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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Sep-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77138 

DOSSIÊ - Bases Nacionais e o Ensino de História embates, desafios e possibilidades na/entre a Educação Básica e a formação de professores

O jardim do vizinho é mais bonito ou está mais longe de nossos olhos? Os conteúdos do passado recente na BNCC de História no Brasil e os NAP na Argentina1

Helenice Aparecida Bastos Rocha* 
http://orcid.org/0000-0002-0456-4650

María Paula González** 
http://orcid.org/0000-0003-0357-2365

( Universidade Estadual do Rio de Janeiro. São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: helarocha@gmail.com

((Universidad Nacional de General Sarmiento. Buenos Aires, Argentina. E-mail: mpgonzal@campus.ungs.edu.ar


RESUMO

O artigo visa contribuir para o debate sobre a relação entre a história recente e sua apropriação em políticas educacionais, concretizada em documentos curriculares, tomando o caso da ditadura militar em dois países que passaram por regimes autoritários, Brasil e Argentina. O artigo apresentará uma visão geral sobre o contexto de criação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o tratamento desse conteúdo, fazendo o mesmo, a seguir, para os Núcleos de Aprendizajes Prioritarios (NAP) [Núcleos de Aprendizagem Prioritários]. Como os documentos curriculares narram esse passado recente, como temas de ensino e aprendizagem para as novas gerações? A que necessidades sociais visam atender, em sua estruturação? A comparação surge como forma de contribuir para um olhar mais complexo sobre nossa própria realidade e história recente, na confrontação com a descrição entre os vizinhos, com tantas aproximações e distanciamentos entre nossas histórias.

Palavras-chave: Currículo de história; Ditadura militar; Memória; Brasil; Argentina

RESUMEN

El artículo pretende contribuir al debate sobre la relación entre la historia reciente y su apropiación en las políticas educativas, concretada en documentos curriculares, tomando el caso de la dictadura militar en dos países que sufrieron regímenes autoritarios, Brasil y Argentina. El artículo presentará un panorama general sobre el contexto de creación de la Base Nacional Comum Curricular (BNCC) [Base Nacional Común Curricular] y el tratamiento de este contenido, haciendo lo mismo, a continuación, para los Núcleos de Aprendizaje Prioritarios (NAP). ¿Cómo narran los documentos curriculares este pasado reciente, como temas de enseñanza y aprendizaje para las nuevas generaciones? ¿Qué necesidades sociales pretenden satisfacer en su estructuración? La comparación aparece como una forma de contribuir a una mirada más compleja a nuestra propia realidad e historia reciente, dando cuenta de las aproximaciones y distancias entre nuestras historias.

Palabras clave: Curriculum de Historia; Dictadura militar; Memoria; Brasil; Argentina

Brasil e Argentina vivem de forma próxima alguns processos sociais. Entre eles, viveram ditaduras e democracias em suas histórias recentes, na segunda metade do século XX. Mais recentemente, na reestruturação democrática de seus sistemas de ensino, produziram documentos curriculares nacionais para atender a prescrições presentes em diferentes instâncias. Como os documentos curriculares narram esse passado recente, como temas de ensino e aprendizagem para as novas gerações? A que necessidades sociais visam atender, em sua estruturação? O artigo visa responder, na medida do possível, a essas perguntas.

Nosso ponto de partida é a proximidade e a distância entre Brasil e Argentina. Conhecer aspectos de suas realidades pode oferecer elementos que ampliem os horizontes de ambos. A partir dessa premissa, o artigo tem a pretensão de realizar uma comparação com recorte disciplinar e temático entre os documentos de orientação curricular nacional de História do Brasil e da Argentina, visando conhecer algumas de suas peculiaridades e explicá-las considerando dois aspectos principais. Um, o do contexto das políticas educacionais em que esses documentos foram produzidos, considerado como fator relevante, em cada país, para as características dos documentos. O outro, o lugar que a história recente e a ditadura ocupam nos documentos de cada país e sociedade (na Argentina, a ditadura entre 1976 e 1983, e no Brasil, a ditadura entre 1964 e 1985).

O contexto de elaboração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e dos Núcleos de Aprendizajes Prioritarios (NAP) [Núcleos de Aprendizagem Prioritários] é bem diverso. Na Argentina houve consenso, no Brasil, muito pouco, sobre a necessidade de elaboração do documento. Do mesmo modo, a elaboração das historiografias argentina e brasileira sobre suas ditaduras é outro ponto de diferença e algumas semelhanças, conforme veremos.

Por conta disso, o artigo apresentará uma visão geral sobre o contexto de criação da BNCC com destaque para a abordagem do tema da história recente e, nela, a ditadura, fazendo o mesmo, a seguir, para os NAP. Depois, apresentará uma comparação entre alguns aspectos dos documentos, guiando-se pelas perguntas elencadas acima. A comparação surge como forma de contribuir para um olhar mais complexo sobre nossa própria realidade e história recente, na confrontação com a descrição do nosso país vizinho, com tantas aproximações e distanciamentos com nossa história.

A Base Nacional Comum Curricular brasileira

A partir da promulgação da Constituição brasileira de 1988 (BRASIL, 1988), após o fim da ditadura, educadores e a classe política brasileira se viram às voltas com a demanda de organização de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e de todo um aparato legal para as políticas educacionais: pareceres, diretrizes e documentos curriculares para a democracia que se reestabelecia. Vale lembrar que o ensino de História do Brasil está preconizado como um valor nacional na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) e reafirmado na LDB (BRASIL, 1996), já em 1996.

