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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 07-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.78253 

DOSSIÊ - Desafios da avaliação na e da Educação Infantil

Processos avaliativos e docência na Educação Infantil: diálogos cotidianos

Maria Teresa Esteban* 
http://orcid.org/0000-0003-0130-149X

Virgínia Louzada** 
http://orcid.org/0000-0002-0529-8091

Ana Cristina Corrêa Fernandes* 
http://orcid.org/0000-0002-8936-9677

* Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: mtesteban@uol.com.br- E-mail: acriscf@gmail.com

** Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: virginialouzada.feuerj@gmail.com


RESUMO

O artigo se inscreve no debate sobre a avaliação na Educação Infantil, com o objetivo de refletir sobre a potência da relação entre professoras e crianças na composição de práticas avaliativas que problematizem sua dimensão classificatória e se conectem à formação docente continuada. Constitui-se pelo entrelaçamento de investigações inscritas no campo teórico-metodológico da pesquisa com o cotidiano, realizadas com professoras e crianças, que assumem o diálogo como método, envolvendo observação da dinâmica escolar, interação com as crianças e produção de narrativas em registros docentes. O trabalho vale-se, ainda, de pesquisa bibliográfica sobre avaliação e Educação Infantil. A articulação entre as pesquisas evidencia as dimensões dialógica, reflexiva, investigativa e participativa da avaliação como centrais numa proposição que afirma a relevância da ação docente, na criação e encaminhamento do trabalho, e a necessidade da presença infantil no processo, reiterando a criança como sujeito de direitos. Assim, a avaliação, nas práticas cotidianas, volta-se à compreensão das aprendizagens infantis, à organização das ações docentes e à indicação de temas relevantes para a formação continuada das professoras, como atividade integrada aos atos escolares. Nesse percurso emerge a possibilidade de uma docência infantil, em diálogo com o cotidiano como espaçotempo de aprendizagens, ensino e tecelagem de conhecimentos, desde epistemologias múltiplas, no qual se formulam questões, voltadas às dimensões praticoteóricas do trabalho com as infâncias.

Palavras-chave: Educação Infantil. Avaliação para aprendizagem; Avaliação da criança; Cotidiano escolar; Formação docente e avaliação

ABSTRACT

Assessment is a question that consistently occupies research in the field of childhood studies. This paper is part of the debate on assessment in childhood education with an approach to the assessment of children and its specificities at the school daily life. It presents findings form qualitative researches with daily lives, children and teachers, with observation of practices and production of narratives from teacher’s reports, besides documentary and bibliographic research. The lack of academic material that focuses on assessment in the relationship between teachers and children, evidenced by the bibliographic review, exposes that this debate and the socialization of investigations about this subject are relevant. Daily life scenes are brought to reflect upon assessment processes and evince the power of the interaction between teacher and children, wich guides the movement or proposing an assessment focused on children’s learning and development. The dialogical, reflexive and participative dimensions of the assessment stand out in a proposal that affirms the teaching action in the creation and the conduction of work, as well as the need of child presence in this process, because recognizes child as a subject of rights. Its conclusions assert that assessment is important for the understanding of children´s learning, for the organization of teaching actions and for the indication of significant issues to the continuing teacher education, as an activity integrated with school acts.

Keywords: Early Childhood Education; Learnin assessment; Child assessment

Introdução

A avaliação, como parte do trabalho pedagógico, se constitui como questão relevante nos debates sobre os processos de escolarização das crianças. A Educação Infantil não está à margem dessa problemática e, por sua especificidade, lhe imprime outros contornos. O trabalho com as crianças na primeira infância, a ambiência institucional, a relação com os adultos, as orientações emanadas dos documentos oficiais e o fato de não ser possível, nessa etapa da educação básica, atribuir notas ou conceitos às crianças ou reprová-las - práticas que parecem identificar o processo de avaliação da aprendizagem - indicam a necessidade de um tratamento particular ao tema. Essas questões convergem para a formulação da avaliação de crianças na Educação Infantil como problema que articula este artigo, cujo objetivo é refletir sobre a potência da relação entre professoras e crianças na composição de práticas avaliativas que problematizem sua dimensão classificatória e se conectem à formação docente continuada.

Para abordar essa questão, três pesquisadoras nos encontramos, colocando em diálogo nossas pesquisas. Uma, em fase inicial (LOUZADA, 2020). As outras duas, já concluídas (ESTEBAN, 2020 1; FERNANDES, 2018), se caracterizam como pesquisas com o cotidiano (GARCIA, 2003; ANDRADE; ALVES; CALDAS, 2019), se valendo do que se pode captar do que se produz nos espaços em que se inscrevem e do permanente diálogo com os sujeitos participantes da pesquisa - adultos e crianças. Com elas, nos entrelaçamos aos movimentos vivenciados nos cotidianos da educação das infâncias, para investigar processos de avaliação instaurados e a potência do encontro entre adultos e crianças para a composição de significações para a prática avaliativa.

Os resultados encontrados evidenciam a manutenção de práticas curriculares normativas na Educação Infantil, induzidas pela racionalidade técnica, que, apoiada na epistemologia positivista, concebe a prática como aplicação de técnicas recorrentes da teoria, entendida como a fonte das soluções para os problemas cotidianos (SCHON, 1992). Nessa perspectiva, os fins das ações nessa etapa da educação básica e os meios para efetivá-las se articulam por decisões técnicas que se desvinculam das especificidades de cada contexto e ressaltam a dimensão instrumental do fazer. Tais definições, prévias e externas às práticas pedagógicas, sustentam a avaliação classificatória, apesar de sua insuficiência e a despeito da determinação oficial de que a prioridade seja dada ao desenvolvimento integral da criança e não ao desempenho infantil.

