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Educar em Revista

Print version ISSN 0104-4060On-line version ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.38  Curitiba  2022  Epub Mar 19, 2022

https://doi.org/10.1590/0104-4060.78962 

Artigos

Políticas de acesso e permanência na Universidade do Texas, Austin (EUA): elementos para reflexão sobre o caso brasileiro1

Admissions and retention policies at University of Texas, Austin (USA): elements to reflect about the Brazilian case

*Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: rosana.heringer@gmail.com


RESUMO

Este artigo traz análises e reflexões a partir de resultados iniciais de pesquisa realizada pela autora na Universidade do Texas em Austin, EUA (UT-Austin), durante o primeiro semestre de 2020, período em que esteve na instituição como Fulbright Visiting Scholar. Seu objetivo foi conhecer e analisar as principais políticas de acesso e permanência estudantil desenvolvidas por aquela instituição. São de especial interesse as políticas de ingresso, particularmente o plano chamado “Top 10%”, que destina um percentual de vagas aos estudantes com melhor desempenho no ensino médio em todas as escolas do Texas. Também destacamos os dados e análises sobre os chamados programas de “engajamento e sucesso acadêmico” desenvolvidos pela universidade. A análise dessas experiências também teve como objetivo subsidiar reflexões sobre as atuais políticas de acesso e permanência no ensino superior brasileiro, notadamente nas universidades federais.

Palavras-chave: Permanência estudantil; Acesso ao ensino superior; Universidade do Texas-Austin; Engajamento acadêmico; Sucesso acadêmico

ABSTRACT

This article brings analyzes and reflections based on initial results of research carried out by the author at the University of Texas at Austin, USA (UT-Austin) during the first semester of 2020, when she was at the institution as a Fulbright Visiting Scholar. It aims to know and analyze the main policies for student access and retention currently developed by that institution, with special interest on admission policies, particularly the so-called “Top 10%” plan, which allocates a percentage of seats to the best performing students from all high schools in Texas. We also highlight the data and analysis on the so-called “academic engagement and success” programs developed by the university. The analysis of these experiences also aimed to subsidize reflections on current access and retention policies in Brazilian higher education, mainly in federal universities.

Keywords: Student retention; Access to higher education; University of Texas-Austin; Academic engagement; Academic success

Introdução

Este trabalho traz análises e reflexões a partir de resultados de pesquisa realizada na Universidade do Texas em Austin, EUA (UT-Austin) durante o primeiro semestre de 20202. A pesquisa teve como objetivo conhecer e analisar as principais políticas de acesso e permanência estudantil em curso naquela instituição. Foram de especial interesse as políticas de ingresso, particularmente o plano chamado “Top 10%”, que destina um percentual de vagas aos estudantes com melhor desempenho no ensino médio em todas as escolas públicas e privadas do Texas. Também analisamos programas voltados para promoção do engajamento estudantil e sucesso acadêmico desenvolvidos por setores específicos da universidade. A análise dessas experiências teve como objetivo subsidiar reflexões sobre as atuais políticas de acesso e permanência nas universidades públicas brasileiras, principalmente nas instituições federais3.

Na pesquisa que subsidia a análise aqui apresentada nos dedicamos a observar as contribuições de programas institucionais voltados para o acesso e a permanência estudantil para o aumento das taxas de conclusão de curso e diversificação de públicos que acessam diferentes carreiras na UT-Austin. A pesquisa traz uma preocupação especial em observar como as ações institucionais colaboram para ampliar o senso de pertencimento (sense of belonging) de estudantes de grupos sub-representados na UT-Austin, notadamente estudantes de origem latina e estudantes afro-americanos.

Como ponto de partida, é importante destacar que não estamos propondo uma análise comparativa das experiências de acesso e permanência em universidades públicas norte-americanas e brasileiras. Sabemos das grandes diferenças políticas, socioeconômicas, culturais, institucionais, entre outras, que limitariam em muito as possibilidades de comparação. Por outro lado, é interessante observar que, apesar de todas estas diferenças, os dilemas enfrentados por instituições de ensino superior nos dois países, principalmente as mais seletivas, guardam algumas similaridades: como conciliar altos padrões de desempenho acadêmico e inclusão social e racial? Como garantir maior equidade no ingresso e no percurso acadêmico de estudantes de diferentes origens nessas universidades? Como promover políticas de permanência que possuam, como mencionado por alguns entrevistados, uma perspectiva holística, que não se preocupe apenas com a ajuda financeira aos estudantes que precisam, mas também se ocupe de outras dimensões da experiência universitária? E, talvez, uma das principais: como transformar essas preocupações numa agenda institucional prioritária, que esteja no centro das decisões e escolhas dos gestores?

Consideramos que muitas dessas questões dizem respeito a instituições de ensino superior públicas norte-americanas e brasileiras, e permitem, portanto, um diálogo entre esses diferentes contextos que pode e deve ser expandido e consolidado, guardadas todas as especificidades.

Revisão teórica

Em trabalho anterior (VARGAS; HERINGER, 2017), discutimos as políticas de permanência estudantil no ensino superior argentino, brasileiro e chileno. A partir desta perspectiva comparada, destacamos que a permanência possui uma complexa multidimensionalidade, pois engloba fatores não apenas materiais, mas também culturais, simbólicos e psicológicos. Suprir as necessidades socioeconômicas dos estudantes não é o suficiente para que se dê a permanência plena, há a necessidade de desenvolver outras ações, como, por exemplo, participação em atividades acadêmicas não obrigatórias. O corpo docente e demais servidores das instituições universitárias também possuem um papel relevante, buscando oferecer soluções compatíveis com a realidade dos estudantes. Concluímos que as instituições têm maiores chances de serem bem-sucedidas nas suas ações de permanência na medida em que forem capazes de conjugar apoio material, apoio pedagógico e ampliação de oportunidades acadêmicas para os estudantes (VARGAS; HERINGER, 2017).