A LDB também declara a necessidade de “estabelecer [...] competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (BRASIL, 1996). Com um perfil aberto, o documento deixa deliberadamente para legislações e normas posteriores a regulamentação da maioria dos aspectos de organização da escola e da universidade brasileira. Ao longo de 22 anos, tal produção veio se dando em diferentes direções e a partir de governantes de matizes político-ideológicos diversos. Como exemplo, houve a produção de três Diretrizes do Ensino Médio entre o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o governo Dilma Rousseff (2011-2016) e o governo Temer (2016-2017), sendo que essa última orientou a produção da BNCC do Ensino Médio, publicada finalmente em 20182.

Também na década de 1990, o Executivo deu andamento à implementação do Programa Nacional do Livro Didático, que traduzia a renovação de programas de materiais didáticos anteriores para os alunos das escolas públicas. Ainda organizou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em sintonia com ações internacionais de implementação e avaliação de um currículo fortemente ancorado na concepção de competências e habilidades, a partir de influências do Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio (OMC).

Temos, assim, três movimentos e possíveis períodos relativos às políticas curriculares após a constituição em vigor: na década de 1990, LDB, PCNs e início efetivo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Entre 2001 e 2015, momento de concentração da produção das diferentes Diretrizes que fundamentam a educação nacional e do Plano Nacional da Educação (PNE)3, que fomenta o estabelecimento da BNCC, e entre 2015 e 2018, a produção de versões e publicação da BNCC do Ensino Básico, incluindo a educação infantil até o ensino médio.

No interregno do fim da ditadura e a publicação da BNCC, entre 1986 e 2017, os conteúdos curriculares estiveram por conta de estados e municípios que deveriam organizar suas propostas, conforme estudo realizado por BARRETO (1998), além de contar com os PCNs com referências em eixos temáticos. Porém nenhum documento curricular se mostrou forte o bastante diante da tradição curricular, que manteve nos livros didáticos um forte aliado, presente na maioria das salas de aula do país. Neles, vigorou naquele período um currículo fortemente amparado nas escolhas deliberadas, ou não, da memória nacional em relação ao seu passado recente, com uma seleção de sujeitos e aspectos com a verdade possível para a transição política existente, conforme proposição de Carolina Bauer (2014). A produção historiográfica, bem como o debate acadêmico acalorado sobre o tema em seus diferentes aspectos, conforme demonstra Carlos Fico (2017), constituem outro universo de discussão. Os autores de livros didáticos têm a tarefa de interpretar essas diferentes vozes sociais e conferir a elas uma narrativa plausível4.

Com a publicação da BNCC do Ensino fundamental em 2017, e em 2018, do Ensino Médio, os livros didáticos também passaram a ser regulados em sua formulação e definição de conteúdos pelo que é preconizado no documento nacional, passando a ser portador de um currículo autorizado. Voltaremos a este ponto adiante.

Diferentes divergências ocorridas durante a produção da BNCC, relativas à sua pertinência e formas de produção foram amplificadas com o contexto político que fragilizou o processo. Com a instabilidade do final do primeiro governo (2012-2014) e início do segundo governo Dilma Rousseff (2015-2016) e o seu impeachment, que deixou ao seu sucessor, Michel Temer (2016-2018), a tarefa de dar forma final ao documento da BNCC - e inclusive a possibilidade de redirecionar a proposta - temos um documento do Ensino Fundamental com uma forma e organização dos conteúdos curriculares com reminiscências da formulação anterior e outro do Ensino Médio, com uma forma e organização em consonância com as Diretrizes do Ensino Médio formuladas já durante o governo Temer, com outra orientação política e ideológica.

Nos limites deste artigo, pretendemos destacar o tratamento conferido à história recente no documento vigente da BNCC, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio, focalizando em especial o tratamento do conteúdo curricular da ditadura militar na disciplina escolar História. O interesse especial neste conteúdo surge quando refletimos que o tratamento didático - de presença ou ausência - conferido ao processo da ditadura em um documento como este responde a demandas do presente, ou seja, o tratamento a um tema sensível pela proximidade temporal, dissensões e valores atribuídos a ele por diferentes segmentos da sociedade e seu caráter mais ou menos traumático.

A BNCC do Ensino Fundamental e o tema da história recente

A estruturação da BNCC se dá em torno de competências gerais e especificas, conforme declarado no documento, que visa, com isso, oferecer referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares (BRASIL, 2018, p. 10). O ensino fundamental é apresentado em unidades temáticas, que organizam os conteúdos programáticos como objetos do conhecimento e habilidades, relativas a tais objetos. Entre as sete competências específicas de História no Ensino Fundamental se destaca a primeira, ao correlacionar a compreensão do passado histórico “ao longo do tempo” como base para a atuação no presente:

Compreender acontecimentos históricos, relações de poder e processos e mecanismos de transformação e manutenção das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais ao longo do tempo e em diferentes espaços para analisar, posicionar-se e intervir no mundo contemporâneo (BRASIL, 2018, p. 402).

A BNCC dos anos finais do Ensino Fundamental (6º ao 9º ano) tem seus conteúdos (objetos de conhecimento) organizados em ordem cronológica, da Antiguidade aos dias de hoje. Ao apresentar os temas que serão abordados em cada um dos anos finais do Ensino Fundamental, situa a temporalidade recente nessa perspectiva (BRASIL, 2018, p. 420), o que inclui “No 9º ano, aborda-se a história republicana do Brasil até os tempos atuais, incluindo as mudanças ocorridas após a Constituição de 1988, e o protagonismo de diferentes grupos e sujeitos históricos”.

