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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.38  Curitiba  2022  Epub 06-Dez-2022

https://doi.org/10.1590/1984-0411.83742 

Artigos

“Incutindo-me o amor pela história”: páginas do caderno de História da Civilização da aluna Maria Thetis Nunes

“Instilling me thelove for history”: pages from a notebook on History of Civilization of the student Maria Thetis Nunes

João Paulo Gama Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0001-9683-5413

Lisiane Sias Manke** 
http://orcid.org/0000-0001-5085-8791

Roselusia Teresa de Morais Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-9818-9977

*Universidade Federal de Sergipe (UFS), Itabaiana, Sergipe, Brasil. E-mail: profjoaopaulogama@gmail.com, roselusiamorais@gmail.com

**Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: lisianemanke@yahoo.com.br


RESUMO

O presente artigo analisa o caderno de História da Civilização da aluna Maria Thetis Nunes (1923-2009), que apresenta anotações das aulas do professor Arthur Fortes (1881-1944), tendo sido utilizado no Atheneu Sergipense, em 1939. O registro manuscrito realizado pela aluna permite uma aproximação com as práticas de ensino de história que ela vivenciou no educandário, possibilitando, assim, compreender, em especial: o que era ensinado na disciplina de História da Civilização nesse período, e como era ensinado o conteúdo histórico, ao se considerar a abordagem e os recortes do conteúdo e os indícios da metodologia empregada pelo professor. A aluna Thetis Nunes, posteriormente, tornou-se professora de História do ensino secundário e superior por mais de cinco décadas, além de autora de um conjunto diversificado de obras nas áreas da História de Sergipe e da História da Educação. Assim, ao estudar o caderno escolar de uma aluna secundarista construímos caminhos da história do ensino de história no Brasil, da história do ensino secundário, e também conhecemos mais da própria história da profissão docente, suas escolhas e suas construções memorialísticas.

Palavras-chave: Caderno escolar; História do ensino de História; História do ensino secundário; Maria Thetis Nunes

ABSTRACT

The present article analyzes the notebook History of Civilization of the student Maria Thetis Nunes (1923-2009), that presents notes taken in classes from teacher Arthur Fortes (1881-1944), having been used in the Atheneu Sergipense, in 1939. The manuscript record carried out by the student allows an approximation with the teaching practices of history se experienced at school, thus, enabling especially the understanding of what was taught in the class of History of Civilization at the time and how the historical content was taught considering the approach and the content clippings and the evidence of the methodology used by the teacher. The student Thetis Nunes later became a History teacher at high schools and colleges for over five decades besides being the author of a broad range of works in the areas of History of Sergipe and History of Education. Therefore, by studying the school notebook of a high school student, we built paths of the history of the teaching of history in Brazil, the history of secondary level education (high school level) and we also became more aware of the history of the teaching profession itself, the choices made and memory constructions.

Keywords: Notebook; Historyoftheteachingofhistory; Historyofsecondarylevel education; Maria Thetis Nunes

Palavras introdutórias

“1º ponto: Revolução Francesa. (Dia 22 de março de 1939 - quarta -feira.)”, (Caderno de Maria Thetis Nunes, 1939). Essas são as primeiras palavras registradas no caderno de História da Civilização que pertenceu a Maria Thetis Nunes, marcado por narrativas e indícios das aulas do professor Arthur Fortes realizadas no Atheneu Sergipense, em 1939. Este artigo propõe-se a analisar o referido caderno de História da Civilização buscando uma aproximação com as práticas de ensino de história do educandário, de modo a compreender dois elementos em especial: o que era ensinado na disciplina de História da Civilização nesse período, e como era ensinado o conteúdo histórico, ao se considerar a abordagem e os recortes do conteúdo, além dos indícios da metodologia empregada pelo professor. Deste modo, consideramos que a análise contribui tanto com os estudos relativos à história do ensino de história no Brasil, quanto com a própria história das práticas docentes no ensino secundário.

Maria Thetis Nunes (1923-2009), com 11 anos de idade, deixou a cidade de Itabaiana, no interior de Sergipe, onde cursou o primário, a fim de prosseguir seus estudos na capital sergipana. Prestou o exame de admissão e diante da aprovação ingressou no Atheneu Sergipense.1 Instituição que frequentou durante sete anos como discente, em que concluiu o ginásio, em 1939, e o curso pré-jurídico, em 1941, conforme documentação localizada no Centro de Educação e Memória do Atheneu Sergipense (Cemas).

Historiadora sergipana formada na primeira turma da Faculdade de Filosofia da Bahia na década de quarenta do século XX. Professora do ensino secundário, pioneira catedrática do Atheneu Sergipense, como também do ensino superior. Uma das fundadoras do curso de Geografia e História da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe, depois incorporada à Universidade Federal de Sergipe. Membra da Academia Sergipana de Letras, estagiária do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), Adida Cultural do Brasil na Argentina, atuando na direção de um Centro Cultural na cidade de Rosário e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe por décadas, como também autora de um conjunto de obras, artigos em revistas, anais de congressos e jornais com foco em diferentes aspectos da História de Sergipe. Pensando com Gomes e Hansen (2016), compreende-se Thetis Nunes como uma “intelectual mediadora”2.

No Atheneu Sergipense estudou com professores cujos nomes ecoam na História da Educação sergipana, que faziam parte da cobiçada Congregação da instituição que atraiu e formou gerações de intelectuais (ALVES, 2005). Desses professores, ela destaca, entre outros, Arthur Fortes.3 Em diferentes discursos, entrevistas e escritos, Thetis Nunes reafirmou como Fortes contribuiu nas suas escolhas, inclusive, pelo magistério. Possivelmente, tais vínculos também tenham colaborado para a volta de Thetis como professora do Atheneu Sergipense, não na cátedra de História Geral do seu professor, a qual concorreu em concurso em 1945, mas na cadeira de Geografia Geral (OLIVEIRA, 2015).