No presente estudo, realizado na UT-Austin, nossa inquietação inicial foi identificar as principais dificuldades enfrentadas pelos estudantes pertencentes a grupos minoritários e sub-representados na instituição e, ao mesmo tempo, conhecer melhor as respostas e estratégias institucionais desenvolvidas pela universidade para atrair e manter esses estudantes, criando condições para seu sucesso acadêmico.

Do ponto de vista teórico, dialogamos com uma literatura que há várias décadas tem explorado questões referentes ao acesso e à permanência na educação superior. Entre alguns dos principais autores que discutem essas temáticas, temos as contribuições marcantes de Vincent Tinto (1975, 1999) e Alain Coulon (2008), trazendo, no caso do primeiro, os conceitos de integração social e acadêmica e, no caso do segundo, o conceito de afiliação estudantil (PRADO, 2020). Vários autores subsequentes, desde os anos 1990, vêm dialogando e refinando as análises trazidas por Vincent Tinto (1975) e Alain Coulon (2008) (PASCARELLA; TERENZINI, 2005apudOWOLABI, 2018; MELGUIZO, 2011), identificando lacunas e aspectos pouco explorados por esses autores. Trazemos aqui duas dimensões importantes dessas críticas.

Uma delas aponta para o fato de que Tinto tomou como ponto de partida a análise de estudantes relativamente homogêneos, em sua maioria homens, brancos e que foram estudar em universidades distantes de seus locais de origem. Observa-se que nem todas as suas conclusões se aplicariam a estudantes com outros perfis (MELGUIZO, 2011).

Uma outra crítica aponta que tanto a noção de integração quanto a de afiliação levariam a uma interpretação de que é o estudante que deve afiliar-se ou integrar-se, adaptando-se ao contexto institucional, às suas regras, à sua cultura. Desta forma, haveria pouco espaço para que os estudantes, compreendidos de modo diverso e em suas singularidades, trouxessem suas contribuições específicas para a instituição, questionando aspectos de seu funcionamento e contribuindo para sua transformação (SANTOS; VASCONCELOS; SAMPAIO, 2017).

Partindo dessas duas críticas e procurando melhor ajustar conceitualmente a análise proposta, dialogamos mais diretamente com a bibliografia de língua inglesa sobre o que tem se denominado “engajamento estudantil” (student engagement) como fator de sucesso acadêmico, tal como apresentado principalmente por Ella Kahu (2013). A ideia do engajamento estudantil consiste principalmente numa atitude de envolvimento e compromisso do aluno com seu desenvolvimento como estudante, implicando também um compromisso recíproco da instituição em viabilizar os melhores meios para que este pleno engajamento aconteça (KAHU, 2013).

Podemos afirmar que o conceito de engajamento estudantil se tornou, ao longo da última década, um certo “modismo” na literatura de língua inglesa sobre permanência e evasão no ensino superior e passou a ser associado, muitas vezes, de uma forma simplista, com qualidade. Ella Kahu (2013) sintetiza quatro abordagens mais comuns na literatura sobre engajamento estudantil: 1) comportamental (enfatizando principalmente a prática docente e a relação professor/aluno); 2) psicológica (tomada como processo interno ao indivíduo); 3) sociocultural (destacando o papel do contexto e do “fardo da vida” na vivência do estudante universitário); 4) holística (tentativa não muito bem-sucedida, na visão da autora, de integrar as três anteriores).

Ella Kahu (2013) propõe uma estrutura conceitual para definir engajamento estudantil, levando em conta elementos do contexto sociocultural, influências estruturais e psicossociais, além de consequências imediatas e não imediatas para os estudantes: “Não é possível focalizar o engajamento estudantil somente a partir de fatores que as instituições controlam, pois muitas outras variáveis são excluídas, como as motivações, expectativas e emoções” (KAHU, 2013, p. 760, tradução nossa).

Um outro conceito também discutido na literatura acadêmica sobre educação superior e que pode nos ajudar nesta reflexão é a ideia de belongingness (senso de pertencimento). O senso de pertencimento pode ser compreendido como um conjunto de fatores que fazem com que os estudantes se sintam parte da instituição, se sintam respeitados e apoiados, se sintam “em casa”, o que contribuiria, de forma significativa, para seu sucesso acadêmico (HERPEN et al., 2020; OWOLABI, 2018). Frequentemente, o senso de pertencimento e o engajamento estudantil caminham juntos, sendo o primeiro um dos principais fatores para realização do segundo:

Estudantes que se sentem preocupados pelo fato de que “pessoas como eles” não pertencem ao universo do ensino superior podem perceber experiências do dia a dia, a exemplo de trabalhos em grupo, como confirmações dessa percepção (HERPEN et al., 2020, p. 864, tradução nossa).

Se tomamos o conceito de engajamento estudantil (juntamente com o conceito de senso de pertencimento) em diálogo com os conceitos anteriormente mencionados de afiliação (COULON, 2008) ou de integração (TINTO, 1982, 1999), é possível perceber que a noção de engajamento enfatiza a atribuição de agência ao estudante, não o tratando apenas como receptor das ações institucionais. Não teremos espaço no âmbito deste texto para aprofundar as diferentes nuances, aproximações e diferenciações entre esses conceitos, mas consideramos que essa é uma tarefa necessária, a ser desenvolvida futuramente.

Por enquanto, registramos que não se trata de fazer a opção por um único termo e escolhê-lo em detrimento dos demais. Sabemos da importância e relevância de cada um ao tempo em que surgiram e da pertinência de sua utilização em diferentes contextos. Da mesma forma, enfatizamos que, juntamente com engajamento estudantil, não podemos deixar de mencionar também a importância da responsabilidade institucional pelo sucesso acadêmico dos estudantes. A universidade, principalmente a instituição pública, tem a responsabilidade de contribuir diretamente para o sucesso acadêmico dos estudantes, desenvolvendo os meios necessários e que estejam ao seu alcance para que os alunos concluam a graduação com sucesso, idealmente dentro do tempo previsto da integralização de cada curso.