O conteúdo curricular relativo à segunda metade do século XX e à ditadura militar é registrado da seguinte maneira, entre objetos de conhecimento e habilidades:

Unidade temática: Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946

Objetos de conhecimento e habilidades relacionadas:

  1. Os anos 1960: revolução cultural?5

  2. Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos.

  3. A ditadura civil-militar e os processos de resistência

  4. Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante a ditadura civil-militar.

  5. As questões indígena e negra e a ditadura

  6. Identificar e relacionar as demandas indígenas e quilombolas como forma de contestação ao modelo desenvolvimentista da ditadura (BRASIL, 2018, p. 430-431).

Considerando a relação entre os conhecimentos e as habilidades, a primeira habilidade realiza dois movimentos. O primeiro, procura identificar e compreender o processo que resultou na ditadura, sugerindo a apresentação de seus fatores explicativos. O segundo estabelece o lugar da memória e dos discursos sobre justiça para o primeiro plano do tratamento do conteúdo. Assim, além de problematizar a natureza da ditadura a partir do título da unidade - se militar ou civil-militar - estabelece de forma paritária o lugar de dois aspectos analíticos para o tratamento do tema: a história e a memória (e a busca por justiça). Trataremos dessa dualidade adiante.

A segunda habilidade oferece outras pistas sobre o título civil militar. Se por um lado a habilidade pretende discutir processos de resistência, colocando-os no primeiro plano, por outro, abre espaço para os rumos tomados por outros segmentos sociais, de acordo com sua aproximação com os militares. Sabe-se que uma parte está próxima aos militares, tendo atendidos os seus interesses mútuos. Outra silencia, concordando ou não com o regime, e outra, ainda, resiste.

A terceira e última habilidade aborda a especificidade de uma parcela da sociedade brasileira, quilombolas e indígenas. Mais uma vez, a habilidade sugere a existência de processos de resistência, especificando os segmentos que resistem e, especificando a que resistem: ao modelo desenvolvimentista da ditadura. Registre-se aqui o duplo recorte realizado: de sujeitos e de modelo a que resistem. Subentende-se que esse modelo afeta a todos, mas a referência a esses segmentos pode se justificar pelos maiores impactos sofridos.

A problemática da dualidade entre a ação do regime (disrupção autoritária, violência, modelo desenvolvimentista) e a resistência a ela atravessa os três itens do objeto de conhecimento e as habilidades respectivas. Esse longo período da história brasileira está contemplado na análise dual da ditadura e resistência? Possivelmente não, mas essa tônica coexiste na BNCC, na historiografia acadêmica e, ainda, na escolar (NAPOLITANO, 2015).

Podemos também afirmar que o conteúdo curricular da ditadura militar na BNCC dos anos finais do Ensino Fundamental expressa, no que exclui dos objetos de conhecimento e habilidades, o caminho escolhido por parte significativa da sociedade brasileira no que se refere a questões centrais deste período e processo. Como exemplo, a ausência das responsabilidades pelas mortes em decorrência do regime, a naturalização em relação ao aprofundamento da desigualdade social ocorrido no período e acomodação diante do entulho autoritário que persistiu em alguns dispositivos constitucionais, mesmo após o fim da ditadura. É o caso da Lei n. 6.683/1979 (BRASIL, 1979), denominada lei da Anistia, de 28 agosto de 1979, bem como o artigo 142 da Constituição Federal em vigor (BRASIL, 1988), que possui redação ambígua, sugerindo suposto poder presidencial para o uso das forças armadas para intervenção militar.

Entretanto, no que seleciona para estar no documento, como objeto de conhecimento e habilidades, o documento evidencia sintonia com questões de nosso tempo, como a busca de responsabilidade da sociedade brasileira acerca das vítimas da ditadura, como vemos na assunção da denominação ditadura civil-militar, escolha deliberada da BNCC. Em 2012 foi instalada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a partir da Lei nº 12.528/2011 (BRASIL, 2011), de 18 de novembro de 2011, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional (SETEMY, 2020), bem como, a seguir, comissões estaduais e municipais equivalentes.

Anteriormente houve a Lei nº 9.140/1995 (BRASIL, 1995), para reconhecimento da responsabilidade estatal pelos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar e instalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em 1996, que resultou na publicação do relatório Direito à memória e à verdade, em 2007 (SETEMY, 2020).

A instauração de comissões dessa natureza reivindica movimentos de justiça e memória até então silenciados. Após anos de atividades, juridicamente, a lei da Anistia não foi revogada, e tais comissões elucidaram acontecimentos, mas seus efeitos para a justiça sobre o período da ditadura são parciais.

Em sintonia com esse movimento da sociedade, mais ou menos simultaneamente, no âmbito acadêmico começou um debate entre pesquisadores que defendem linhas teóricas diversas sobre a natureza do processo - golpe e ditadura - e a efetiva participação de segmentos sociais diversos como agentes históricos6. Nos parece que a denominação de ditadura civil-militar responde a uma sintonia entre esses dois movimentos - da sociedade e de historiadores - dentro do que vem se denominando como justiça de transição. Noção de caráter predominantemente jurídico, é definida por Paulo Abrão e Marcelo Torelly como um “conjunto de políticas públicas implementadas pelo Estado que apresenta mecanismos próprios para enfrentar um legado de regimes autoritários para o qual a justiça dos tempos ordinários, através do Judiciário, mostra-se despreparada” (ABRÃO; TORELLY, 2015, p. 56).

