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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.37  Curitiba  2021  Epub 08-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.78408 

DOSSIÊ -Desafios da Avaliação na e da Educação Infantil

A qualidade das creches conveniadas de Fortaleza em foco

Silvia Helena Vieira Cruz* 
http://orcid.org/0000-0002-3406-3005

Rosimeire Costa de Andrade Cruz* 
http://orcid.org/0000-0003-2532-010X

Ana Paula Cordeiro Marques Rodrigues* 
http://orcid.org/0000-0001-5880-3963

* Universidade Federal do Ceará. Faculdade de Educação. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: silviavc@uol.com.br- E-mail: rosimeireca@yahoo.com.br - E-mail: anapaula.cmarques@yahoo.com.br


RESUMO

O foco deste trabalho foi a qualidade da educação oferecida nas 94 creches conveniadas de Fortaleza (Ceará). A primeira etapa levantou dados gerais sobre as condições de funcionamento (estrutura física, brinquedos, formação dos profissionais etc.) de 54 creches e a segunda incluiu 16 delas, buscando um maior conhecimento, especialmente, sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas como as experiências e linguagens em contextos lúdicos; tempos, espaços e materiais; envolvimento das crianças e empenho dos professores. Foram realizadas visitas às creches, usando roteiros específicos para as observações e entrevistas. Tanto em relação às condições de funcionamento (como a estrutura física e materiais) quanto às práticas pedagógicas (a exemplo da falta de escuta e parcas interações entre professoras e os meninos e meninas), os dados indicam grandes desafios a serem enfrentados. Levando em conta a legislação vigente, os avanços da área da Educação Infantil e o grande impacto das experiências educacionais nas vidas dos bebês e crianças bem pequenas e mesmo o risco de adoecerem a que eles estão expostos ao frequentarem estas creches, a avaliação realizada indica a supressão do estabelecimento de convênios como estratégia para o atendimento da demanda por creches. Emergencialmente, enquanto este tipo de prática persistir, é urgente o maior investimento público em variados elementos do trabalho desenvolvido nesses equipamentos a fim de garantir o direito desses sujeitos à educação de qualidade.

Palavras-chave: Avaliação da qualidade da educação infantil; Condições educacionais; creches conveniadas; Práticas pedagógicas

ABSTRACT

This paper focuses on the quality of the education offered by the 94 state-aided private childcare centers in Fortaleza, Ceará, Brazil. During the initial stage of this research, general data has been gathered concerning the operating conditions (physical infrastructure, toys, professional training, etc.) of 54 facilities. Subsequently, the scope has been narrowed to only 16 of them, seeking specific knowledge on the pedagogical practices adopted, such as: languages and experiences in playful contexts; time periods, space, and materials; children's engagement and teachers' commitment. Visits to childcare centers were conducted, and specific scripts for interviews and classroom observations were closely followed. The data analysis regarding both operating conditions (physical infrastructure and materials) and pedagogical practices (for example, the lack of communication and poor interaction between teachers and boys and girls) indicates great challenges to be faced. Taking into account the current legislation, the advances in the field of Early Childhood Education, the great impact of educational experiences on the lives of infants and toddlers and even the risk of becoming ill to which they are exposed, the assessment carried out implies the abolishment of such public-private partnership agreements as a strategy to meet the demand for nursery services. On an emergency basis, as long as this sort of practice persists, there is an urgent need for greater public investment in order to guarantee these citizens’ right to quality education.

Keywords: Quality assessment of early childhood education; Educational conditions; State-aided private childcare centers; Pedagogical practices

Introdução

O foco do presente trabalho é a educação das crianças de até cinco anos em Fortaleza (Ceará), com foco nas chamadas creches conveniadas No passado, esses equipamentos eram conhecidos como creches comunitárias e atualmente também são referidas como unidades de atendimento indireto, já que são mantidas com recursos públicos; a partir da promulgação da Lei nº. 13.019 de 13 de junho de 2014(BRASIL, 2014), a denominação oficial desses equipamentos passou a ser “creches parceiras”. Assumindo a acepção de avaliação de Scriven (1991 apudROSEMBERG, 2013, p. 49) como “o processo de determinar o mérito, a qualidade ou o valor de coisas”, trazemos uma avaliação na área da Educação Infantil.

Usualmente, é considerado que a avaliação na Educação Infantil se refere às estratégias que focalizam as crianças, a avaliação da Educação Infantil considera a instituição que oferece essa etapa da educação e a avaliação da política de Educação Infantil trata das ações do Estado relativas a ela. No entanto, é preciso considerar que as condições nas quais é desenvolvido o trabalho pedagógico são decorrentes de determinadas políticas públicas e têm estreita relação com o bem-estar e as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento dos bebês e crianças.

Para Rosemberg (2013), tanto há pouca produção acadêmica acerca da avaliação nessa área como ela tem sido pouco enfocada pelo campo da avaliação. O cenário se alterou um pouco: em levantamento realizado na plataforma Scielo, abarcando o período de 2012 até maio/2020, encontramos 23 trabalhos, ao utilizar os descritores “Educação Infantil” e “avaliação”, o que pode expressar, ainda que timidamente, que a avaliação, no campo da Educação Infantil, começa a se constituir como “problema social” e a integrar a agenda da política de avaliação, na acepção de Rosemberg (2013).

