores; Competências; Atitude Historiadora

ABSTRACT

Current curricular policies have presented narratives that project a professional profile aimed at the “new” teacher model. In this process, the meanings of teaching have been fixed through the centrality that some signifiers took in the curricula structuring for Basic Education and teacher training. In this article, we observe that the signifier historian attitude, a central element in the discourse, focused on the History component present in the Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [National Common Curricular Base], when being juxtaposed to the signifier competence, present in the Base Nacional Comum de Formação de Professores (BNC-FP) [National Teacher Training Base], incorporates meanings based on neo-technical pedagogy, in translation and recontextualization processes that are underpinning a hybrid character. Our analysis was grounded on the understanding of the curriculum in cultural practice terms, which involves describing the curriculum as culture, as a place of enunciation, in opposition to a vision of a prescribed and privileged curriculum from a linear power conception. We observe that, since History teaching has been devoid of its fundamental relationship with historical knowledge, there is a need to set up undergraduate courses limited to training teachers to teach history. This is because there is teaching into a technique transformation process that prioritizes the learning to do in the curriculum structuring. In our view, this deprives teaching of its formative and political dimension and the initial training in the domain of the fundamentals of Science History and its ways of producing knowledge.

Keywords: History teaching; National Common Curricular Base; National Teacher Training Base; Competences; Historian Attitude

Introdução

A intensa circulação de textos e discursos disseminando a ideia de que vivemos uma crise da educação, atribuindo aos trabalhadores e trabalhadoras a responsabilidade por esse estado de coisas, tem influenciado definições curriculares pela profissionalização docente, as quais projetam um perfil profissional voltado ao “novo” modelo de professor (DIAS, 2014).

Entendemos que esse esforço de controle das representações é justificado por uma equação que torna a qualidade dependente do controle. Assim, é fundamental destacar que esses documentos compõem um mosaico de outros documentos e políticas curriculares e educacionais, inseridos, por sua vez, em uma arena de negociação política onde ocorrem lutas por signifiXação (GABRIEL, 2015). Vista assim, sua análise pode possibilitar que alguns sujeitos dessas lutas sejam vislumbrados não como essências, mas como práticas que lutam em torno de sentidos para a formação docente que vêm se instaurando lenta e gradativamente nas últimas quatro décadas nas políticas curriculares, destacando-se que

Essa dinâmica de produção de políticas curriculares implica reconhecer as representações dessas políticas, expressas em textos legais e proposições curriculares, como precárias, marcadas por ambivalências e contradições aparentes, decorrentes das negociações entre diferentes discursos que disputam a hegemonia para a formação de professores (DIAS; LOPES, 2009, p. 80).

Esses fundamentos possibilitam evoluir de um olhar que concebe a chamada Base Nacional Comum para a Formação de Professores (BNC-FP) como um “ente” que “impõe” um “currículo”, pronto, prescrito, para outro, que a compreende como produção discursiva que procura fixar significados e sentidos de projetos que buscam hegemonia. Assim,

O currículo é ele mesmo, uma prática discursiva. Isso significa que ele é uma prática de poder, mas também uma prática de significação, de atribuição de sentidos. Ele constrói a realidade, nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo isso produzindo sentidos. Trata-se, portanto, de um discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria. Claro que, como essa recriação está envolta em relação de poder, na interseção em que ela se torna possível, nem tudo pode ser dito (LOPES; MACEDO, 2011, p. 41).

Em perspectiva pós-fundacional (LACLAU; MOUFFE, 1987; BURITY, 1997; FERREIRA, 2011; GABRIEL; CASTRO, 2013; GABRIEL, 2015), essa noção de currículo reposiciona o papel da linguagem na tessitura do real e orienta-se pela noção do discurso “percebido como categoria teórica - e não descritiva ou empírica - procurando, assim, dar conta das regras de produção de sentido pelas quais um determinado fenômeno encontra seu lugar no mundo social e numa determinada formação discursiva” (GABRIEL; CASTRO, 2013, p. 83). É relevante destacar que considerar a perspectiva pós-fundacional em seu questionamento das leituras essencialistas de mundo não significa aderir à ideia de que “tudo vale”, pois o que está sendo “problematizado não é a possibilidade de operar com fundamentos, mas sim o seu estatuto ontológico” (GABRIEL; CASTRO, 2013, p. 83).

Com efeito, os currículos, em geral, e aqueles destinados ao ensino de História, em particular, expressam visões e escolhas, revelam tensões, conflitos, acordos, consensos, aproximações e distanciamentos e devem ser vistos como prática cultural, como lugares de enunciação contextualizados em disputas (MACEDO, 2006). Entendidos como espaços de poder, os documentos curriculares funcionam como um sistema de significações dentro do qual os sentidos são produzidos pelos sujeitos (LOPES; MACEDO, 2011).