Concomitantemente, tais resultados indicam outros movimentos curriculares, menos frequentes, nos quais se articulam as experiências, os saberes e as interações das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico. Estes demarcam outros endereçamentos para a avaliação e expressam, ora por meio de pistas, ora com evidências, proposições que transbordam a perspectiva classificatória e se entretecem às concepções compreensivas, presentes em proposições conceituais e metodológicas, no âmbito dos estudos sobre avaliação educacional (GIMENO SACRISTÁN; PÉREZ GÓMEZ, 1998); encaminhamento convergente com a proposta de trabalho vigente para a Educação Infantil (BRASIL, 2010), na articulação entre avaliação e cotidiano e em suas interfaces com a formação/ação docente.

Sobre esse segundo movimento, que nos parece bastante mobilizador, nos debruçamos neste artigo. Nos valemos de estudos, conversas, diálogos, ações e interrogações recolhidos em nossos percursos que convidam, ou talvez convoquem, ao aprofundamento da reflexão sobre as práticas avaliativas vivenciadas entre professoras2 e crianças no cotidiano da Educação Infantil.

Partimos de uma revisão bibliográfica, com o intuito de localizar nosso estudo no debate atual sobre avaliação no âmbito da primeira etapa da educação básica. Pelas mãos das crianças, em seguida, entramos no cotidiano escolar para refletir sobre possibilidades e desafios que vão se constituindo quando se pretende uma avaliação dialógica, reflexiva, investigativa e participativa. Fazemos esse trajeto atentas às orientações legais (BRASIL, 2010) e ao alerta de Campos (2016) sobre a diferença entre as práticas das instituições que trabalham com a pré-escola e os sentidos pedagógicos propostos pelas determinações oficiais. Ponto que nos direciona ao terceiro aspecto: a avaliação como elemento significativo para a formação docente continuada. Um processo formativo que nos leve ao que aqui esboçamos, como uma docência infantil, em diálogo com Kohan (2007, 2019).

A avaliação, como prática cotidiana, se afirma como um processo potente para a reconfiguração da dinâmica curricular e reitera a escola como espaço de produção de conhecimentos para as crianças, para as professoras e para o campo de estudos sobre a educação das infâncias.

Produção bibliográfica sobre avaliação na/da Educação Infantil: aproximações iniciais

A educação das infâncias é uma questão que vem se atualizando constantemente, especialmente pela reestruturação da ideia de Educação Infantil, que atravessa décadas e se intensifica com o seu reconhecimento como etapa da educação básica. Há uma inquietação que se traduz em constantes debates, ao qual se integra a pesquisa em educação. Sendo esta nossa esfera de ação, entendemos indispensável nos posicionarmos no conjunto de estudos empreendidos sobre a temática. Valemo-nos da revisão bibliográfica, como encaminhamento de pesquisa, em fase inicial, que objetiva acompanhar a entrada da Educação Infantil no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB)3. Seu resultado detalhado, baseado em consultas à plataforma Scielo e ao Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pode ser encontrado em Louzada (2020). Optou-se em não restringir um recorte temporal à busca, uma vez que partimos da premissa de que há baixa incidência de referências bibliográficas sobre a temática (SOUSA; PIMENTA, 2018), fato que discutiremos posteriormente no artigo.

No nosso entendimento, torna-se importante trazer algumas informações publicadas no referido artigo, posto que nele fundamentamos nossa argumentação sobre a necessidade de se ampliar o debate sobre a questão da avaliação da aprendizagem na primeira etapa da educação básica. Aspecto relevante, uma vez que objetivamos tratar das práticas avaliativas vivenciadas entre professoras e crianças.

Sobre os artigos da Plataforma Scielo, os mesmos seis artigos foram encontrados em três palavras-chave diferentes: avaliação da Educação Infantil, avaliação na Educação Infantil e avaliação em Educação Infantil. Além desses, como podemos observar na tabela 1, temos um quantitativo relativamente baixo de artigos sobre a questão da avaliação na/da Educação Infantil, não sendo possível, inclusive, encontrar artigos na palavra-chave “avaliação da aprendizagem na Educação Infantil”:

TABELA 1 QUANTITATIVO DE ARTIGOS ENCONTRADOS NA PLATAFORMA SCIELO: 

Palavras-chave Quantitativo
Avaliação da educação infantil 07 (sete)
Avaliação na educação infantil 07 (sete)
Avaliação em educação infantil 06 (seis)
Avaliação da aprendizagem na educação infantil 0 (zero)

FONTE: LOUZADA (2020)

Em relação às temáticas trabalhadas nos artigos em questão, pudemos encontrar:

FONTE: Louzada (2020).

QUADRO 1 TEMÁTICAS ENCONTRADAS NOS ARTIGOS DISPONÍVEIS NA PLATAFORMA SCIELO 

Em relação à busca realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, enfrentamos algumas dificuldades com a ferramenta de busca da plataforma, que impossibilitou, na ocasião, que uma busca mais precisa fosse feita. A primeira dificuldade encontrada foi o fato de não conseguir acessar textos que diziam respeito apenas às palavras-chaves escolhidas, pois apareceram muitos registros que não diziam respeito ao interesse da pesquisa. Nesse sentido, foram encontrados, em cada palavra-chave: a) avaliação da Educação Infantil (1.189.596 registros); b) avaliação na Educação Infantil (1.045.308 registros); c) avaliação em Educação Infantil (1.144.595 registros); d) avaliação da aprendizagem na Educação Infantil (1.200.806 registros). Não se pode afirmar, inclusive, que todo esse quantitativo se refere às dissertações e teses na área de educação, uma vez que apareceram trabalhos em outras áreas de conhecimento (tais como em Psicologia, por exemplo) ou trabalhos que se referiam à área de avaliação, mas não especificamente à avaliação na/da/em Educação Infantil. Também houve um baixo quantitativo de trabalhos sobre as questões de avaliação na primeira etapa da educação básica, uma vez que trabalhos sobre outras etapas compareceram na busca.

