Introdução
A segunda década do século XX trouxe um grande interesse pelos aspectos não cognitivos da inteligência, tendo em vista a tentativa de entender mais amplamente as complexas questões que cercam as capacidades cognitivas humanas. Pesquisadores concordam, por exemplo, (GARDNER, 1983; SHAPIRO, 1997; RENZULLI; REIS, 2014; STERNBERG, 2009), que o conceito da inteligência como medida única e singular de competência deu, aos poucos, lugar para o entendimento de que os seres humanos têm um conjunto de competências ou inteligências essenciais, que elas existem em proporções diferentes em diferentes pessoas, e que, juntamente com os aspectos emocionais, de personalidade e de motivação, são mais preditivas do sucesso na idade adulta do que as tradicionais medidas de QI.
Cada criança, independentemente de sua capacidade, possui características de personalidade próprias que, devido à situação ou ambiente em que vive, levam a determinadas necessidades sociais e emocionais1. Crianças com altas habilidades e superdotação, no entanto, podem ter necessidades afetivas adicionais resultantes de sua complexidade cognitiva, maior intensidade de resposta, sensibilidade emocional, imaginação vívida, combinações de interesses únicos, características de personalidade e conflitos que são diferentes dos seus companheiros de idade (BURNEY; NEUMEISTER, 2010; NEIHART et al., 2002; SILVERMAN, 2005). Desta forma, reagem com mais sensibilidade em um ambiente indiferente às suas habilidades, competências e necessidades cognitivas específicas. Já foi assinalado por diversos autores (ALENCAR; VIRGOLIM, 2001; BUTLER-POR, 1993; VIRGOLIM, 2003; WINNER, 1998) que essas reações, quando dirigidas ao mundo externo, podem se expressar como comportamentos sociais inadequados, hostilidade e agressão com relação às figuras de autoridade, pais, professores, ou em atos de delinquência social. E quando dirigidas ao mundo interno, tomam a forma de autoconceito negativo, insegurança, frustração e raiva por não atingirem a perfeição, além do sentimento de serem inadequados e diferentes. Por outro lado, o desenvolvimento de habilidades de autoconsciência, resolução de problemas e tomada de decisões podem ajudá-las a entender seus sentimentos e fazer escolhas construtivas para suas vidas.
Este artigo objetiva compreender as vulnerabilidades sociocognitivas e afetivas do estudante com altas habilidades e superdotação. O esclarecimento dessa questão e de suas necessidades específicas pode ajudar pais e professores a delinear um ambiente mais adequado ao seu desenvolvimento. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que se delineia a partir de referenciais reconhecidos da área das altas habilidades e superdotação (NEIHART et al., 2002; RENZULLI; REIS, 2014; SILVERMAN, 1993, 2002, 2005, 2009; STRIP; HIRSCH, 2000; WEBB et al., 2007; VIRGOLIM, 2003, 2018; VIRGOLIM; PEREIRA, 2020), e em pesquisas recentes enfocando a questão das vulnerabilidades de estudantes superdotados.
Entendendo o superdotado
A legislação brasileira conceitua o aluno com altas habilidades ou superdotação como os que “demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse.” (BRASIL, 2008). Esta definição espelha a conceituação de superdotação dadas por Joseph Renzulli e Sally Reis na Teoria dos Três Anéis (RENZULLI; REIS, 2014), para os quais a superdotação se dá pela confluência de três fatores, graficamente representados por três anéis que se interceptam: (a) o anel da Habilidade acima da Média ressalta as habilidades que o aluno apresenta acima da média dos seus pares (não necessariamente muito acima da média), em qualquer área do conhecimento; (b) o anel do Compromisso com a Tarefa ressalta os fatores ligados à motivação intrínseca, persistência, concentração e perseverança na área específica em que o aluno demonstra interesse; e (c) o anel da Criatividade ressalta, por sua vez, o pensamento independente e original, o humor, a imaginação e as atitudes ligadas à personalidade divergente e não conformista do aluno.
Renzulli (1988) considera que a superdotação e o talento têm componentes tanto genéticos (gifted) quanto ambientais (talented), usando a expressão superdotado e talentoso (gifted and talented) para expressar essa dualidade. De forma coerente com esta postura teórica, Virgolim (2019) utiliza a expressão altas habilidades e superdotação com o mesmo sentido, ou seja, representando dois aspectos do mesmo fenômeno. Enquanto o termo “superdotação” faz referência aos aspectos inatos e genéticos da inteligência e da personalidade, o termo “altas habilidades” enfatiza os aspectos que são moldados, modificados e enriquecidos pelo papel do ambiente (família, escola, cultura)2.
