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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.38  Curitiba  2022  Epub 03-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/0104-4060.82174 

DOSSIÊ - Educação de Jovens e Adultos:políticas e processos educativos democráticos

O teatro do oprimido: mediação e construção da autonomia

José Carlos dos Santos Debus* 
http://orcid.org/0000-0003-4599-8444

Ângela Balça* 
http://orcid.org/0000-0002-4159-7718

*Universidade de Évora. Évora, Portugal. E-mail: zecarlosdebus@hotmail.com; apb@uevora.pt


RESUMO

Este artigo tem como objetivo situar e demonstrar os resultados de uma investigação de pós-doutoramento que analisa uma experiência de apropriação e uso dos princípios metodológicos do Teatro do Oprimido (BOAL, 2015) em estratégias de mediação do ensino de Artes nas escolas, junto aos professores e professoras de Artes da rede de ensino do município de São José em Santa Catarina, Brasil. Apontamos alguns fatores considerados favoráveis à autonomia e à capacidade do estudante de interpretar e compor o mundo a partir de suas relações no campo do ensino/aprendizagem desenvolvidas através de diálogos artísticos e de oficinas investigativas e comprometidas com perspectivas democráticas e livres. Nosso referencial teórico contou com as ideias de Augusto Boal no campo da dramaturgia e Paulo Freire e Immanuel Kant no campo da educação. As oficinas permitiram uma reflexão profunda sobre o momento atual da educação brasileira, totalmente profissionalizante, que não deixa espaço e tempo para aquilo que não é escrita ou cálculo. A metáfora de João e Maria possibilitou aos professores procurarem pelo olhar do estudante dentro do espaço ensino/aprendizagem e levarem em conta este olhar no processo de construção do saber dentro um espaço constitucionalmente democrático e aberto às experiências.

Palavras-chave: Autonomia; Mediação; Arte; Educação; Teatro do oprimido

ABSTRACT

The following text aims to situate and demonstrate the results of an experience of appropriation and use of the methodological principles of the Theater of the Oppressed (BOAL, 2015) in mediation strategies for the teaching of Arts in schools with the Arts teachers of the education system in the municipality of São José in Santa Catarina, Brazil. We pointed out some factors considered favorable to the student's autonomy and ability to interpret and compose the world from his relations in the field of teaching / learning developed through artistic dialogues and through investigative and committed to democratic and free perspectives workshops. Our theoretical framework relied on the ideas of Augusto Boal in the field of dramaturgy and Paulo Freire and Immanuel Kant in the field of education. The workshops allowed a profound reflection on the current moment of Brazilian education, totally professionalizing, which leaves no space and time for what is not written or calculated. The metaphor of João and Maria made it possible for teachers to seek for the student's look within the teaching / learning space and to take this look into account in the process of building knowledge within a constitutionally democratic and open to experiences space.

Keywords: Autonomy; Mediation; Art; Education; Theater of the oppressed

Introdução

Este texto faz parte de um projeto de pesquisa de pós-doutoramento realizado junto ao Instituto de Investigação e Formação Avançada da Universidade de Évora, Portugal, em 2018. Trata-se de uma reflexão sobre uma experiência de apropriação e utilização dos princípios metodológicos do Teatro do Oprimido, especificamente o Teatro Fórum, nas estratégias de mediação do ensino de Artes junto aos arte-educadores do ensino fundamental da rede municipal de ensino do município de São José, Santa Catarina, Brasil durante o ano de 2017. Apontamos alguns fatores, considerados favoráveis à autonomia do estudante nas relações de ensino/aprendizagem, desenvolvidos através de diálogos artísticos e de oficinas investigativas e comprometidos com a perspectiva da autonomia intelectual da criança. Procuramos compreender os processos infantis de criação a partir do olhar do estudante no contexto pedagógico e ampliamos para além dos arte-educadores.

A arte por si só é uma experiência que vai além da disciplina e do controle. Podemos dizer que a arte é uma prática transgressora. Até mesmo quando ela é praticada no espaço escolar. Um espaço também carregado de disciplina e controle. Portanto, quais pedagogias e quais didáticas podem nos ajudar a transgredir no espaço do ensino e aprendizagem? Procurar aquelas que, em princípios e concepções, buscam pelo respeito aos direitos da criança. Esta perspectiva compreende a possibilidade de abordagens pedagógicas alternativas ao modelo disciplinador da escola que reproduz o modelo racionalista excludente que coloca o professor numa configuração técnica e burocrática. Para entender a criança como criadora e construtora é preciso pensar em práticas autônomas que buscam a escuta e a construção do diálogo e que não vejam as crianças como seres menores. Devemos vê-las como seres que criam, recriam, observam, selecionam e elaboram hipóteses sobre o mundo que o cerca. Assim, podemos articular o conhecimento das artes considerando um sentido de infância que entenda o olhar da criança sobre a vida, sobre seus anseios e seus dramas do dia-a-dia. Como educadores devemos sempre trilhar novos caminhos e este é uma possibilidade.