Por conta dessas questões, a fim de favorecer um melhor tratamento dos dados produzidos, fez-se a opção de restringir a busca até o 500º trabalho de cada palavra-chave. (LOUZADA, 2020). Sobre o quantitativo encontrado, as temáticas contempladas nas dissertações de mestrado e teses de doutorado4 que dialogam com a questão da avaliação na/da/em Educação Infantil, foram encontradas trinta e cinco dissertações e sete teses:

TABELA 2: TEMÁTICAS ENCONTRADAS NAS DISSERTAÇÕES E TESES DISPONIBILIZADAS PELO PORTAL DA CAPES: 

Dissertações Teses
Concepções de professoras sobre avaliação: 7 (sete) Avaliação na creche: 1 (uma)
Instrumentos de avaliação: 10 (dez) Instrumentos de avaliação:1 (uma)
Avaliação da aprendizagem: 6 (seis) Avaliação na creche a partir dos documentos do Ministério da Educação (MEC):1 (uma)
Avaliação de contexto: 1(uma) Cadernos pedagógicos, alfabetização e avaliação externa: 1(uma)
Estudo de caso em instituição de Educação Infantil: 1(uma) Concepções e práticas avaliativas: 1(uma)
Egressos de Educação Infantil no Ensino Fundamental: 1(uma) A participação da criança no processo avaliativo: 2 (duas)
Avaliação escolar antecipada: 1(uma)
Avaliação como prática dialógica: 1 (uma)
Estado da arte sobre a temática: 1 (uma)
Planejamento, registro e avaliação: 1 (uma)
Gestão: 1 (uma)
A importância do registro na Educação Infantil e no 1º ano do ensino fundamental: 1 (uma)
A produção acadêmica sobre a temática nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd): 1 (uma)
Avaliação externa na Educação Infantil: 1 (uma)
Avaliação e qualidade: 1 (uma)

FONTE: Elaboração própria a partir de revisão bibliográfica

A revisão bibliográfica expõe a necessidade de ampliar o debate sobre avaliação da aprendizagem na Educação Infantil entre pesquisadores/as e entre profissionais da área de educação e nos indica ser preciso articular as questões apontadas nas dissertações e teses para tratar da avaliação para as aprendizagens infantis. Também percebemos que o número de teses é bastante desproporcional em relação às dissertações, indicando a necessidade de ampliar o número de investigações acadêmicas sobre a temática.

Em relação aos artigos disponibilizados no Scielo, concordamos com Rosemberg (2013, p. 46), quando a autora argumenta que, “(...) ao se pesquisar a disponibilidade de referências bibliográficas na área da educação que usaram o descritor avaliação para a educação infantil, observa-se uma baixíssima incidência”. Sousa e Pimenta (2018, p. 1277) seguem a mesma linha argumentativa ao afirmar que ainda são escassas pesquisas que analisam “propostas direcionadas à avaliação deste segmento da educação básica”. Nesse mesmo contexto, Rosemberg (2013, p. 47) chega a criticar “esse quase silêncio imposto à educação infantil observado nas preocupações com a avaliação educacional. Também encontramos, a partir dos nossos estudos, o artigo de Moro e Souza (2014), no qual as pesquisadoras, ao mapearem e examinarem a produção acadêmica brasileira, no período entre 1997 e 2012, concluem que a avaliação de contexto tem maior presença, enquanto “(...) a avaliação de criança vem sendo menos tematizada na área” (MORO; SOUZA, 2014, p. 120).

Embora a avaliação na Educação Infantil possa envolver avaliação da aprendizagem das crianças, ao observarmos as temáticas tratadas na Plataforma Scielo, também não encontramos a articulação com os processos de aprendizagem infantis. Porém, as teses e, principalmente, as dissertações, indicam um amplo interesse em seu estudo. Assim, coloca-se a necessidade e a oportunidade de trazer o tema, articulando as diferentes dimensões do processo, para pensar o trabalho pedagógico realizado nessa etapa.

Observamos que na área de avaliação a discussão sobre a avaliação na Educação Infantil é relativamente recente. Jussara Hoffmann (1991) foi pioneira na discussão do assunto, em um capítulo de livro intitulado “Avaliação na pré-escola?”. No texto, destaca a observação e a reflexão como estruturantes das práticas avaliativas. Defende que os seus princípios precisam valorizar as manifestações infantis, devendo “(...) se distanciar definitivamente do modelo de avaliação do ensino regular (HOFFMANN, 1991, p. 105), identificado, pela autora, como predominante na pré-escola. Sua obra mais conhecida, sobre a temática, é o livro “Avaliação na pré-escola: um olhar reflexivo sobre a criança” (HOFFMANN, 2009), que teve a primeira edição em 1996 e se constitui como referência até os dias atuais.

Ampliando o debate sobre os processos avaliativos na pré-escola, Esteban (1993) nos apresenta uma analogia entre a avaliação e os jogos de encaixe, usualmente utilizados na Educação Infantil. Assim, a padronização das atividades, que aceitam apenas uma resposta como correta, também ensina a criança a se encaixar na realidade escolar. Neste contexto, a avaliação acaba por se tornar a ferramenta que leva a criança a se adequar aos modelos universais de desenvolvimento, aprendizagem e conteúdos apresentados pela escola, com o objetivo de estar preparada para o ensino fundamental5.

