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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.77643 

DOSSIÊ- Implementação de políticas públicas para o combate às desigualdades educacionais

Questão de mérito: o acesso às vagas remanescentes em uma escola pública municipal Gonçalense 1

Tereza Cristina de Almeida Guimarães* 
http://orcid.org/0000-0002-0161-8190

Elisangela da Silva Bernado* 
http://orcid.org/0000-0003-3994-0254

* Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: tecrisalgui@hotmail.com - E-mail: efelisberto@yahoo.com.br


RESUMO

Este estudo objetiva apresentar os resultados de uma pesquisa realizada em uma escola pública do município de São Gonçalo no Estado do Rio de Janeiro no ano de 2019, evidenciando os pressupostos da ação do gestor/burocrata diante das vagas remanescentes da escola e a influência de sua discricionariedade nos resultados da política educacional. Em uma perspectiva interpretativista de estudos, analisamos o ato discricionário do gestor/burocrata como fator de confrontação ou consolidação das desigualdades educacionais, por meio dos dados resultantes da entrevista semiestruturada com o gestor da escola, refletindo sobre a interação do burocrata com o cidadão que busca as benesses da política e a garantia de direitos. Decorrentes de tal interação, observamos formas distintas de discricionariedade, enraizadas nas microculturas da prática burocrática, expondo processos includentes e excludentes, a partir da interferência de fatores endógenos e exógenos resultantes das relações do burocrata com a comunidade.

Palavras-chave: Burocracia; Política educacional; Gestor/burocrata; Discricionariedade; Desigualdade

ABSTRACT

This study aims to present the results of a study carried out in a public school in the city of São Gonçalo in the State of Rio de Janeiro in 2019, demonstrating the assumptions underlying the action of the school principal/bureaucrat in relation to vacant places at the school and the influence of his administrative discretion on the results of education policy. From an interpretativist research perspective, we analyzed the discretionary act of the school principal/bureaucrat as a factor in addressing or consolidating educational inequalities, based on data resulting from a semi-structured interview with the school principal, reflecting on the interaction of that bureaucrat with citizens who seek the benefits of education policies and the guarantee of rights. As a result of such interaction, we found distinct forms of discretion, rooted in the microcultures of bureaucratic practice, revealing processes that both include and exclude, based on the interference of endogenous and exogenous factors emanating from the bureaucrat's relations with the community.

Keywords: Bureaucracy; Education policy; School principal/bureaucrat; Discretion; Inequality

Introdução

A discussão da ação do gestor como sujeito de contextos contraditórios e conflituosos de decisão que, na escola, além de outras funções, promove a implementação das políticas públicas, é hoje recorrente entre os pesquisadores que debatem a gestão escolar no Brasil. No âmbito dessas discussões, este trabalho foi desenvolvido, com o objetivo de apresentar os resultados de uma pesquisa realizada em uma escola pública do município de São Gonçalo no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2019, evidenciando os pressupostos da ação do gestor/burocrata diante das vagas remanescentes da escola e a influência de sua discricionariedade nos resultados da política educacional.

A compreensão da burocracia nos sistemas de gestão escolar, estabelecida por grupo de administradores com autoridade para tomada de decisão, é importante para determinar seu significado na escola, como é implementada, e suas implicações, pois ela é baseada na padronização, enquanto a escola é fundamentalmente estruturada nas relações humanas e sociais. A estruturação desse paralelismo é materializada no cotidiano escolar, no qual o gestor atua como autoridade legalmente instituída para fomentar a interseção dubitável entre a burocracia racional/legal e as interações de seus sujeitos. No horizonte dessa gestão interveniente, perspectivamos a escola como foco de pesquisa, e tendo como dimensão sua análise enquanto organização burocrática e social (LIMA, 2001) compreendemos as políticas públicas como essenciais à composição de cenários mais ou menos satisfatórios para o desenvolvimento dos processos educativos.

A escola, na abordagem weberiana (WEBER, 2004), é uma organização formal de natureza hierárquica, apresentando uma pirâmide bem definida de controle, onde, em teoria, o gestor está no ápice e os demais atores estão a ela submetidos. Essas posições, dentro das estruturas, são ocupadas por membros que, conscientemente, relacionam-se para alcançar um conjunto de objetivos. Nesse modelo burocrático, as escolas são vistas como tendo autoridade hierárquica, com cadeias de comando entre os diferentes níveis e a tomada de decisão é considerada racional, baseada em uma avaliação criteriosa de alternativas e na escolha indicada como a mais adequada pelos gestores escolares, reconhecidos, então, em uma legítima posição de poder.

O fato de as escolas serem caracterizadas como instituições burocráticas se deve, em grande medida, à estrutura organizacional de regras e regulamentos que objetivam definir o trânsito de seus sujeitos em seus espaços. Dessarte, o comportamento organizacional é o norte das escolas, cujas características se constroem por meio da imposição de regras. Do ponto de vista formal, em uma estrutura escolar burocrática racional, a autoridade está geralmente concentrada na alta gestão, e as informações fluem de cima para baixo, incentivando uma cultura escolar focada na autoridade, sendo os processos operacionais rigidamente supervisionados.