Tratar do tema das altas habilidades e superdotação envolve um olhar complexo e sistêmico, dada a característica de heterogeneidade deste grupo. Desta forma, constata-se que a superdotação está presente em todas as classes econômicas e em todas as etnias; que os comportamentos de superdotação podem se tornar evidentes em qualquer idade; e podem ainda estar presentes como dupla especificidade, junto às deficiências sensoriais, físicas, intelectuais, de aprendizagem e outros transtornos do desenvolvimento (LOVECKY, 1993; STRIP; HIRSCH, 2000; VIRGOLIM; PEREIRA, 2020). As diferenças também se dão por seus interesses, estilos de aprendizagem, níveis de motivação e de autoconceito, características de personalidade, ritmo de aprendizagem e, principalmente, por suas necessidades educacionais específicas. Entender a superdotação envolve compreender a cultura em que a criança está inserida, naqueles aspectos que a sociedade valoriza e se identifica; a sua família imediata, em sua teia de inter-relações e conexões com a criança e com o mundo externo; e o próprio indivíduo, com suas potencialidades, interesses e particularidades afetivas e emocionais. Educar indivíduos com altas habilidades não é uma tarefa simples, e deve-se entender que o que é válido para uma criança pode não ser apropriado para outra (CROSS, 2005; ROBINSON, 2002; VIRGOLIM, 2007).
Pessoas com altas habilidades e superdotação se destacam com relação a seus pares em pelo menos uma área do conhecimento. Assim, a depender da área de dominância do potencial (verbal ou lógica-matemática, artística, psicomotora ou de liderança, por exemplo), estes alunos podem apresentar características como (SABATELLA, 2013; VIRGOLIM, 2007; VIRGOLIM; PEREIRA, 2020): facilidade e rapidez na aprendizagem; alto nível de energia e curiosidade; ideias complexas e incomuns para a idade; motivação com temas do seu interesse; interesse por desafios; vocabulário rico e avançado; boa memória; raciocínio abstrato, verbal ou numérico; criatividade; pensamento divergente e original; preferência por trabalhar sozinho; preferência pela companhia de pessoas mais velhas; empatia e preocupação com os sentimentos do outro; capacidade de liderança; grande sensibilidade e senso de justiça muito desenvolvido; inclinação ao perfeccionismo e autocrítica.
Os altos e baixos da superdotação: o outro lado da moeda
Algumas características físicas, comportamentais ou emocionais dos indivíduos com altas habilidades e superdotação podem torná-los mais vulneráveis a situações de bullying escolar, como ressaltam Dalosto e Alencar (2016). O bullying é uma forma de violência que pode se dar de forma explícita (por meio de agressão física ou verbal) ou velada (como mostrar indiferença ou isolar o outro). Segundo as autoras, o bullying, utilizado como forma de causar sofrimento e angústia nas vítimas, encontra no superdotado um terreno fértil, devido à sua maior sensibilidade e intensidade emocionais que se aliam às habilidades sociais não tão bem desenvolvidas. Não é de se espantar que alguns possam se sentir fora de sintonia, esquisitos, ineptos e zangados (SILVERMAN, 2009; STRIP; HIRSCH, 2000), evidenciando sua imaturidade emocional e social.
As qualidades e características peculiares do superdotado são, assim, vistas como apenas um lado da moeda, mostrando, no outro lado, atributos nem sempre bem-vistos aos olhos dos professores ou pais e que podem conduzir à vulnerabilidade do superdotado. O Quadro 1 mostra os dois lados desta questão, a que Strip e Hirsch (2000) denominam “os altos e baixos da superdotação”:
Os possíveis problemas comumente associados às características das altas habilidades e superdotação requerem o olhar cuidadoso de professores, por favorecerem experiências socioemocionais conflitantes no curso de sua escolarização, quando não compreendidas suas necessidades (VIRGOLIM; PEREIRA, 2020).