Por fim, ainda sobre a questão, encontramos um texto de Fernandes (2006) na “Revista Criança”, produzida pelo Ministério da Educação (MEC). Afirma que a prática avaliativa se justifica a partir das concepções que a professora adquiriu ao longo de sua trajetória de vida, suas lembranças escolares, suas expectativas em relação às crianças e suas convicções teórico-epistemológicas. Ainda para a pesquisadora, na Educação Infantil, as professoras costumam, de modo geral, realizar uma avaliação mais próxima da avaliação formativa, uma vez que não há a necessidade de pontuar a aprendizagem das crianças com indicadores numéricos ou de outra ordem para fins de aprovação.

A leitura das reflexões trazidas pelas autoras indica um sentido comum para a elaboração de propostas para a avaliação na Educação Infantil, em que pese a posição diferente da última autora abordada, no que se refere ao que se evidencia em seu cotidiano. Sentido convergente com o apontado nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil/DCNEI (BRASIL, 2010): a investigação e o acompanhamento para promoção de aprendizagens e desenvolvimento das crianças, indicando a realização de múltiplos registros, “sem objetivo de seleção, promoção ou classificação” (BRASIL, 2010, p. 29). Recomendação consoante ao que preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (BRASIL, 1996) e ao que orienta, resumidamente, a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017).

Cabe ressaltar que o consenso entre pesquisadoras, explícito também na regulamentação oficial, vem se mostrando insuficiente para que se generalizem práticas de avaliação sustentadas pela atenção ao potencial de aprendizagem de cada criança e pelo acompanhamento do desenvolvimento infantil. Moro (2018) alerta para os perigos de termos a avaliação na Educação Infantil burocratizada, a partir das alterações da LDB, em 2013, no Art. 31, no que se refere “a expedição de documentação que permita atestar os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança” e provoque uma aproximação a uma perspectiva de avaliação que segue um padrão predeterminado de desenvolvimento, de aprendizagem e de conteúdos desejáveis para as crianças de 0 a 6 anos.” (MORO, 2018, p. 70).

Com nossas pesquisas, nos propomos a pensar linhas de fuga às costumeiras colocações sobre o avaliar crianças na pré-escola. A compreensão de que elas resistem a modos totalizantes e concêntricos de enxergar seus processos de aprendizagens e desenvolvimento nos impõe algumas reflexões sobre esse campo, tenso e em disputa, carregado de interrogações, que é avaliação na Educação Infantil.

As crianças como ponto de partida e ponto de chegada do que e como avaliar

Cena 1

Papai vem ver!” É Maria Luiza6 quem chama, nos seus três anos, conduzindo seu pai pela mão para um dos murais da sua sala. É início do dia, comum a entrada dos responsáveis no espaço. Maria Luíza aproxima-se do mural sobre cigarras que seu grupo está organizando, nele temos registrado percursos investigativos das crianças e descobertas a partir de um exoesqueleto de cigarra, encontrado no pátio da escola. “Aqui tem um exoesqueleto. Gabriel que disse esse nome”. A gente descobriu que “As cigarras deixam esse esqueleto e vão voar.” “É o macho que canta pra namorar com a menina!” Maria Luiza mostra ao pai imagens e, em detalhes, narra para ele com uma linguagem que flui informações sobre o inseto e o movimento com os colegas e professora do processo de investigação para saber mais sobre. Uma fala própria partilha descobertas e apresenta um processo de aprender em que o sujeito cria a si mesmo e deixa ver sua potência nas relações sociais. O pai mostra-se animado com os saberes da filha, sorri e faz perguntas. Maria Luiza responde com empolgação e narra mais e mais sobre suas descobertas (FERNANDES, 2016).

Cena 2

Enzo, Sofia, Nicolas e Isabel, todos com três anos, desenham em uma mesma mesa. Isabel faz marcas gráficas parecendo imitar, o que entendo, inicialmente, como a letra cursiva e fala “Estou escrevendo meu nome!”. Os colegas observam a escrita de Isabel. Enzo entrega um pedaço de papel e solicita que eu escreva seu nome. Escrevo e entrego a ele. Ele copia no seu desenho duas letras de seu nome, facilmente identificáveis: E e O. “Escrevi meu nome!”, ele fala. Isabel também escreve seu nome com os “rabiscos”. Dirijo-me até ela e falo: “Posso, agora, escrever seu nome de um outro jeito?”. Com o consentimento da menina escrevo seu nome, de forma convencional, à sua frente, bem próximo de sua escrita. Isabel não demonstra qualquer inquietação ao observar minha escrita. As outras três crianças observam. Sofia olha a escrita de Enzo, me procura com o olhar e fala: “Faz meu nome de escola?”. Pergunto o que é o “nome de escola” e ela aponta para sua pasta onde está grafado seu nome: “É aquele!”. Escrevo-o em uma tira de papel e entrego-a a ela. Ela olha a escrita fixamente. Torna a olhar a tira escrita com seu nome e não faz nenhuma menção de que vai copiá-lo. Abandona a ficha com o seu nome. Atenta ao movimento das crianças, identifico que a escrita do nome é interesse para algumas delas que, espontaneamente, pegam suas pastas e fichas para a cópia do nome em suas produções e vão iniciando e aperfeiçoando suas possibilidades apoiadas por nós professores. (FERNANDES, 2018, p.122).