Se alguns alunos não concluem o curso, ou se concluem ao longo de um tempo muito acima do previsto, é razoável apontar também a responsabilidade da instituição nessa trajetória, levando à possível identificação de que a instituição falhou na sua função social de promover justiça e reduzir desigualdades. No caso da UT-Austin, por exemplo, essa perspectiva foi enfatizada por alguns dos nossos entrevistados no que diz respeito ao papel que uma instituição estadual tem em espelhar, da melhor forma possível, a composição demográfica do estado, o que se traduz tanto nos índices de acesso quanto de permanência e taxas de conclusão.

É possível considerar que a conclusão do curso resulta tanto de uma determinação e atitude individual quanto da existência de um projeto institucional que promova os incentivos necessários para que esse sucesso ocorra. Assim, a conclusão do curso seria tomada como um projeto da instituição ou, mais amplamente, como um objetivo da coletividade (país, estado etc.) em que a instituição se insere.

Tendo por base essas reflexões sinteticamente apresentadas aqui, passemos às informações sobre a pesquisa realizada e alguns dos seus principais resultados.

Métodos e técnicas utilizados

A pesquisa foi realizada principalmente através de pesquisa bibliográfica sobre acesso (enrollment), permanência (retention), engajamento estudantil (student engagement) e senso de pertencimento (sense of belonging) no ensino superior nos EUA; análise de documentos institucionais da UT-Austin referentes ao tema (relatórios, websites, documentos de planejamento, boletins, entre outros); levantamento de dados secundários sobre acesso e permanência na UT-Austin; levantamento sobre os principais programas de promoção do sucesso acadêmico na instituição; realização de 10 entrevistas com especialistas da UT-Austin em Educação Superior e com gestores de programas selecionados. Os dados coletados foram sistematizados e analisados em diálogo com o debate acadêmico e as políticas em curso no Brasil.

As questões principais que nortearam a pesquisa referem-se à necessidade de conhecer em maiores detalhes os programas de ingresso, permanência e promoção do sucesso acadêmico de estudantes pertencentes a grupos sub-representados na UT-Austin. A universidade, como parte do sistema de ensino superior do estado do Texas, é reconhecida pela sua excelência e seletividade, apresentando-se como uma das maiores e mais respeitadas instituições de educação superior no sul dos EUA.

A fim de conhecer e ter mais elementos sobre os programas desenvolvidos pela instituição, decidimos entrevistar professores, pesquisadores, especialistas no campo da Educação Superior e gestores de programas e de setores responsáveis por políticas estudantis na UT-Austin. A primeira abordagem para seleção dos entrevistados se deu através da consulta a um setor do website da universidade destinado a identificar especialistas em temas específicos (THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN, 2020a). Essa pesquisa resultou nos nomes de 38 especialistas em Educação Superior, alguns deles já conhecidos através de referências bibliográficas pesquisadas anteriormente. Em seguida, esta lista inicial foi complementada com sugestões da Profa. Patrícia Somers, uma das pesquisadoras com quem tivemos a oportunidade de trocar importantes informações e impressões durante o período em Austin. Também houve sugestões feitas pelos entrevistados ao longo do processo da pesquisa, além da necessidade de substituir especialistas e gestores que não estavam disponíveis durante o período ou que não ocupavam mais o cargo pelo qual haviam sido indicados4.

Após a seleção inicial e levando em conta as variáveis acima, chegamos a um total de 10 entrevistas realizadas entre abril e junho de 2020, na ordem a seguir: Prof. Luis Urrieta (College of Education & LLILAS); Prof. Victor Saenz (Coordinator MALES Project); Prof. Leonard Moore (Director of the Division of Diversity and Student Engagement - DDCE); Prof. Pedro Reyes (College of Education); Prof. Beth Bukoski (College of Education & Gender Studies); Prof. Joe Wilcox (College of Education); Dr. Miguel Wasielewski (Executive Director of Admissions); Prof. Richard Reddick (Associate Dean for Equity, Community Engagement and Outreach, College of Education); Dr. Betty Jeanne Taylor (Responsible for Campus Climate Response Team/DDCE); Dr. Liz Elsen (Director of Gender and Sexuality Center).

As entrevistas tiveram como eixo principal os seguintes aspectos: quais são os principais desafios para o acesso e permanência de estudantes de grupos sub-representados na UT-Austin? Quais são os principais programas e ações institucionais desenvolvidos a fim de responder a esses desafios? Quais são os principais resultados desses programas e ações? Quais são as demandas emergentes em relação a esses desafios? Há propostas inovadoras? O que mais poderia ser feito?

Todos os entrevistados foram extremamente solícitos em fornecer informações, bem como suas análises e percepções sobre os temas abordados, levando em conta seus diversos lugares institucionais. As entrevistas foram gravadas, transcritas e seu conteúdo foi codificado de acordo com os aspectos listados acima.

A seguir, apresentaremos os principais resultados da pesquisa, combinando a análise de dados secundários da UT-Austin e das entrevistas realizadas. A fim de manter o anonimato dos entrevistados, não faremos referência nominal às citações das entrevistas. Os entrevistados foram identificados por códigos numéricos, de forma aleatória.

Acesso à UT-Austin

A história da UT-Austin no que diz respeito ao público de estudantes que recebe não se diferencia muito de outras universidades públicas norte-americanas, que atravessaram momentos de grande exclusão (com segregação racial e ingresso seletivo predominantemente de homens brancos) e que passaram por processos de integração racial, inclusão e diversificação do seu público a partir dos anos 1960. Um dos entrevistados relatou que a UT-Austin passou a admitir estudantes negros em 1954, mas, ao mesmo tempo, a Av. Guadalupe, que corta o campus, teve seus estabelecimentos comerciais segregados até meados dos anos 1960 (Entrevista 4).

Ainda que muitos avanços sejam reconhecidos na busca pela diversificação dos estudantes nos últimos 50 anos, a UT-Austin ainda é vista como uma das universidades mais elitizadas e menos diversas do estado do Texas. Entre os entrevistados para este estudo, vários apontaram que o número de estudantes afro-americanos (em torno de 4% em 2019) não reflete a proporção desse grupo racial no estado. Da mesma forma, os estudantes de origem hispânica compõem 23% dos matriculados, número também abaixo da presença desse grupo no Texas (THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN, 2020b).