As atas da Congregação do Atheneu Sergipense, localizadas no Cemas, fornecem algumas pistas do que a aluna Thetis Nunes estudou no ensino secundário. Conforme Ata de 18 de março de 1937, ano em que Thetis cursava a terceira série do ginasial, no caso de História Geral, como o catedrático Artur Fortes não estava presente naquela reunião, foi indicado pelo professor de História do Brasil, Costa Filho, o compêndio de Joaquim Silva que tinha sido adotado no ano anterior. Além das atas, outro artefato da cultura material escolar permite uma aproximação com os estudos realizados por Thetis Nunes durante a formação secundária: o caderno escolar de História da Civilização da aluna da Turma B, 5.ª Série Ginasial do Atheneu Sergipense, para o ano letivo de 1939.4

Em relação às prescrições curriculares, Abud (1998) esclarece que em 1931, com a elaboração, pelo Ministério da Educação e Saúde, do pioneiro programa para as escolas secundárias, consta a seriação unificada, sendo que História Geral e do Brasil constituíram uma única disciplina, a saber: História da Civilização, a ser ensinada nas cinco séries do curso secundário com a perspectiva de que “A História era tida como a disciplina que, por excelência, formava os estudantes para o exercício da cidadania e seus programas incorporavam tal concepção” (ABUD, 1998, p. 165). Já Freitas (2008) apresenta as críticas que Jonathas Serrano tecia a tais programas, como também da integração Brasil-mundo: “a disposição antipedagógica das matérias e de alguns conteúdos, e a perniciosidade do ideal pedagógico (ou ausência de ideal pedagógico propriamente dito) na escolha e ordenação e na abordagem do conhecimento histórico” (FREITAS, 2008, p. 200). Entre o prescrito na legislação e as práticas de ensino de história registradas no cotidiano escolar por uma discente do ensino secundário e as diferentes perspectivas sobre a história do ensino de história que tal fonte pode possibilitar, realizamos esta investigação.

Em clássico sobre a história de ensino de história no Brasil, Elza Nadai inicia o texto com epígrafe de Murilo Mendes, em 1935, em que diz: “Nossos adolescentes também detestam a História. [...] Demos ampla absolvição à juventude. A História como lhes é ensinada é, realmente, odiosa”. (NADAI, 1993, p. 143). Na mesma década, temos uma nítida contradição entre o que escreveu Murilo Mendes e a aluna sergipana Maria Thetis Nunes em seu caderno escolar. O que teria feito com que a jovem cativasse tamanho gosto pela história escolar? Que práticas de ensino de história fogem ao modelo odioso denunciado por Murilo Mendes à época?

O caderno de História da Civilização da secundarista Thetis Nunes

A fonte histórica, como sabemos, por si só não reflete o curso temporal das relações humanas. Como bem considera Rüsen (2016, p. 93), a realidade é “algo ainda mais ‘objetivo’ no sentido de vivo, de efetivo, constituindo a existência humana ao invés de um fato morto, um dado positivo do que é ou foi o caso”. Tal compreensão possibilita a relação com paradigma alternativo, definido por Carlo Ginzburg (1989) como método indiciário que pressupõe o reconhecimento de sinais com a garantia de uma legítima pluralidade das interpretações. O paradigma indiciário permite “uma atitude orientada para a análise de casos individuais, reconstruíveis somente através de pistas, sintomas, indícios” (GINZBURG, 1989, p. 154), o que implica operações de análise, comparações e classificações sobre os vestígios em foco.

Para Viñao Frago (2008b, p. 22), o caderno escolar “é um produto da cultura escolar, de uma forma determinada de organizar o trabalho em sala de aula, de ensinar e aprender, de introduzir os alunos no mundo dos saberes acadêmicos e dos ritmos, regras e pautas escolares”. De outro modo, ao compreender de maneira escrita seu conceito, o pesquisador espanhol entende que se trata de “um conjunto de folhas encadernadas ou costuradas de antemão em forma de livro que formam uma unidade ou volume e que são utilizadas com fins escolares” (VIÑAO FRAGO, 2008b, p. 19). O caderno da discente Thetis Nunes consiste justamente em um material com a finalidade precípua de ser utilizado para anotações em sala de aula de uma disciplina específica.

Por outro lado, Gvirtz e Larrondo (2008, p. 38) consideram o caderno como “um documento, um meio ou suporte físico através do qual se podem visualizar certos conteúdos [...] permitindo observar que conteúdos se ensinam e como se ensinam”. As autoras também apresentam potencialidades do trabalho com os cadernos como fonte para as pesquisas em educação, destacando tanto o uso diário dos alunos para o registro de mensagens e desenvolvimento de atividades, com sua singularidade em detrimento de outros espaços de escrita, como também por ser um espaço que permite observar a interação entre professor e aluno por meio da tarefa escolar.

Dentro dessas perspectivas analisamos o artefato escolar que ficou guardado por décadas pela sua autora-proprietária, desde sua produção até o seu falecimento, em 2009, quando então um pequeno acervo pessoal de Thetis Nunes foi doado pela família ao Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE). Entre objetos e papéis, lá estava um caderno pequeno, com uma capa colorida, com uma série de anotações que seguem uma organização cronológica do conteúdo histórico ministrado nas aulas de História da Civilização. Segue uma imagem da capa:

FONTE: Acervo do IHGSE. Fotografia de João Paulo Gama Oliveira.

FIGURA 1 Capa do caderno das aulas da cadeira de História da aluna Maria Thetis Nunes (1939). 

A capa do caderno apresenta o mapa do Brasil com os estados que o compunham na década de 1930. O nacionalismo do Estado Novo varguista tem no mapa um dos símbolos do amor à pátria e do pertencimento à nação. O título, Caderno Educativo, localiza-se “dentro” da “República dos Estados Unidos do Brasil”, estampado nas cores verde e amarelo sobre a cor azul, que representa o oceano com efetivo destaque. O brasão, símbolo de República, também merece um olhar mais acurado. Pode-se observar ainda que na legenda há uma linha pontilhada que marca a “Divisão de nações” e outra semelhante que marca a “Divisão de estados”. Na contracapa do caderno aparece o mapa-múndi com o título em verde e amarelo de “Planispherio”. O nome “República dos Estados Unidos do Brasil” estampado nas cores verde e amarelo, além da marca do “Caderno Educativo”.

Para Viñao Frago (2008a), o caderno escolar se constitui como uma das formas de aproximação das práticas escolares com a realidade da classe; neste sentido, a referida fonte apresenta vantagens com relação aos livros-textos, programas e prescrições oficiais, posto que, sendo um produto escolar, ele reflete a cultura própria do nível, etapa ou ciclo de ensino em que é utilizado.