Trazemos nessa seção cenas transformadas em registros narrativos, ao pesquisarmos com o cotidiano de uma unidade de Educação Infantil, pública e universitária, no período compreendido entre 2014 e 2017, envolvendo crianças de 3, 4 e 5 anos que compõem um único grupamento7. Cenas que conectam a prática pedagógica ao debate sobre a avaliação.

Maria Luiza narra experiências do seu processo de aprender, fruto das curiosidades infantis, mobilizadas pelo encontro de um exoesqueleto no parque da escola. Experiências que provocam conversas com o pai e trazem diálogos já ocorridos com os colegas e a professora. Experiências que expõem os saberes infantis, mas também emoções, conquistas, o reconhecimento da percepção da presença do outro nas suas aprendizagens e a alegria do conhecer e de poder partilhar saberes de modo próprio.

Enzo, Sofia, Nicolas e Isabel desenham juntos e, nesse processo, parecem construir e reconstruir saberes sobre a escrita, sobre formas de pensar, de se exprimir e de se relacionar. A organização do espaço, em pequenos grupos, e a disponibilidade de materiais possibilitam a ampliação do olhar da professora sobre as interações que ali acontecem, entre as crianças. A professora observa, a seu tempo, cada uma das cenas. Registra, em pequenas notas, para não perder o momento e, posteriormente, resgata o observado, em uma narrativa. Interessada em práticas de avaliação significativas para o trabalho com as infâncias, interroga, como cada cena, aparentemente trivial, fornece elementos para avaliar as aprendizagens e o desenvolvimento de cada criança, em seus tempos e modos próprios. Processo que, ao abrir-se às surpresas e curiosidades, se desdobra em aprendizagens para ambas, professora e crianças. As insistentes indagações docentes, tanto em nível prático quanto teórico, fomentam reflexão e apontam modos da escuta das crianças e das relações com elas que mobilizam a professora a também conhecer e recriar sua docência, favorecendo a produção de um cotidiano em que se constroem práticas de avaliação em conjunto.

Com Maria Luiza, muitas vozes e diferentes saberes são ouvidos quando, em diálogo com o pai, ele alimenta o seu pensamento e a sua imaginação. A professora, nesse momento espectadora, se percebe participando das aprendizagens infantis, embora reconheça que não as determina. Utiliza como recursos para a sua prática pedagógica a observação da cena e o seu registro, por entender que as ocasiões de trocas entre adultos e crianças são importantes para a partilha das conquistas infantis. Ao retomar seus registros, fruto do acompanhamento cotidiano, encontra elementos para articular uma avaliação que procura dar visibilidade a processos ainda não claros para a criança, sua família ou a própria professora.

Ao trazer para a avaliação o registro de trocas não planejadas, como a descrita, a professora encontra evidências de aprendizagens da criança. Com o apoio do mural, Maria Luíza narra o vivido, integrando diferentes compreensões, expressando curiosidades, saberes, competências, habilidades, sentimentos e valores culturais presentes em suas experiências. No diálogo com o pai, aponta descobertas, discrimina, explica, constrói relações e reelabora o pensamento. No jogo enunciativo, ao colocar a linguagem em ação, interioriza regras, posturas e atos, enquanto domina operações e produz sentidos, assim se constituindo como sujeito (SMOLKA, 1988).

A linguagem como objeto de aprendizagem e de ensino está presente também na cena em que Sofia, Enzo e Isabel, por meio da escrita, se desafiam, desafiam a professora e, em interação, pensam sobre o mundo que se dá a conhecer e com ele se movem. Ao observar a interação entre as crianças, a professora sente-se desafiada a dialogar com elas a fim de promover outras ações significativas para a ampliação de suas experiências com a escrita, questão que parecia interessá-las naquele momento. Posteriormente, o registro dessa situação auxilia a professora a observar os diferentes processos ali instaurados, no que se refere às aprendizagens e ao ensino, significá-los e apreciá-los. Assim, encaminha uma avaliação que visa favorecer as aprendizagens, integrando diversas informações, por meio de um acompanhamento articulado às manifestações infantis e aos saberes expressos na ocasião.

Nas relações sociais cotidianas, pela interação, as crianças se enunciam e mobilizam a postura investigativa da professora. Ao acolhermos sua enunciação lhes garantimos um lugar como partícipes da relação pedagógica, inclusive no que se refere aos movimentos de produção processual da avaliação.

Que relações podemos estabelecer entre os momentos e movimentos apresentados e a avaliação das crianças? A ênfase da avaliação é colocada nas possibilidades de Maria Luiza, Isabel, Enzo, Nicolas e Sofia narrarem-se, pois têm o que dizer sobre o que pensam, sentem, aprendem e desejam; sobre seus processos de aprender, no mundo que compartilham e nas relações que estabelecem. Convidada pelas crianças, a professora entra na relação com elas, a partir do diálogo assumido no sentido freireano (FREIRE, 1987), para interrogar-se sobre aquilo que, considerando a subjetividade infantil, expõem sobre suas experiências. Nesse encontro, o tempo da infância atravessa a lógica adultocêntrica, provocando a reflexão sobre o pensamento de cada criança ao tecer suas aprendizagens e sobre os significados atribuídos ao que realizam e às conclusões presentes em suas produções.

Os conhecimentos docentes sobre o lugar das brincadeiras e interações das crianças na realização das aprendizagens, em diálogo com os movimentos que as cenas expõem, produzem pistas sobre como dar continuidade ao seu planejamento, para e com as crianças. A prática avaliativa se integra ao planejamento ao oferecer indícios sobre os caminhos a percorrer para amplificar o que se anuncia como possibilidade. Nesse processo, os múltiplos registros realizados por adultos e crianças ganham sentido quando assumidos como expressões da “observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano” (BRASIL, 2010, p. 29). A observação atenta e o registro cuidadoso requerem a escuta acurada e a participação infantil. Entendemos que a escuta pode assumir dois sentidos: um metodológico e um político, a ser tratado mais à frente.