Neste sentido, é possível afirmar que o perfil dos estudantes da UT-Austin é mais branco e mais rico do que a população do Texas. Alguns entrevistados apontaram que, no âmbito do estado, é relativamente comum que estudantes mais pobres, hispânicos e negros optem por se candidatar para outras universidades do sistema estadual (San Antonio, El Paso, Vale do Rio Grande, por exemplo), para Community Colleges5 próximos do seu local de moradia ou para uma universidade tradicionalmente negra (HBCU - Historical Black Colleges and Universities), e não para a UT-Austin, por temerem ser discriminados ou não se adaptarem ao campus com maioria branca e considerado de elite: “estas escolas locais são mais parecidas com os estudantes, provavelmente têm mais estudantes e professores negros e latinos, você pode estar perto de casa, e não ter que pagar por casa, comida, transporte...” (Entrevista 4; Entrevista 5; Entrevista 10).

Por outro lado, o sistema de ensino superior do Texas, que reúne um conjunto de instituições, tem travado uma batalha política e jurídica ao longo de décadas, relacionada à possibilidade de utilizar ou não o critério racial para a tomada de decisões sobre o ingresso no ensino superior, bem como sobre a concessão de bolsas e outros benefícios. Foge ao escopo deste artigo detalhar todas as idas e vindas em torno dessas decisões judiciais desde os anos 1970. Essas decisões obedecem, de certo modo, às mudanças políticas em nível nacional referentes ao debate sobre ações afirmativas, ao sabor de mudanças de governo e decisões da Suprema Corte, fortemente influenciadas pelas mudanças sazonais na sua composição (HERINGER, 1999, 2002; HERINGER; JOHNSON, 2015).

No âmbito deste texto, é importante apenas mencionarmos que, em 1996, a UT-Austin, assim como todas as instituições de ensino superior do sistema estadual do Texas, foi proibida de utilizar raça como critério de admissão (FLORES; HORN, 2015; NIU; TIENDA, 2010). Como resposta a essa proibição, os parlamentares do estado do Texas aprovaram, em 1997, um novo plano de acesso às instituições de ensino superior do sistema estadual, chamado “Top 10% Law” (Lei dos Primeiros 10%).

Depois que o uso da raça nos critérios de acesso se tornou inconstitucional em 1996, a legislatura do Texas desenvolveu uma estratégia alternativa para manter o campus diverso: a lei dos primeiros 10%, que estipulou que os estudantes que ficassem entre os 10% com melhor desempenho em cada turma do último ano de qualquer escola de ensino médio do Texas seriam automaticamente admitidos no campus de sua preferência no sistema estadual de ensino superior do Texas (TOUGH, 2014, tradução nossa).

No caso da UT-Austin, após alguns anos foi necessário rever esse percentual, pois se a instituição admitisse todos os alunos que para ela se candidatassem e estivessem entre os primeiros 10%, não haveria vagas suficientes. Então, em 2009, foi definido que os estudantes que ingressariam por admissão automática deveriam corresponder a 3/4 de todos os ingressantes cada ano. Com esta nova definição, o percentual passou a ser dos primeiros 7% de cada escola, e, posteriormente, 6%, a partir de 2019.

Como lembraram alguns dos entrevistados, é importante mencionar que esse sistema de ingresso não foi uma escolha da UT-Austin, mas sim um mecanismo imposto por lei estadual.

Em 2007, a legislatura do Texas considerou vários projetos de lei que modificariam ou revogariam a lei de admissão automática, [...] e, apesar do apoio a vários projetos de lei, nenhum foi adotado (KRONBERG, 2007; SANDBERG, 2008). No centro das críticas estavam as crenças generalizadas de que os graduados de escolas de ensino médio competitivas que não se qualificavam para admissão automática estavam sendo substituídos por alunos menos preparados que frequentaram escolas de ensino médio de baixo desempenho (NIU; TIENDA, 2010, p. 34, tradução nossa).

Assim, houve, e ainda há, resistências internas a essa forma de ingresso6. Relembram também que outros sistemas universitários estaduais adotaram igualmente a admissão automática, como Califórnia e Flórida, na maioria dos casos em resposta ao fim das ações afirmativas baseadas em critérios raciais (Entrevista 5; Entrevista 10). O entrevistado 5 nos lembra que o que o Top 10% Plan fez, na prática, foi passar a utilizar a renda como proxy do critério racial, pois, ao potencialmente trazer alunos de todas as escolas do estado, permitiu que também fossem selecionados estudantes de escolas majoritariamente latinas e negras.

Por outro lado, o entrevistado 10 aponta que o Top 10% Plan contribuiu para diversificar a UT-Austin, trazendo estudantes de áreas rurais, de pequenas escolas de ensino médio com cem, duzentos estudantes apenas:

De repente, estes alunos passaram a vir para a UT, e isso foi uma boa coisa. Beneficiamos também estudantes brancos que antes não alcançaríamos, mas que tinham perfil de estudantes de menor renda e de primeira geração da família a ingressar no ensino superior (Entrevista 10).

Essas parecem ser, aliás, importantes características dos estudantes que passaram a ingressar na UT-Austin após a adoção do plano: estudantes de famílias de baixa renda, filhos de pais sem ensino superior, em grande parte de origem hispânica e, em menor escala, brancos de áreas rurais e afro-americanos. O acesso automático não significa que, necessariamente, os estudantes habilitados a ingressar da UT-Austin irão efetivamente concorrer e ingressar. Por diferentes razões, algumas já mencionadas acima, incluindo as dificuldades financeiras, muitos estudantes que fazem parte dos primeiros 6% com melhor desempenho de suas turmas não buscam ingressar na UT-Austin. Para tentar mitigar essa situação, a universidade promove estratégias ativas de recrutamento de estudantes, principalmente em locais e em escolas onde não necessariamente os concluintes planejariam ingressar na UT-Austin. Essas estratégias incluem a divulgação da universidade desde o 8º ou 9º anos (equivalente ao fim do Ensino Fundamental e início do Ensino Médio nos EUA), a realização de atividades comunitárias, comunicação regular através de mala direta, visitas dos estudantes ao campus, atividades de aconselhamento e apoio no processo de inscrição para a seleção, entre outros (Entrevista 9).