Outro fator relacionado à permanência da burocracia racional nas escolas é a necessidade de garantir a ordem, a racionalidade, a prestação de contas e a estabilidade que proporcionam ao público a ideia de organização e previsibilidade, além do cumprimento de regras e diretrizes no âmbito de uma burocracia racional legal. Entretanto, embora as escolas compartilhem uma série de semelhanças em suas estruturas e papéis, elas têm suas identidades, seus conflitos, seus imprevistos, suas contradições, seu público, seus recursos, sua cultura, conferindo a cada uma sua tessitura insigne.

Isso porque a escola não é uma construção estática e nem linear e pode ser examinada de diferentes aspectos. Lima (2008, p. 82) considera que “a escola revela-se um objecto de estudo complexo e polifacetado, construído sob variadas influências teóricas e tradições disciplinares”. Canário (2005, p. 127), por sua vez, aponta a complexidade da análise da escola como organização, ao afirmar que “[...] a escola enquanto objecto de estudo não corresponde a ‘uma escolha’, nem a uma ‘descoberta’, nem sequer a uma ‘emergência’, mas sim a um processo de construção realizado pelo investigador”. Portanto, a formalização engessada do ideal burocrático de escola apresenta um grau coercitivo, impossibilitando a compreensão da instituição escolar em sua complexa singularidade. Ademais, ainda que aspectos da burocracia racional sejam necessários, em certa medida, para organizar a escola de massa, sua inflexibilidade provoca a incapacidade de legitimar percepções diversas dos seus sujeitos que, assim como ela, são plurais, mutáveis e incompletos.

Nesse contexto, a figura do burocrata, representada pelo gestor escolar, é considerada como elemento central nas análises da escola em sua complexidade cotidiana e nos efeitos de seu funcionamento. Conforme Bernado (2020, p. 80-81), “frente às variadas perspectivas políticas e pedagógicas das instituições públicas de ensino, a gestão se impõe como fundamental no campo das exigências sociais e pedagógicas”. Portanto, este estudo focaliza três importantes elementos para a compreensão da escola enquanto intrincada organização burocrática, social e pluralizada, que pode atenuar ou acentuar as desigualdades educacionais: o gestor e seus atos discricionários, a política e a burocracia.

Optamos por uma perspectiva interpretativista de estudo, mediante a revisão da literatura. Pinto e Santos (2008) acreditam que no paradigma interpretativista a realidade social é um produto das interações subjetivas e intersubjetivas dos sujeitos, portanto, a realidade é simbólica, por esses sujeitos construída e ressignificada. Nessa abordagem, a pesquisa não busca uma verdade absoluta e nem generalizações, mas percepções particulares sobre determinado fenômeno. A partir de então, concentramo-nos em elementos-chave evidenciados como categorias de análise e exploramos os dados, obtidos no campo, indicando, o desenho desta pesquisa em três seções, além das considerações finais e desta introdução. Desse modo, em um primeiro momento, discutimos burocracia e discricionariedade em sua complexidade do jogo da política. Prosseguimos o texto analisando a ação do gestor, que por meio do ato discricionário, intencionalmente ou não, influencia o estabelecimento ou a minimização das desigualdades na escola. Finalizamos a discussão trazendo as análises dos dados obtidos sobre a discricionariedade do gestor em relação às vagas remanescentes da escola. Nossa pesquisa se deu em uma escola pública municipal de São Gonçalo, situada na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro.

Nosso referencial teórico percorre a política pública enquanto espaço de disputa e sinaliza o ato discricionário como elemento fundamental para a compreensão dos resultados das políticas públicas implementadas e sua relação com o estabelecimento das desigualdades educacionais. No bojo desse debate, o gestor/burocrata, ao transitar pela burocracia, torna-se objeto de análise para a compreensão dos julgamentos e decisões que alteram os resultados das políticas. Para Oliveira (2017, p. 6),

os agentes implementadores parecem orientar suas ações discricionárias com base em um senso prático-moral que distingue alunos “merecedores” dos “não merecedores”, atendendo às suas necessidades percebidas de forma diferenciada.

Essas categorizações informam os cursos de ação escolhidos pelos burocratas, podendo desencadear procedimentos de exclusão no contexto escolar. Goodsell (1981, p. 763, tradução nossa) afirma que "clientes que são percebidos por burocratas como menos dignos [...] são discriminados na entrega da política”. Rosistolato et al. (2019, p. 6) acreditam que

as decisões tomadas por esses burocratas impactam diretamente no acesso dos cidadãos aos bens públicos, podendo favorecer ou desmerecer determinados cidadãos no que concerne o usufruto de determinada política pública.

Os autores consideram a discricionariedade como uma prática do fazer dos gestores enquanto burocratas dentro de uma estrutura que, apesar de ser racional-legal, assume “práticas e lógicas patrimonialistas” (ROSISTOLATO et al., 2019, p. 17). Em nosso entendimento, tais práticas resultam na estratificação de pessoas e são um protótipo do nível abstrato que orienta as avaliações dos burocratas e seu agir em relação aos seus estudantes, podendo suscitar e/ou ratificar processos de injustiça social.