Para abordar o primeiro, vamos ao trabalho de Rocha (2008). A escuta, como defendida pela autora, quando trata da pesquisa com crianças, vai além do ouvir ou escutar, pois nela ocorrem interpretações. Destaca o quanto as intenções colocadas na relação comunicativa podem permitir ir além da linguagem oral e abrir-se para “as expressões corporais, gestuais e faciais” da criança (ROCHA, 2008, p. 45). Assim, o que compreender da observação contida nos olhares de Enzo e Sofia para a escrita de Isabel? E o olhar de Sofia para a escrita convencional da ficha com o seu nome e seu posterior abandono?

A observação e o registro, permeados pela escuta, são indispensáveis para práticas avaliativas sensíveis aos processos infantis. Contudo, estudos mostram que por si só não garantem a desarticulação de seus sentidos classificatório e seletivo, modelados em crianças abstratas e idealizadas (HOFFMANN, 2009; ESTEBAN, 1993) e efetivados como verificação da aprendizagem pautada em um currículo prescritivo, balizada por respostas pré-concebidas, de acordo com padrões fixos de aprendizagem. É preciso romper com os princípios que regem os processos de subalternização das crianças, lhes atribuem uma menoridade cívica e as invisibilizam na cena pública, com efeitos na redução de seus direitos, inclusive no que se refere a sua participação no planejamento, na realização e na avaliação das ações escolares (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007).

Com esse entendimento, os referidos autores demarcam o sentido político do ato de escutar as crianças. Argumentam que escutá-las em decisões sobre aspectos relativos ao cotidiano escolar contribui para torná-las atuantes em todo o processo. Tornar a criança co-avaliadora de suas aprendizagens e dos contextos nos quais está inserida afiança o poder das crianças e dá consequência à concepção de infância como geração constituída por sujeitos ativos, com direitos próprios (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007) e como experiência plural de transformação e criação (KOHAN, 2007). A escola que se deseja democrática precisa afirmar os direitos da criança e os atos infantis.

A compreensão de processos vividos pelas crianças exige a superação de movimentos redutores da educação das infâncias, o que demanda sua integração a proposições de avaliação vinculadas aos processos de recuperação das experiências infantis e potencializadora da ação docente, levando à constituição de contextos de co-construção de práticas de avaliação. Encontramos como possibilidade a avaliação como prática de investigação (ESTEBAN,1999), que toma como referência os movimentos plurais de aprendizagem e não os objetivos unívocos de ensino. Nessa perspectiva, a avaliação não tem sentido como produção de narrativa sobre a criança que é avaliada, e sim como movimento efetivado pela partilha das narrativas que evidenciam o que se entretece na relação aprendizagemensino (ALVES; GARCIA, 1999) para fomentar a permanente ampliação dos conhecimentos, no cotidiano escolar. Assim, leva a professora a refletir sobre processos diferenciados entre as crianças, no que se encontra com a proposição de Hoffmann (2009), e a se colocar em diálogo com elas, captando indícios do seu aprender, de suas interpretações e de possibilidades de ação docente. Ao fomentar o exercício docente investigativo da própria prática a avaliação se faz, também, como aposta em um processo formativo, articulado pela prática vivida e refletida, individual e coletivamente.

Nesse movimento, a interpelação da criança em suas manifestações expressivas - gestos, ausências, silenciamentos, ações, olhares, falas, movimentos dentre outras - interroga docentes em posturas, entendimentos e pedagogias mobilizando o deslocamento de compreensões pelo adulto, nos limites da compreensão que se pode alcançar. A criança, incorporada ao processo como sujeito, potencializa sua capacidade de reflexão sobre sua experiência e de compreensão de seus processos. Convidada a participar do processo avaliativo, provoca o rompimento com a raiz classificatória que muitas vezes o sustenta. A presença infantil reconfigura a avaliação na dinâmica pedagógica e a coloca como parte de um movimento mais amplo de reconstrução do sentido da escola objetivando torná-la mais democrática.

Nossas pesquisas, na vivência com professoras, apontam a importância do âmbito institucional para a definição das práticas de avaliação. Sinalizam movimentos docentes para a criação de seus registros e modos próprios de coletar, sistematizar e interpretar informações sobre a aprendizagem e o desenvolvimento da criança. A eles se articulam suas concepções de Educação Infantil, de criança, de aprendizagem, de desenvolvimento, de currículo, de avaliação, dentre outras. Todas concorrem para a fundamentação e orientação da compreensão do que é, do para quê, do como, do porquê se avalia nesta primeira etapa da educação básica.

Considerando esse conjunto de relações entendemos ser importante manter ativa a pergunta: como as crianças podem participar da avaliação na Educação Infantil? E a ela agregar outra: que avaliação podemos propor ao assumir que a condição infantil dá vitalidade à escola e que as crianças não se enquadram, diferem?

Por uma docência infantil

Maria Luiza traz seu pai pela mão. Enzo, Sofia, Nicolas e Isabel compartilham a mesa em que desenham. Cenas corriqueiras no cotidiano. Por sua trivialidade, nos mantemos juntas a elas, para nos aproximarmos um pouco mais da professora, em articulação com o trabalho realizado com as crianças. Buscamos esse encontro para seguirmos juntas, na interrogação das práticas de avaliação no cotidiano do trabalho pedagógico e expandirmos um pouco mais nosso exercício reflexivo sobre a avaliação como meio para também indagar sua constituição, seus processos e resultados. Movimentos que reafirmam o papel do diálogo e da reflexão na composição de experiências e aprendizagens significativas para as crianças. Movimentos que só podem existir se vinculados também a aprendizagens das professoras que deles participam. Movimentos constitutivos das práticas cotidianas.