Muitas das formas de criar, recriar e elaborar hipóteses passa pela capacidade imaginativa da criança. A arte, o tempo, a natureza, a mediação adulta e a narrativa são fatores considerados favoráveis à imaginação (GIRARDELLO, 2011, p. 75). Aqui a mediação adulta é entendida como um instrumento de construção do conhecimento que olha, ajuda, está ao lado e acompanha a criança durante o processo. Para Girardello (2011), a importância da imaginação para as crianças pode ir muito além das estratégias e dos recursos indicados pelos professores. E,

Por não se tratar de um dom ou de um dado objetivo e qualificável da subjetividade da criança, estando ligada à inteligência e às emoções, a imaginação pode ser educada, como dizem muitos estudiosos, a partir de diferentes perspectivas teóricas (GIRARDELLO, 2011, p. 76, grifo do autor).

A autora reforça essa ideia com uma citação de Douglas Sloan, para quem “a tarefa mais importante da educação parece ser a educação da imaginação” (SLOAN, 1993 apudGIRARDELLO, 2011, p. 76).

Procuramos pelas pedagogias que permitam que o outro compreenda que tudo pode ser diferente. Essas pedagogias devem levar em conta qualquer detalhe e cada palavra que o estudante diga ou tenha que interpretar e convida o outro e aprende a ser convidado a aprender pelos demais. Aqui a ideia de formação continuada passa pelo sentido de entender que se pode sempre ter algo novo frente às educações dominantes, tecno-científicas e conservadoras. Compreendemos que os movimentos dentro dos espaços de ensino e aprendizagem devem ser estimulados pelo potencial de imaginação que desenvolve a capacidade de interpretação e elaboração do mundo material. Esses estímulos podem surgir no contato com o que pode ser tocado - o fogo, o ar, a água e a terra - e também no encontro com o infinito do universo - as estrelas, o clima, a imensidão do mar (GIRARDELLO, 2011, p. 78). Neste caso imaginação e informação podem andar juntas, “alimentando mutuamente a curiosidade da criança” (GIRARDELLO, 2011, p. 79). Com isso, o princípio da autonomia para o estudante e para o professor deve ser uma condição fundamental que garanta a liberdade e a democracia no espaço de ensino/aprendizagem e que permita a infinitude da nossa imaginação.

Entendemos o conceito de autonomia na educação a partir do seu comprometimento com a perspectiva do agir de forma justa e livre e na espontaneidade plena do sujeito estudante. Podemos perceber que a escola e a sociedade em que vivemos ainda se servem de um sentido de autonomia que, muitas vezes, a dimensiona em proporções menores e insuficientes; ou, em nome de uma revolução dos meios de comunicação, projetam o conceito de autonomia na perspectiva do futuro, tornando-o um lugar-comum nos discursos das novas tecnologias da comunicação (DEBUS, 2018, p. 26).

Nossa reflexão sobre educação escolar entende o espaço ensino/aprendizagem a partir de novas configurações, geradas pelas transformações nas comunicações, que possibilitam outros movimentos na educação e nos processos de construção do saber. Muitos desses movimentos indicam o princípio da autonomia como base da prática pedagógica. Assim o teatro, o cinema, a música, a escultura, a pintura e etc., podem atuar como dispositivos deflagradores de mediações.

Em síntese, podemos dizer que buscamos ações pedagógicas que diminuam a distância entre os espaços das instituições e o lugar onde crianças e adolescentes habitam. Contudo, faz-se necessário conhecer novas habilidades, novos comportamentos e novos contextos culturais que envolvem a relação ensino/aprendizagem desses indivíduos que nasceram em um mundo intensamente digital.