Nesse conjunto de produções encontradas, a avaliação da Educação Infantil é predominantemente tratada a partir de uma faceta específica, como a inclusão de crianças que fazem parte da Educação Especial e a qualidade da brincadeira. Apenas o próprio artigo de Rosemberg (2013) e os trabalhos de Campos (2013) e Moro (2019) abordam, simultaneamente, diferentes aspectos que constituem a qualidade da oferta de creche e/ou pré-escola.

Levando em conta que “a avaliação ganha sentido quando subsidia intervenções que levem à transformação e à democratização da educação, em suas dimensões de acesso, permanência e qualidade” (SOUSA; OLIVEIRA, 2010, p. 818), a avaliação da Educação Infantil brasileira assume importância fundamental. Isto porque estudos como o de Campos et al. (2011) revelam que essa etapa da educação ainda não superou as precariedades e equívocos que têm marcado a sua história.

No contexto da imensa desigualdade social brasileira, as crianças de 0 a 6 anos constituem o maior percentual de pessoas vivendo em extrema pobreza, associado aos piores indicadores sociais (ROSEMBERG, 2006). São essas crianças que frequentam as instituições mais precárias; instituições assistencialistas, isto é, “preconceituosas em relação à pobreza, descomprometidas quanto à qualidade do atendimento” (KUHLMANN JR, 1998, p. 202).

A incorporação de creches conveniadas às políticas públicas sociais voltadas às parcelas mais empobrecidas da população brasileira segue a lógica de diminuição dos custos para “atender” um maior número de crianças, vigente desde os governos militares. Sob a influência de organismos internacionais, a expansão da educação das crianças adotou a utilização de espaços já existentes e o trabalho voluntário da família e da comunidade.

Segundo Silveira et al. (2020), a Prefeitura de Fortaleza vem ampliando a quantidade de vagas em creches conveniadas e, em 2016, o número de crianças que frequentavam esse tipo de atendimento educacional já chegava a mais de 4.600. Portanto, o presente levantamento objetivou conhecer e avaliar as condições nas quais tantas crianças passam boa parte da sua infância. Ele resulta de uma parceria entre o Ministério Público do Ceará (MPCE), a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (FACED-UFC), o Fórum de Educação Infantil do Ceará (FEIC) e o Conselho Municipal de Educação (CME) de Fortaleza .

Qualidade na Educação Infantil

A discussão sobre qualidade, no campo da Educação Infantil, começou nos anos 1990, focalizando tanto o conceito como o processo da sua definição, considerado como elemento constituinte e provocador da qualidade.

Dahlberg, Moss e Pence (2004) ressaltam o fato de a qualidade ser um conceito subjetivo, baseado em valores; portanto, relativo e dinâmico; assim, apontam a necessidade de a contextualizar, espacial e temporalmente, reconhecendo a diversidade cultural e outros elementos locais; portanto, definir qualidade é um processo contínuo, requer revisões e que, assim sendo, nunca chega a um enunciado definitivo. Bondioli (2004) reafirma essa posição e considera que essa discussão tem uma natureza transacional, participativa, autorreflexiva, contextual, plural e transformadora. A definição de indicadores de qualidade também é abordada por Oliveira-Formosinho (2001), argumentando que esse processo precisa ser problematizador, participativo, dinâmico, valorativo e situado.

No Brasil, desde o clássico Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (BRASIL, 1995), diversas publicações do Ministério da Educação (MEC) trataram do tema da qualidade da Educação Infantil e têm contribuído para a construção de alguns consensos na área. Entre eles, vale destacar que os Indicadores de Qualidade na Educação Infantil (BRASIL, 2009b) propõem um processo no qual a autoavaliação da qualidade inclui a participação de profissionais e familiares da escola e a comunidade mais ampla (conselheiros tutelares, por exemplo).

A tendência da área tem sido, portanto, a avaliação das condições nas quais a educação acontece. Até o momento, a inclusão da Educação Infantil no Sistema Nacional de Avaliação Educacional (SAEB) não tem como foco a avaliação massiva das crianças, mas sim os sistemas e instituições públicas ou conveniadas e, de forma amostral, as instituições privadas.

A primeira pesquisa nacional brasileira que procurou avançar no conhecimento acerca das concepções sobre qualidade da Educação Infantil de seus protagonistas foi a Consulta sobre a qualidade na Educação Infantil (CAMPOS; CRUZ, 2006, p. 67) Esse trabalho incluiu a opinião das crianças, estratégia considerada “fundamental para ampliar o repertório relativo ao direito e à qualidade da educação infantil”.

Metodologia

A construção dos dados do presente levantamento aconteceu em duas etapas, envolvendo a aplicação de instrumentos específicos em dois conjuntos de creches, compostos a partir de sorteios, tendo em vista o grande número de creches conveniadas em funcionamento: 94.

Para a primeira etapa do levantamento, foram sorteadas 54 creches (57,4% do total). Destas, foi realizado o sorteio das 16 unidades (próximo a 30% do primeiro grupo) que também participariam da segunda etapa desse processo. Nas duas etapas, o número de creches sorteadas foi proporcional à quantidade de creches conveniadas existentes em cada uma das Secretarias Executivas Regionais (SER) nas quais a cidade está dividida.