Ao operar com a noção de que as políticas curriculares entrelaçam vários discursos, ressignificando certos termos, mobilizamos, igualmente, a ideia de que os discursos nas políticas curriculares passam por recontextualizações e hibridação, de forma que “os princípios curriculares são refocalizados e ressignificados, sendo muitas vezes orientados para finalidades diversas daquelas estabelecidas inicialmente” (LOPES, 2005, p. 265).

Com base nesses pressupostos, consideramos importante compreender a BNC-FP como parte dos esforços para controle de representações que circulam no meio educacional (MACEDO, 2016), e, dessa maneira, interessa-nos particularmente explorar como o significante atitude historiadora, que emergiu como elemento central no discurso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) voltada ao componente curricular de História, ao ser aproximado do significante competências, incorpora, em processos de tradução e recontextualização de caráter híbrido (DIAS; LOPES, 2009), sentidos calcados na pedagogia neotecnicista. Nossa hipótese é a de que, por essa via, a aglutinação de sentidos que flutuam em torno do significante competências, estabelecido como fundamento pedagógico do currículo da Educação Básica e do projeto da BNC-FP, provoca efeitos de sentido que projetam o esvaziamento gradativo do currículo das licenciaturas de seu componente cultural, político, de conhecimentos relativos à Ciência Histórica, e, por decorrência, da dimensão formativa do ensino de História.

Para apresentar nossa reflexão1, organizamos o texto em três momentos. No primeiro, discorremos sobre como o projeto de afirmação de um sentido de docência associado ao como fazer assumiu centralidade através do significante competências, que se tornou fundamento pedagógico da BNC-FP e da BNCC. No segundo momento, desenvolvemos nosso argumento de como esse sentido tem sido aglutinado ao significante atitude historiadora, esvaziando as dimensões que dizem respeito ao conhecimento científico, tornando-o um híbrido, e o aproximando cada vez mais intensamente da pedagogia neotecnicista. Encerramos com nossas considerações finais.

A pedagogia das competências consubstanciando a BNC-FP

Os marcos legais elencados na primeira página da BNC-FP apresentam ao/à leitor(a) um rol de documentos dentro dos quais têm circulado sentidos que as reformas vêm instituindo no campo das políticas educacionais de forma deliberada e sistemática ao longo das três últimas décadas no Brasil. Nesse processo, uma série de hibridações e apagamentos ocorrem pela presença recorrente e paulatina de alguns significantes-chave em torno dos quais alguns consensos (hegemonia) vêm sendo constituídos, em particular o de competências, que é considerado fundamento da formação de professores e, simultaneamente, da formação de estudantes da Educação Básica. Para proceder à análise, estamos operando com o conceito de narrativa, em perspectiva discursiva, “[...] no contexto das teorias pós-críticas do Currículo, que se voltam para pensá-lo como espaço-tempo de produção de significados, identidades, diferença, disputa de sentidos sobre os processos e os fenômenos do mundo” (MONTEIRO, 2014, p. 27).

Com esse elemento em vista, destacamos a centralidade dada à matriz por competências para a formação de professores que aparece na narrativa do documento como determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei n. 9394/96 (BRASIL, 1996) -, da Reforma do Ensino Médio - Lei n. 13.415/17 (BRASIL, 2017a) - e da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018a), e as Resoluções do CNE/CP n. 2/2017 (BRASIL, 2017b) e n. 4/2018 (BRASIL, 2018b), apelidada de “BNCC-Educação Básica”. Portanto, desse ponto de vista, elencar um rol de competências torna-se uma necessidade legal. No trecho do documento destacado abaixo, observamos como a noção de garantia das aprendizagens essenciais adquire na narrativa o estatuto de direito constitucional para justificar a necessidade de se estabelecer as “pertinentes competências profissionais dos professores”.

As aprendizagens essenciais, previstas na BNCC-Educação Básica, a serem garantidas aos estudantes, para o alcance do seu pleno desenvolvimento, nos termos do art. 205 da Constituição Federal, reiterado pelo art. 2º da LDB, requerem o estabelecimento das pertinentes competências profissionais dos professores (BRASIL, 2019).