Adriana Setemy (2020), ampliando o escopo da justiça de transição, apresenta-a como

[...] componente de um processo de mudança de regime cujas diferentes facetas são parte integrante desse processo incerto e excepcional, que tem lugar entre a dissolução do autoritarismo e a institucionalização da democracia, envolve uma série de medidas tomadas ao longo da redemocratização que vão além da criminalização de perpetradores, colaboradores e agentes da repressão. Os instrumentos a serviço da justiça de transição envolvem grande diversidade de esforços extrajudiciais, tais como investigações históricas oficiais, saneamentos, reparações, dissolução de instituições legadas pelo regime anterior e comissões da verdade (SETEMY, 2020, p. 338).

Alessandra Carvalho ([2018]) sugere que o ensino de História também pode ser um desses instrumentos a serviço da justiça de transição, e nos parece que o documento da BNCC, especialmente em sua primeira habilidade destacada e na denominação de ditadura civil-militar, busca essa aproximação. Os documentos curriculares, os materiais didáticos como livros, ou outros produzidos com esse fim, e ainda a ação dos professores ao trazer para a sala de aula documentos que atestam a verdade e a memória da ditadura e de seus efeitos sobre a sociedade, são exemplos de instrumentos possíveis para a justiça de transição, no que se refere à ditadura militar (QUINAN, 2017).

Diferentes sujeitos têm atuado em favor da justiça de transição. Entre os historiadores há os que buscam a responsabilização social - de civis e militares. Nas ações governamentais há busca de recuperação de uma memória da ditadura e de justiça. Tudo isso parece ter se refletido de alguma forma na produção didática e, possivelmente, na BNCC. Assim, essa denominação na BNCC parece repercutir um deslocamento do debate historiográfico, de memórias e lutas sociais contra o esquecimento e de instrumentos para uma justiça de transição, apesar de as políticas de reparação e de memória terem sido estabelecidas dentro de uma ideologia de reconciliação (BAUER, 2014).

A BNCC do Ensino Médio está organizada por áreas de conhecimento e a História faz parte da área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA), juntamente com Geografia, Sociologia e Filosofia. A descrição dos objetos de conhecimento presentes na BNCC do Ensino Fundamental desaparece do documento para dar lugar somente às competências gerais e específicas, bem como habilidades relacionadas à área, não ao componente curricular7. As competências especificas das CHSA foram formuladas de forma a comtemplar os conteúdos curriculares dos diferentes componentes de forma integrada, o que vem sendo objeto de crítica por parte de associações científicas, diante do esvaziamento do conhecimento específico neste nível de ensino (BRASIL, 2018, p. 512). Dentre as competências, destacamos as que mais diretamente dialogam com o componente curricular História:

  1. 1. Analisar processos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais nos âmbitos local, regional, nacional e mundial em diferentes tempos, a partir da pluralidade de procedimentos epistemológicos, científicos e tecnológicos, de modo a compreender e posicionar-se criticamente em relação a eles, considerando diferentes pontos de vista e tomando decisões baseadas em argumentos e fontes de natureza científica.

  2. 2. Analisar a formação de territórios e fronteiras em diferentes tempos e espaços, mediante a compreensão das relações de poder que determinam as territorialidades e o papel geopolítico dos Estados-nações.

[...]

5. Identificar e combater as diversas formas de injustiça, preconceito e violência, adotando princípios éticos, democráticos, inclusivos e solidários, e respeitando os Direitos Humanos (BRASIL, 2018, 570-571).

Em relação à primeira competência, que permite o trabalho com quaisquer processos históricos, inclusive a ditadura militar, afirma-se que se pretende

[...]discutir criticamente as circunstâncias históricas favoráveis à emergência de matrizes conceituais dicotômicas [...] contextualizando-as de modo a identificar seu caráter redutor da complexidade efetiva da realidade; e operacionalizar conceitos como etnicidade, temporalidade, memória, identidade, sociedade [...] (BRASIL, 2018, p. 573).

Nesse sentido, a mobilização de conceitos como memória da violência e justiça estão no escopo possível da BNCC de CHSA. Em especial, a habilidade (EM13CHS102) apresentada para a competência 1:

Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos (BRASIL, 2018, p. 572).

Permite o trabalho com as circunstâncias e as matrizes do autoritarismo, a manutenção do racismo como um dos mecanismos que definiram segmentos sociais vítimas da violência de Estado e do desenvolvimentismo, citado na competência específica 3.

A competência específica 5 é traduzida na esfera do componente curricular Filosofia. Entretanto, observa-se que ela pode justificar parte do trabalho e da ênfase no conteúdo da ditadura em seu aspecto ético.

O exercício de reflexão, que preside a construção do pensamento filosófico, permite aos jovens compreender os fundamentos da ética [...] estimulando o respeito às diferenças [...], à cidadania e aos Direitos Humanos. Ao realizar esse exercício[...], os estudantes podem [...] perceber a desigualdade, o preconceito e a discriminação presentes em atitudes, gestos e silenciamentos, avaliando as ambiguidades e contradições presentes em políticas públicas tanto de âmbito nacional como internacional (BRASIL, 2018, p. 577).

Todas as habilidades relativas a essa competência podem ser apropriadas, em algum grau, à reflexão ética sobre a temática da ditadura, pois abordam o reconhecimento dos direitos humanos, a identificação de diversas formas de violência e as formas de combate a elas.

Entretanto, não há menção explícita ao conteúdo curricular da ditadura em nenhum lugar da BNCC do Ensino Médio, como a nenhum conteúdo curricular específico. Desta maneira, se o professor, a rede escolar ou os materiais didáticos, decidirem construir seu currículo mobilizando as competências e habilidades com outros objetos de conhecimento, os estudantes do Ensino Médio brasileiro não realizarão nenhuma reflexão sobre essa experiência histórica e o que ela representa para os brasileiros vivos em 2020. Juntando-se tal eventual ausência à afirmação limitada da ditadura militar na proposição da BNCC do ensino fundamental, conclui-se pela opção do tratamento do conteúdo em “voz baixa,” ou “murmúrio,” entre sua compreensão como processo histórico e a sucinta consideração sobre as memórias relativas a ela.