Essa primeira etapa do levantamento foi realizada por meio de uma única visita a cada creche, feita por duplas de estudantes da FACED-UFC ou por professores dessa instituição, técnicos do MPCE e do CME de Fortaleza e integrantes do FEIC. O objetivo foi obter informações gerais sobre esses equipamentos, utilizando um roteiro com quesitos sobre o funcionamento, estrutura física, equipamentos e materiais, alimentação, pessoal, proposta pedagógica, acompanhamento pedagógico, formação continuada e relação com as famílias das crianças.

A visita compreendia uma entrevista com os gestores da unidade e observações das instalações físicas, do mobiliário e dos materiais usados. A quase totalidade dos quesitos era do tipo múltipla escolha, devendo uma parte ser respondida pelo gestor e as demais, referentes a avaliações de alguns aspectos (como a conservação, qualidade da ventilação e iluminação naturais e a limpeza dos ambientes), respondidas pelos observadores.

A segunda etapa da pesquisa procurou aumentar o conhecimento sobre as creches, centrando a atenção, sobretudo, nas práticas pedagógicas desenvolvidas. Foi efetuada por alguns alunos do curso de graduação em Pedagogia que eram monitores de disciplina da área de Educação Infantil ou escolheram esse tema para seus Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC), alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação e professores da FACED-UFC.

As visitas para observação tiveram a mesma duração da jornada das crianças nas unidades sorteadas. Nessas unidades, uma das turmas de crianças, definida por meio de sorteio, foi observada e realizada entrevista com a professora responsável.

A observação foi guiada pelo Roteiro para orientar a visita à creche conveniada, composto por três partes: uma adaptação dos Indicadores de qualidade da Educação Infantil Paulistana (SÃO PAULO, 2016) e dois roteiros inspirados na Escala de envolvimento da criança e na Escala de empenho do professor (LAEVERS, 1994; OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2001; PASCAL; BERTRAM, 1999).

A primeira parte desse roteiro possibilitou a avaliação de 33 dos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil Paulistana referentes a todas as dimensões incluídas neste instrumento. Na adaptação realizada, os indicadores foram transformados em perguntas e o observador deveria assinalar a opção “sim”, “em parte”, “não” ou “não se aplica”. No roteiro também havia espaços onde podiam ser acrescentadas informações consideradas necessárias.

Esse roteiro incluía mais dois importantes aspectos da qualidade na Educação Infantil - o envolvimento da criança e o empenho do professor - considerando os comportamentos predominantes na jornada observada. Nessa adaptação, a avaliação do envolvimento das crianças nas atividades propostas pela professora era expressa em apenas três opções: “sim”, “não” ou “em parte”. Outro aspecto avaliado foi o comportamento predominante da professora quanto à sensibilidade às demandas das crianças e quanto ao empenho em promover as suas aprendizagens e estimular a sua autonomia, sendo cada aspecto considerado como presente (“sim”), ausente (“não”) ou parcialmente presente (“em parte”).

A entrevista privilegiou aspectos das práticas pedagógicas não passíveis de serem observados no período enfocado. O roteiro de perguntas feitas também foi elaborado com base nos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil Paulistana (SÃO PAULO, 2016).

As creches conveniadas em Fortaleza: dados gerais

Fortaleza teve um grande crescimento nas matrículas na Educação Infantil nos últimos anos, chegando a 45.136, em 2020. Porém, enquanto a pré-escola, desde 2016, já alcançou praticamente 100% de atendimento, a cobertura na creche é baixa: chega a pouco mais de 30%, sendo registradas, pela Secretaria Municipal de Educação, mais de 7.000 crianças na lista de espera por vagas.

O estabelecimento de convênios com entidades privadas visando ao atendimento em creches fez parte das políticas públicas do Estado do Ceará desde 1987, quando acontecia através da Fundação do Bem-Estar do Menor do Ceará (FEBEMCE), órgão da Secretaria de Ação Social do Estado (SAS). Assim, até o final dos anos 1990, esses equipamentos eram financiados e supervisionados pela área da Assistência Social, integrando a creche conveniada à política de atendimento às pessoas pobres. Em todo o estado, no final da década de 90, chegaram a funcionar 455 desses equipamentos, sendo 144 na capital.

O atendimento educacional indireto, isto é, através das creches conveniadas, sempre teve papel de destaque em Fortaleza. Nessa cidade, além dos estabelecidos com a SAS, os convênios também eram realizados pela Operação Fortaleza (OPEFOR), fundação que era ligada diretamente à primeira-dama do município. A passagem dessas creches para os âmbitos municipal e educacional, no final dos anos 1990, foi conturbada e deixou grande número de crianças excluídas do direito à educação.

Os dados mais antigos referentes a esse tipo de atendimento mostram que as creches conveniadas enfrentavam muitos e graves problemas, tais como: baixa escolaridade das professoras; atividades pedagógicas inadequadas associadas à antecipação da escolaridade; estrutura física imprópria, com espaços internos pequenos, quentes e mal iluminados; parcos materiais pedagógicos, faltando brinquedos, livros de literatura infantil, espelhos etc.; e mobiliário insuficiente e sem conservação (CRUZ, 2001).