Política, burocracia e discricionariedade: conflitos e desigualdades

Com base nos estudos desenvolvidos por Weber (2004), alguns pesquisadores usaram a teoria burocrática como ferramenta analítica para examinar a estrutura organizacional. Até a década de 1960, esses estudos eram direcionados para avaliar características burocráticas das organizações, inclusive, das escolas. Tais estudos apontavam para uma abordagem unidimensional em relação às análises realizadas, pois se pautavam na ideia de que todas as características da burocracia indicadas por Weber (2004) poderiam ser encontradas nas organizações. Entretanto, essa abordagem foi bastante criticada, porquanto vários de seus aspectos burocráticos podem se sobrepor ou se apresentar em variadas escalas, conseguindo criar diferentes configurações da burocracia organizacional (HALL, 1978). A partir de então, abordagens dimensionais começaram a ser utilizadas, na tentativa de compreender as organizações burocráticas em sua complexidade.

Uma das alterações se relaciona ao fato de que a burocracia se intersecciona inevitavelmente com as instâncias política e humana. Sendo assim, atores políticos e agentes burocratas estabelecem uma relação na qual os primeiros representam os interesses e valores políticos e os segundos são subordinados, cuja preocupação deve ser a eficiência do trabalho burocrático, atravessada pelas incorrências do cotidiano. Nessa dicotomia, um aspecto que merece destaque é a separação evidente entre responsabilidades políticas e administrativas na formulação e na implementação das políticas públicas. Tal polaridade é tema contumaz de discussão e investigação, estabelecidas na contraposição entre a vertente burocrática weberiana (WEBER, 2004) de neutralidade competente e as ações decorrentes das imprevisibilidades do processo de implementação, que reivindicam a decisão do burocrata, ou seja, seu ato discricionário.

A discussão em torno da discricionariedade da qual dispõem os burocratas durante o processo de implementação das políticas públicas, dessa forma, não perdeu a relevância. Estudiosos continuam o debate sobre as razões pelas quais tais agentes usam sua discricionariedade de maneiras mais ou menos satisfatórias para os clientes e como sua ação afeta as metas públicas (THOMANN, 2015).

O conceito de discricionariedade muitas vezes se revela como um amplo termo no qual se abrigam diferentes aspectos da prática burocrática. Entretanto, na implementação de políticas públicas, esse conceito se relaciona à extensão da liberdade que os burocratas têm para escolher entre possíveis direcionamentos, ao atuar no processo de implementação das políticas (HUPE, 2013).

Nas teorias top-down, a discricionariedade pode ser compreendida como um problema de controle (HILL, 1993). Ou seja, o espaço para interpretação concedido aos burocratas torna cada vez mais provável que a política original seja incompatível com seu desenho final. Por consequência, a discricionariedade deve ser evitada, pois pode significar a não implementação da política, em consonância com o seu planejamento estratégico.

Inversamente, as teorias bottom-up entendem a discricionariedade como importante para ajudar os implementadores a adaptar uma determinada política a circunstâncias específicas e não previstas (LIPSKY, 1980). O fato é que esses agentes, em sua atuação na ponta do processo, precisam de liberdade para adequar o desenho da política às condições locais, aos recursos disponíveis, ao número de cidadãos, às incorrências, etc., que são os fatores exógenos que interferem no processo de implementação. A partir dessa perspectiva, os trabalhadores da linha de frente são vistos como formuladores de políticas de fato e a discricionariedade ajuda-os a preencher as lacunas entre a formulação e sua implementação (HILL, 1993). Muylaert (2019) nos auxilia na compreensão do papel desses burocratas, ao elucidar que

A partir da análise da atuação dos agentes implementadores e dos processos de implementação de uma determinada política, podem-se identificar elementos discricionários que fazem com que os resultados esperados sejam alcançados, parcialmente alcançados ou não alcançados (MUYALERT, 2019, p. 5).

Lipsky (1980) discute a discricionariedade na ação dos burocratas que, ao implementarem as políticas, interagem com os clientes. Ele a compreende como a liberdade disponível aos burocratas para determinarem o tipo, a quantidade, e a qualidade de sanções e recompensas durante a implementação.

Em relação a tal fato, há na literatura percepções antagônicas. No âmbito administrativo, a discricionariedade parece necessária e, em alguns casos, reivindicada por motivos utilitários. Handler (1986), por exemplo, argumenta que permitir a discricionariedade na implementação aumenta a flexibilidade e as possibilidades de uma organização responder a problemas específicos. O argumento é sobre a impossibilidade de as organizações anteciparem a gama de variáveis que pode surgir no momento da implementação, tornando a utilização da discricionariedade indispensável.

Entretanto, embora os defensores da discricionariedade tenham pontos importantes que corroboram sua defesa, os apoiadores de uma maior restrição ao ato discricionário também têm argumentos significativos para reivindicar o maior controle das burocracias. Scheuerman (1994), por exemplo, considera o grau de discricionariedade disponível aos agentes um meio antidemocrático de implementar políticas públicas. Para o autor, o controle político da discricionariedade burocrática é um problema central para as burocracias.