Sabemos que os discursos e textos que vêm circulando nas últimas décadas enfatizando a profissionalização docente “trazem a ideia de um perfil profissional em defesa de uma qualidade do ensino, via regulação do trabalho docente” (DIAS, 2014, p. 9), função que tem se concretizado em torno da afirmação da noção de competências no interior das propostas curriculares e, associada a ela, aquela de habilidades. Dentro da narrativa da inovação e do empreendorismo, que concorre para nortear discursos de desvalorização do trabalho docente, esses termos têm sido afirmados como mais significativos devido a seu caráter fluído e polissêmico, em oposição àqueles de saberes ou qualificação (PIMENTA, 2002). No entanto, apesar da pluralidade de concepções que flutua no interior desses significantes, acreditamos que, nas políticas mais recentes, um certo sentido tem sido priorizado como estratégia de hegemonização, posicionado como elemento em torno do qual as políticas curriculares preconizadas pela BNCC e pela BNC-FP vêm se entrelaçando. É o que observamos no que se estabelece como fundamentos da formação docente da BNC-FP, que, em seu artigo 2º, afirma que “a formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes [...]” (BRASIL, 2019, grifos nossos).

Muito embora essa centralidade seja justificada legalmente, não há na BNC-FP uma definição do que, no documento, se compreende por competências. Mas é justamente a “ausência” dessa definição que possibilita vislumbrar as disputas por fixação de um sentido de docência, por um lado, e de aprendizagem por outro. Ao aproximar os trechos que determinam o papel das competências gerais no currículo proposto, notamos que, na BNC-FP, o significante ganha destaque como pressuposto da formação docente, juntamente com o de aprendizagens essenciais, e, na BNCC, ao qual esses sentidos estão associados, são encontradas as competências gerais “consubstanciando” os direitos de aprendizagem e desenvolvimento.

FONTE: Elaborada pela equipe do GEPEH/UFMS.

QUADRO 1 SENTIDOS DE COMPETÊNCIAS NA BNC-FP E BNCC 

Na BNCC, em perspectiva essencializante, as competências se tornam a “substância” materializada dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento e esse sentido é incorporado na BNC-FP: “A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica” - “que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e desenvolvimento” (BRASIL, 2018a, p. 8).

Some-se a isso a repetição quase exaustiva do termo no documento, que aparece em 258 passagens contra 150 da palavra direitos, em um total de 600 páginas. Muito embora possamos considerar as possibilidades articulatórias e os fechamentos provisórios que visam constituir consensos entre sujeitos e projetos que se enfrentam na arena discursiva das políticas, notamos um processo de apagamento gradual que ganha relevo na BNC-FP quando observamos a relação quantitativa, indicada anteriormente, considerando que o documento possui 20 páginas: são 27 ocorrências do termo competência(s) nas 12 primeiras páginas, e 17 ocorrências no anexo de 8 páginas, totalizando 44 ocorrências, contra 9 em todo o documento da palavra direito(s). À repetição exaustiva, sempre acionando o sentido estabelecido na BNCC, soma-se a vinculação total, como se pode observar no quadroa seguir, dos dois documentos aos sentidos de competências gerais.

FONTE: Elaborado pela autora.

QUADRO 2 COMPETÊNCIAS GERAIS NA BNCC E NA BNC-FP 

A recontextualização produzida, tornando na BNC-FP o/a prática docente em objeto da política de formação, permite observar o estabelecimento de sentidos que dialogam em duas dimensões ausentes em ambos os documentos quando ampliamos o espectro discursivo para pensar o lugar reservado ao conhecimento (e, no nosso caso em particular, ao conhecimento histórico escolar) na cadeia de equivalências instituída: aquela das finalidades (para que ensinar?) e a dos objetivos (por que ensinar?). Ambas as dimensões são aglutinadas e incorporadas pelo significante competências, ressaltando o caráter híbrido dos discursos que circulam no campo curricular.

Distanciado do sentido de direitos de aprendizagem e desenvolvimento (BONINI; DRUCK; BARRA, 2018), formulado pelo grupo de trabalho sobre Direitos à Aprendizagem e ao Desenvolvimento (GT DiAD)2, e na inserção em políticas curriculares de definições que estabelecem uma relação de sinonímia com o significante competências, opera-se um esvaziamento que torna mais potente o movimento de aglutinação e substituição por recontextualização e hibridismo. Além disso, vislumbram-se tentativas de fixação de sentidos que visam legitimar certas vozes em detrimento de outras, formular consensos e orientar as mudanças para determinadas finalidades (LOPES, 2005, p. 60), pois a substituição gradual do significante direitos de aprendizagem, que se consolidou nos documentos homologados em 2017 (EI - Educação Infantil, e EF - Ensino Fundamental) e 2018 (EM - Ensino Médio), pode ser compreendida como parte do processo iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), quando se adotou a expressão expectativas de aprendizagem, a qual, posteriormente, por ocasião da formulação do Plano Nacional de Educação (PNE) - Lei n. 13.005/14 (BRASIL, 2014), foi substituída por direitos de aprendizagem e desenvolvimento. Já naquele período, os termos foram vinculados cada vez mais à avaliação e ao fluxo escolar:

No seminário “Expectativas de aprendizagem e o PNE”, entidades da área de educação reunidas concluíram que “a adoção de uma noção como expectativas de aprendizagem reforça as noções de performatividade e de competências adotadas desde o governo Fernando Henrique Cardoso, que estabelecem um princípio de gestão estritamente funcional e pragmático entre o governo e a sociedade civil, cuja regulação é estabelecida por meio da fixação de metas mensuráveis que deverá levar a mecanismos de prestação de contas e o incentivo a comparações e a competições entre as escolas” (MACEDO, 2016, p. 47).