Outras características dessas creches eram as longas esperas e a ociosidade presentes na rotina diária, consequência, dentre outros fatores, da ausência de planejamento das atividades desenvolvidas com as crianças, da centralidade da rotina na professora, da inexistência de proposta pedagógica elaborada e assumida por todos os profissionais que atuavam na instituição e, sobretudo, de visões preconceituosas com relação às crianças e suas famílias. Na quase totalidade desses equipamentos, o atendimento era em período integral; portanto, maiores as consequências danosas de todos esses problemas para o bem-estar, as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças (ANDRADE, 2002). Apesar de todos esses problemas, o atendimento nesse tipo de equipamento continuou a se expandir na capital.

De 2010 a 2013, houve uma diminuição do número de creches conveniadas em Fortaleza, mas, desde então, ele vem aumentando: em 2013, existiam 46 unidades, com cerca de 3.600 matrículas (FORTALEZA, 2013), e em 2020 já totalizavam 98, atendendo 7.382 crianças (FREITAS, 2020); portanto, houve uma ampliação de mais de 100% tanto no número de creches conveniadas como de matrículas. Sintetizamos, a seguir, as informações produzidas na primeira etapa do presente levantamento, relativas às condições de funcionamento desses equipamentos.

A maioria dessas creches funcionava em período integral e o número de crianças atendidas variava bastante: 11,4% recebiam mais que 100 crianças; 66,8% entre 56 e 96 e 18,6% atendia um menor número.

Totalizava 66,7% as creches que não possuíam parquinhos para as crianças sendo que apenas 20,4% dos existentes estavam em bom estado de conservação e que nem metade desses poucos parquinhos estavam equipados com uma boa quantidade de brinquedos, diante do número de crianças que os utilizavam. Tais dados são preocupantes, pois indicam que vários direitos das crianças não estavam sendo plenamente garantidos. Vale lembrar que, desde os anos 1990, tem sido apontada a importância de as crianças terem direito ao contato com a natureza e ao movimento em espaços amplos, que se constituem em dois dos Critérios para um Atendimento em Creches que Respeite os Direitos Fundamentais das Crianças (BRASIL, 1995). Mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) relativa à Educação Infantil define seis direitos das crianças que devem ser garantidos nessa etapa da educação, articulando os princípios éticos, estéticos e políticos expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI): conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se (BRASIL, 2017). A ausência ou precariedade de espaços externos dificulta a vivência desses direitos.

Uma carência ainda mais forte quanto às instalações físicas externas acontecia em relação à existência de tanques de areia, pois 84,6% das creches nem sequer os possuíam e não chegava a 5% o número das que tinham essas estruturas bem conservadas.

Quanto às dependências internas dessas instituições, a maioria (87%) delas contava com duas a cinco salas de atividades, cujas dimensões eram variáveis, havendo maior concentração de salas entre 12 e 24 m² (61,3%). No entanto, em quase metade dessas salas (47%), o espaço entre os móveis existentes não era suficiente para permitir a livre circulação das crianças ou a realização de brincadeiras, especialmente, as que envolvem a motricidade ampla. Além disso, 56% desses espaços estavam mal conservados ou apenas razoavelmente conservados; a iluminação natural era inadequada em 32,7% deles; e 15,7% das salas tinham ventilação ruim.

Chama bastante atenção que 40,7% das creches não possuíam biblioteca ou “cantinho de leitura”. Apenas em pouco mais da metade das unidades esses espaços foram encontrados, sendo que 46,3 % dos acervos literários estavam nas salas de atividades e 13% em bibliotecas. O acesso das crianças à literatura infantil também era dificultado por outros fatores: o acervo literário, quando existia, geralmente não era bem conservado e em 37% das bibliotecas a iluminação natural era inadequada e a ventilação natural não era boa em 59% dos locais.

A maior parte das creches (84,9%) possuía apenas um banheiro para as crianças, sendo que em uma delas não havia nenhum banheiro. Outros problemas identificados nesses cômodos foram: ventilação inadequada; pequeno número de aparelhos sanitários para as crianças, tendo em vista a quantidade de meninos e meninas que frequentavam esses equipamentos; e a ausência de piso antiderrapante.

A maioria das creches (64%) contava com apenas um banheiro para adultos, embora 25% delas possuíssem dois. Nesses espaços, a iluminação e a ventilação naturais foram consideradas muito problemáticas; em mais da metade das creches eram mal iluminadas e em cerca de 60% delas a ventilação era ruim ou razoável. Vale destacar, ainda, que não chegava a 10% os banheiros para adultos que são equipados com pias e sanitários acessíveis às pessoas que utilizam cadeiras de rodas.

Outros espaços internos avaliados foram os refeitórios e as cozinhas. Quase todas as creches (92,2%) possuíam refeitório para as crianças, sendo pouco mais da metade deles em bom estado de conservação. Todas as creches eram equipadas com cozinha para a preparação dos alimentos das crianças, estando a maioria (71,2%) bem conservada. Porém, esses cômodos também enfrentavam problemas de iluminação e ventilação naturais: em quase metade dos casos (49%) a iluminação era inadequada e na maioria deles (em 60% dos casos) a ventilação era razoável ou até ruim.

Algumas outras informações sobre a estrutura física e os materiais dessas creches que merecem destaque são: a) somente em 14,8% delas o acesso foi projetado para pessoas com deficiências físicas, o que reforça a necessidade de investimentos em relação à acessibilidade; b) em um grande número de casos havia poluição na própria creche ou em suas proximidades, sendo a poluição ambiental a mais comum (60,7%); c) em metade das unidades faltavam extintores de incêndio; d) a quantidade de brinquedos para crianças na faixa de dois a três anos era insuficiente em 43,1% delas; e) não chegava a 50% o percentual de instituições que dispunham de espelhos grandes, na altura das crianças, restringindo as possibilidades de explorações, brincadeiras e construção da imagem de si, pelas crianças.