Parece-nos que, nesse cenário político/burocrático, o poder discricionário do burocrata é marcado pelo monopólio sobre a distribuição da oferta de bens e serviços públicos, o que suscita seu controle, uma vez que essa administração nem sempre corresponde aos desejos e necessidades dos cidadãos, podendo ser um fator desencadeador de processos de desigualdade. Uma questão que fomenta debates no âmbito da burocracia relaciona-se não somente à qualificação técnica do burocrata, mas a como garantir que esse profissional cumpra os interesses da organização. Entretanto, a ação desse agente da burocracia não é resultado de um espaço de linearidade e está condicionada às vicissitudes da rotina de seu trabalho. Não se trata de um comportamento meramente personalístico, mas decorre de uma série de fatores atrelados ao conflituoso contexto de seu dia a dia.

De certa maneira, esses conflitos também se devem às relações de poder e dominação no interior da organização, que desequilibram o encadeamento entre os interesses institucionais e aqueles de foro privado, que se constituem como fatores endógenos, induzindo e forjando ações e comportamentos para além da racionalidade burocrática.

Segundo Rothstein (2011), os burocratas ocupam uma posição estratégica para usar a autoridade política na distribuição dos recursos do estado por meio da implementação das políticas elaboradas, e assim contribuir para a minimização das desigualdades sociais. Isso significa que o desempenho do agente pode representar um papel fundamental na tentativa de equalizar as disparidades entre os cidadãos relativas ao acesso às benesses da política, promovendo contextos sociais um pouco mais igualitários.

Podemos afirmar que a burocracia molda o uso da autoridade política na distribuição de recursos na ponta da implementação, e quanto mais as burocracias se direcionarem para interesses privados, menores as possibilidades do enfrentamento das desigualdades. No debate apresentado por Rothstein (2011), os governos dependem da implementação das políticas para alcançar uma partilha mais equânime de insumos estatais.

E é em meio a essa complexidade que o diretor/burocrata da escola é convidado a participar da implementação das políticas educacionais, como importante articulador entre as burocracias. A implementação de políticas, no entanto, não é uma tarefa simples e muitos burocratas têm grande poder discricionário sobre as decisões, inclusive em áreas de políticas que carecem de consenso. Dessa forma, eles são atores cujas ações precisam ser investigadas ao considerarmos como os sistemas políticos operam. De acordo com Oliveira (2019, p. 4), “para compreender a implementação e os efeitos de uma política, torna-se necessário considerar este espaço de discricionariedade dos implementadores nos diferentes níveis em que ocorre a implementação”. A discussão acerca da ação do burocrata em seu espaço de discricionariedade compõe a próxima seção.

Os burocratas em ação: a reconfiguração das políticas públicas

Destacada a importância dos burocratas para a análise da pública, é necessário compreender sua materialização no cumprimento de etapas de um processo que percorre o caminho da formulação de suas estratégias, quando se dão as negociações com os atores interessados em tal política, além de incluir a elaboração de metas e prioridades e opções, custos e benefícios, externalidades etc.; até sua implementação, momento no qual os burocratas estabelecem sua atuação, desempenhando o papel de intérpretes, reconfigurando a política, de acordo com o seu entendimento das regras e de sua relevância. A burocracia descrita na literatura nos diz sobre três tipos de burocratas: o burocrata de alto escalão2, o burocrata de médio escalão e o burocrata de nível de rua.

Os burocratas são agentes do serviço público, efetivos ou não, encontrados no alto, no médio escalão, e no nível mais baixo da hierarquia burocrática. Na ação da política pública, há um burocrata que desempenha um importantíssimo papel para a sua entrega diretamente ao seu destinatário: trata-se do Burocrata de Nível de Rua (BNR). Lipsky (1980) define esse profissional como o agente da ponta do serviço. Ele é o burocrata que, na rotina de seu trabalho, estabelece critérios nas brechas deixadas pelas diretrizes das políticas, agindo de acordo com o que considera mais adequado, mediante os recursos dos quais dispõe. Na perspectiva de Lotta (2010), os BNRs ressignificam a política ao atuá-la, por meio da inserção de seus valores e percepções. Essa intervenção na política se traduz na prática, na rotina e na execução ou não das estratégias traçadas.

Entretanto, para que os BNRs atuem na implementação, ocorre sua interação com o burocrata imediatamente superior na cadeia de comando. Trata-se do burocrata de médio escalão (BME), que se situa na instância mediatária entre os formuladores da política e seus implementadores. Lotta, Pires e Oliveira (2014, p. 465) denominam esses profissionais “[...] atores que desempenham função de gestão e direção intermediária (como gerentes, diretores, coordenadores ou supervisores) em burocracias públicas ou privadas”.

Nesse contexto, os BMEs têm a função de, a partir do planejamento estratégico elaborado, entregar aos BNRs um direcionamento das possíveis formas de execução da política. Seu papel de “administradores” das políticas faz com que esses agentes públicos tenham fundamental importância no processo de policymarking para circulação das estratégias formuladas (CAVALCANTE; LOTTA, 2015). Além disso, os BMEs efetivam as políticas públicas tanto em seus aspectos técnicos quanto gerenciais, atuando como gestores das políticas para sua entrega ao destinatário (OLIVEIRA, 2009).