Entretanto, no caderno, pode-se omitir determinados registros, ou mesmo acrescentar; também se corre o risco de o discente não ter frequentado a aula e não constar no documento o conteúdo ministrado ou, até mesmo, escrever algo totalmente diferente das preleções do professor diante de uma distração ou visão de mundo discordante. Vislumbramos o caderno como uma fonte a ser escrutinada, diante das problematizações elencadas, o que nos permite uma aproximação com o que era ensinado na História da Civilização nesse período histórico, a abordagem histórica e a concepção de ensino de história empregada.

O caderno corresponde a um suporte material de 16 cm de largura x 22,5 de altura, que contém 238 páginas. Destas, 207 possuem anotações de aula. O primeiro registro data do dia 22 de março de 1939 e o último do dia 8 de novembro. Nesse período 30 datas foram indicadas, antecedendo as anotações do conteúdo relativo a cada aula. A análise do conteúdo da referida fonte seguiu o que orienta Bardin (2016), ao estabelecer as fases: a) a pré-análise, b) a exploração do material e c) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Assim, após a pré-análise e a exploração de material, as categorias de análise foram estabelecidas respondendo aos objetivos da investigação. De acordo com Bardin (2016, p. 135), “fazer uma análise temática, consiste em descobrir os ‘núcleos de sentido’ que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição podem significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido”.

A partir da análise do caderno de Thetis Nunes observamos que as aulas de História da Civilização aconteciam duas vezes por semana, às quartas e às sextas. Cada aula contava com anotações que se estendiam de seis a oito folhas, de forma detalhada, onde estavam organizadas as explanações do professor. Contando com boa pontuação, organização de ideias e letra legível, as anotações são permeadas com espaços preenchidos posteriormente, ou seja, possíveis reescritas feitas a lápis ou com uma caneta diferente da utilizada na escrita do primeiro texto. Nessas reescritas aparecem, principalmente, definições de nomes próprios - o que leva a pensar que se tratava de nomes não conhecidos pela discente; pouco tempo depois de entender ao certo ou mesmo tirar a dúvida com algum colega ou consular um dicionário, fazia-se a anotação com outro suporte de escrita. Outro ponto relevante são as palavras e as expressões na língua francesa, uma constante em várias partes do texto, o que indica que o professor de História, que também lecionava Francês no ensino secundário, utilizava o idioma nas suas aulas, como também que a discente tinha um domínio inicial daquela língua estrangeira.

Em diálogo com Viñao Frago (2008b), é possível compreender que se trata de um caderno elaborado pela gráfica como um objeto escolar que tem a função de ser um caderno “resumo”, no qual cada discente elabora sínteses de uma disciplina a partir das explicações do professor, como também de outras informações, sobretudo de textos escritos. No caso de Thetis Nunes, compreendemos que eram anotações a partir das explanações orais de Arthur Fortes, registradas no caderno exclusivo para a disciplina de História da Civilização, o que é mais comum no ensino secundário.

Tem-se também uma “limpeza absoluta”, ou seja, “ausência de manchas, folhas arrancadas ou anotações e desenhos intempestivos ou ‘selvagens’, não controlados” (VIÑÃO FRAGO, 2008b, p. 23). O que induz a problematizar ainda mais a construção do documento e mesmo a refletir sobre as limitações no trato com tal objeto de investigação, como alerta o aludido autor ao mostrar que geralmente os cadernos conservados são os passados a limpo e não os de rascunho; são dos melhores alunos ou daqueles tidos como excepcionais pela sua precocidade.

As assertivas dialogam com o caderno em análise. Trata-se de uma discente com destaque entre seus colegas, seja pelas notas, como também por meio da participação em agremiações estudantis e escritos na imprensa ainda como aluna do secundário. Tem-se um caderno extremamente “controlado”, sem marcas ou ausência de folhas, como também sem anotações que extrapolem o conteúdo.

Os escritos também nos fazem questionar o porquê de Thetis Nunes ter guardado esse objeto de forma específica em meio a tantos outros que possuiu ao longo da sua vida discente e docente. Ou, em outras palavras, por que arquivar este caderno? Thetis Nunes tinha noção do seu significado no meio intelectual sergipano. Ao guardar um caderno como aluna de Arthur Fortes também estava, em certa medida, buscando “publicar a própria vida” (ARTIÉRES, 1998, p. 21), dar um sentido a ela com personagens que lhe conferem significado, como era o caso do seu antigo professor de História. A prática aparentemente simplória de guardar um caderno escolar pode estar vinculada a uma função pública de fazer sua própria vida sobreviver ao tempo.

O conteúdo desenvolvido em História da Civilização na 5.ª série ginasial no ano letivo de 1939

A análise do caderno indica o destaque para o conteúdo da Revolução Francesa, bem como para Napoleão Bonaparte. A Revolução Francesa aparece nas anotações como o marco que inicia a Idade Contemporânea, mas consta que alguns preferem datar o começo da contemporaneidade com o governo de Napoleão Bonaparte. Com uma história atrelada a causas e consequências, os escritos expõem que: “As causas próximas que ocasionaram a Revolução foi a questão financeira; as remotas são: políticas, econômicas e sociais”5, e seguem com explicações sobre cada uma das causas, com destaque para as questões políticas.

Ainda, frases ditas por personagens históricos, em primeira pessoa, são abundantes nos registros, como as seguintes: o Rei Luís XIV teria afirmado que “O estado sou eu” ou “É legal porque eu quero”; Ainda, Necker teria dito que “A solução é chamar os Estados Gerais porque só o povo pode dizer que impostos é capaz de pagar”. Aparecem anotações assim em meio ao texto, como se existissem encenações dos conteúdos trabalhados nas aulas da cadeira de História da Civilização. Outro exemplo de tais afirmações consta nas explanações referentes aos escritos de Joaquim Gonçalvez Ledo sobre a Independência do Brasil: “não se ouça entre nós, outro grito que não seja de união. Do Amazonas ao Prata, não retumbe outro eco que não seja independência. Formem todas as nossas províncias o feixe misterioso que ninguém, nem força alguma possa quebrar”. E, em outra parte, a narrativa continua a dialogar com D. Pedro I:

Principe rasguemos os veus do ministério! Rompa-se a nuvem que encobre o sol que deve raiar na esfera brasileira. Principe não desprezes a gloria de ser o fundador de um novo império! O Brasil de joelho te amostra o peito aberto e nele gravado em letras de diamante o teu nome! As nações todas têm um momento único que não torna quando escapa de estabelecer seus governos. Passou-se (Caderno de Maria Thetis Nunes, 1939, s/p).