Pelo jogo de linguagem, a adoção da noção de competências como fundamento pedagógico é associada a uma lógica inevitável, porque mundial e irreversível, o que insere o documento em um fluxo de tempo linear, contínuo e progressivo. Referimo-nos ao seguinte trecho da BNCC (BRASIL, 2018a, p. 13):

O conceito de competência, adotado pela BNCC, marca a discussão pedagógica e social das últimas décadas e pode ser inferido no texto da LDB, especialmente quando se estabelecem as finalidades gerais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio (Artigos 32 e 35). Além disso, desde as décadas finais do século XX e ao longo deste início do século XX, o foco no desenvolvimento de competências tem orientado a maioria dos Estados e Municípios brasileiros e diferentes países na construção de seus currículos. É esse também o enfoque adotado nas avaliações internacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que coordena o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, na sigla em inglês), e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), que instituiu o Laboratório Latino-americano de Avaliação da Qualidade da Educação para a América Latina (LLECE, na sigla em espanhol) (BRASIL, 2018a, p. 13).

Essa cadeia de equivalências permite credibilizar um

[...] projeto de unificação curricular marcado por uma lógica de centralização das decisões curriculares numa perspectiva homogeneizante, em contraposição ao grande investimento feito em significar a base como resposta/solução à falta de qualidade da educação (OLIVEIRA; FRANGELLA, 2019, p. 25).

A centralidade do significante competências aponta também para um posicionamento cada vez mais intenso do sentido de docência vinculado diretamente àquele de prática. A articulação de concepções antagônicas no interior do significante prática traz o processo de tradução de demandas3 que aglutinam sujeitos em comunidades epistêmicas, definidas como “uma rede de sujeitos e grupos sociais que participam da produção, circulação e disseminação de textos que constituem as políticas curriculares nos contextos de influência e de definição de textos, como já situado por Ball (1998, 2001)” (DIAS; LOPES, 2009, p. 83). No entanto, a centralidade que um certo sentido de prática vem ganhando no corpo das políticas nos últimos anos ressalta a assimetria de poder entre os sujeitos e grupos sociais das comunidades epistêmicas que atuaram em sua formulação. Muito embora possamos tratá-lo como significante vazio (DIAS; LOPES, 2009), consideramos importante focalizar alguns dos sentidos movidos, mesmo que de forma precária, na BNC-FP.

Interessa-nos destacar que a prática assume sentido tanto de elemento qualificador da competência profissional - “§ 1º - alínea I - dominar os objetos de conhecimento e saber como ensiná-los” (BRASIL, 2019, grifo nosso); quanto de conteúdo a ser ensinado pelos cursos de licenciatura - “§ 2º As competências específicas da dimensão da prática profissional compõem-se pelas seguintes ações [...]” (BRASIL, 2019, grifo nosso); e de elemento característico central do fazer docente - “Parágrafo único. No Grupo I, devem ser tratadas ainda as seguintes temáticas: [...] III - metodologias, práticas de ensino ou didáticas específicas dos conteúdos a serem ensinados, devendo ser considerado o desenvolvimento dos estudantes, e que possibilitem o domínio pedagógico do conteúdo, bem como a gestão e o planejamento do processo de ensino e de aprendizagem” (BRASIL, 2019) -, incidindo aí em uma dimensão didática. Assim, na narrativa instituída por esse documento, a prática qualifica, substancia e configura a docência.

Nessa chave de análise, queremos destacar a cadeia de equivalências constituída pelas relações entre os significantes prática/conteúdo/substantivo/substância, por compreender que esse é o invólucro que posiciona o sentido de currículo a ser instituído nos cursos de licenciatura no referente ao lugar que os conhecimentos (no nosso caso, o conhecimento histórico) deverão ocupar.