Características socioafetivas e vulnerabilidades do superdotado
Defende Clark (1992) que, quanto mais expressiva e acentuada for a habilidade demonstrada, maior o grau de intensidade e energia apresentados e maior a complexidade de pensamento destes indivíduos. No entanto, alguns traços aparecem consistentemente neste grupo, variando em intensidade de acordo com o nível de habilidade e de QI encontrados; Clark acentua que, quando não reconhecidos e trabalhados, podem colocar a criança em posição de vulnerabilidade e risco socioemocional.
Embora crianças superdotadas tenham, em geral, certas vantagens sobre seus pares não identificados (por exemplo, maior resiliência), há certamente desafios e áreas de vulnerabilidade que elas devem enfrentar, como por exemplo: o perfeccionismo (SCHULER, 1999); a procrastinação, o stress, e as dificuldades em se relacionar com irmãos e com colegas (DESLILE, 2006; WEBB et al., 2007); o assincronismo (PALUDO, 2018; SAKAGUTI, 2017; SILVERMAN, 2002, 2009), as expectativas do adulto, os conflitos de identidade e o isolamento social (GILLESPIE, 2009; ROEDELL, 1984), a motivação, o locus de controle interno e a necessidade de autorealização (HÉBERT, 2011; PIECHOWSKI, 2008); a supersensibilidade e intensidade emocional (DABROWSKI, 2016 3; MENDAGLIO, 2008; PIECHOWSKI, 2006), a empatia, a justiça e preocupação moral com os outros (GILLESPIE, 2009; HÉBERT, 2011; ROEPER, 2000) e, ainda, o grande senso de humor, desafio às autoridades e pensamento criador (HÉBERT, 2011; LOVECKY, 1993; STRIP; HIRSCH, 2000).
A aprendizagem não é um fenômeno puramente cognitivo, e sim um processo que se entrelaça com o funcionamento emocional do indivíduo em um contexto específico, com o poder de auxiliar ou inibir a aprendizagem. Quando os sentimentos estão bloqueados, a criança pode ter dificuldade em processar o que aprende intelectualmente (GILLESPIE, 2009; SHELTON; STERN, 2004). Expectativas sobre o seu desempenho acadêmico ou seu gênero, as expectativas culturais de seus pais, professores e colegas, a educação que a criança recebe e, ainda, as características pessoais da pessoa com altas habilidades, se não adequadamente gerenciadas, podem levá-las ao estresse e à vulnerabilidade (NEIHART, 1999; SILVERMAN, 2005; PIECHOWSKI, 1997; ROBINSON, 2002). Por outro lado, Piechowski (1997) sugere que as vulnerabilidades da pessoa superdotada podem resultar em crescimento na direção da consciência de si próprio e autorrealização.
Destacaremos, neste texto, sete traços que levam à vulnerabilidade emocional, pontuados mais frequentemente na literatura, acentuando o papel destas características no desenvolvimento saudável do indivíduo superdotado: o pensamento divergente e criativo; o perfeccionismo; a percepção e o insight; a introversão versus extroversão; o locus de controle interno; as assincronias e as supersensibilidades.
Pensamento divergente e criativo
Embora haja grande variação nos fatores afetivos e de personalidade entre pessoas criativas, elas são vistas como abertas a novas experiências, perseverantes, não conformistas, independentes tanto emocional quanto intelectualmente, propensas a pensar e agir com originalidade e imaginação (NEIHART; OLENCHACK, 2002).
Os alunos que pensam de forma divergente são frequentemente vistos como um problema na escola e mesmo na família. Lovecky (1993) assinala que, em geral, são reforçados negativamente por fazerem muitas perguntas, serem curiosos, apresentarem respostas incomuns aos problemas e preferirem o trabalho individual ao trabalho em grupo. As crianças que pensam de forma divergente têm dificuldade com o esquema organizacional dos adultos que pensam de forma linear, pois tendem a ver as coisas de forma holística e dar saltos intuitivos para corrigir as respostas. Além disso, a tomada de decisão e o estabelecimento de prioridades também se tornam difíceis, por sua tendência de não hierarquizar por importância seus pensamentos e sentimentos, organizar ideias em uma certa sequência ou focalizar a atenção em um ponto específico. Pensadores divergentes gostam de seguir a novidade de uma ideia e ver aonde ela leva e que padrão elas seguem. No entanto, aos olhos dos adultos parecem rebeldes, desmotivadas, desatentas e insatisfeitas. Elas muitas vezes se sentem sozinhas, sem alguém para entender sua singularidade (LOVECKY, 1993).