A descrição exposta exala nacionalismo e patriotismo. A união das diferentes partes do Brasil em torno de um “feixe misterioso” inquebrável e o nome do imperador gravado no peito com “letras de diamante” são frases de efeito registradas no caderno que deixaram vestígios do ensino de História na década de 1930. Assim, evidencia os preceitos da Escola Metódica responsável pelas concepções históricas que fundamentaram programas e manuais escolares desde o século XIX, ou seja, “a História metódica contribuiu para construir um passado comum a todos os cidadãos da pátria, as riquezas e belezas do país, a coragem e o gênio de seus grandes homens e heróis, ajudando a fortalecer o Estado Nacional” (FERREIRA; FRANCO, 2013, p. 50).

Pautadas nestes princípios, prosseguiam as aulas. Constantemente, usavam-se frases de efeito para finalizar as preleções sobre determinados pontos da Revolução Francesa que continuariam a ser discutidos posteriormente. A título de exemplo: “Como Saturno a Revolução paria os próprios filhos”; ou em outra aula lê-se: “A rainha Maria Antonieta apresentou nos seus braços o Delfim ainda pequenino, o povo rompeu em aclamações. Parecia que tudo estava resolvido, mas era apenas um clarão em meio a tempestade”. Os “filhos” da Revolução ou “a tempestade” anunciada foram trabalhados nas aulas seguintes, interligando os conteúdos.

A anotação da aula sobre a Revolução de 1817 fornece uma pista do autor do livro adotado ou mesmo que inspirava as aulas de Arthur Fortes. Ali consta: “A colonia do Brasil permaneceu largo espaço de tempo ignorante e ignorada’ foi a frase do historiador Jonatas Serrano” (Caderno de Thetis Nunes, 1939). Pelos escritos, visualizamos uma “pista” de que as concepções de História do professor do Colégio Pedro II, Jonathas Serrano, historiador e militante católico, faziam parte das aulas do professor Arthur Fortes.

O término das anotações de cada aula aparece constantemente com tons épicos e diálogos entre personagens interligados ao conteúdo abordado. Ao finalizar o ponto sobre a Família Real, lê-se: “Houve quem dissesse ‘que a maré levava o que trouxera’”; ou sobre o “Dia do Fico”: “E o Brasil continuava em sua marcha em passos rápidos para a Independência”. No ponto sobre a Independência, consta uma referência a D. Pedro quando teria dito: “Camaradas precisamos acabar com isso, chega de sermos (consta espaço em branco), sejamos livres e bradou ‘Independência ou Morte!’”.

Comparando os conteúdos anotados no caderno de Thetis Nunes com o Programa de História da Civilização do curso fundamental do ensino secundário no Brasil para 1931, exposto por Itamar Freitas (2008), o Programa dividia-se em “I - História Contemporânea” e “II - História da América e do Brasil”. No tocante ao primeiro conjunto de conteúdos, é perceptível que as aulas deveriam começar pela Revolução Francesa, como fez o professor Fortes. Contudo, o currículo previsto para as aulas deveria abarcar até a contemporaneidade, com o trato do comunismo, fascismo e as “dívidas de guerra, o desarmamento e a federação europeia”, mas cronologicamente os conteúdos centrais anotados detalhadamente por Thetis Nunes se encerraram no marco do século XIX.

Outro elemento concernente à concentração de aulas no trato com a Revolução Francesa: das 20 aulas registradas ao longo do primeiro semestre, nove abordaram a referida temática. Todavia, vários outros pontos como “A evolução da Igreja contemporânea: os grandes papas, o Concílio do Vaticano, Syllabus, a perda do poder temporal, O modernismo”, ou “A questão do Oriente, o imperialismo colonial e a expansão da civilização europeia” (FREITAS, 2008, p. 198) não aparecem nas anotações de Thetis Nunes. Temos a compreensão de que este caderno foi utilizado durante todo o ano letivo, em razão do decurso das datas apontadas nos seus registros, compreendendo todo o conteúdo trabalho naquele ano letivo. Pela contraposição entre o caderno e o programa de “História Contemporânea”, do total de 15 pontos elencados para o ensino na última série do curso fundamental, o professor teria contemplado apenas sete pontos; quanto a muitos deles, os títulos atribuídos nas anotações das aulas são exatamente iguais; outros possuem ligeiras modificações. Nos pontos dos programas que constam no caderno, lê-se:

- Causas e sucessos da Revolução Francesa, direitos do homem e do cidadão, constituição e representação popular; o exército popular - Luta da Europa contra a França Revolucionária - A era napoleônica - O Congresso de Viena e sua importância - A santa Aliança e a política de restauração - O despertar das nacionalidades e a luta pelo estado nacional e constitucional - O romantismo literário e artístico (FREITAS, 2008, p. 198).

Mesmo o Programa contando ainda com mais oito pontos, a partir da fonte principal em análise, é possível inferir que Arthur Fortes somente contemplou o conjunto de pontos acima indicados, inclusive na ordem de abordagem em sala, entremeando a História Contemporânea com o trato da História da América e do Brasil. Contudo, possivelmente, menos de cinquenta por cento do conhecimento histórico prescrito àquela série foi explorado nas aulas. Depreende-se assim que Fortes também fazia a seleção do que seria, ou não, necessário para a formação dos seus alunos, a depender de critérios próprios do que considerava significativo, ou não, na cadeira lecionada.

Com relação à “História da América e do Brasil”, inserida no programa de História da Civilização, observa-se que houve sete aulas de um total de 30 anotadas por Thetis Nunes no ano letivo de 1939. O “Novo Continente”, de forma geral, figurou menos em suas aulas do que o ponto “Revolução Francesa” ou “Napoleão Bonaparte”.

Contrapondo com os Programas de 1931, extraídos do aludido trabalho de Itamar Freitas, nota-se que os vários pontos dedicados à história dos Estados Unidos da América, ou aos conflitos da América do Sul, à repercussão da grande guerra na América e mesmo com relação ao Brasil, os aspectos do segundo Império, a questão religiosa e do negro no Brasil, não foram contemplados nas anotações de Nunes, o que induz a pensar não terem sido explorados nas aulas de História da Civilização de Arthur Fortes para a 5ª série do curso fundamental do ensino secundário em 1939.