Também é importante destacar algumas informações relativas aos profissionais que trabalhavam nas creches, especialmente às professoras, uma vez que é delas a responsabilidade maior pelo bem-estar, aprendizagens e desenvolvimento das crianças. A necessidade de novos funcionários era divulgada de maneira informal e limitada; na grande maioria das vezes (85%) isso era feito apenas por meio da comunicação verbal de funcionários da creche ou de cartazes fixados na própria instituição.

Para a seleção dos professores, eram utilizadas basicamente a análise do currículo (77,4%) e a entrevista dos candidatos (66%). No entanto, ainda existiam creches (24,5%) que adotavam apenas a indicação de pessoas nesse processo e em apenas 7,5% delas os candidatos eram submetidos à prova escrita, o que pode indicar pouco apreço pelos conhecimentos exigidos para o desempenho das funções ligadas à educação e cuidado dos bebês e crianças bem pequenas.

A formação mínima exigida para as professoras, na maioria dessas instituições (66%), era o curso de Pedagogia. Porém, o curso de magistério (nível médio) ainda era aceito por 20,8% das creches e em 13,2% delas era admitida a graduação em qualquer outro curso.

Nessas instituições não era respeitado o piso salarial docente que, em 2018, chegava a R$ 2.455,35: 65% das professoras recebiam de R$ 1.100,00 a R$ 1.200,00 e o maior salário não atingia R$ 1.400,00. A baixa remuneração fica mais evidente quando se considera que a jornada de trabalho semanal dessas professoras era de, no mínimo, 40 horas e para mais de 40% era de 44 horas.

Quanto à coordenação da creche, em 24% dos casos, não era exigido qualquer curso superior para assumir essa função, um dado preocupante, devido a sua importância para o apoio e o acompanhamento das práticas pedagógicas desenvolvidas nessas instituições, inclusive, tendo que contribuir para a formação continuada das professoras. A maioria (55,8%) dessas coordenadoras trabalhava 40 horas por semana, havendo também uma porcentagem expressiva (32,7%) que ultrapassava essa jornada de trabalho. Seus salários eram semelhantes aos das professoras: 77% delas tinham remuneração menor ou igual a R$ 1.400,00.

O foco em algumas creches

Os dados trazidos a seguir exploram as práticas pedagógicas das 16 creches sorteadas e foram produzidos através da utilização dos roteiros de observação e de entrevista. Inicialmente, é importante destacar que as dimensões da qualidade que tiveram mais indicadores assinalados positivamente foram, em ordem decrescente: Promoção da saúde e bem-estar: experiências de ser cuidado, cuidar de si, do outro e do mundo (199); Formação e condições de trabalho das educadoras e dos educadores (126); Rede de proteção sociocultural: unidade educacional, família, comunidade e cidade (128); e Multiplicidade de experiências e linguagens em contextos lúdicos para a infância (109). De maneira geral, a prevalência de respostas positivas aconteceu nos indicadores avaliados pelos profissionais nas entrevistas realizadas, reduzindo a sua fidedignidade; por exemplo, na dimensão Promoção da saúde e bem-estar: experiências de ser cuidado, cuidar de si, do outro e do mundo, no indicador que indagava sobre o oferecimento, aos bebês e crianças bem pequenas, de um cardápio nutricional variado, equilibrado e fresco, que atenda às suas necessidades, inclusive daqueles que necessitam de dietas especiais, a resposta “sim” foi majoritária (em 15 das 16 creches!), mesmo que a realidade constatada nas visitas negasse isso.

Por outro lado, as dimensões que obtiveram maior quantidade de respostas negativas foram: Multiplicidade de experiências e linguagens em contextos lúdicos para a infância (222); Ambientes educativos: tempos, espaços e materiais (164); Relações étnico-raciais e de gênero (163); e Interações (116). As respostas negativas representaram, no mínimo, o dobro da quantidade de respostas positivas para a mesma dimensão. Assim, por exemplo, ao enfocar a Multiplicidade de experiências e linguagens em contextos lúdicos para as infâncias, foram obtidas 222 respostas negativas e 109 positivas. No caso de Interações, a incidência de respostas negativas representou 10 vezes o total de respostas positivas (nesta dimensão, o indicador que mais pontuou com a resposta “não” foi “interação criança/adulto”, que recebeu 116 “não” e apenas 11 “sim”).

Feitas essas observações iniciais, passamos a apresentar alguns resultados, em cada dimensão avaliada, considerando todos os instrumentos utilizados.

  1. Planejamento e gestão educacional. Essa foi a única dimensão aferida apenas com base nas entrevistas realizadas com as professoras responsáveis pelas turmas. Segundo elas, a maioria das 16 creches possuía proposta pedagógica sistematizada em forma de documento, elaborada e revista regularmente com a participação das professoras, coordenadoras e pais. Entretanto, em quatro unidades esse documento não existia ou não foi construído coletivamente e nem era conhecido por todos. Por outro lado, em sete creches, o planejamento, a avaliação, a seleção de materiais e a organização das atividades desenvolvidas com as crianças diariamente não traduziam diretamente as intenções descritas na proposta pedagógica sistematizada em forma de documento. De acordo com as professoras, isso acontecia em apenas 11 instituições, o que indica certa persistência da proposta pedagógica cumprir apenas uma função burocrática, uma vez que ela não era consultada no planejamento das atividades.