A análise detida do documento, cuja estrutura gira em torno da distribuição de conteúdos em três grandes grupos (Grupo 1 - competência profissional; Grupo II - prática profissional; Grupo III - engajamento profissional), possibilita ver que o conhecimento (histórico) foi inserido no grupo II, gerando como implicação direta um sentido subordinado que confere aos cursos de nível superior a função primordial de treinamento. A subordinação acontece, portanto, pelo estabelecimento de competências gerais que ditam os objetivos da formação profissional, e através da obrigatoriedade de utilizar os conteúdos elencados na BNCC (os objetos de conhecimento) como norteadores da estruturação do currículo das licenciaturas. Essa última aglutinação implica a vinculação direta desse currículo às habilidades e competências específicas previstas para a Educação Básica.

O sentido de prática que se tenta fixar na BNC-FP longe de defender a legitimação do(a) docente como produtor(a) de saber “entendendo a docência no âmbito de sua construção cultural e incorporando como elemento da aprendizagem a dimensão do trabalho do professor” (DIAS; LOPES, 2009, p. 86), promove a aproximação de uma concepção de formação que tende a ser pragmática, diminuindo o espaço de formação teórica em detrimento de uma prática assemelhada ao treinamento que, em essência, está fundamentada no neotecnicismo (FREITAS, 2018), como uma série de estudos vêm destacando há mais de duas décadas.

O tecnicismo tem marcado as políticas curriculares desde a segunda metade do século passado e, pautando-se pelo pressuposto da neutralidade científica e inspirado nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. Assim, “na pedagogia tecnicista [...] é o processo que define o que professores e alunos devem fazer, e assim também quando e como o farão” (SAVIANI, 1986, p. 16 apudFREITAS, 2018, p. 2). A essa definição somam-se elementos do contexto mais recente que configuram o chamado neotecniscimo,

[...] apresentado agora sob a forma da teoria da “responsabilização” e/ou “meritocracia”, onde se propõe a mesma racionalidade técnica de antes na forma de “standards” de aprendizagem medidos em testes padronizados, com ênfase nos processos de gerenciamento da força de trabalho da escola (controle pelo processo, bônus e punições), ancoradas nas mesmas concepções oriundas da psicologia behaviorista, da econometria, das ciências da informação e de sistemas, elevadas à condição de pilares da educação contemporânea (FREITAS, 2018, p. 2).

Por essa via, o significante competências vem ocupando o lugar de um universal, e, nesse sentido, “um significante particular que ocupe o lugar do universal em um determinado contexto discursivo significa a consolidação de um processo de hegemonização” (GABRIEL, 2015, p. 38). Uma vez instaurado como universal em um conjunto de políticas curriculares, em um discurso que oculta as dissonâncias e discrepâncias como forma de constituir consensos provisórios, torna-se relevante realçar como esses sentidos flutuam entre a BNCC e a BNC-FP, examinando os conteúdos previstos na primeira, cuja apreensão como objeto de ensino, de acordo com a segunda, se tornará a meta principal de todo o processo formativo dos cursos de licenciatura no país.

A atitude historiadora em perspectiva tecnicista

Em diferentes momentos da história da disciplina escolar de História vemos travados embates entre, por um lado, aqueles e aquelas que defendiam a premência das discussões em torno dos objetivos formativos (por que e para que ensinar História) e, por outro, aqueles que desviavam o foco para a questão das maneiras de ensinar (o como ensinar História). Ao observarmos as propostas curriculares para a disciplina elaboradas entre o final da década de 1980 e a BNCC (BRASIL, 2018a), percebemos o lugar essencial que o como ocupou, subordinando as discussões em torno do por que e para que e incorrendo em seu total apagamento. A centralidade do como fortalecida na associação entre o fazer do historiador e o significante atitude historiadora é considerada por nós como movimento que indica um processo de hegemonização da pedagogia neotecnicista no ensino de História com decorrências para a formação de professores.

A incorporação na narrativa da BNCC para o componente de História do termo atitude historiadora provocou-nos a examinar mais detidamente que fluxos de sentidos e que cadeias de equivalências estavam sendo posicionadas na narrativa apresentada pelo documento de maneira a suscitar, por um lado, a afirmação de um sentido de docência pautado pela prática e, por outro, um afastamento dos sentidos oriundos dos conhecimentos produzidos pelo saber de referência.

Observamos que o esvaziamento da concepção de fazer do historiador pelo afastamento/ocultamento das referências constituintes do conhecimento histórico que o fundamentam, e sua consequente aproximação da pedagogia neotecnicista “consubstanciada” no conceito de competências, posicionado como fundamento pedagógico do documento, indicam o estabelecimento de fluxos de sentidos que apontam para o preenchimento do significante atitude historiadora pelos fundamentos de um outro projeto.