Outro “indício” da aproximação do professor com a obra de Serrano foi o fato expresso em Freitas (2008): o autor entendia não existir chance para os Estados Unidos na história por ser este um lugar do futuro, isso porque:

Na idade contemporânea, o Brasil é personagem de experiência ainda fortuita. Ele está nas conseqüencias da Revolução Francesa, especificamente na política expansionista de Napoleão - bloqueio intercontinental (que força a fuga da família real portuguesa para o Brasil) nos desdobramentos do ‘Governo constitucional na Europa’ - o movimento constitucionalista do Porto e do retorno de D. João VI a Portugal. (FREITAS, 2008, p. 234).

Apreende-se uma aproximação de Arthur Fortes com o exposto acerca da obra de Jonathas Serrano, o que induz à reflexão do papel do professor na condução da disciplina. Neste sentido, as práticas docentes em sala de aula englobam “[...] o modo de transmitir, ensinar e aprender os conteúdos da disciplina - entre eles recorrer ou não aos livros de texto e o uso que professores e alunos fazem destes - e conduzir a aula [...]” (VIÑAO FRAGO, 2008a, p. 207).

3. Narrativas históricas de Arthur Fortes: registros de Thetis Nunes que revelam práticas

O caderno é uma pista. Gvirtz e Larrondo (2008, p. 44) chamam a atenção para o fato de que “O caderno não pode falar sobre o enunciador - que está ausente -, mas sobre o próprio enunciado [...] dificilmente poderemos sustentar que quem fala ali é determinada pessoa ou instituição”. Assim, o caderno não reflete autores individuais, mas um conjunto de relações sociais envolvidas nas tramas das práticas que admitem, portanto, interdições, seleções e especificidades. Com base nos enunciados, analisamos as práticas de ensino de História de Arthur Fortes que marcou a formação da jovem Thetis ao ponto que, em viagem à Áustria, em 1977, ou seja, três décadas depois das aulas no secundário, escreveu:

Andando por esses faustosos palácios, vendo desfilarem reis e príncipes através de retratos pintados por grandes mestres, me vão pulando do fundo da memória as aulas de história do meu grande professor Artur Fortes no velho Ateneu da Rua da Frente. Mas são elas avivadas quando o guia nos indica o local quando Napoleão triunfante se deteve ao entrar em Viena, após a fuga da família imperial, ou onde se reuniu o congresso que em, 1815, reformulou o mapa político da Europa depois de Waterloo. (NUNES, 1977, p. 3, grifo nosso).

Thetis Nunes publicava constantemente nos jornais sergipanos relatos das viagens realizadas. Neste caso, a memória revela lembranças das aulas de Arthur Fortes que, ao serem comparadas com as anotações presentes no caderno da aluna do ensino secundário, reitera a ideia da permanência de elementos da vida escolar na vida dos sujeitos ao passarem pela escola. As experiências vivenciadas por Thetis dialogam com os conhecimentos adquiridos nas aulas de História, que parecem convidar a experienciar o passado reconstruído nas cenas narradas pelo professor. É possível observar que as narrativas históricas realizadas pelo catedrático Arthur Fortes privilegiavam abordagens cronológicas, com riqueza de detalhes sobre a ação de personagens e conflitos.

Em relação a “Napoleão triunfante” e à batalha de Waterloo, que teria reformulado o mapa político da Europa, como relembra Thetis ao viajar à Áustria, dois registros no caderno podem ser tomados como exemplos das aulas que teve no “velho Ateneu da Rua da Frente”. O primeiro refere-se à forma como Napoleão e seus feitos foram abordados, como segue: “Depois de Wagran [batalha], Napoleão conseguiu, pode-se dizer no sentido exato da expressão, o restabelecimento do Império do Ocidente, aquele que o Império romano levara 700 e tantos anos para fazer, Bonaparte quase realizara em 10 anos” (Caderno de Thetis Nunes, 1939). O segundo, à forma como os acontecimentos envolvendo a batalha de Waterloo foram apresentados em aula e assim registrados por Thetis:

O congresso de Viena que já estava reunido ao ter a notícia da volta de Napoleão foi como se uma bomba caisse lá dentro. E todos aqueles reis, príncipes se reunem, se fraternizam para combater Napoleão, que organiza um novo exército e marcha para a Bélgica onde vai ser teatro de operações; vai ao encontro dos ingleses e manda Grouchy perseguir os prussianos de Blucher. A batalha se dá na planície de Waterloo contra os ingleses: nos primeiros momentos a luta sorri aos franceses; os ingleses recuam sobre a floresta de Waterloo. Mas de uma coisa depende a sorte da batalha; se vem Blucher a vitória sorri para os franceses; mas se Grouchy ilude Blucher e vem a vitória seria do lado dos ingleses. Mas se deu o contrário; quem ilude a vigilância dos franceses é Grouchy pois Blucher cumpre as ordens de Bonaparte e continua a perseguir os prussianos em vão. E a vitória cabe aos ingleses dizendo-se “uma batalha de 1ª ordem foi ganha por um general de 2ª ordem.” Vendo-se perdido napoleão abdica na pessoa do filho, o que não é aceito, voltando Luiz XVIII ao trono. (Caderno de Maria Thetis Nunes, 1939).

As anotações no caderno permitem compreender que, sob o olhar de Maria Thetis Nunes, o objetivo do professor Fortes era dar vida a acontecimentos que julgava de maior relevância, com narrativas minuciosas que convidavam os alunos a se colocarem imaginariamente no passado, como é o caso da Revolução Francesa, compreendida como “condição da transformação absoluta”, como ilustra a imagem do caderno com anotações do dia 22 de março de 1939:

Como destaca o excerto, questões referentes ao tempo presente, relativas à efervescência social e política da primeira metade do século XX, são registradas de maneira pontual e com a ausência de uma discussão mais aprofundada, tomadas como “modernas teorias”, denominadas “como comunismo, fascismo e nazismo”, que parecem teimar em ofuscar o brilho da “verdadeira história”, situada ainda no século XIX, e no contexto europeu, que permanece com centralidade nas discussões em todo o caderno.