Nosso referencial teórico traz as possibilidades pedagógicas e didáticas da arte dramática a partir do teatro do oprimido de Augusto Boal (1977, 2015) numa perspectiva diacrônica e concreta de diálogos artísticos e coletivos estabelecidos dentro do grupo. A metodologia desenvolvida por Boal permite que atores e não atores construam percursos dramáticos a partir de suas realidades e de um teatro mais radical, transgressor, inquietante e politizador das experiências sociais que envolvem, neste caso, professores e estudantes numa perspectiva de autonomia e emancipação. Para conectar a educação a essa perspectiva fizemos uso das concepções sobre educação escolar desenvolvidas por Immanuel Kant (1999) e Paulo Freire (2006). Kant foi um dos primeiros que pensou o conceito de autonomia na educação da modernidade ainda num tempo em que o mundo era enquadrado e dominado pela crença religiosa que considerava a razão e o livre pensar uma subversão da ordem. Pensar, falar e agir estariam dentro de um movimento necessariamente autônomo que leva em conta unicamente a vontade dos seres. Uma vontade que pode ser estimulada a partir do mundo inteligível e também a partir do mundo sensível. Com Freire (2006) procuramos compreender o estudante como um sujeito que deve se apropriar e experimentar o seu poder de recriar o mundo. Um sujeito autônomo e social, intelectualmente preparado para novas vivências em um espaço autêntico e dinâmico. Como propõe o teatro do oprimido.

O estudante como criador e construtor

Quando nos referimos a autonomia do estudante, pensamos em princípios pedagógicos onde prevaleça o respeito aos direitos da criança. Esta perspectiva concebe outras possibilidades de abordagem didática que podem se colocar como caminhos alternativos aos caminhos tradicionais de um sistema de ensino disciplinador, burocrático e técnico que muitas vezes exclui a voz da criança. Esses caminhos nos mostram, segundo Friedrich Nietzsche (2008, p. 62), que “a perspectiva para a educação não deve servir apenas para orientar o indivíduo, mas sim para entendê-lo como um ser criador e construtor”. E para entender a criança como criadora e construtora é preciso pensar o espaço ensino/aprendizagem como o lugar das experiências que buscam a escuta e a construção do diálogo e que não vejam as crianças como seres menores. Devemos vê-las como seres que criam, recriam, observam, selecionam e elaboram hipóteses sobre o mundo que o cerca. Assim, podemos articular o conhecimento das artes considerando um sentido de infância que entenda o olhar da criança sobre a vida, sobre seus anseios e seus dramas do dia-a-dia.

Embora definido como um ser racional, o homem não pode ser considerado como um simples ser que está pronto para o conhecimento por meio da razão. Para o filósofo Immanuel Kant (1999), o homem não é um ser meramente teórico, mas principalmente um ser prático, constituído de moral. E isso depende da experiência, que constitui a base dessa prática. Este pensador pondera que “[...] a educação e a instrução não devem ser puramente mecânica, mas devem apoiar-se em princípios” (KANT, 1999, p. 28). As experiências nos ensinam a partir das tentativas que podem acarretar em resultados bons ou ruins (KANT, 1999). Assim, “vê-se, pois, que, sendo nesse assunto necessária a experiência, nenhuma geração pode criar um modelo completo de educação” (KANT, 1999, p. 29). Neste contexto podemos afirmar que a educação tem o objetivo de formar sujeitos autônomos pelo princípio que movimenta os esboços da razão no espaço da experiência.

Para Kant, o cumprimento às regras de convivência deve estar no contexto do estudante e no espaço da experiência, mas isso não pode gerar uma situação de maus tratos e falta de respeito à sua dignidade. A vontade do estudante não pode ser ignorada, isso pode levá-lo ao adestramento. É preciso cuidar para que ele aja segundo suas próprias convicções, e não pela força do hábito. Que não faça simplesmente o bem, mas o faça porque é o bem em si (KANT, 1999, p. 68). Por isso, o filósofo pondera que: “Treinam-se os cães e os cavalos; e também os homens podem ser treinados. [...] Entretanto, não é suficiente treinar as crianças; urge que aprendam a pensar” (KANT, 1999, p. 27). E assim, ele vai construindo uma pedagogia para a autonomia com a predominância da razão prática sobre a razão pura, num movimento que é dotado de razão e liberdade. A grande tarefa da educação para a autonomia é educar o homem para uma vida racional. A partir dessa ideia de Kant (1999) podemos pensar que tudo que há na natureza está de acordo com a natureza, menos o homem. Que, na condição de ser racional, vive de acordo com as leis. Por isso os homens devem ser autônomos e se destacarem na natureza por serem livres e autodeterminantes.

A perspectiva freiriana do sujeito aponta para a apropriação e experimentação do poder de recriar o mundo. Entender que o respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do sujeito-estudante deve levar algumas virtudes e qualidades para as novas vivências. A autonomia, a dignidade e a identidade do educando devem ser respeitadas, caso contrário, este ensino poderá ser “inautêntico, palavreado vazio e inoperante” (FREIRE, 2006, p. 62). Freire (2006) ressalta que as experiências e práticas autônomas não devem restringir-se ao espaço da escola, mas ocupar todo o espaço vital para o sujeito. Porém, “o ambiente da escola pode-se constituir num dos espaços fundamentais aos seres humanos exercitarem as práticas de emancipação individual e coletiva” (FREIRE, 2006, p. 98).