Esse processo de transferência efetiva-se por movimentos de hibridação - definida como “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCIA CANCLINI, 2015, p. XIX) - que, no caso específico do ensino de História, ocorrem pela aproximação dos aspectos cognitivos relacionados ao fazer do historiador daqueles associados ao conceito de competências, subordinando o conhecimento histórico pela prevalência da cognição dos jovens e das ações cognitivas do cérebro humano em geral. Em nossa análise, identificamos que o processo ocorre justamente devido à hipervalorização da dimensão do “fazer” pela narrativa veiculada na BNCC. Dentre os variados trechos em que identificamos, selecionamos três que apresentam alguns elementos importantes para nossa análise.

FONTE: Elaborado pela autora.

QUADRO 3 IDENTIFICAÇÃO DE TRECHOS COM APROXIMAÇÃO E HIPERVALORIZAÇÃO DA DIMENSÃO DO “FAZER”. 

A estrutura narrativa do texto constitui-se na sequência que pode ser observada no encadeamento dos trechos 1, 2 e 3: primeiro, uma definição genérica, sem referências, sobre o que é fazer história; em seguida, o instrumental que, do ponto de vista do ensino de História, e a partir da definição anterior, pode “facilitar a compreensão” de elementos, aparentemente, relacionados ao desenvolvimento do pensamento histórico; por fim, estabelece-se relações entre o que poderíamos formalizar como objetivos do ensino de História, mas que, nessa narrativa, aparecem subordinados a uma teia discursiva que exacerba um certo caminho de fazer didático “adequado”. Nesse contexto particular, relacionado à articulação entre os trechos 1, 2 e 3, é inserido o significante atitude historiadora, cuja definição não está sistematizada ou fundamentada, mas se apresenta como uma conclusão à qual o leitor/a leitora deve chegar pelo encadeamento discursivo constituído até ali. A qualificação do significante constitui-se por um encadeamento discursivo perceptível nos trechos que selecionamos e apresentamos no quadro 4.

FONTE: Quadro elaborado pela equipe do GEPEH/UFMS.

QUADRO 4 TRECHOS DA BNCC EM VIGOR, ETAPA DO ENSINO MÉDIO. 

Na narrativa, os significantes que poderiam aparentemente ser associados ao que o documento nomeia como atitude historiadora tornam-se elásticos e abrangentes, o que permite perder de vista os aspectos epistemológicos que lhe são inerentes. Pela cadeia de equivalências, o significante atitude historiadora, que, no original, aparece entre aspas, talvez tentando manter o significante aberto em seus sentidos4, estabelece relação com a produção acadêmica que hoje é chamada, no campo de pesquisas sobre ensino de História, de educação histórica (SILVA; MORAIS, 2017). Nesse contexto discursivo, e acionando elementos dessa cadeia, a narrativa do documento aproxima a cognição histórica das chamadas competências específicas para o ensino de História no Ensino Médio, tornando-se um híbrido que veicula, por isso, elementos de projetos díspares de formação e de educação.

Para que esse processo de hibridação ocorresse, foi necessário operar apagamentos no conjunto dos documentos produzidos para regular as políticas curriculares. Aqui gostaríamos de nos referir especificamente à primeira versão da BNCC, apresentada ao público em 2016. Naquele momento, o documento apresentou uma proposta consolidada a partir das referências produzidas pelo relatório do GT-DiAD, mencionado anteriormente, e estruturou o currículo considerando os direitos de aprendizagem e desenvolvimento, instituídos, naquele contexto, como fundamento pedagógico da BNCC. Conforme Bonini, Druck e Barra (2018):

Ao tratarmos do direito de aprender e de se desenvolver, buscamos a consolidação da dimensão social da educação na medida em que discutimos as oportunidades de desenvolvimento do educando, assegurando-lhe a formação comum imprescindível para o exercício da cidadania ao longo da vida em permanente produção de significados, ao mesmo tempo oportunizando-lhe o aprofundamento constante dos conhecimentos e dos saberes adquiridos. É preciso, ainda, abrigar nessa dimensão social da educação o desenvolvimento do educador a partir de uma adequada formação humana, científica e cultural e a efetivação de condições dignas de trabalho. Em consideração às expectativas de aprendizagem, como descritas nas Diretrizes Curriculares Nacionais, para além da perspectiva de um conjunto de obrigações imputadas somente aos estudantes para a consolidação das tarefas, finalidades e resultados escolares em um contexto de permanente culpabilização destes, de suas famílias e de seu contexto sociocultural, o MEC, no ano de 2012, assume trabalhar esse documento em uma perspectiva de direitos à aprendizagem e ao desenvolvimento. Esses direitos, por sua vez, ensejam o debate acerca das condições por meio das quais o Estado brasileiro tem garantido, ou não, condições para que as tarefas, finalidades e resultados escolares sejam efetivados de modo positivo na vida dos estudantes no cotidiano da instituição escolar” (BONINI, DRUCK; BARRA, 2018, p. 19-20, grifo nosso).