  2. Participação, escuta e autoria de bebês e crianças bem pequenas. A prática pedagógica desenvolvida com os bebês e as crianças pequenas era marcada por pouca escuta - verbal e não verbal - das crianças e quase nenhuma acolhida, pelas professoras, de suas proposições, o que indica que não se transformam e nem são problematizadas a partir dos pontos de vista e necessidades desses sujeitos. A exemplo disso, as tentativas de comunicação por meio de suas diferentes formas de linguagem foram totalmente ignoradas pelas professoras em três creches e apenas parcialmente consideradas em seis outras. Assim, não surpreende que em apenas uma dessas unidades tenha sido observado o respeito aos direitos fundamentais dos bebês e das crianças bem pequenas à atenção individual e à expressão de seus sentimentos, conforme preconizam os Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (BRASIL, 1995). O mesmo cenário foi observado na organização da rotina: prevaleceu largamente a não participação dos bebês e das crianças, seja compartilhando escolhas ou dando sugestões à professora, ocorrendo apenas, e de forma parcial, em duas unidades, o que contraria os princípios da Pedagogia da Educação Infantil, dentre os quais valorizar e procurar compreender as palavras, as intenções reais das crianças e a sua forma de ver o mundo e fazer disto matéria-prima da ação pedagógica (OLIVEIRA, 2011). Possivelmente como consequência dessa situação, em apenas uma instituição a maioria das crianças se mostrou envolvida nas atividades propostas, expressando isso através de sua concentração, energia despendida, expressão facial e postura (OLIVEIRA-FORMOSINHO; ARAÚJO, 2004). É importante deixar claro aqui que o envolvimento ou a ausência de envolvimento das crianças não informa sobre o seu desenvolvimento, características e capacidades em geral, mas o seu estado em determinado ambiente. Como assinala Folque (2012, p. 17), “considera-se que se as crianças de um determinado grupo apresentam níveis de envolvimento baixos isto se deve às características do contexto, como a natureza das atividades, a qualidade dos materiais, as interações com adultos etc.”.

  3. Multiplicidade de experiências e linguagens em contextos lúdicos para as infâncias. Na maioria das instituições visitadas, as professoras apoiaram parcialmente bebês e crianças bem pequenas na conquista da autonomia para a realização dos cuidados diários - como segurar a mamadeira, alcançar objetos, tirar as sandálias, lavar as mãos, usar o sanitário etc. - ou não o fizeram de forma alguma (situação verificada em três unidades). Somente em três creches o desenvolvimento da autonomia das crianças foi favorecido pelo apoio das professoras que incentivaram as crianças a escolherem brincadeiras, brinquedos e materiais, o que reforça a necessidade de, na maioria das unidades, romper “com as concepções tradicionais de educação que, na sua essência, ignoram o direito da criança a ser vista como competente e a ter espaço de participação” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2013, p. 32). As possibilidades para movimentos em espaços amplos e as oportunidades para os bebês e crianças bem pequenas brincarem foram pouco frequentes nessas instituições: em apenas uma creche a professora organizou espaços e tempos para o brincar, onde esses sujeitos pudessem vivenciar corporalmente as infinitas possibilidades de movimento. Coerente com o já mencionado, as práticas docentes na maioria das instituições (12) não respeitavam os ritmos e interesses infantis, ao contrário de garantir experiências às crianças que “promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos seus ritmos e desejos” (BRASIL, 2009a, grifos nosso). Na mesma direção, as necessidades fisiológicas dos bebês e crianças bem pequenas foram atendidas com presteza, aceitação e acolhimento somente em pouco mais da metade das instituições. Esse conjunto de dados causa bastante apreensão, na medida em que revela negligência em relação ao direito das crianças a experiências que promovam aprendizagens, desenvolvimento, bem-estar e a construção da sua autonomia e assemelha-se ao quadro encontrado na pesquisa de Andrade (2002) já mencionada nesse texto.

  4. Interações. A qualidade dos contextos educacionais que as crianças frequentam e as diferentes experiências de interações que lhes são possibilitadas influenciam diretamente o desenvolvimento de características humanas fundamentais, como a linguagem, o pensamento, a afetividade, a sociabilidade, e a ampliação dos repertórios de conhecimentos e habilidades. Nesta perspectiva é que “as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira” (BRASIL, 2009a). A despeito disso, as interações da professora com os bebês e crianças bem pequenas no sentido de promover confiança, as encorajar, apoiar, elogiar etc., inclusive nos momentos de trocas de fraldas, roupas, calçados, alimentação e banho, estiveram ausentes em 12 das creches. Quando se considera que “o momento dos cuidados individualizados é oportuno para um diálogo corporal e verbal, de gestos suaves e delicados por parte do educador, acompanhados de palavras sobre o momento que a criança vive, expressando atenção e interesse por ela” (FALK, 2016, p. 34), o que favorece a construção de uma autoimagem positiva, torna-se extremamente grave o fato de que em oito instituições a professora não tenha conversado de forma alguma com os bebês e as crianças durante o desenvolvimento dessas atividades. Somente em três creches a professora adotou a prática de conversar com os bebês e crianças pequenas, mantendo-se na mesma altura delas, estabelecendo contato visual e corporal nos diversos momentos diários.