O conteúdo curricular da ditadura no Brasil tornou-se um pomo da discórdia entre partes da população brasileira, comunidades de memória e de história que divergem sobre o que foi e por que foi a ditadura. Tais divergências acabam por afetar a abordagem da temática na BNCC do Ensino Fundamental e ainda mais esvaziada nas características do documento do Ensino Médio. Concordando com a observação, propomos: A tarefa social da disciplina História cresce com o negacionismo, que é sustentado por uma parcela da população e das lideranças que atualmente ocupam o Poder Executivo e em boa parte do Poder Legislativo, a partir da afirmação de que não houve ditadura ou, se houve, seus males ocorreram por necessidade, pela “ameaça comunista”. O ensino de história precisa trazer a público as explicações da história sobre o que foi a ditadura, quem foram os sujeitos e as vítimas dessa história, os frutos que ainda colhemos de tal processo, sem romantismos ou causalidades enviesadas, visando nosso amadurecimento como sociedade em transição democrática.

A formulação dos NAP na Argentina.

Na Argentina - como em quase todos os países latino-americanos - iniciou-se uma reforma educacional na década de 1990 que incluiu mudanças curriculares, modificações em todos os níveis de ensino (desde a formação inicial até a formação de professores) e a implementação de um sistema nacional de avaliação da qualidade da educação. Essa transformação teve início com a promulgação da Ley Federal de Educación (LFE) [Lei Federal de Educação] - Ley nº 24.195/1993 (ARGENTINA, 1993), uma lei de âmbito nacional que renovou completamente o sistema educacional desde a promulgação da primeira legislação educacional do final do século XIX - Ley nº 1420/1884 (ARGENTINA, 1884). Ao longo do século XX, houve reformas parciais dos currículos. Por exemplo, para o nível secundário em 1956 e 1979. A partir da recuperação democrática de 1983, outras modificações parciais foram feitas, mas as mudanças mais importantes foram feitas com a LFE de 1993 (FINOCCHIO, 1999).

Em suma, a LFE estendeu a escolaridade obrigatória para 9 anos (Educación General Básica [Ensino Básico Geral] - EGB - dividido em três níveis)8, projetou um trecho de mais três anos de escolaridade não obrigatória (Polimodal)9, promoveu a formação permanente de professores e fez uma mudança curricular na educação básica redefinida em áreas e não em disciplinas. Os Contenidos Básicos Comunes (CBC) [Conteúdos Básicos Comuns] foram aprovados pelo Conselho Federal de Educação, composto pelos Ministros da Educação das diferentes províncias e assessorado por especialistas disciplinares.

No entanto, essa “transformação educativa”, rapidamente mostrou seus problemas e limites. Por um lado, teve uma aplicação díspar e algumas províncias não a implementaram na sua totalidade. Por outro, foi fortemente questionada por atores políticos de oposição e sindicatos de professores que questionaram o quadro da política neoliberal com o consequente corte e “retirada” do Estado em que a referida lei foi sancionada (DE AMÉZOLA, 2008; NOSIGLIA, 2007).

Após a profunda crise econômica e social de 2001 e, em particular, com o advento do governo de Néstor Kirchner, a necessidade de uma nova reforma educacional foi colocada sobre a mesa. A execução desigual da LFE levou ao desenvolvimento de novos “Núcleos de Aprendizagem Prioritária” (NAP) que pretendiam alcançar todas as partes do país e atingir uma política que tenderia a dar unidade ao sistema educacional nacional. Esse processo teve início em 2004 no Conselho Federal de Educação e foi definido (ARGENTINA, 2004, p. 6, tradução nossa) que:

A sua presença é considerada essencial, visto que são formas fundamentais de pensar ou agir a partir do horizonte de condições de igualdade e equidade. Como conhecimento-chave, referem-se aos problemas, temas, questões centrais das áreas/disciplinas e suas formas distintas de descoberta/raciocínio/expressão, dotadas de validade e aplicabilidade geral. São relevantes para compreender e posicionar-se progressivamente diante dos problemas, temas e indagações do mundo contemporâneo em que se desenvolvem crianças e jovens. São condição para aquisição de outros aprendizados em processos de aprofundamento crescente.

A partir desses primeiros passos, reitera-se a ideia de conceber a educação como um dos pilares estratégicos para o desenvolvimento do país e uma ferramenta incontornável para se alcançar a justiça social, tarefa para a qual as desigualdades devem ser superadas, e reconstruída a unidade perdida do sistema educacional. Por este motivo, avançou-se rapidamente em dois outros pontos centrais: uma nova Ley de financiamiento Educativo - Ley nº 26075/2006 (ARGENTINA, 2006c)10 [Lei de Financiamento da Educação] e a promulgação de uma nova lei, agora denominada Ley de Educación Nacional (LEN) Lei de Educação Nacional] - Ley n° 26206/2006 (ARGENTINA, 2006b).

Apesar das críticas recebidas durante o processo que conduziu à promulgação desta nova lei (debate fora do parlamento com pouco tempo, lógica centralizada de recolha de pareceres, falta de diagnóstico sobre a situação educacional, papel do parlamento no processo) a LEN foi sancionada muito rapidamente (NOSIGLIA, 2007).

Com a LEN aprovada, avançou-se na aprovação dos NAP em sua versão final. Para o nível secundário, estas versões foram publicadas em 2006 e reelaboradas em 2011 (para o ciclo básico) e em 2012 (para o ciclo superior).