O processo seletivo para ingresso na UT-Austin é de grande complexidade, com várias etapas e um pequeno exército de profissionais envolvidos. Não haverá espaço neste texto para entrar em detalhes na descrição desses mecanismos, mas vamos apenas salientar que são selecionados cerca de 8 mil estudantes por ano, dentro de um número médio de 50 mil candidatos. É importante lembrar que nem todos os selecionados ingressam efetivamente, porque podem ser aceitos em mais de uma universidade e optar por outra instituição, e porque podem enfrentar dificuldades financeiras após receberem a informação sobre que tipo de apoio terão da universidade ou do governo.

Numa das etapas de seleção, o setor de acesso da universidade (Admissions Office) calcula o que chamam de Academic Index (conhecido também como Dashboard, que significa painel de controle), no qual, a partir de uma série de variáveis, calculam a predição de sucesso acadêmico no primeiro ano de cada ingressante e de conclusão do curso no tempo previsto. Esse índice, juntamente com um conjunto de outras características dos estudantes, serão critérios levados em conta para admissão dos ingressantes (Entrevista 9).

Permanência & pertencimento na UT-Austin

As mudanças provocadas na UT-Austin resultantes do processo de seleção automática levaram à percepção por parte da comunidade universitária e principalmente de seus gestores de que a diversificação e maior democratização do acesso não eram suficientes para garantir o sucesso acadêmico de todos os estudantes. Em meados dos anos 2000 foi observada uma redução das taxas médias de conclusão da graduação em quatro anos. As taxas estavam então em torno de 50%, em proporções abaixo do esperado para universidades seletivas como a UT-Austin (Entrevista 5) (DIEHL, 2012). Um outro índice que apresentava problemas era o aumento da evasão após o primeiro ano e o desempenho médio nesse período, medido pelo GPA (Grade Point Average), equivalente ao CR (Coeficiente de Rendimento) no Brasil.

Embora muitas causas para esses índices insatisfatórios já fossem conhecidas e programas voltados para o apoio acadêmico aos estudantes já fossem desenvolvidos há vários anos, foi a partir da década de 2010 que essas preocupações passaram a ocupar o centro das atenções dos gestores, incluindo a reitoria da UT-Austin. Reduzir a evasão e aumentar as taxas de conclusão em quatro anos se tornaram, nas palavras de alguns entrevistados, “quase uma obsessão” (Entrevista 7; Entrevista 10). Em 2012, no documento institucional que apresentou o diagnóstico e orientou as novas ações que seriam adotadas, afirmava-se: “Esta nova campanha terá a seguinte missão: todos os integrantes da comunidade universitária devem trabalhar coletivamente para garantir que nossos estudantes se tornem integrados, eduquem-se e se graduem em quatro anos” (DIEHL, 2012, p. 16, tradução nossa).

A preocupação apontada no relatório do grupo de trabalho, com as diretrizes da nova política voltada para ampliar a formatura em quatro anos, enfatizou a necessidade de monitorar cuidadosamente o desempenho dos alunos ao longo do primeiro ano, e intervir o mais cedo possível, com o apoio de tutores, professores e especialistas em apoio acadêmico, a fim de procurar evitar a continuidade de um desempenho insuficiente (DIEHL, 2012).

As dificuldades, já conhecidas, que limitavam as chances de os estudantes terem bom desempenho na UT-Austin, referiam-se principalmente a três áreas: dificuldades financeiras; dificuldades acadêmicas; e dificuldades associadas à falta de senso de pertencimento. Cada uma dessas dimensões, para serem aprofundadas, tomariam um espaço muito maior do que temos neste artigo. Por isso, vamos comentar brevemente cada uma das dimensões, deixando um espaço maior para refletir sobre senso de pertencimento e engajamento estudantil. Embora este último termo não seja utilizado nos documentos produzidos pela UT-Austin, acreditamos que muito do que vemos nas estratégias adotadas ilustra e traz elementos para pensar sobre esse conceito.

Segundo nossos entrevistados, uma das principais dificuldades enfrentadas por esses alunos diz respeito às questões financeiras. Nos últimos anos houve expressivo aumento das anuidades e taxas na UT-Austin, em função da desregulação dos valores dessas taxas e da redução dos subsídios governamentais nesse campo. Com isso, os valores frequentemente são proibitivos para famílias de menor renda (Entrevista 4; Entrevista 10). Ao mesmo tempo, a UT-Austin é considerada uma das instituições mais ricas do sistema estadual do Texas, pois conta com milhões de dólares anuais em doações feitas por empresas, principalmente do ramo de petróleo e gás, e por ex-alunos. No início de 2020, por exemplo, The Michael & Susan Dell Foundation, ligada à Dell Computadores, cujo fundador é ex-aluno da UT-Austin, anunciou uma doação no valor de 100 milhões de dólares por 10 anos, para contribuir na melhora dos índices de formatura dos estudantes (THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN, 2020c). Neste sentido, a universidade pode proporcionar um vigoroso programa de bolsas e ajuda financeira para muitos estudantes, em diversas carreiras. No final de 2019, foi anunciado o novo Texas Advance Commitment, que “prevê o compromisso de ajuda financeira a fim de cobrir mensalidades e taxas para qualquer aluno cuja renda familiar anual totalize US$65.000 ou menos a partir do outono de 2020” (THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN, 2019, tradução nossa).