Perfeccionismo
O perfeccionismo pode ser visto tanto como uma característica positiva que deve ser cultivada ou um problema que deve ser corrigido. Schuler (2002) diferencia dois tipos de perfeccionistas: (a) o perfeccionista saudável, que tem uma intensa necessidade de ordem e organização, mas demonstra autoaceitação de seus erros, uma boa aceitação das expectativas dos outros e uma forma positiva de lidar com suas tendências perfeccionistas; é aquele que percebe o esforço pessoal como uma parte importante do processo; (b) e o perfeccionista disfuncional, que apresenta um constante estado de ansiedade com relação à possibilidade de cometer erros; determina metas extremamente altas e irrealistas para alcançar; percebe as altas expectativas dos outros como crítica excessiva; questiona seus próprios julgamentos; exibe uma constante necessidade de aprovação; e demonstra estratégias ineficazes para lidar com as exigências do ambiente. Enquanto o perfeccionismo disfuncional paralisa, o perfeccionismo saudável autoriza e empodera, constituindo-se numa importante força para o sucesso e a realização escolar. Sabatella (2013) reflete que o superdotado precisa de apoio para persistir, a despeito da constante consciência de fracassar. Hamachek (1978) chama a atenção para os ambientes familiares disfuncionais, onde os pais demonstram uma não aprovação ou aprovação inconsistente do desempenho da criança; e onde expressam aprovação apenas quando condicionada ao desempenho da própria criança. Na visão de Hébert (2011), os educadores precisam ajudar as crianças e jovens a apreciar seus traços de perfeccionismo; permitir serem perfeccionistas naquelas atividades que são importantes para eles; manter altos padrões para si mesmos e não para os outros; focalizar no próprio sucesso e persistir mesmo no fracasso; ter confiança em suas ideias e na sua habilidade em atingir suas metas; a sentir prazer em suas realizações e ver seus contratempos como uma forma de aprendizagem; e canalizar seus esforços para aquilo que é mais motivador ou importante para ela.
Percepção e insight
A perceptividade e capacidade para insights são traços que aparecem como resultados de um alto padrão de raciocínio, de vocabulário e sofisticação de pensamentos que pessoas com altas habilidades podem exibir. Esta habilidade se apresenta como facilidade para apreender vários aspectos de uma situação simultaneamente e entender rapidamente os elementos essenciais de um problema (LOVECKY, 1993; SILVERMAN, 1993). A alta percepção aos detalhes podem levá-las a enxergar padrões e significados escondidos no que veem, leem ou ouvem; e a entender o sentido por trás da fala do outro, principalmente quando se trata da falta da verdade e da justiça. Para a criança perceptiva, a busca da verdade e a necessidade de entender justiça e equidade podem vir primeiro, levando-a a demonstrar pouca tolerância com comportamentos tolos, banais ou injustos por parte de outras pessoas. Por isso, ela precisa de que suas percepções e insights sejam validados, reconhecidos em sua verdade e orientadas para o entendimento de como os outros pensam e sentem (LOVECKY, 1993; SILVERMAN, 1993).
Introversão versus extroversão
A conscientização sobre as características das pessoas introvertidas fornece importantes informações sobre como os indivíduos com altas habilidades e superdotação interagem no mundo. Alguns equívocos comuns são encontrados na sociedade; por exemplo, muitos pensam que ser introvertido é algo a ser modificado ou alterado para que um indivíduo desenvolva liderança e sociabilidade; e que ser tímido ou medroso em situações sociais é ser um introvertido. No entanto, afirmam Sisk e Kane (2015) que os introvertidos podem ser sociáveis, assim como os extrovertidos podem ser tímidos. Diferentemente da fobia e da timidez, a pessoa introvertida se socializa facilmente, embora muitas vezes prefiram não o fazer. Os introvertidos necessitam ser respeitados por sua introversão; necessitam de tempo para refletir, para deixar suas emoções fazerem sentido antes de serem verbalizadas, tempo para ponderar as possíveis soluções para um problema, enquanto os extrovertidos organizam os pensamentos pela verbalização (SILVERMAN, 1993).