Os NAP para todas as áreas começam com a apresentação de “situações de ensino que promovem [...]”. No caso das Ciências Sociais, estão relacionadas com princípios, conceitos e habilidades gerais. Por exemplo, a construção de uma identidade nacional plural que respeite a diversidade cultural, os valores democráticos e os direitos humanos; a construção de uma cidadania crítica, participativa, responsável e comprometida; a compreensão do caráter provisório, problemático e inacabado do conhecimento social; o diálogo como instrumento privilegiado para resolver problemas de convivência e conflito de interesses na relação com os outros; o interesse em compreender a realidade social passada e presente (global, nacional, regional, local) expressando e comunicando ideias, experiências e avaliações; a identificação dos diferentes atores (individuais e coletivos) envolvidos na vida das sociedades do passado e do presente, com seus diversos interesses, pontos de vista, acordos e conflitos; a compreensão dos diferentes problemas sócio-históricos a partir da multicausalidade e da multi-perspectiva, leitura e interpretação de várias fontes de informação, entre muitos outros11.

Após, são incluídos os conteúdos que assumem a forma de formulações gerais e não exaustivas. Isto se deve ao fato de que cada jurisdição (províncias e cidade autônoma de Buenos Aires) constrói sua própria proposta curricular específica tendo como base os NAP.

O lugar da história recente nos NAP de Argentina.

Agora, é interessante focalizar nosso olhar no lugar da história recente da Argentina (particularmente a última ditadura). Mas, antes de observar os NAP, deve-se notar que a própria LEN (ARGENTINA, 2006b, p. 19) incluiu uma menção muito importante sobre essa questão, pois - em seu artigo 92 - estabeleceu como conteúdos curriculares comuns a todas as jurisdições:

O exercício e a construção da memória coletiva sobre os processos históricos e políticos que romperam a ordem constitucional e acabaram estabelecendo o terrorismo de Estado, a fim de gerar nos alunos reflexões e sentimentos democráticos e em defesa do Estado de Direito e a plena validade dos Direitos Humanos [...].

Enquanto a Lei Federal de 1993 (ARGENTINA, 1993) enfatizava que a educação deveria favorecer a “consolidação da democracia”, a Lei Nacional de 2006 (ARGENTINA, 2006b) não só apoiou essa função mas também acrescentou “o exercício e a construção da memória coletiva” sobre o passado recente e “Terrorismo de Estado” em particular.

As “lutas pela memória” explicam, em grande parte, essa menção no corpo da nova lei. São lutas que, notoriamente desde 2003, fizeram parte das políticas de memória por parte do Estado (LVOVICH; BISQUERT, 2008). Além disso, a partir de 2002, começou um caminho diferente para a justiça: as leis de impunidade dos anos 90 foram declaradas inconstitucionais e inválidas, os processos judiciais foram reiniciados não só contra os militares, mas também contra os civis responsáveis. Aliás, o próprio Estado reconheceu sua responsabilidade na repressão ilegal por meio de reparações econômicas, a salvaguarda de arquivos e a construção de espaços de memória (CELS, 2004). Por sua vez, a historiografia dedicada aos anos 70 e 80 também deu um salto, tanto que passou de um “campo em construção” (FRANCO; LEVÍN, 2007) a um campo “em expansão” (FRANCO; LVOVICH, 2017). Isso é demonstrado pelo grande número de indagações que avançaram sobre as áreas cinzentas e negligenciadas daqueles anos: o consenso, a resignação, a cumplicidade e a conformidade da sociedade civil diante da ditadura; as ações e responsabilidades das organizações armadas; as atitudes dos partidos políticos; cumplicidade empresarial e eclesial; etc. por meio da ampliação das escalas geográficas e temporais, os atores submetidos à análise e os referenciais teóricos e metodológicos adotados (BOHOSLAVSKY et al., 2010).

Passando ao NAP, vale destacar que a história recente foi incluída nos documentos voltados para o ciclo básico e superior. No caso do nono ano do terceiro ciclo do EGB / Nível Secundário na área das Ciências Sociais, tal inclusão foi realizada através da seguinte formulação:

A compreensão das múltiplas causas que levaram a um estágio de instabilidade política na Argentina no período 1955-1976, identificando os diversos atores e interesses em jogo [...] O conhecimento das características do terrorismo de Estado implementado na Argentina pela ditadura militar de 1976-1983 e sua relação com a Guerra Fria e a aplicação de um modelo econômico e social neoliberal (ARGENTINA, 2006a, p. 25, tradução nossa).

Da mesma forma, mas para o ciclo superior, em 2012 foram aprovados os seguintes:

A compreensão do golpe civil-militar de 1976 e do Terrorismo de Estado como um plano sistemático para destruir as organizações populares e disciplinar a sociedade, criando as condições para a implementação do modelo econômico neoliberal. A compreensão do uso da Causa das Malvinas pela ditadura de 1976-1983 para a construção de consensos sociais, e das consequências da guerra sobre o destino do regime ditatorial e da democratização (ARGENTINA, 2012, p. 6-7, tradução nossa).

Ambas as formulações permitem destacar o lugar da história recente nos NAP e, ao mesmo tempo, permitem perceber alguns detalhes: enquanto em 2006 se falava em “ditadura militar”, em 2012 a indicação é “ditadura cívico-militar”. Da mesma forma, há diferenças nas formulações dos NAP de 2006 e 2012 no que diz respeito à ligação entre a repressão ditatorial e a imposição de um modelo econômico.