Luís XVI, Luís XVIII, Maria Antonieta, Napoleão Bonaparte e D. Maria I de Bragança foram alguns dos personagens que figuraram nas aulas registradas no caderno, em que adjetivos caracterizavam suas personalidades, definindo a grandeza ou as fraquezas dos vultos históricos, como destaca o texto que segue:

Luiz XVI era um rei inteligente, demonstrando honestidade, mas sem revoluções, apreciado pelas suas virtudes, ótimo chefe de família, não era o homem capaz para reinar naquele momento, sendo um bom rei nos tempos normais, e com ele estaria derrubado o trono francês com a morte de seus reis. Casado com a princesa de Lorena, Maria Antonieta de grande inteligência, frívola, descendente dos nobres e orgulhosos Habsburgos, trazendo o orgulho característico de sua família, dotada de uma grande beleza e elegância exercia grande influência no [palavra ilegível] de Luz XVI, a ponto de Hirabeau dizer: “O rei só tem ao pé de si um homem que é a mulher”. (Caderno de Maria Thetis Nunes, 1939).

Outro exemplo, neste mesmo sentido, refere-se à família real portuguesa; a figura de D. Maria I de Bragança é descrita como “mulher fanaticamente católica e retrógrada”, que levou Portugal a perder o “destino brilhante que traçou Pombal”. Ainda, ao destacar a fuga da família real portuguesa a narrativa faz considerações a respeito da resistência de D. Carlota Joaquina em deixar Portugal, dizendo que conforme afirmariam os historiadores “não podia dar mostras de patriotismo uma pessoa de tão pouca moral”. Portanto, se a realeza desfilava nas narrativas construídas por Arthur Fortes como personalidades principais e “feitores da história”, suas biografias eram relatadas a partir de atributos e deméritos que respondiam à percepção do professor em relação aos acontecimentos.

FONTE: Acervo do IHGSE. Fotografia de João Paulo Gama Oliveira.

* Tradução literal do texto da Figura 2: “Hoje com o aparecimento das modernas teorias como [ilegível], comunismo, fascismo, nazismo, etc, a revolução francesa perdeu aquele reflexo tão vivo, aquele explendor, deixou de ser a condição da transformação absoluta, influindo naqueles tempos não só na situação politica da França como em toda constelação política da Europa e também da América.”.

FIGURA 2 Parte interna do caderno de História da Civilização da aluna Maria Thetis Nunes (1939)*.. 

Conforme discute Rüsen (2016), a historiografia de Ranke é bem conhecida, fundamenta-se nas ideias políticas, na presença fundante das personalidades baseada na competência dos governos para as decisões essenciais, sem espaço para os governados e para a vida comum. Entretanto, para Rüsen (2016), os modos retóricos e estratégicos dessa historiografia são menos conhecidos e explorados, no que se refere às perspectivas dentro das quais os acontecimentos são situados na construção histórica. A estética narrativa de Fortes, que parece ter por objetivo conduzir os estudantes para o passado, para a cena dos acontecimentos, torna-se uma estratégia atrativa de lidar com o conhecimento histórico ao mesmo tempo em que constrói sentidos. Os acontecimentos, avidamente registrados por Thetis em seu caderno, permitem compreender as intenções da vida prática que constituem a vivacidade dos fatos narrados. As motivações de ordem política, a visão de mundo e as ideologias de Arthur Fortes podem ser percebidas pelas escolhas, recortes e ênfases que dá ao conteúdo.

Fortes era professor de Francês e Literatura, além de História, e parece nutrir grande afeição pelo Estado francês. O que fica evidente em vários registros feitos por Thetis em seu caderno, em que destaca as reformas econômicas, estruturais, religiosas e constitucionais na França Napoleônica. A partir das reformas, o professor trata da França como a maior de todas as nações, e ao compará-la com a Rússia considera que a França é mais rica, mais educada, de maior cultura e maior riqueza, em uma abordagem explicitamente personalista.

A respeito da liberdade narrativa ao lidar com o conhecimento histórico, Rüsen ao caracterizar o brilho estético do historicismo e sua diferença em relação à retórica, considera que as evidências empíricas das fontes guiam a visão dos historiadores para as forças mentais que possibilitam a mudança temporal no mundo humano, possibilitando que constituíssem uma identidade histórica. Assim, “olhando para o passado, eles [historiadores] encontram o seu eu, o espírito da sua vida, na forma de uma totalidade temporal” (RÜSEN, 2016, p. 99). Portanto, a estética historiográfica que permite ao público visualizar a identidade histórica dos sujeitos se ajustaria à racionalidade interna dos estudos históricos, oferecendo liberdade narrativa. “Ele [Ranke] escreve, aparentemente, uma história estrutural da mente humana na forma de uma história de eventos, sobretudo, políticos. Isso é feito de uma maneira muito artística, ajustando diferentes níveis de acontecimentos uns nos outros” (RÜSEN, 2016, 101/102).

O registro relativo aos acontecimentos de 4 de agosto de 1789 permite perceber a estética narrativa de Fortes, que oferece dramaticidade aos fatos. O texto descreve o que teria ocorrido em uma “noite célebre”, em que o Visconde de Noailles subiu à tribuna e disse: “O meio de acabar com o que está acontecendo é tomar as armas. E tomar as armas é acabar com os preconceitos feudais, resgatando os seus direitos para a nação de maneira que todos cumpram seus direitos perante a lei como cidadões livres”. Então, com o apoio de diversos fidalgos teria sido decretado o fim dos privilégios, enquanto “o 3º estado contemplava aquilo emocionado e os mais sensíveis de olhos cheios de lágrimas”. A narrativa que destaca a emoção vivida pelo 3.º Estado naquele momento evidencia também a perspectiva política do relatado, ao colocar o Estado como força propulsora e determinante nos movimentos históricos.

Dentre os muitos acontecimentos que são detalhados em longas e minuciosas descrições, está a noite de 20 de junho de 1791, mais especificamente o horário da meia-noite, quando se dá a fuga da família real. Os motivos e a tentativa de fuga são explicados de um modo que passa uma vívida imagem dos acontecimentos. A fuga e o retorno da família real a Paris são registrados em uma sequência de três páginas manuscritas, que destacam desde o “cavalo a todo galope” até o fato de homens do povo romperem os cordões da guarda nacional, “baforando o rosto da rainha com fumo barato”. De igual modo, a execução do rei é contada de forma cronológica, desde a noite anterior à decapitação, culminando na frase que destaca o desfecho dos acontecimentos: “A cabeça do rei atirada aos inimigos da Revolução, como um desafio, fez com que alguns países se coligassem contra a marcha da Revolução”.