  5. Relações étnico-raciais e de gênero. O cumprimento da função sociopolítica e pedagógica da Educação Infantil implica, dentre outros aspectos, considerar que as creches e as pré-escolas precisam desempenhar seu papel promotor de “novas formas de sociabilidade e de subjetividades comprometidas com a democracia e a cidadania, com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial e de gênero” (BRASIL, 2009a). Assim, quando a professora não realiza ações com os bebês e as crianças bem pequenas na creche, no sentido de valorizar as diferenças entre os grupos étnico-raciais presentes no nosso país, a instituição educativa não apenas deixa de cumprir essa função como também contribui para a manutenção de relações de dominação já tão presentes e nocivas em nossa sociedade, como o racismo. Na verdade, esse foi o quadro encontrado em quase todas as unidades: mesmo naquelas onde as diferenças entre grupos étnico-raciais eram mais visíveis, ou seja, em 14 creches, não foram observadas ações no sentido de valorizar tais diferenças e em nenhuma das unidades houve a proposição de situações que estimulassem novos conhecimentos e visões sobre as variadas culturas. De forma semelhante, também não foram observadas, em nove instituições, proposições de situações nas quais os bebês e as crianças pudessem interagir e brincar indistintamente quanto ao sexo; ao contrário, em cinco creches foi observada, sobretudo, nas brincadeiras, a persistência de equivocadas restrições que diminuem as possibilidades de experiências das crianças e contribuem para cristalizar preconceitos vigentes em relação aos papéis masculino e feminino.

  6. Ambientes educativos: tempos, espaços e materiais. As oportunidades para os bebês e as crianças exercerem o seu direito de aprender a brincar, explorar e conviver se mostraram bastante restringidas pela organização do ambiente na maioria das creches: espaços, materiais, objetos e brinquedos não estavam acessíveis para esses sujeitos em 13 delas e em oito não havia áreas internas para movimentos, brincadeiras e deslocamentos e exploração dos ambientes, situação agravada pela precariedade dos espaços externos em dez das unidades. Chama a atenção que, nas instituições em que foi observado o uso da TV, isso aconteceu de forma inadequada, ocupando a maior parte da jornada das crianças na instituição e com conteúdo que não fazia jus ao potencial criativo desses sujeitos.

  7. Promoção da saúde e bem-estar: experiências de ser cuidado, cuidar de si, do outro e do mundo. As situações favoráveis para as crianças aprenderem a cuidar de si no cotidiano da creche foram observadas em apenas cinco unidades, predominando a ausência desta prática: em cinco instituições não aconteceu nenhuma situação que favorecesse essa aprendizagem e, em seis, isso se deu de forma parcial. Em apenas sete instituições foi oferecido aos bebês e crianças um cardápio nutricional variado, equilibrado e fresco. A limpeza, salubridade e o conforto da maioria das instituições visitadas também foram aspectos cuja qualidade se mostrou bastante crítica: em 13 unidades, a sala de referência enfocada não era ou era parcialmente agradável, limpa, ventilada e tranquila, com acústica que permitisse uma boa comunicação. A qualidade dos espaços externos das instituições enfrentava problemas: em 10 unidades, estes ambientes não eram ou eram parcialmente agradáveis, limpos, ventilados e tranquilos, sem barulho excessivo que permitisse uma boa comunicação. Portanto, parece que era pouco garantido o direito dos bebês e crianças bem pequenas a um ambiente aconchegante, seguro e estimulante em sua sala de referência e nos espaços externos. A precariedade das condições, descritas até aqui, para o bem-estar, aprendizagens e desenvolvimento dos bebês e crianças bem pequenas é agravada quando se considera que em apenas duas creches as professoras se mostraram sensíveis às demandas desses sujeitos, assumindo posturas que indicavam sensibilidade no acolhimento de suas necessidades, ouvindo-lhes e respondendo-lhes de forma afetuosa; somente em quatro instituições essas profissionais se mostraram preocupadas em estimular as aprendizagens infantis, motivando as crianças de forma de forma clara, incentivando o diálogo e propondo atividades diversificadas; e em apenas uma creche a docente apresentou comportamentos que indicavam seu esforço em possibilitar o desenvolvimento da autonomia das crianças, permitindo-lhes fazer escolhas e as encorajando a expressar suas ideias, respeitando-as mesmo quando diferentes das suas. A ausência desses aspectos sinalizadores de empenho das professoras - sensibilidade, estimulação e autonomia (OLIVEIRA-FORMOSINHO; FORMOSINHO, 2001) - ao mesmo tempo que denotam fragilidades em sua formação inicial e continuada refletem também as suas condições de trabalho. Assim, não se trata de características próprias das profissionais, mas dessas no contexto em que exercem a docência. Afinal, “adultos que trabalham em condições precárias têm mais tendência em revelar atitudes de não empenhamento na interação com as crianças” (FOLQUE, 2012, p. 6).