Quanto ao primeiro dos detalhes, ou seja, a forma de nomear o regime 1976-1983 deve-se notar que a noção de “ditadura cívico-militar” foi instalada nos discursos políticos oficiais (dos governos kirchneristas) e no vocabulário das organizações de Direitos Humanos no final dos anos 2000 (MONTERO, 2016, p. 55). Trata-se de uma

[...] leitura inédita sobre a natureza do regime militar, sobre a composição dos atores que dele participaram e sobre o papel da sociedade civil - em particular, de setores do poder como a Igreja, a justiça, os empresários, os partidos políticos, os sindicatos, mas também profissionais, jornalistas, intelectuais e entidades ou instituições públicas - na constituição e consolidação do projeto autoritário iniciado em 24 de março de 1976 (MONTERO, 2016, p. 55, tradução nossa).

Embora seja uma noção amplamente aceita, alguns acadêmicos têm proposto uma discussão em torno dela - por exemplo, Marina Franco (2016). Segundo esta autora, a evolução total do sistema, as suas linhas principais e os seus traços marcantes indicam que nestes aspectos continuam a corresponder a um predomínio das Forças Armadas. Por isso, e “mesmo quando o termo ditadura militar é pobre, decepcionante e igualmente insuficiente para dar conta da complexidade do ocorrido” (FRANCO, 2016, p. 89, tradução nossa), é preferível a outros que, buscando dar conta da participação e da cumplicidade, acabam borrando o traço militar que estava definindo o regime.

Em contrapartida, e antes que essas discussões surgissem na historiografia acadêmica, as regulamentações escolares adotaram a noção “cívico-militar” ao se consolidar como parte da opinião pública, nas intervenções das organizações de Direitos Humanos em discursos oficiais.

No que se refere ao segundo detalhe, cabe destacar que se trata de uma questão relacionada à noção de ditadura cívico-militar, pois esta categoria permitiu acentuar o vínculo entre a repressão ditatorial e a imposição de um modelo econômico. E mesmo que essa relação tenha sido apontada há muito tempo - por exemplo, por Walsh (1977) e por Duhalde no exílio em 1983 (DUHALDE, 1999), ela passou a ser usada repetidamente em discursos de organizações de Direitos Humanos, bem como parte da imprensa e suas investigações derivam, sobretudo, dos anos dos governos Kirchner (MONTERO, 2016). Em contraste, vários artigos acadêmicos discutiram fortemente essa ligação como causal - por exemplo, Vezzetti (2002) -, enquanto outros propõem pensar sobre a distinção entre projeto, processo e resultados (FRANCO, 2016).

Ao explorar as normas escolares, a correlação entre a repressão e a implantação de um modelo econômico neoliberal está mudando. Nas versões de 2006 e 2011, é indicado trabalhar com “a última ditadura e sua relação com a Guerra Fria e a aplicação de um modelo econômico e social neoliberal” (ARGENTINA, 2006a, p. 25, tradução nossa; ARGENTINA, 2011, p. 22, tradução nossa). E na versão aprovada em 2012, o vínculo surge de forma mais direta: “a compreensão do golpe civil-militar de 1976 e do Terrorismo de Estado como um plano sistemático para destruir as organizações populares e disciplinar a sociedade, criando as condições para a implementação do modelo econômico neoliberal (ARGENTINA, 2012, p. 7, tradução nossa, grifo nosso).

Em resumo, o lugar da história recente e, em particular, da última ditadura nos NAP é relevante com conteúdos claros e precisos. Mas também é evidente que foram as decisões políticas, o debate público e as lutas pela memória as quais impregnam os NAP. Tudo isso deixa à vista que o currículo não é um documento técnico, mas sobretudo político.

A arquitetura de dois jardins: um olhar comparativo e específico para terminar a visita

Brasil e Argentina escolheram caminhos diversos para organizar as formas de lembrar e esquecer de seu passado recente em seus documentos curriculares, bem como as diferentes estratégias de mobilização da justiça de transição e as políticas de memória estabelecidas pelos respectivos Estados constituíram jardins diversos, na forma e no conteúdo. Por fim, as historiografias nacionais estabeleceram parâmetros diversos para suas perguntas e, às vezes, para suas respostas.

No Brasil, após a aceitação geral da Lei da Anistia e a promulgação da constituição, que estabeleceram a direção e os limites da justiça de transição possível12, a Nova República visou organizar um Estado democrático. A década final do século XX viveu os acertos e desacertos daquele momento, em que se buscou organizar a legislação educacional sem conferir prioridade à memória sobre a ditadura, ainda sob trauma, buscando seu distanciamento. A década seguinte destinou-se à construção do aparato de diretrizes necessárias para a estruturação da escola que a LDB apontou, inclusive relacionadas às minorias étnico-raciais contempladas em legislação inovadora.

Finalmente, com a publicação da BNCC, após mais um espasmo da república brasileira, vemos que a ditadura civil-militar é formulada como objeto de conhecimento, competências e habilidades em um instrumento tímido e desequilibrado em direção a uma possível justiça de transição. Em suas poucas e limitadas linhas, tenta apontar para o caminho da história e da memória, da disrupção autoritária e da resistência, da acusação e da reparação. Busca conferir justiça a um processo do qual parte significativa do país não deseja lembrar. E não exige sua presença no Ensino Médio, quando seria especialmente relevante abordar a história recente.

A assunção do debate social e acadêmico sobre a denominação da ditadura militar ou civil-militar, carregada para dentro da BNCC, evoca dissensões no campo historiográfico, em momento em que a democracia brasileira se fragiliza novamente, com o negacionismo em relação a este tema. Nos parece que temos a aprender, admirando o jardim do vizinho, em sua luta para enfrentar a verdade sobre o seu passado doloroso.