Ao mesmo tempo, os estudantes da UT-Austin, assim como da maioria das universidades norte-americanas, contam com a possibilidade de apoio de programas governamentais (federais e estaduais), através de doações e empréstimos, solicitados através do “FAFSA - Free Application for Federal Student Aid” e do “TAFSA - Texas Application for Student Aid”. Um dos programas mais importantes e tradicionais promovidos pelo governo federal é o Work-Study Program [Programa Trabalho e Estudo], que possibilita a contratação de estudantes para trabalhar meio expediente, em horários compatíveis com os estudos, tanto dentro do campus quanto externamente (USA, 2020a).

A UT-Austin possui, como a maioria das universidades americanas, um setor (Office of Scholarships and Financial Aid), que, juntamente com o setor de apoio aos estudantes (Student Support Services), destina-se a informar e orientar sobre as diferentes possibilidades de apoio financeiro. No website desse setor, há uma referência a milhares de bolsas oferecidas pela UT-Austin, algumas direcionadas e coordenadas por departamentos e cursos específicos. Vale mencionar que quando os estudantes se candidatam, eles recebem informações gerais sobre custo e possibilidades de apoio, mas ainda não têm conhecimento sobre sua situação particular e a possível ajuda que vão receber para cursar a universidade. Segundo os responsáveis pela seleção dos estudantes, essa informação não é divulgada nesse momento para não influenciar a escolha dos alunos (Entrevista 9).

No que diz respeito à dimensão acadêmica, é preciso fazer referência a dezenas de programas existentes nos vários departamentos e institutos, voltados para o apoio acadêmico direcionado aos alunos com mais dificuldades, inclusive associadas às suas limitações resultantes de uma preparação insuficiente no Ensino Médio. Não será possível analisar cada programa, mas vale destacar a oferta e variedade de ações de mentoria, tutoria, trabalho entre pares, grupos de estudo, monitorias, plantões de ajuda e classes especiais, entre outras iniciativas. No caso da mentoria,

[...] é compreendida como uma relação recíproca e colaborativa entre alguém mais experiente e alguém em processo de formação, com o objetivo de contribuir para seu crescimento, aprendizado e desenvolvimento. Os mentores frequentemente atuam como modelos para os que recebem mentoria e fornecem orientação para ajudá-los a alcançar seus objetivos (ATD, c2020, tradução nossa).

Ao mesmo tempo, podemos destacar também programas de apoio acadêmico desenvolvidos pelas seguintes instâncias da administração central da universidade, que se estruturaram e fortaleceram a partir do diagnóstico e das prioridades institucionais definidas em 2012: o Student Service Initiatives [Iniciativas de Apoio ao Estudante], ligado ao Enrollment Management and Student Success [Gerenciamento de Permanência e Sucesso Estudantil] (por sua vez, subordinado ao gabinete do Executive Vice-President and Provost, isto é, à vice-reitoria), e o Longhorn Center for Academic Excellence [Centro de Excelência Acadêmica], vinculado à DDCE (Division of Diversity and Community Engagement) [Divisão de Diversidade e Engajamento da Comunidade]. Essas duas instâncias promovem um conjunto de ações relacionadas ao fortalecimento do senso de pertencimento e engajamento estudantil. A principal lógica associada aos programas que enquadramos nesse grupo refere-se ao seu caráter abrangente e multidimensional, frequentemente combinando bolsas e apoio financeiro com apoio acadêmico e estratégias de fortalecimento da autoconfiança e liderança. Todos esses termos podem soar genéricos e pouco concretos, mas ao observarmos tais programas, identificamos a busca por realizar esses objetivos através de diferentes ações.

Do ponto de vista das dificuldades associadas à falta de senso de pertencimento, o programa que poderíamos definir, através das entrevistas, como “carro-chefe”, numa perspectiva multidimensional e inclusiva é o ULN (University Leadership Network). Esse programa resultou da ampla avaliação feita no início da década de 2010 sobre as principais dificuldades enfrentadas pelos alunos, levando em conta as predições de conclusão da graduação em quatro anos de estudantes com determinados perfis, principalmente marcados pelas dificuldades financeiras das famílias e por serem de “primeira geração”, latinos e afro-americanos. Portanto, a seleção dos cerca de 500 estudantes que ingressam nesse programa a cada ano é feita a partir da análise desse perfil após a matrícula.

O ULN combina a oferta de uma bolsa de US$5 mil por ano para manutenção do estudante, com ações de apoio acadêmico, tais como as descritas acima, além de workshops, seminários temáticos e diversas outras atividades extras que possibilitam a esses estudantes experimentar uma vivência universitária mais abrangente, inclusiva e diversificada. Há a intenção de fortalecer os vínculos e a identidade comum entre as centenas de estudantes que ingressam a cada ano no ULN. A cada ano é designado um coordenador pela UT-Austin para acompanhá-los ao longo de todo o curso, através de um processo constante de monitoramento e avaliação tanto do desempenho acadêmico quanto do seu engajamento no ambiente universitário. Os alunos selecionados para o ULN apresentaram dificuldade financeira e normalmente frequentaram escolas de Ensino Médio com poucos recursos. A maioria dos alunos do ULN são estudantes universitários da primeira geração.

O programa oferece auxílio financeiro que incentiva a graduação em quatro anos, bem como possibilita oportunidades de aprendizagem experiencial para ajudar os alunos a se prepararem para sua vida após a faculdade. O programa inclui a formação de comunidades para fornecer a esses alunos um sentimento de pertencimento à UT-Austin (ALVARADO; CONNERAT; SMITH, 2018, p. 8, tradução nossa).

Exemplos de oportunidades de aprendizagem experiencial incluem a realização de pesquisas na graduação, a participação em um estágio dentro ou fora do campus e a possibilidade de intercâmbio internacional. Como avalia um dos entrevistados:

De forma geral, o ULN é uma proposta fantástica, aposta no fortalecimento dos estudantes. Em vez de falar sobre o que os estudantes não têm, sobre o que falta, sobre o capital que falta nos termos de Bourdieu, falamos sobre o que eles trazem. Por exemplo, estudantes de baixa renda, da primeira geração, de famílias de imigrantes, eles sabem como falar com autoridades públicas porque eles fizeram isso a vida inteira, ou como se movimentar em contextos complexos. Vamos começar a falar sobre coisas que os alunos trazem de casa e os fazem ter sucesso, e isso pode ser traduzido em conhecimentos úteis no ensino superior, em vez de falar o que falta, porque senão acaba se tornando uma profecia autocumprida. Você ouve tanto que falta algo que depois de um tempo você pensa: “de fato eu não tenho isso, então nunca vou ter sucesso aqui” (Entrevista 4).