Teoricamente, a burocracia de médio escalão não atua em elevada instância. Sua performance se dá no estreitamento das demandas dos destinatários da política com a burocracia de alto escalão. No entanto, essa diferenciação não possui uma fronteira rigorosa e o BME pode transitar pelos cenários, ora em contato com o alto escalão e ora se aproximando do usuário da política. Destarte, os BMEs circulam pelas extremidades da hierarquia burocrática e permanecem na linha intermediária, apropriando-se de uma ou outra, quando a implementação permite ou é necessário. Ao se aproximar do beneficiário da política, o BME atua como BNR e a sua caracterização dentro da burocracia associa-se à ação deste agente.

A prestação do serviço diretamente ao cidadão e as tarefas sob sua responsabilidade fazem com que as relações estabelecidas na escola e vivenciadas pelo gestor sejam complexas. Soma-se a isso o fato de que as políticas nem sempre são inteligíveis ou chegam à escola envoltas em suporte logístico e estrutural. Muitas vezes, a política precisa ser implementada com recursos escassos, esclarecimentos insatisfatórios, estratégias insuficientes, estando ou não o burocrata preparado para a sua execução. A despeito disso, os agentes escolares estão atrelados à burocracia, seja ela a nível de rua ou de médio escalão, e enfrentam conflitos decorrentes da própria discricionariedade do burocrata, do comportamento dos atores e da interação com os receptores das políticas, seus valores, crenças e ideologias (LIPSKY, 1980).

Esses agentes podem contribuir para a reprodução de desigualdades existentes no acesso à escola. Isso acontece em um sentido material, porque, rotineiramente, eles estão envolvidos em processos de inclusão e exclusão alocativas; porém também ocorre simbolicamente, ao estabelecerem o lugar social do indivíduo (PIRES, 2019). Além disso, em um contexto de escassez, tais burocratas agem tomando decisões sobre a elegibilidade dos cidadãos, decidindo quem é digno de receber os serviços públicos. Na perspectiva de Maynard-Moody e Musheno (2003), os usuários das políticas são classificados em identidades sociais e, a partir delas, os BNRs decidem como agir mediante às demandas apresentadas. Desse modo, suas decisões discricionárias repousam em julgamentos sobre o merecimento de cada indivíduo. De acordo com os autores, a medida desse julgamento, advindo dos valores e ideologia dos burocratas, dá-se por comparação que esses realizam dos usuários das políticas a partir da percepção que têm de si mesmos ou daqueles que lhes são próximos. Esse julgamento determinará o grau de envolvimento do burocrata com o cidadão e o acolhimento ou não de suas necessidades.

Parece-nos que nesse contexto de julgamentos e decisões, fatores situacionais influenciam as ações dos BNRs, pois ao analisarem características pessoais, comportamento, origem dos usuários e a presença ou ausência de espectadores, eles agem muito mais em função de seus valores e percepções do que em relação a leis e normas.

Hupe e Buffat (2014) afirmam que o comportamento e as decisões tomadas pelos BNRs podem ser associados a diferentes características dos destinatários das políticas, como origem racial/étnica e gênero. Ou seja, as suposições culturalmente codificadas sobre status social baseadas em raça, sexo e idade permeiam o trabalho dos agentes de nível rua, conduzindo a percepção de que não é viável separar as disposições atitudinais dos BNRs e suas interações com os usuários. Por meio dessas disposições, surgem sínteses que categorizam os cidadãos, redefinindo sua natureza e seu lugar de atendimento em relação ao acesso às disposições da políticas. (LIPSKY, 1980). Nessa perspectiva, os BNRs podem reproduzir desigualdades, agindo de modos distintos acerca de diferentes cidadãos, classificando-os, elegendo alguns, desconhecendo outros, e, assim, contribuir para reforçar vulnerabilidades sociais mais amplas.

Percebemos o poder da burocracia na implementação das políticas e o compreendemos no âmbito da dominação e da exclusão, uma vez que os implementadores não são apolíticos, mas sujeitos ativos nesse processo de interação com o usuário e entrega do serviço público, exercendo relações assimétricas de poder marcadas pela discricionariedade em contextos de exiguidades, que traduzem ainda sua visão de mundo, seus valores e cultura. A abordagem de Maynard-Moody e Musheno (2003), uma vez que entende o burocrata como um agente social que pode lançar mão de dispositivos morais para responder às demandas do cidadão, entende os limites da padronização dos procedimentos, sendo que que cada cidadão, com suas potências e dificuldades, requer um tratamento específico.

A entrega da política educacional como fator de acirramento das desigualdades em uma escola pública de São Gonçalo

A rede pública municipal de ensino de São Gonçalo possui 111 escolas distribuídas em cinco distritos e formata seu atendimento a partir da Educação Infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental. A escola desta pesquisa está situada no 1º distrito, junto com mais 38 escolas, na chamada zona sul de São Gonçalo.