Na Argentina, houve a manutenção de lutas pela memória, verdade e justiça iniciadas durante a própria ditadura e que foram transformadas em políticas de Estado a partir de 2003 (BALESTRA, 2016), evidenciando outras políticas de transição democrática. Essa continuidade foi reafirmada e aprofundada, entre outras estratégias, no currículo escolar nos NAP, (e não foram modificadas ainda) e também nos aportes da historiografia e das ciências sociais. Mas foram, sobretudo, as lutas pela memória dos organismos de Direitos Humanos que alcançaram manter este tema na agenda educativa e que conseguiram que algumas categorias que são mais resultados de lutas memoriais e políticas do que consensos historiográficos permaneçam nos NAP (GONZALEZ, 2019).

Breves considerações finais

Neste artigo, visamos descortinar a organização curricular brasileira e argentina, no que se refere ao conteúdo curricular “ditadura militar,” um tema da história recente dos dois países, em busca de compreender como ele é abordado, porque é abordado dessa maneira, e a que memórias e propósitos sociais atende com tal abordagem.

A título de conclusão, podemos incluir a abordagem curricular deste tema sensível entre as estratégias possíveis, a partir de políticas públicas, visando uma justiça de transição que contribua para que países remanescentes de regimes autoritários institucionalizem a democracia. Argentina e Brasil buscaram caminhos diversos para suas transições democráticas, pois são países com histórias diversas. Com algumas encruzilhadas e aproximações em seus jardins. Entre as diferenças estão as escolhas relativas às formas de implementação de suas políticas de memória, justiça e verdade em diferentes instâncias, inclusive a curricular, além da revisão do aparato legal remanescente, as Comissões da Verdade e debates acadêmicos relevantes. Ou seja, a elaboração de sua memória e de sua história, processos de que os documentos curriculares fazem parte, ocorre de forma diferente, marcada por sua história e formas peculiares de enfrentar o passado.

Os percursos dos dois documentos curriculares permitem afirmar que eles são, especialmente no que se refere aos conteúdos curriculares mais significativos, entre os quais os relacionados à história recente, movidos pelo interesse político na afirmação de determinados conhecimentos, valores e memórias no trânsito intergeracional.

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1Este artigo foi financiado pelos projetos “Narrativas nos livros didáticos de História: tradição e rupturas” (Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - PQ/CNPQ) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e “Usos do passado: história pública, didática e formação do professor” (Universal - CNPQ - FAPERJ).

2 Jacomeli (2017) sintetiza a ideia que existem continuidades e descontinuidades entre os diferentes governos após o fim da ditadura, sendo sua maior diferença a atuação mais ou menos democrática e voltada para o social, o que resulta em políticas educacionais qualitativa e quantitativamente diferenciadas.

3Para acessar as metas e mais informações sobre o PNE, ver Brasil (2021).

4 Celso Pereira de Sá (2007), em diálogo com autores da história e da sociologia, propõe a existência de uma memória histórica documental, na qual se inscrevem os livros didáticos e entendemos que, também, as proposições curriculares. Helenice Rocha (2017) analisa as mudanças e permanências no tratamento do tema em livros didáticos no período citado.

5A BNCC sugere uma abordagem cultural para sua contextualização, colocando-a sob interrogação, o que parece se vincular aos debates da historiografia sobre o tema. Estudiosos da historiografia da ditadura se dividem acerca dos fatores explicativos acerca do golpe e da ditadura. Uma parte defende a luta de classes como contexto predominante para o golpe e a irrupção da ditadura, enquanto outros defendem o contexto mundial de mudança cultural. Na historiografia escolar antes da BNCC habitualmente havia tópicos sobre a revolução cultural dos anos 1960 nos livros escolares, mas não necessariamente como fator contextual significativo para a ditadura militar. Para conhecer o debate, ver Fico (2017).

6Atualmente há consenso que o golpe teve natureza civil, política e militar. Quanto à ditadura, há divergências sobre a agência principal. Que houve participação (ativa ou passiva) da sociedade (ou de segmentos mais ou menos expressivos), em especial de empresários com determinados interesses, não parece haver dúvida entre os participantes do debate. A questão historiográfica que divide os pesquisadores parece estar na pertinência de denominação civil-militar, que retira dos agentes principais, seus condutores, a adjetivação de ditadores e a compartilha com outros sujeitos. Para conhecer um estudo e argumentos sobre essa contenda, ver Fico (2017).

7O documento justifica tal mudança pela ideia de aprofundamento das aprendizagens (os conhecimentos e competências já trabalhados), porém é atestado que houve a reorientação na organização do documento, já no novo governo.

8No sistema anterior, o carácter obrigatório limitava-se a sete anos do ensino básico (enquanto o ensino secundário de cinco anos não era obrigatório).

9Este nível se propôs a suplantar as escolas secundárias especializadas tradicionais (bacharelado, escola comercial e escola técnica). As modalidades de educação Polimodal são cinco: Humanidades e ciências sociais; Comunicação, arte e design; Produção de bens e serviços; Ciências Naturais; e Economia e gestão das organizações.

10Estabelecia o aumento do investimento em educação, ciência e tecnologia por parte do Governo Nacional, dos governos provinciais e da Cidade Autônoma de Buenos Aires até atingir uma participação de 6% no Produto Interno Bruto em 2010.

11Para uma versão completa das “situações de ensino”, ver Argentina (2006a).

12Paulo Abrão e Marcelo Torelly (2011) apresentam argumento que a justiça de transição no Brasil foi conduzida pelo processo da anistia.

Recebido: 04 de Outubro de 2020; Aceito: 09 de Janeiro de 2021

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