Com esses movimentos nos somamos a tantos outros, para pensar a potência da avaliação efetivada no cotidiano para a formação docente continuada. Embora a formação seja questão amplamente tratada em pesquisas, estudos e debates no campo da Educação Infantil, são insuficientes os trabalhos que abordam a avaliação no cotidiano como mobilizadora do processo formativo, como anteriormente indicado. Entretanto, essa questão se mostra relevante em pesquisas por nós desenvolvidas (ESTEBAN, 2020; FERNANDES, 2018; LOUZADA, 2020), dando nitidez à necessidade de pensar a formação docente para viabilizar uma avaliação dialógica, reflexiva e participativa e de vislumbrar, nessa avaliação, oportunidade de articulação de processos formativos.

Ao nos debruçarmos sobre o entrelaçamento entre experiência, ação docente e sua formação elaboramos a ideia de uma docência infantil, a partir do nosso diálogo com questões presentes no trabalho de Kohan (2007, 2019). De acordo com sua argumentação, a infância é uma experiência plural, repleta de saberes e de indagações. Vincula-se ao fazer-se presença no mundo, caracteriza a vida humana por sua capacidade de transformação do que parece dado como definitivo e constitui-se como uma força para que todas as vidas sejam vidas de verdade, de alegria, de curiosidade, de amor.

Embora indiscutível a conexão entre infância e criança, a condição infantil se expande para além das demarcações etárias. A infância é, portanto, uma questão cronológica e uma condição de experiência: uma possibilidade constitutiva do ser humano. Nesse sentido, é também “uma condição para se viver uma vida educacional sensível ao autoquestionamento, ao engajamento em um ato pedagógico ao mesmo tempo inquieto e criativo.” (KOHAN, 2019, p. 188-189)

Com a potência dessa condição infantil, retomamos em nós mesmas nossas experiências como educadoras das infâncias, bem como a ressonância de nossos tantos diálogos com outras educadoras e, num exercício sentipensante.Falls Borda (2009) trata como sentipensante quem combina a razão e a emoção, a cabeça e o coração, para criar e recriar a cultura e elaborar conhecimentos mais densos sobre a realidade, articulando ciência e arte. Entendemos que o encontro com a criança mobiliza no adulto sua própria condição infantil. Essa interação faz emergir a multiplicidade em que se trama à docência, de modo que a professora encontra seu próprio assombro, se surpreende, formula perguntas, tem a experiência de viver algo pela primeira vez. Pode, assim, problematizar o que se espera com o educar a infância, em consonância com a reflexão apresentada por Kohan:

A infância não é algo a ser educado, mas algo que educa. Numa educação política, não se trata apenas (ou sobretudo) de formar a infância, mas de estar atento a ela, de escutá-la, cuidá-la, mantê-la viva, vivê-la. A infância atravessa a vida toda como uma forma que lhe outorga curiosidade, alegria, vitalidade. Uma educação política é uma educação na infância: na sua atenção, sensibilidade, curiosidade, inquietude, presença (KOHAN, 2019, p. 161).

Diante do desafio de pensar os vínculos entre educação e infância, no sentido proposto pelo referido autor, e reverberando a ideia de ser a infância algo que educa, propomos, de um modo ainda inicial, a ideia de educar-se numa docência infantil. Uma docência articulada pelo vigor que as relações entre adultos e crianças no cotidiano escolar produzem, quando se abrem ao encontro, à curiosidade, à busca do conhecimento em sua complexidade, à amorosidade, ao encantamento, à interpelação. Uma docência que educa ao constituir-se no e para o diálogo, com os sujeitos participantes do processo pedagógico assumidos como parceiros na dinâmica escolar, com as especificidades de suas faixas etárias.

O cotidiano compartilhado por crianças e professoras traz para a docência movimentos e encantamentos presentes na infância - sensível, inquieta, questionadora, criativa - como condição da experiência humana e evidência do seu inacabamento. Inacabamento que, para Freire (1987), articula-se à existência da educação como projeto de humanização. A docência infantil convoca o encontro com o outro para viabilizar o educar-se e problematiza o ato educativo como ação de um (adulto) sobre o outro (criança) e interrompe, mesmo que circunstancialmente, o discurso adultocêntrico que afirma, estrutura, ordena, classifica e define. A condição infantil imprime na docência a permanente possibilidade da dúvida, da interrogação, da busca e da admiração, mobilizadas pela interpelação e transformação dos sujeitos e dos atos, que simultaneamente mobilizam gestos infantis no fazer docente e o ressignificam.

Nesse ponto é relevante retomar a ideia, anteriormente tratada, da avaliação como processo problematizador, partilhado, como meio para conhecer e tomar decisões no que se refere ao planejamento e realização do trabalho pedagógico, para entrelaçá-la à reflexão sobre a docência, por ser um processo participativo, no qual a “curiosidade menina” (FREIRE apudKOHAN, 2019, p. 170) revigora a inquietude na relação pedagógica. Proposta como prática de investigação, a avaliação se produz em sintonia com a pedagogia da pergunta (FREIRE, FAUNDEZ, 1985), importante para a compreensão do lugar da criança na emergência da pergunta no trabalho pedagógico e da infância para torná-la articuladora do processo. O diálogo com a ação infantil tem como potência o convite à professora a interrogar-se ou a pensar a partir das perguntas da criança, num processo que vai dando a ver a curiosidade, o sonho e a criação. Nesse encontro, mediado pelo desejo do conhecimento, dá-se a oportunidade de uma docência infantil, na qual educa-se e (trans)forma-se.