Observarmos também que a escola possuía o 1º Segmento do Ensino Fundamental composto por sete turmas, no ano de 2019. Por atender da Educação Infantil ao 9º ano do Ensino Fundamental, pois, a maioria das outras escolas ao redor atendem apenas ao 1º Segmento, e por ser uma escola de fácil acesso, com boa disponibilidade de ônibus que oferecem uma interligação entre diversos bairros, é uma escola muito procurada pelas comunidades próximas e até por localidades vizinhas. No município, essa unidade escolar é considerada uma escola de passagem. Ademais, a procura por vagas em toda a Rede Pública Municipal de Ensino gonçalense é grande, uma vez que para uma população de 1.091.737 habitantes (IBGE, 2020), há apenas 111 unidades de ensino. Desta maneira se revela sua composição, como nos mostra a Tabela 1, em um comparativo com o número de alunos indicados na Portaria de Matrículas/2018:

TABELA 1 1º SEGMENTO DO ENSINO FUNDAMENTAL- COMPARATIVO 

1º Segmento do Ensino Fundamental/Comparativo
Ano de Escolaridade Número de alunos determinado pela Portaria de Matrícula Número de alunos matriculados na escola
1º ano 20 16
1º ano 20 16
2º ano 25 28
3º ano 30 30
4º ano 30 28
5º ano 35 17
5º ano 35 18

FONTE: Elaboração própria, a partir das informações de documentos da escola.

Constatamos que as turmas estavam compostas por um número de alunos que não ultrapassava o estabelecido pela Portaria de Matrículas do município, publicada no Diário Oficial (DO). No entanto, esse documento (2018), no 1º parágrafo do Artigo 15, estabelecia o seguinte:

Os quantitativos por turma, estabelecidos acima, poderão, a critério da Direção da Unidade de Ensino, ser acrescidos de até 20% (vinte por cento), exceto as turmas da Educação Infantil por obedecerem à legislação específica do Conselho Municipal de Educação (SÃO GONÇALO, 2018, grifos nossos).

Detectamos no dispositivo legal um espaço significativo para o ato discricionário do gestor escolar. Ao ficar sob sua responsabilidade dispor de até 20% de acréscimo de alunos por turma, é ele quem decide valer-se ou não de tal percentual e ainda fica em suas mãos a incumbência por estabelecer quem serão os beneficiários da política. Entretanto, podemos observar na tabela 1 que o gestor optou por não utilizar o percentual estabelecido e algumas turmas têm um número de alunos abaixo do indicado pela lei. Em relação a tal fato, ele argumenta:

Bem, eu prefiro que as turmas fiquem com um número menor de alunos para o professor poder fazer um trabalho pedagógico de qualidade. Assim, ele pode dar uma atenção mais individualizada, dar mais atenção mesmo, trabalhar melhor. Quando a turma está lotada, prejudica muito o trabalho do professor e o rendimento da turma não é a mesma coisa, entende? Desse jeito, os professores trabalham mais satisfeitos, trabalham melhor.

É importante considerar que o gestor da escola estudada é licenciado em Pedagogia e atua na Rede Municipal de Ensino há vinte e sete anos. Há seis anos, assumiu a direção da Unidade Escolar por meio de indicação política. Entretanto, o gestor já atuava na escola há onze anos como professor e Orientador Pedagógico e foi diretor de outras duas unidades escolares: uma por 2 anos e outra por 8 anos.

Ao analisarmos seu discurso e sua opção pelo não atendimento ao aluno que, aguarda uma vaga, percebemos o direito negado. Não pretendemos afirmar que, uma vez não podendo desfrutar da vaga na escola procurada, o estudante não terá oportunidade de se inserir em outra escola pública, entretanto compreendemos que a ação do gestor/burocrata ultrapassa os limites da discricionariedade e nega às crianças vagas das quais a escola dispõe. Esse é, a nosso ver, um fator de acirramento das desigualdades, pois os burocratas, na interação com os cidadãos e em contextos de contingências, podem agir não de forma a tratar todos igual e indistintamente, mas responder aos cidadãos segundo os valores que lhes são atribuídos, como merecedores ou indignos das políticas (MAYNARDY-MOODY; MUSHENO, 2003).

Dubois (2013) afirma que a interpretação, a adaptação e o zelo burocrático são resultantes da disputa entre as lógicas de uma situação (distanciamento versus empatia, tensão versus cooperação, etc.) e a conformação às normas da instituição. Esse aspecto dual é observado por Lipsky (1980), ao analisar a relação entre gestores/burocratas e os cidadãos dependentes dessas lógicas, das quais o gestor da escola pesquisada se utiliza para definir os contornos finais e estabelecer a política.

Dessarte, a burocracia pode representar papéis contraditórios na implementação da política. A decisão do gestor reflete tal contradição, pois, ao optar por proporcionar, em tese, melhores condições de trabalho aos professores, com a redução de alunos na sala de aula, nega a possibilidade de inserção de crianças e adolescentes na escola. Uma das consequências da tensão dicotômica entre a escolha da entrega ou não do direito básico à educação pode reforçar a implicação de uma afirmação negativa, reproduzindo um ciclo de estigma e desqualificação social dos sujeitos que, no caso da escola, são os estudantes e seus familiares, que procuram os equipamentos estatais em busca de participar das políticas públicas educacionais formatadas para o combate às desigualdades.