  8. Formação e condições de trabalho das educadoras e dos educadores. Segundo as professoras, em 14 unidades visitadas, havia reuniões pedagógicas para preparo de materiais, estudos, trocas de experiências, planejamento, reflexão sobre a prática, produção e sistematização de registros. Elas também informaram que em apenas quatro creches as oportunidades de formação continuada iam além das reuniões pedagógicas. As professoras e 14 das coordenadoras das creches participavam dos encontros sistemáticos de formação continuada e de outros cursos de formação oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME). Já as chamadas auxiliares de sala, apesar de desempenharem atividades diretamente relacionadas à educação e ao cuidado dos bebês e das crianças bem pequenas, não tinham acesso ou eram incluídas parcialmente nessas oportunidades de formação.

  9. Rede de proteção sociocultural: unidade educacional, família, comunidade e cidade. Na maioria das creches observadas, a professora tratou as famílias de forma gentil e acolhedora, mas em três delas isso não aconteceu e em seis instituições a professora admitiu não trocar informações sobre as crianças com seus familiares no momento da chegada ou da saída da creche. A frágil relação de parceria da unidade educativa com as famílias, apesar de esses equipamentos serem geridos por entidades da comunidade, também se expressou no fato de que, em seis instituições, as docentes revelaram não saber quem são os familiares das crianças (nomes, locais de moradia, atividade exercida etc.) o que indica uma postura pouco atenta aos contextos das crianças com quem trabalham diariamente. De forma similar, também informaram a ausência de ações integradas na maioria das instituições com os serviços da rede de proteção social dos direitos dos bebês e das crianças bem pequenas.

Considerações finais

Esse levantamento permitiu obter variadas informações até então não disponíveis sobre as creches conveniadas em funcionamento, em Fortaleza. Como não há dados semelhantes acerca de outros tipos de atendimento em Educação Infantil (público ou privado) realizados nessa cidade, não é possível fazer comparações objetivas entre eles. No entanto, certamente é evidente que o quadro desenhado a partir dessas informações é muito preocupante, pelos motivos já apontados anteriormente e que são sintetizados a seguir.

Tanto em relação às condições concretas de funcionamento (estrutura física, materiais, formação dos profissionais etc.) como às práticas pedagógicas (como as experiências e linguagens em contextos lúdicos; os tempos, espaços e materiais; níveis de envolvimento e empenho) há grandes desafios a serem enfrentados.

Na verdade, em vários dos equipamentos visitados, não são garantidos aos bebês e crianças bem pequenas muitos de seus direitos fundamentais, tais como: manter seu corpo cuidado, limpo e saudável; alimentar-se, repousar, ir ao banheiro e beber água sempre que sentir necessidade; aprender a brincar de diversas formas, em diferentes espaços com diferentes parceiros; movimentar-se em espaços amplos; e aumentar seu repertório de conhecimentos e destrezas. Portanto, tais equipamentos, além de não contribuir positivamente para o bem-estar e desenvolvimento integral desses sujeitos, podem representar risco de adoecimento para eles.

Sem dúvidas, ao comparar a situação encontrada com a que foi descrita por Cruz (2001), são visíveis avanços, especialmente, em relação às exigências quanto à escolaridade mínima para a contratação de professores. No entanto, isso não é o suficiente, tendo como referência a legislação vigente, as conquistas da área da Educação Infantil e, sobretudo, os direitos das crianças a uma educação de qualidade.

Essas também foram as referências adotadas neste levantamento, como procuramos evidenciar ao longo do texto. Na verdade, seria impossível realizar uma avaliação das condições de funcionamento e das práticas pedagógicas observadas nas creches conveniadas sorteadas para compor esse levantamento sem explicitar os conhecimentos, princípios e valores que a guiaram desde a sua concepção às análises realizadas. Acreditamos, portanto, na possibilidade e mesmo necessidade de maior incorporação do tema da avaliação das condições da oferta e das políticas públicas na área da Educação Infantil, passando a integrar mais o campo da avaliação, desde que sejam considerados os elementos que têm sido importantes para a consolidação da identidade dessa etapa da educação.

Rosemberg (2001) aponta a importância e o papel da pesquisa científica na avaliação de projetos, programas e políticas nessa etapa da educação. Para ela, o conhecimento produzido pela ciência deve instrumentar os atores que participam do jogo de interesses e pressões que provocam, em cada momento, as definições das políticas sociais, contribuindo para a tomada de decisões socialmente mais justas e democráticas. Nessa direção, esperamos que, em breve, haja a possibilidade de que as informações e as análises produzidas nesse levantamento sejam apresentadas em uma audiência pública, conforme estava planejado, anteriormente à pandemia da Covid-19 que assola o nosso país.

Essa é uma das estratégias, assim como a publicação desse artigo, para que essas informações e análises possam fortalecer argumentos de profissionais, organizações e população de um modo geral na defesa da prioridade de, em breve, eliminar o atendimento educacional das crianças através de creches conveniadas e pressionar o poder público pela ampliação do atendimento direto, isto é, em instituições próprias e com profissionais concursados. Ao mesmo tempo, esperamos ter evidenciado a necessidade de, enquanto ele persistir, haver forte investimento público em variados elementos do trabalho desenvolvido nesses equipamentos, especialmente na formação continuada das profissionais, a fim de garantir o direito dos bebês e crianças bem pequenas à educação de qualidade, devido ao grande impacto das experiências educacionais em suas vidas.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 10 de Dezembro de 2020; Aceito: 01 de Junho de 2021

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