Para entender a diferença entre os introvertidos e os extrovertidos, Silverman (1993) recomenda observar a fonte de onde buscam energia. Enquanto os extrovertidas obtêm energia nas pessoas e objetos do mundo externo, o introvertido busca energia dentro dele mesmo. A autora lista a seguinte diferenciação, que pode ser observada no Quadro 2:
Locus de controle interno
O grau no qual o indivíduo percebe a relação entre seu próprio comportamento e os resultados deste comportamento é denominado Locus de Controle (segundo a teoria de aprendizagem social de Julian Rotter). Uma pessoa com locus de controle interno assume controle ou responsabilidade pelos eventos na sua vida; por outro lado, aquela com locus de controle externo sente que fatores externos têm um controle maior na sua vida, sendo mais afetada por críticas e elogios. A crença de que se está em controle dos aspectos controláveis da vida é psicologicamente saudável (HÉBERT, 2011; SAYLER, 2009). Alunos superdotados internamente orientados atribuem o seu sucesso ao seu esforço na atividade; no entanto, os que são externamente orientados atribuem o seu sucesso à sorte, ao ensino, ao professor e a outros eventos externos, em detrimento dos próprios esforços ou da sua motivação para aprender. A criança superdotada que desenvolve um locus de controle externo pode se sentir perdida sem o direcionamento dos outros; e pode responsabilizar seus professores, pais, outros alunos ou eventos e circunstâncias externos para justificar um desempenho ruim. Por outro lado, aquela que apresenta um locus de controle interno tem mais chances de se sentir responsável pela consequência de suas ações, principalmente quando pode trabalhar em seu próprio ritmo. Segundo Sayler (2009), assumir o controle pelos seus atos facilita a realização acadêmica e encoraja o desenvolvimento psicológico ótimo, inclusive na direção de um perfeccionismo saudável e da aceitação da própria superdotação.
Assincronia
A assincronia, termo cunhado por Linda Silverman, líder do Grupo Columbus, do Institute for the Study of Advanced Development, no Colorado (EUA), destaca o mundo interno do indivíduo e sua vulnerabilidade, em razão das disparidades entre a idade mental e a idade cronológica da criança (SILVERMAN, 2009). Embora seja uma forma relativamente recente de se olhar a superdotação, suas raízes se encontram no trabalho de Leta Hollingworth, nas décadas de 1920 e 1940, que já se referia às complexas questões psicológicas que surgem das disparidades entre a idade mental e a idade cronológica da criança. Ao definir a superdotação como um desenvolvimento assincrônico, Silverman (2002) chama a atenção para a complexidade do processo de pensamento do indivíduo; para a intensidade de suas sensações e emoções; e para a consciência que o indivíduo superdotado tem como resultado da união destes fatores. Assim, na visão dessa autora, a assincronia é um traço inerente à superdotação; resulta de um desenvolvimento desigual e do sentimento de não se encaixar nas normas da sociedade, o que faz com que o indivíduo seja levado a uma posição de vulnerabilidade social e emocional.
Duas pesquisas no contexto brasileiro, no entanto, contextualizam a questão da assincronia e retiram o ônus da falta de sincronicidade do indivíduo para colocá-lo no contexto. Sakaguti (2017), pesquisando crianças superdotadas e suas famílias, concluiu que o assincronismo se origina na falta de alteridade nas relações, que tratam o indivíduo como vulnerável, desajustado ou problemático. Seus dados mostraram que a assincronia não seria parte integrante da pessoa superdotada, como coloca Silverman (2002), mas sim como parte apenas daquelas crianças que crescem em uma família disfuncional, sem apoio ou validação de sua identidade superdotada. Também Paludo (2018), na mesma linha de pensamento e de base teórica, pesquisou as relações ditas assincrônicas em um grupo de crianças superdotadas escolhidas aleatoriamente em um programa especial para as altas habilidades, focalizando nas relações de amizades que elas formavam na escola. Seus resultados mostraram o assincronismo como um fator relacional, que era percebido apenas nas crianças que tinham dificuldade em fazer amizades. Desta forma, entendemos que o assincronismo fala da sensibilidade e da vulnerabilidade da criança ou adolescente que não são aceitos pela família, escola ou sociedade; das relações sociais permeadas pela disfuncionalidade e não aceitação dos traços de personalidade da pessoa superdotada. Assim, seria a ineficiência do contexto social em atender as necessidades cognitivas, emocionais e sociais do superdotado os verdadeiros fatores responsáveis pela manifestação do assincronismo (VIRGOLIM, 2018).