No relatório de atividades dos programas de permanência na UT-Austin, publicado em 2018, avalia-se:

O ULN está aumentando a permanência e, em última análise, as taxas de conclusão para os alunos que tinham as mais baixas taxas de graduação de quatro anos previstas na UT-Austin. Com base na análise da predição de formatura, a primeira turma de alunos do ULN que ingressaram em 2013 tinha uma taxa de graduação prevista de 33% em quatro anos, com base em vários fatores acadêmicos e demográficos que compõem o modelo estatístico. Esses mesmos alunos tiveram uma taxa de graduação real de 55% em quatro anos em 2017, e 20% da coorte ainda está matriculada e prestes a se formar em cinco ou seis anos (ALVARADO; CONNERAT; SMITH, 2018, p. 37, tradução nossa).

A DDCE (Division of Diversity and Community Engagement) reúne sob sua supervisão uma série de programas voltados para o fortalecimento do senso de pertencimento e engajamento, muitos deles associados também a programas de apoio acadêmico, principalmente através do Longhorn Center for Academic Excellence. A atuação da divisão é focada em aprimorar a cultura do campus; o engajamento comunitário; o engajamento em atividades de pesquisa e apoio aos estudantes em toda sua trajetória. A DDCE oferece apoio acadêmico, mentoria, tutoria e apoio para que estudantes com dificuldades acadêmicas possam obter experiência em pesquisa, com expectativa de ingresso na pós-graduação (THE UNIVERSITY OF TEXAS AT AUSTIN, 2020d). Dentro dessa divisão encontram-se o Multicultural Engagement Center [Centro de Engajamento Multicultural], o Gender & Sexuality Center [Centro de Sexualidade e Gênero], o Projeto MALES (Mentoring to Achieve Latino Educational Success) [Mentoria para Alcançar o Sucesso Educacional Latino-americano] e o grupo de acompanhamento sobre clima no campus (Campus Climate), entre outras iniciativas, todos voltados para o fortalecimento do senso de pertencimento na UT-Austin, trabalhando com públicos específicos.

Vários desses programas são desenvolvidos com recursos do programa federal TRIO, que reúne um conjunto de “programas de extensão e serviços para estudantes, projetados para identificar e fornecer serviços para indivíduos de contextos desfavorecidos” (USA, 2020b, tradução nossa).

Para concluir esta seção, podemos afirmar que as ações principais para o sucesso da UT-Austin que contribuíram para aumentar as taxas de graduação foram principalmente: a colaboração da comunidade acadêmica para definir e apoiar o sucesso do aluno em cada processo; o compromisso de todos os departamentos e unidades; o esforço de toda a universidade, incluindo os alunos. “O foco dedicado ao sucesso do aluno resultou em melhorias para alunos tradicionalmente carentes, incluindo alunos de primeira geração, alunos de baixa renda e minorias sub-representadas” (ALVARADO; CONNERAT; SMITH, 2018, p. 4, tradução nossa).

Considerações finais e desafios

A oportunidade de conhecer e analisar, ainda que de forma breve, a experiência desenvolvida pela UT-Austin em termos de permanência e senso de pertencimento dos estudantes nos permite apontar uma série de reflexões sobre conquistas e limites dessas iniciativas, que podem subsidiar nossa reflexão sobre os desafios da permanência e engajamento estudantil nas universidades públicas brasileiras.

A partir dos desafios apresentados pela UT-Austin na década passada e das iniciativas elencadas acima, destacamos a importância de ações de recrutamento de estudantes de diferentes origens socioeconômicas, combinadas com um forte programa de acompanhamento acadêmico que possa se desenvolver desde o primeiro ano dos estudantes na instituição. Destacamos também a importância de aspectos subjetivos associados ao fortalecimento do sentimento de pertencimento (sense of belonging) dos estudantes, principalmente daqueles pertencentes a grupos sub-representados na UT-Austin, que se encontram em cursos mais seletivos. A combinação de ações de apoio financeiro, apoio acadêmico, sensibilização dos docentes e atividades entre pares, tais como tutorias, parece contribuir para a ampliação do sucesso acadêmico desses estudantes.

Apesar desses avanços, que se traduziram na ampliação expressiva das taxas de graduação em quatro anos dos estudantes desde 2013, persistem na UT-Austin importantes desafios associados à inclusão, sucesso acadêmico e fortalecimento do senso de pertencimento dos estudantes. Aproveitamos esta seção das considerações finais para elencar aqui alguns desses desafios, apontados pelos gestores e professores da UT-Austin entrevistados nesta pesquisa. Um tema que sobressaiu em mais de uma entrevista e ganhou destaque nas reflexões dos entrevistados diz respeito à importância da mentoria e ao papel que ela ocupa como um dos critérios de avaliação da progressão docente. O Entrevistado 4 foi enfático:

A atividade de mentoria acaba sendo prejudicial à sua carreira [de professor], porque se você não está publicando, a mentoria não conta muito. Quando você vai buscar tenure [estabilidade], o que vão pedir é: Quais são suas publicações? Quais financiamentos você conseguiu? (Entrevista 4).

O papel dos professores foi mencionado muitas vezes como um fator que influencia em muito o sucesso acadêmico, permanência e senso de pertencimento. Esta importância se destaca em questões como a preocupação com técnicas de ensino, com mentoria, com identificação das necessidades dos alunos, principalmente os que apresentam maiores dificuldades. Afirmou-se que a universidade, ao selecionar professores para contratação, deve buscar aqueles que tenham a vontade e o compromisso com o ensino (Entrevista 4), e isso nem sempre acontece, levando a uma relação distanciada entre professores e alunos. Como afirmou um entrevistado: “Aqui na UT a distância entre estudantes e professores depende do quanto nós professores queremos nos aproximar, porque não somos obrigados a nos aproximar deles a não ser nas aulas, a menos que a gente queira” (Entrevista 8).