A experiência como educadoras das infâncias, algumas das quais compõem este texto, aliada aos estudos no campo da Educação Infantil, faz emergir essa professora que, tocada pela criança, encontra sua infância e se abre a aprender, no diálogo que ali se estabelece. Assim, também ela encontra seus desconhecimentos, os limites do seu saber, os obstáculos postos pela postura adultocêntrica. As infâncias que dialogam nesse encontro provocam formas outras de se perguntar sobre o mundo, de nele se colocar, de compreendê-lo e da alegria do ato pedagógico amoroso e transformador. Na docência infantil, a avaliação como prática de investigação potencializa a formação da professora pesquisadora (GARCIA, 1996), que problematiza suas experiências e faz do perguntar um fio significativo para a tecelagem de conhecimentos e de sua prática.

As professoras pesquisadoras fortalecem as ações coletivas. Suas perguntas, constituídas na prática avaliativa, fomentam debates sobre as orientações dadas ao trabalho, como, por exemplo, no projeto político pedagógico, bem como alimentam a elaboração de um programa de formação docente continuada, integrado às demais atividades escolares. A problematização da prática dá origem a interpelações que animam à busca da teoria e de outros conhecimentos que se mostrem relevantes. Amplia-se, assim, a experiência docente que ao dar lugar para a infância se traduz na criação e ressignificação da prática pedagógica.

Percursos infantis

Com cenas cotidianas de encontros entre crianças e adultos, trouxemos ao diálogo sobre a avaliação aspectos que vêm sendo tratados de modo insuficiente nos estudos empreendidos no âmbito da Educação Infantil. Com esse percurso indicamos o cotidiano como espaçotempo de aprendizagens, ensino e tecelagem de conhecimentos desde epistemologias múltiplas, no qual se formulam questões, voltado às dimensões praticoteóricas do trabalho com as infâncias, que merecem ser incorporadas pela pesquisa em educação (GARCIA, 2003). Entretanto, questões que requerem familiaridade com o que se apresenta como rotineiro, por vezes banal, desimportante, mas que guarda em si movimentos relevantes e instigantes para o entendimento de suas urdiduras.

Os encontros com as professoras e crianças evidenciaram fios, tomados por nós como mobilizadores do diálogo entre as autoras deste trabalho, com as narrativas de suas experiências e com autores que se dedicam ao estudo das infâncias e da avaliação, incluindo a avaliação na educação das infâncias. Mergulhadas em tantos desafios e oportunidades infantis, nos aventuramos a expor uma compreensão de avaliação coerente com a assunção da criança como sujeito de direitos e a pensar numa docência infantil, esta, ainda, um esboço que entendemos interessante trazer ao debate.

A avaliação mostra-se uma prática significativa para a identificação desses aspectos, em diálogo com as crianças, considerando suas percepções relevantes para compreender seus processos, refletir sobre os resultados alcançados e tomar decisões sobre a continuidade do trabalho pedagógico. Neste artigo enfocamos dois movimentos escolares em que se articula a avaliação da aprendizagem na Educação Infantil: um voltado à compreensão dos processos das crianças, incorporando os registros docentes como documentos centrais para a avaliação que se realiza por meio da recuperação do vivido, incluindo as observações das crianças sobre suas aprendizagens, reflexão sobre ele, interpretação das informações ali contidas para a elaboração de uma compreensão das aprendizagens das crianças, dos percursos que realizam e da sua interação com a proposta pedagógica. Uma conclusão que diz da criança, a partir do que foi com ela realizado, e do trabalho pedagógico.

O segundo movimento se ampara no entendimento de que essa conclusão oferece informações indispensáveis ao planejamento de sua continuidade, devendo, portanto, ser apropriada pela professora para problematizar sua própria prática. Ao fazê-lo, a professora se encontra com os limites dos seus conhecimentos, indicadores de novos conhecimentos que se mostram necessários e potentes para aprofundar sua ação na Educação Infantil. Aspectos que assinalam a formação continuada como inerente ao fazer docente.

Nesses tantos entrelaçamentos, esboçamos a ideia de educar-se numa docência infantil, recuperando a infância como uma condição da experiência humana. A docência infantil, ao sublinhar o cuidado, a presença e o encantamento do conhecer, encontra na avaliação como prática de investigação um processo significativo para manter a inquietação e a criação como características do ato pedagógico. Com elas sentimos, mais uma vez, a potência do caminhar de mãos dadas com as crianças.

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1A pesquisa em questão foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

2Optamos em utilizar o substantivo feminino levando em conta que, majoritariamente, mulheres trabalham com a docência na Educação Infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental.

3A referida revisão bibliográfica utilizou as seguintes palavras-chave: a) avaliação da educação infantil; b) avaliação na Educação Infantil; c) avaliação em Educação Infantil; d) avaliação da aprendizagem na Educação Infantil.

4Dezesseis dissertações foram encontradas nas diferentes palavras-chave. Não houve repetições de teses.

5A autora descreve esta etapa como escola de 1º grau, nomenclatura alterada pela LDB nº 9.394 (BRASIL, 1996).

6Houve autorização para a realização da pesquisa e o uso da identificação dos/as participantes.

7A organização dos grupos por multi-idade funda a busca por novos caminhos na educação infantil. Busca contemplar as crianças em suas diferenças e superar concepções etapistas e biologizantes do desenvolvimento infantil.

Recebido: 04 de Dezembro de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2021

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