A recontextualização ocorre na substituição gradual desse significante pelo de competências, cuja sinonímia foi objeto de políticas posteriores a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), como é possível observar no trecho que segue.

Art. 6º Para fins de obtenção de maior clareza de exposição, ficam definidos os seguintes termos utilizados na presente Resolução:[...] VI - competências: mobilização de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Para os efeitos desta Resolução, com fundamento no caput do art. 35-A e no § 1º do art. 36 da LDB, a expressão "competências e habilidades" deve ser considerada como equivalente à expressão “direitos e objetivos de aprendizagem” presente na Lei do Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2018b, grifo nosso).

Nesse contexto, a operação de transformação em híbridos de significantes como atitude historiadora, com sua consequente aproximação do significante competências, traz à tona um processo de recontextualização que afasta o ensino de História tanto de sua função formativa quanto pedagógica e educativa ao exacerbar o pragmatismo, aproximando-o cada vez mais da dimensão da prática, que qualificamos neste artigo anteriormente. O vocábulo “atitude” contém em si definições que remetem à ação em íntima relação com a cognição e a consciência, como é possível depreender de duas dentre as inúmeras definições encontradas: “comportamento ditado por disposição interior; maneira de agir em relação a pessoa, objeto, situação etc.; maneira, conduta; [...] posição assumida, orientação, modo ou norma de proceder” (HOUAISS, 2021). Por conseguinte, esse significante torna-se lócus linguístico potencial para os possíveis apagamentos e preenchimentos requeridos na narrativa do atual currículo.

É justamente o preenchimento do significante atitude historiadora em perspectiva tecnicista que torna possível a constituição de um consenso, conciliando as demandas pela inovação do ensino de História frente às permanências de uma perspectiva tradicional, o Outro negativo que constitui a cadeia de equivalências que fundamenta o posicionamento assumido.

Muito embora, ao analisar o rol de conteúdos apresentados na BNCC, possamos perceber a premência justamente dessa concepção de história tradicional, cabe destacar que esse elemento, longe de ser uma marca de contradição, é nodal para perceber de que maneira os sentidos de atitude historiadora e, por consequência, de conhecimento histórico escolar estão sendo preenchidos pela BNCC no viés neotecnicista que a engendra visando a constituição de consensos em torno do projeto que se tenta hegemonizar. Aqui, podemos citar como exemplo a uniformização dos materiais didáticos a serem ofertados por empresas ao sistema educacional público de norte a sul do país, uma vez que, nos currículos referência regionais, a listagem de conteúdos permaneceu praticamente a mesma. A esse respeito, consultem-se as apresentações dos currículos de todo o país realizada no Ciclo de debates "BNCC de História nos estados: o futuro do presente" (CICLO..., 2020).

A narrativa veiculada na BNCC coloca o ensino de História a serviço de processos de hegemonização de princípios norteadores oriundos de projetos que preconizam o esvaziamento da dimensão do conhecimento histórico acadêmico, o qual, em detrimento do treino e da primazia do como fazer, torna-se secundário, convertendo a identidade do professor de História (intelectual, que domina os fundamentos da Ciência Histórica e aqueles da Educação) em professor que ensina História (técnico, que exercita as maneiras através das quais ensinará os conteúdos/objetos de conhecimento sem necessariamente dominar os fundamentos das ciências de referência). Esses seriam alguns dos sentidos que estariam flutuando na narrativa da BNCC e sendo incorporados como fundamentos da formação de professores de História na BNC-FP.

Considerações finais

A operação de transformação em híbridos de significantes como atitude historiadora, com sua consequente aproximação do significante competências, em tentativas de fixação de certos sentidos que conferem à docência um caráter prático e técnico, traz à tona um processo de recontextualização que afasta o ensino de História tanto de sua função formativa quanto pedagógica e educativa ao exacerbar o pragmatismo, conforme apontamos. Dessa forma, seja na narrativa veiculada pela BNCC, seja naquela da BNC-FP, o ensino de História é posto a serviço de processos de hegemonização de sentidos dissonantes daqueles que constam em projetos que defendem uma sociedade de bases democráticas, que valorizem o diálogo e que pensem a docência constituída em perspectiva dialética e dialógica.

É importante destacar que a identificação de híbridos na BNCC e na BNC-FP é acompanhada por ambivalências que produzem as negociações necessárias para garantir sua legitimação, ao mesmo tempo que engendram zonas de escape dessa dominância (LOPES, 2005, p. 60). Temos claro também que,

[...] nas arenas políticas são disputados os variados sentidos para o currículo da formação de professores a partir de ações cujo poder caracteriza-se como oblíquo (Canclini, 1998), para além dos verticalismos “de cima para baixo” ou “de baixo para cima”, usual também em algumas análises da produção de políticas (DIAS; LOPES, 2009, p. 83).