Outro aspecto ressaltado por dois entrevistados diz respeito à necessidade de a universidade cobrar dos professores, especialmente daqueles que têm estabilidade, um tratamento respeitoso e não discriminatório com todos os estudantes (Entrevista 1; Entrevista 2). Outros entrevistados destacaram o despreparo da universidade para lidar com os estudantes afro-americanos, que continuam sendo vítimas de visões estereotipadas (se você é um aluno negro, deve ser atleta, por exemplo) e de microagressões no cotidiano.

Eu sempre falo isso para os estudantes negros, latinos, de primeira geração: a universidade estruturalmente é mal configurada para servir vocês como deveria. Nós temos muitas deficiências como instituição. Por outro lado, vocês têm na sua origem, na sua experiência, muitas coisas que os habilitam a ter sucesso [...]. Mas a instituição não é configurada desta forma, não temos as estruturas e recursos necessários para agir desta forma. Somos muito ricos para construir prédios bonitos, mas temos uma deficiência de capital humano, não temos muitas pessoas dedicadas a garantir que os estudantes tenham sucesso. É por isso que o setor de apoio aos estudantes, que não é formado por professores, é tão importante, porque é com eles que os estudantes conseguem apoio (Entrevista 4).

Em relação a questões mais especificamente acadêmicas, relacionadas ao ingresso e permanência dos estudantes, dois dos entrevistados apontaram a necessidade de aperfeiçoar a programação de ambientação dos estudantes ingressantes a cada ano na UT-Austin, a chamada Orientation Week, além de toda a comunicação que é feita com os estudantes desde o momento em que recebem o aceite até efetivamente chegarem no campus para o início das aulas (Entrevista 8; Entrevista 9). Também foi apontada a importância de confrontar o currículo oculto existente na UT-Austin, que faz com que nem todos os estudantes tenham as mesmas informações sobre cursos, disciplinas, bolsas, programas de apoio etc. (Entrevista 3; Entrevista 6).

As várias questões trazidas pelos entrevistados abrem um leque de reflexões e proposições não só para a UT-Austin, mas sobre a educação superior como um todo. Segundo Vincent Tinto,

[...] nenhum estudante deveria atravessar o primeiro ano do curso sozinho, desconectado de outros “aprendizes” na universidade [...]. Todos os estudantes deveriam vivenciar algum tipo de aprendizado compartilhado no seu primeiro ano de curso (TINTO, 1999, p. 5, tradução nossa).

Tinto também nos aponta que os programas de permanência mais bem-sucedidos frequentemente têm caráter longitudinal. Iniciam-se no ingresso dos estudantes e têm desdobramentos ao longo de todo o curso, envolvendo diferentes atores institucionais (TINTO, 1982, p. 699).

Por outro lado, no que diz respeito ao engajamento estudantil, Ella Kahu nos lembra que “há vários caminhos para ampliar o engajamento estudantil, e esta responsabilidade recai sobre diferentes atores: o estudante, o docente, a instituição, o governo” (KAHU, 2013, p. 769, tradução nossa). Não é o aluno sozinho que vai engajar-se, é necessário um arcabouço institucional que procure responder a essas necessidades. Engajamento estudantil pressupõe ampliação da autonomia dos estudantes, liberdade maior no percurso universitário, com maior capacidade de planejamento e de gestão do seu próprio tempo. E, para tudo isso, o amplo acesso a informações e recursos disponíveis na instituição é fundamental.

Se olharmos para o caso brasileiro, o desafio que parece se colocar é o de ampliar experiências e programas numa perspectiva multidimensional, com a participação de diferentes instâncias, através de iniciativas que possam ser adaptadas e utilizadas no conjunto da instituição, gerando aprendizados coletivos que repercutam para a ampliação da permanência em toda a universidade.

Para finalizar, trazemos um questionamento a partir da experiência institucional brevemente apresentada: ainda faz sentido, no caso brasileiro, a distinção entre políticas de assistência estudantil, permanência estudantil e apoio acadêmico? Em que medida é possível continuar pensando nessas ações de forma separada, como realizadas por diferentes atores e instâncias dentro das universidades públicas? No caminho da renovação institucional, talvez seja necessário ressignificar o conceito de assistência estudantil, promovendo uma espécie de “implosão” do atual modelo de assistência estudantil para pensá-lo a partir da promoção do engajamento, incluindo a multidimensionalidade já observada e a ampliação do senso de pertencimento. Esperamos que as reflexões aqui apresentadas contribuam para uma análise ampla e informada sobre os desafios enfrentados no desenvolvimento das políticas de permanência estudantil nas universidades públicas brasileiras no futuro próximo.

REFERÊNCIAS

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1Versão preliminar deste texto foi apresentada no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT 06 - Ciências Sociais e Educação, em dezembro de 2020.

2A autora esteve vinculada à UT-Austin como Fulbright Visiting Scholar no Lozano Long Institute of Latin American Studies (LLILAS), Benson Latin American Studies and Collections, no período de janeiro a maio de 2020.

3A autora agradece à Profa. Patricia Somers (UT-Austin) pelas contribuições e diálogo, à equipe do LLILAS e a todos os entrevistados para este estudo.

4Há que se levar em conta também o contexto da pandemia de covid-19, motivo pelo qual as entrevistas foram realizadas on-line.

5Community Colleges, também chamados de Junior Colleges, são instituições que oferecem educação pós-secundária acessível, geralmente com duração de dois anos, em muitos casos como um caminho para um diploma de quatro anos. Oferecem cursos de formação profissional de curta duração, de característica mais técnica.

6Impossível não lembrar aqui das críticas feitas à época à imposição da política de cotas adotada pioneiramente no caso da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, em 2002, por força de lei estadual.

Recebido: 20 de Janeiro de 2021; Aceito: 27 de Janeiro de 2022

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