A narrativa histórica de Fortes parte das estruturas gerais às particulares, em sequências de eventos temporais, especialmente políticos, “feito de uma maneira muito artística, ajustando diferentes níveis de acontecimentos uns nos outros” (RÜSEN, 2016, p. 101). O que destaca a qualidade estética da narrativa, que envolve os espectadores em um relato linear, com episódios detalhados, em uma construção narrativa que responde à técnica de composição historiográfica do historicismo.

A metodologia das aulas, pelo que permitem inferir os registros realizados por Thetis, seguia a exposição oral e cronológica dos conteúdos, centrada na figura do professor, que transmitia à classe os conhecimentos históricos, não havendo registro de nenhuma atividade desenvolvida pela aluna, nem mesmo questionários a serem respondidos, prática bastante recorrente no ensino de História. Contudo, há evidências do uso de manuais didáticos, que poderiam ser o suporte para a realização das atividades referentes ao conteúdo. Neste sentido, Viñao Frago (2018b) compreende que os “livros-texto” constituem-se como uma das fontes que podem completar e combinar as análises dos cadernos escolares no âmbito das práticas escolares, sociais e culturais de uma época.

A análise do livro didático Epítome de História do Brasil, de Jonathas Serrano, de 1944, e do livro didático História do Brasil, de Joaquim Silva, de 1943, comparados ao conteúdo registrado no caderno de Thetis, possibilita algumas considerações em relação ao uso dos manuais didáticos por Fortes. Um dos aspectos a se considerar é que a abordagem dos conteúdos relativos à história do Brasil é bastante similar aos conteúdos presentes nos manuais didáticos. Contudo, a descrição dos acontecimentos apresenta detalhes e pormenores próprios da criação narrativa do professor. De modo geral, conteúdos apresentados em dois ou três parágrafos impressos no livro didático são registrados em pelo menos três páginas manuscritas do caderno.

Os excertos que seguem ilustram a forma como o conteúdo referente ao retorno de D. João VI a Portugal está disposto no livro de Jonatas Serrano e no caderno de Thetis. No livro consta:

D. João VI, em abril de 1821, retirou-se do Brasil, deixando como regente do reino seu filho D. Pedro.

O próprio D. João VI previra, ao deixar o Brasil, que este em breve se havia de separar de Portugal. E os fatos logo o confirmaram. (SERRANO, 1944, p. 128).

No caderno o mesmo conteúdo é descrito da seguinte forma:

Embora o rei D. João VI fosse um demente na política, um espirito sem clarividência via como os acontecimentos se desdobravam, como o Brasil marchava para a independência e a prova é a frase dita antes de embarcar ao príncipe: ‘Pedro, brevemente o Brasil se separará de Portugal, se assim for põe a corôa em tua cabeça, antes que algum aventureiro lance mão dela’. (Caderno de Maria Thetis Nunes, 1939, s/p).

Enquanto o texto do livro afirma que D. João VI previa que o Brasil em breve se tornaria independente, a narrativa registrada no caderno contempla a descrição da cena da partida do Rei, ao incluir a frase que D. João VI teria dito ao príncipe ao prever a independência; frases de impacto conduzem a abordagem, como é característico em todos os acontecimentos históricos registrados.

FONTE: Acervo do IHGSE. Fotografia de João Paulo Gama Oliveira.

* Tradução literal do texto da Figura 3: “E a 8 de novembro de 1939, encerou-se com grande tristesa para mim, o ciclo que durante cinco anos o professor Artur Fortes tão brilhantemente veio desempenhando, mantendo-me o amor pela história. Espero que os meus esforços, a minha dedicação pelos estudos historicos não sejam nulos e que eles sirvam para os dias posteriores...”

FIGURA 3 Recorte da página final do caderno escolar de Maria Thetis Nunes (1939)*. 

Tais aspectos indicam que havia uma construção autoral das aulas de Arthur Fortes, que embora dialogassem como o programa da disciplina e com os livros didáticos utilizados no período, apresentavam uma dinâmica própria, pautada em longas e minuciosas narrativas orais perante a turma.

Tais registros denotam aspectos do que se discutia no ensino de história em pleno regime Varguista e desdobramentos diversos dos Programas de História do ano de 1931 construídos na dinâmica própria da sala de aula. Ao compreender o caderno como um “produto escolar” que “reflete a cultura própria do nível, etapa ou ciclo de ensino que é utilizado” (VIÑAO FRAGO, 2008b), entendemos tanto sobre ensino de História como também do próprio ensino secundário na década de 1930, a partir do que consta no caderno de Thetis Nunes contraposto com manuais didáticos e outros documentos.

Considerações finais

A anotação no caderno escolar diante da última aula de História da Civilização do professor Arthur Fortes no Atheneu Sergipense em 1939, foi realizada pela jovem estudante Maria Thetis Nunes, no ano de conclusão do seu curso ginasial. A conclusão contradiz as assertivas de Murilo Mendes no tocante à relação que os jovens secundaristas possuíam com a história nesse mesmo período (NADAI, 1993). O excerto que finaliza as anotações naquele suporte de escrita demonstra o reconhecimento a seu professor, que lhe incutiu o amor pela história. O fim desse ciclo é um começo para os caminhos de Thetis Nunes e sua relação com a musa Clio.

Com esse caderno, a discente Thetis Nunes estudou História da Civilização ao longo de um ano, o que permite induzir que era uma prática escolar os conteúdos de cada cadeira serem anotados em um caderno diferente. As aulas registradas pela estudante secundarista, além de abordarem conteúdos explícitos de História da Civilização, apontam para aspectos próprios da escola, seja pelo uso de um caderno para cada cadeira, pela lógica de organização das anotações e mesmo como ocorriam as preleções do docente. Tais elementos extrapolam o estudo de uma disciplina escolar em si, mas dizem respeito à escola secundária brasileira na primeira metade do século XX.