O gestor parece estabelecer prioridades que, apesar de serem um elemento natural e até mesmo necessário na definição do processo político, quando atravessadas por concepções subjetivas de valores e julgamentos, podem se tornar um dispositivo ratificador de processos excludentes no contexto escolar. A partir dessa perspectiva, a definição de prioridades não é simplesmente uma questão da hierarquização burocrática imposta em perspectiva top down, mas é um complexo processo envolvendo a categorização dos sujeitos, que almejam uma posição na interface de contatos e relações do diretor escolar que, ao atuar na burocracia de nível de rua, define os posicionamentos, os benefícios e os beneficiados da política.

Outro elemento importante em torno da decisão sobre quem deve ser beneficiado com essa porcentagem, relaciona-se à prevalência de critérios e valores muito subjetivos expressos pela ação do gestor (BME). Quanto a isso, o gestor nos informa que “há uma lista de espera por vagas, mas damos preferência para quem já tem filhos na escola e para os responsáveis que comprovam que trabalham fora”. Nesse contexto, verificamos que, subjacente à decisão do gestor, está sua concepção de escola, pois ao priorizar o atendimento às famílias inseridas no mercado de trabalho, demonstra sua visão assistencialista de educação, na determinação do entendimento de que as famílias que ainda não obtiveram a consolidação de seu direito à tal inserção não merecem ser classificadas na mesma escala de prioridades. Ou seja, há uma sobreposição de opressões, pois à família em situação de desemprego e vivenciando as privações decorrentes é negado o acesso à escola, reforçando significativamente as demarcações de exclusão de determinados sujeitos.

Lipsky (1980) discute acerca da dificuldade de avaliar a equidade de tratamento dos cidadãos pelos implementadores de linha de frente e cita dois principais fatores como causa dessa dificuldade. O primeiro fator se relaciona à ambiguidade das metas, característica imanente da burocracia de nível de rua, afetando tanto a performance individual quanto o planejamento estratégico; o segundo tem a ver com as preferências por determinados sujeitos ou grupos sociais, representando um desvio de comportamento, que evidencia a meritocracia. Nesse sentido, Oliveira (2017, p. 6) destaca que os agentes implementadores “parecem orientar suas ações discricionárias com base em um senso prático-moral que distingue alunos ‘merecedores’ dos ‘não merecedores’, atendendo às suas necessidades percebidas de forma diferenciada”.

Diante disso, percebemos regras imprecisas para a tomada de decisão a respeito dos 20% a serem utilizados. O diretor assume a face de alguém preocupado com a situação apresentada pelos responsáveis ao procurarem por uma vaga na escola. No entanto, sua decisão é baseada pelo “calor do momento”, sem o estabelecimento de regras. Ele nos revela:

Às vezes, os pais aparecem e contam histórias muitos difíceis. Alguns se mudaram por causa do tráfico de droga e precisam de uma vaga. Algumas mães estão fugindo de maridos violentos. Outras vezes, é a própria criança que estava se envolvendo com o tráfico e a família teve que se mudar. E aí, a gente coloca o lado humano e pensa nisso tudo para dar a vaga. São situações familiares tão complicadas! É até difícil tomar uma decisão, porque não temos vaga para todo mundo, entende?

Nesse momento, por seu envolvimento direto com os responsáveis destituídos do benefício da política, a atuação do diretor escolar acontece na instância da burocracia de nível de rua. Deste modo, a política pública é entregue à comunidade: ao se estabelecer certa proximidade entre o burocrata e o usuário da política, na ponta do processo. Trata-se do ato discricionário (LOTTA, 2010), pontuado por julgamentos de valor e critérios estabelecidos pelo burocrata, agindo nas brechas deixadas pelas diretrizes das políticas, ressaltando ou mitigando contextos de desigualdade, pois o benefício da política não alcança a todos.

Outro fator relevante no ato discricionário do gestor em relação às vagas remanescentes na escola destaca-se na seguinte fala:

Nós não aceitamos de volta alunos indisciplinados que saíram da escola. Eles já tiveram sua oportunidade aqui e não aproveitaram, né? E é também em respeito ao professor. E também tem muita criança querendo estudar, quer dizer, estudar mesmo e precisando.

A contradição é uma marca significativa no discurso do gestor. Ele se preocupa com as crianças que “querem e precisam estudar”, mas, ao mesmo tempo, não disponibiliza as vagas remanescentes à comunidade. Mais um destaque é a categorização dos sujeitos merecedores de seu respeito, em nome dos quais não aceita os alunos “indisciplinados” de volta à escola. Tal ação impacta sobre as desigualdades de uma forma simbólica, uma vez que seu julgamento gera categorizações. Maynard-Moody e Musheno (2003) discutem que para os cidadãos considerados dignos das políticas, os burocratas estão determinados a investir seu tempo e a desconhecer regras formais com a intenção de atender às suas necessidades.

Oliveira (2017) considera que a burocracia submete os cidadãos a categorias, facilitando a decisão sobre como e a quem direcionar as benesses da política, ao estabelecer a separação entre os “merecedores” e os “indignos”. Por conseguinte, as burocracias favorecem alguns tipos de cidadãos em detrimento de outros, em um ciclo de reprodução das desigualdades patentes na sociedade.