Supersensibilidades
A intensidade emocional com que a criança vivencia suas experiências tem sido sistematicamente notada entre alunos com altas habilidades e superdotação. O termo “supersensibilidade”4, cunhado pelo psiquiatra e psicólogo polonês Kazimierz Dabrowski, autor da Teoria da Desintegração Positiva (DABROWSKI, 2016), refere-se a uma maneira intensificada e expandida de experienciar o mundo, nas áreas psicomotora, sensual, intelectual, imaginativa e emocional (PIECHOWSKI; COLANGELO, 1984; MENDAGLIO; TILLIER, 2006). O prefixo “super” na palavra supersensibilidade destina-se a transmitir que esta é uma forma especial de responder, experienciar e agir no mundo, que é aumentada e perceptível por suas formas características de expressão. Ressaltam Daniels e Meckstroth (2009) que cada supersensibilidade, de alguma forma, fornece a energia ou combustível que contribui para o desenvolvimento do talento da criança ou jovem, além de trazer vantagens e desafios que, fundamentalmente, dão forma ao seu desenvolvimento posterior. A teoria formula que as supersensibilidades em cada uma destas cinco áreas são geneticamente herdadas e, por isso, aparecem muito cedo no desenvolvimento; e por estarem ligadas às características de temperamento da criança, precisam ser estimuladas em um ambiente acolhedor e de aceitação. Estas áreas são descritas no Quadro , 3 (VIRGOLIM, 2018).
Virgolim (2018) pontua que as supersensibilidades, enquanto traços de personalidade, não são valorizadas socialmente, pois são percebidas como nervosismo, hiperatividade, ansiedade, temperamento neurótico, emotividade excessiva, traços estes que nossa sociedade acha difícil de conviver. Contudo, Dabrowski (2015 5, 2016) acredita que estas manifestações sejam positivas, pois elas têm o potencial de levar ao desenvolvimento da personalidade em sua forma mais completa. No entanto, essas crianças precisam ser entendidas em suas singularidades. Reflete Virgolim (2018) que elas precisam ser desafiadas e ter oportunidades de se dedicarem a tarefas que exijam um maior esforço mental; de um ambiente acolhedor onde sua imaginação pode ser aceita e exercitada; que sua necessidade de estética, de equilíbrio e de conhecimento possam se harmonizar com os prazeres advindos dos sentidos; que tenham oportunidade de expressar seus sentimentos e compartilhar seu mundo afetivo com as pessoas ao seu redor; e de sentir que o simples compartilhamento possa diminuir suas ansiedades e o sentimento de ser a única pessoa no mundo a se sentir de tal forma.
Concluindo
Considerando o objetivo de compreender as vulnerabilidades sociocognitivas e afetivas do estudante com altas habilidades e superdotação observa-se, primeiramente, que nem todas as crianças superdotadas apresentam as vulnerabilidades descritas neste texto. Nenhuma dessas características é inerente à superdotação e nenhuma delas predispõe automaticamente esses indivíduos a desajustes sociais ou à infelicidade. Na maioria dos casos, as vulnerabilidades nas pessoas com altas habilidades e superdotação surgem da discrepância entre seu nível de desenvolvimento e as expectativas da sociedade. À medida que as informações sobre as necessidades das crianças altamente talentosas se tornam mais difundidas e as expectativas da sociedade se tornam mais sintonizadas com as realidades do desenvolvimento de talentos, o grau de vulnerabilidade dessas crianças diminui (ROEDELL, 1984).
Consciência, no entanto, não é suficiente. Promover o desenvolvimento de crianças altamente talentosas requer um compromisso de criar sistemas de apoio para ajudá-las a aceitar suas habilidades. Tais sistemas de apoio incluem programas educacionais apropriados; educação afetiva sistemática, incluindo treinamento de habilidades sociais e desenvolvimento de autoconceito positivo; esforços planejados para adaptação e enriquecimento curriculares; e ainda, adultos e mentores agindo como modelos, fornecendo orientação e acolhimento. Sem essas vias de apoio, habilidades extraordinariamente avançadas podem se tornar um fardo tremendo, e não o fundamento de uma vida criativa e produtiva.