Embora a Reforma Francisco Campos tenha instituído os programas de ensino a nível nacional em uma busca pela uniformização do ensino, nota-se também como as práticas escolares em cada instituição educacional conferem uma forma diferenciada e própria diante do que consta nos programas oficiais nacionais. O exame das fontes aponta que Arthur Fortes focou suas aulas em determinados assuntos e preteriu outros, concentrando-se em alguns temas e na construção estética de narrativas que ficaram marcadas na memória da discente mesmo depois de décadas de transcorridas aquelas aulas. Como bem expressa Rüsen, “reconhecemos quando admiramos e apreciamos a historiografia de Ranke como muito bem escrita, ou de alto padrão literário, sem aceitar seu ponto de vista na vida política e social” (RÜSEN, 2016, p. 96). Ou seja, se a abordagem dos conteúdos desenvolvidos por Fortes envolvia e convidava a experienciar o passado com significativa vivacidade, o recorte temático é limitado e restrito à vida política e social dos chefes de Estado, em uma abordagem histórica “vista de cima”.

As aulas de História da Civilização da 5.ª série ginasial do Atheneu Sergipense registradas no caderno contribuíram para a formação de uma jovem que ainda muito cedo resolveu prestar vestibular para o curso de Geografia e História na primeira turma da Faculdade de Filosofia da Bahia e logo depois passou o resto da sua vida dedicando-se ao ensino, pesquisa e escrita da história. Arthur Fortes, suas aulas, seus discursos, suas poesias e sua atuação política, de alguma forma, “incutiram” uma aproximação de Maria Thetis Nunes com uma área do conhecimento da qual nunca mais se distanciaria. Assim, ao estudar o caderno escolar de uma aluna secundarista, além de construirmos caminhos da história do ensino de História no Brasil, também conhecemos mais da própria história da docência, suas escolhas e suas construções memorialísticas ao longo do século XX.

Ao referir-se ao ciclo que se encerrava no ginasial com as aulas de Arthur Fortes, Thetis Nunes foi enfática ao escrever que o docente ao longo desse tempo “brilhantemente veio desempenhando: “incutindo-me o amor pela historia”. Atualmente, mais de oito décadas depois do registro de Thetis Nunes, e em época de reformas curriculares, questionamentos sobre o lugar da História na educação básica, seus conteúdos e métodos de ensino, ataques de diferentes frentes ao conhecimento científico, esperamos que a análise do caderno escolar de uma estudante mulher, nordestina, por décadas professora do ensino secundário e universitário, contribua para a área no mesmo sentido da reflexão dos seus escritos finais naquele documento: “E espero que os meus esforços, a minha dedicação pelos estudos historicos não sejam nulos e que eles sirvam para os dias posteriores”.

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11 Conforme a Reforma Francisco Campos, o exame de admissão ao curso secundário “constará de provas escritas, uma de Português (redação e ditado) e outras de Aritmética (cálculo elementar), e de provas orais sobre elementos dessas disciplinas e mais sobre rudimentos de Geografia, História do Brasil e Ciências Naturais”. Indica também que o candidato a exame de admissão deveria provar, por certidão do registo civil, ter a idade de 11 anos ou que a completará até 30 de junho do ano em que requerer inscrição e apresentar vacinação antivariólica e pagamento da taxa de inscrição (BRASIL, 1931).

22 Gomes e Hansen (2016, pp. 21-22) consideram “[...] que os intelectuais mediadores podem ser tanto aqueles que se dirigem a um público de pares, mais ou menos iniciado, como a um público não especializado, composto por amplas parcelas da sociedade. Desta forma, podem ser os que se dedicam a um público de corte determinado como o escolar, o feminino, os sócios ou membros de uma organização ou comunidade étnica, profissional, por exemplo; ou a um público abrangente e heterogêneo, como o de um periódico de grande circulação. Em muitos casos o intelectual mediador necessita de um grande empenho para se especializar em escrever/falar/gerir/organizar/livros e revistas, instituições culturais, programa de rádio e televisão, cinema, exposições, livros infantis, etc.”

33 Arthur Fortes nasceu em 23 de julho de 1881, em Aracaju/SE, e faleceu na capital de Sergipe em 27 de novembro de 1944. Estudou com o professor Alfredo Montes, logo depois no Atheneu Sergipense e seguiu para o Rio de Janeiro com o intuito de continuar seus estudos na Academia Militar da Praia Vermelha, mas foi expulso de lá em 1904, sob o pretexto de ter participado da “Revolta da Vacina”. Em Sergipe fez parte do grupo que liderou a chamada “Revolta de Fausto Cardoso” (1906). Por decreto de 15 de julho de 1916, foi nomeado professor vitalício da cadeira de História Geral e do Brasil do Atheneu Sergipense, além de lecionar História e Francês no colégio Tobias Barreto, assim como Francês e Geografia no Instituto América. Foi deputado estadual entre 1910 e 1911 e de 1923 a 1925, publicou em vários jornais e fez parte de várias associações, entre elas o “Centro Socialista Sergipano”, “Tobias Barreto”, “Clube Esperanto” e o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Fortes formou gerações como catedrático de História e incentivador de agremiações estudantis pela sua verve poética, vínculo com agremiações socialistas e por portar constantemente uma rosa vermelha na lapela, ficou conhecido como o “poeta da rosa vermelha”. (OLIVEIRA, 2015)

44 Acerca dos estudos sobre cadernos escolares em uma perspectiva mais ampla, consultar o livro organizado por Ana Chrystina Venâncio Mignot (2008), que congrega uma série de pesquisas de diferentes países sobre a temática. Ao tratar de questões mais específicas sobre os cadernos, sugerimos a leitura, dentre outros, de Peres (2012), com uma análise de cadernos escolares de crianças em fase de alfabetização no Rio Grande do Sul; Fonseca, Reis, Gomes e Faria Filho (2014), com o estudo sobre o caderno de uma professora-aluna e as propostas para o ensino da Aritmética na Escola Ativa em Minas Gerais; Vechia e Ferreira (2019), no tocante aos cadernos escolares e às práticas educativas primárias no sul do Brasil. Com relação a cadernos da disciplina de História, ver o trabalho de Oliveira (2013) e Almeida e Poletto (2019).

55 Em todo o texto realizamos a transcrição dos escritos do caderno com a grafia e a pontuação originais.

Recebido: 19 de Novembro de 2021; Aceito: 08 de Novembro de 2022

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