Assim, a análise apresentada neste texto tem o objetivo de provocar reflexões em torno de características que observamos a partir de um certo lugar. Por conseguinte, ao pontuá-las, estamos conscientes da provisoriedade e da singularidade das considerações tecidas, realizadas como parte do esforço em estreitar diálogos entre os campos da História e da Educação, buscando fugir às armadilhas dos essencialismos e de instituição de uma verdade única e absoluta. Tomando essas premissas como base e à guisa de conclusão, gostaríamos de abordar uma questão de fundo que vêm à tona com os processos de hegemonização que analisamos e que, a nosso ver, objetivam subordinar a dimensão política e teórica do ensino de História. Mas não só.

Estando os sentidos de ensinar História deslocados e subordinados ao neotecnicismo, não estaríamos também frente à possibilidade de afirmação de uma certa função legitimadora que a produção historiográfica estaria assumindo no discurso veiculado pelas políticas curriculares atuais? Essa última indagação surge a partir da ideia de que “pensar uma teoria da história é parte indissociável da própria pesquisa e da reflexão em torno do ensino de história” (GUIMARÃES, 2009, p. 39), situando a história e seu ensino “na dimensão Bildung, ou seja, como articulação entre conhecimento, transmissão e apresentação sob determinada forma” (GUIMARÃES, 2009, p. 48).

Se essa premissa for verdadeira, abordar a formação de professores de História, na perspectiva do intelectual crítico-reflexivo, exigirá, inexoravelmente, a superação de uma visão arraigada entre historiadores de que o ensino de História está restrito à prática e limitado ao papel de transmissor dos saberes produzidos por intelectuais reconhecidos (o conhecimento em si de um lado; o conhecimento para fazer algo, de outro) (MACEDO, 2016), visão essa que tem subordinado e, em muitos casos, expurgado a função educativa da escola e o papel do conhecimento de referência na formação docente.

Ou ainda, refletir sobre a racionalidade técnica que tem imperado na formulação dos cursos de licenciatura, que desqualifica a formação docente em prol daquela do bacharel, e que concebe a aprendizagem por acúmulo de informações, pode estar se colocando como uma necessidade urgente frente a mecanismos de controle previstos nessas políticas, como as avaliações de larga escala, que, em última instância, podem estar visando ao controle da própria produção do conhecimento no interior das instituições de nível superior.

Frente a esse estado de coisas, caberia indagar: que conhecimento histórico e que historiador/a estão sendo projetados em um currículo cuja técnica assume centralidade? Por decorrência, que controles da produção do conhecimento histórico se estariam erigindo no interior dessas políticas curriculares?

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1O trabalho apresentado neste artigo faz parte do conjunto de estudos sobre a BNCC e das primeiras incursões pela análise da BNC-FP realizados pela equipe do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino de História e Práticas de Linguagem - Currículo, História e Cultura (GEPEH/UFMS), que compõem o projeto de pesquisa “Currículo e ensino de História: sentidos e significados de tempo passado, raça, etnia e diversidade em propostas curriculares”.

2O Grupo de Trabalho sobre Direitos à Aprendizagem e ao Desenvolvimento (GT-DiAD), interdisciplinar e de participação popular, elaborou o documento de referência para a elaboração da Base Nacional Comum Curricular a partir dos Direitos à Aprendizagem e ao Desenvolvimento.

3“Uma demanda social é caracterizada por Laclau (2005) como solicitações e expectativas de sujeitos e grupos sociais que, uma vez não atendidas, podem se transformar em reivindicações em defesa das quais variados grupos, constituídos como vontades coletivas, se unem em uma luta política. Uma vez definidas as demandas em jogo na política, os grupos em torno dessas demandas são definidos. Não há, portanto, identidades políticas estabelecidas previamente ao processo articulatório” ( DIAS; LOPES, 2009, p. 85).

4Aqui podemos relacionar a estratégia discursiva de utilização de aspas à inserção da questão no debate sobre o uso de documentos em sala de aula para ensinar História na perspectiva do fazer do historiador. Neste debate, ressalta-se que não se pretende formar mini-historiadores, mas possibilitar que sejam desenvolvidas reflexões sobre os princípios da produção historiográfica, estratégia considerada didática para a formação crítica. O recurso às aspas pode estar exacerbando esse caráter relativo ressaltado nesta discussão.

Recebido: 04 de Outubro de 2020; Aceito: 27 de Março de 2021

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