Nessa situação, detectamos a desigualdade institucionalizada na prática dos burocratas, na qual o critério da política se pauta no julgamento do mérito advindo da subjetividade e atravessado por um julgamento moral e valorativo dos indivíduos que procuram os equipamentos estatais, acontecendo o juízo de mérito ou demérito em relação à inserção nas ações de enfrentamento das desigualdades, por meio entrega dos benefícios da política. Entretanto, o caráter do julgamento do merecimento por eles assumido potencializa e naturaliza a institucionalização da desigualdade, desqualificando sujeitos sociais considerados não merecedores do benefício.

Maynard-Moody e Musheno (2003)observam que os agentes de nível de rua estão mais inclinados a atender diferencialmente aos cidadãos cooperativos, enquanto uma abordagem estritamente burocrática pode ser usada para disciplinar cidadãos recalcitrantes. Os autores analisam a burocracia de nível de rua a partir da capacidade de agência e improvisação pragmática dos BNRs para estabelecer julgamentos sobre os indivíduos e desenvolver soluções de problemas. Segundo eles, “as decisões e as ações no nível de rua são orientadas menos por regras, treinamentos ou procedimentos e mais por crenças e normas, especialmente crenças e normas sobre o que é ou não justo” (MAYNARD-MOODY; MUSHENO, 2003, p. 6, tradução nossa). E abordam como agentes implementadores categorizam e julgam usuários e com isso podem reduzir ou reproduzir desigualdades.

Considerações finais

A análise das desigualdades explícitas na implementação das políticas públicas nas instituições escolares a partir da lente da representação burocrática, possibilita-nos enxergar efeitos que a discricionariedade dos burocratas implementadores pode provocar. Por meio dessa lente, as desigualdades adquirem efeitos simbólicos e são dimensionadas na tomada de decisão, pois os burocratas carregam a responsabilidade de representar e implementar o interesse público.

Sendo os burocratas a face do Estado expressa ao cidadão, podemos afirmar que o setor público de alto escalão participa dessa reprodução das desigualdades, seja por uma posição passiva ou seja por formular políticas distantes das reais condições apresentadas pelas demandas do cotidiano escolar. De fato, quando a formulação da política pública exclui a colaboração das demais instâncias burocráticas e desconsidera as percepções de seus usuários, a possibilidade do surgimento de brechas se consubstancia e aumenta a necessidade da ação discricionária do burocrata.

Por conseguinte, a omissão do Estado, aqui denominada “dimensão passiva”, ou a sua desconsideração acerca das demais instâncias, na opção por uma implementação top-down, contribui para que os processos de aprofundamento da desigualdade sejam perpetuados pela burocracia. Por outro lado, a “dimensão ativa” dessa representação burocrática dos agentes é fundamental para compreender seu comportamento que, na finalização do processo de implementação, materializa o poder estatal no cotidiano, produzindo efeitos distributivos, impactando a vida dos estudantes e de suas famílias. E, apesar de caber aos agentes administrar os conflitos no espaço público, promovendo a justiça, sua orientação se dá por meio de regras muito amplas, ou pouco precisas, ou pela escassez de recursos, podendo acarretar injustiças e consolidar ainda mais as desigualdades.

O grande desafio em torno da atuação dos burocratas, sejam de médio escalão ou de nível de rua, é que os processos individualizados e subjetivos interferem na percepção das situações apresentadas no cotidiano, podendo gerar burocracias meritocráticas.

A prática desses sujeitos articulada à sua função pública é catalizadora da forma com a qual o Estado tem se concretizado junto às escolas para o enfrentamento das desigualdades educacionais. Portanto, é importante a reflexão na busca por compreender como o trabalho desses agentes se configura, movimentando-se para a reprodução ou para a tentativa de ruptura com estigmas históricos no tratamento de injustiças sociais e como as ressignificações e tensões que envolvem sua prática cotidiana contribuem ou não para o acirramento das desigualdades na escola.

Acreditamos que esses burocratas estabelecem consensos mediante pressupostos formais a eles apresentados e dissensos evocados na prática de seus trabalhos na ponta do processo. Essa percepção é balizadora da forma institucionalizada de estabelecer as desigualdades na escola. Nesse sentido, constitui-se o que podemos denominar antagonismo ou tensão entre os níveis gerenciais da política, pois a orientação estabelecida no alto escalão nem sempre se traduz no que é executado na prática dos burocratas.

Portanto, observamos o comportamento dos agentes multideterminado por fatores que influenciam, em maior ou menor escala, sua ação no processo de implementação, seja provocando conflitos e tensões sobre suas decisões, seja convergindo para fortalecer práticas potencializadoras de processos de injustiça social.

Finalizamos ratificando nosso entendimento do gestor/burocrata como mobilizador de um determinado poder em suas interações com os sujeitos da escola, pois opera em um sistema que o constrange a tomar decisões acerca de alocação de recursos e direcionamento de políticas, muitas vezes em face às contingências e imprecisões diretivas.

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1Este estudo conta com o apoio do Programa Jovens Cientistas do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), a partir do Edital nº 04/2018.

2Os burocratas de alto escalão são aqueles que elaboram as políticas públicas e ocupam altos cargos na hierarquia burocrática.

Recebido: 31 de Outubro de 2020; Aceito: 07 de Junho de 2021

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