Em “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”, Paulo Freire (2006) faz uma reflexão sobre o espaço ensino/aprendizagem que fortalece a autonomia do aluno e chama a atenção para as diferenças entre treinar, ensinar e educar. E, ensinar para Freire requer aceitar os riscos do desafio do novo, enquanto inovador, enriquecedor e rejeitar quaisquer formas de discriminação que separem as pessoas em cor, tamanho, classes etc. É ter certeza de que se faz parte de um processo inconcluso, apesar de saber que o ser humano é um ser condicionado, portanto há sempre possibilidades de interferir na realidade a fim de modificá-la. Acima de tudo, “ensinar exige respeito à autonomia do ser” (FREIRE, 2006, p. 46).

No entanto, este ensinar está muito restrito ao debate entre educadoras e educadores. O ponto de vista da criança não aparece neste cenário. Para Freire (2006), a figura do professor é central nas relações de ensino e aprendizagem e é a partir dele que a criança alcançará autonomia. É a curiosidade do professor que vai despertar a curiosidade do estudante (FREIRE, 2006, p. 85). Assim, “o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento [...]. Seus alunos cansam, não dormem” (FREIRE, 2006, p. 86). Antes de qualquer método ou técnica, “é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache ‘repousado’ no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano” (FREIRE, 2006, p. 86). Evidentemente o pensamento de Freire não tem como base as relações de respeito unilateral sustentadas pela autoridade. Porém, “a autoridade docente democrática precisa encarnar suas relações com a liberdade dos alunos” (FREIRE, 2006, p. 90). E é na vivência crítica como estudante que “me preparo para assumir ou refazer o exercício de minha autoridade como professor” (FREIRE, 2006, p. 90). Neste caso, uma das qualidades fundamentais que a autoridade docente deve preservar nas relações com as liberdades dos estudantes é a confiança em si mesmo. “Segura de si, a autoridade não necessita de, a cada instante, fazer o discurso sobre a sua existência, sobre si mesma. Não precisa perguntar a ninguém, certa de sua legitimidade, se ‘sabe com quem está falando?’” (FREIRE, 2006, p. 91). Grande parte dessa segurança se funda na competência profissional. Para Freire, “o professor que não leva a sério sua formação [...] que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar atividades de sua classe” (FREIRE, 2006, p. 92).

Neste contexto da “autoridade coerentemente e democrática” percebemos que há um esforço no sentido de instigar a liberdade “de que vá construindo consigo mesma, em si mesma, com materiais que, embora vindo de fora de si, reelaborados por ela, a sua autonomia [...]. Sua autonomia que se funda na responsabilidade que vai sendo assumida” (FREIRE, 2006, p. 94, grifos do autor). Neste caso, o imperativo da responsabilidade é que possibilita o movimento da autonomia da criança nas relações de ensino e aprendizagem. É aqui que a autoridade democrática, a educadora ou o educador, exerce sua práxis com seu testemunho e com o entendimento de “que o fundamental no aprendizado do conteúdo é a construção da responsabilidade da liberdade que se assume” (FREIRE, 2006, p. 94). Essa construção depende de como se lida com a relação autoridade/liberdade. Conforme Freire (2006), aqui a relação é quase sempre tensa e o resultado é a disciplina. Que depende da harmonia e do equilíbrio entre autoridade e liberdade, e que “implica necessariamente o respeito de uma pela outra, expresso na assunção que ambas fazem de limites que não podem ser transgredidos” (FREIRE, 2006, p. 88). Deste modo, ensinar exige liberdade e autoridade e o professor tanto lida com uma quanto com a outra e, neste cenário, passa a ser o centro da criação da autonomia do estudante. É o professor que constrói no espaço ensino aprendizagem o sentido de trabalhar e fazer possível a liberdade como autoridade que impõe os limites numa perspectiva ética. “Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome” (FREIRE, 2006, p. 105).

O pensamento vygotskyano para a educação propõe que o processo de construção do conhecimento ocorre através da correlação do indivíduo historicamente construído com o meio sociocultural onde vive (VYGOTSKY, 1991). Assim, os fenômenos são entendidos e estudados como processos em movimentos. Paulo Freire (2009) também acredita nesse processo e aponta que é preciso considerar o movimento que está na trama das realidades sociais que constitui o processo de construção do saber e perceber dentro dessas tramas as particularidades do indivíduo.

A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também a negação do mundo como uma realidade ausente dos homens (FREIRE, 2009, p. 81).

Tanto em Freire (2006, 2009) como em Vygotsky (1991), a experiência de vida do indivíduo é fundamental para a construção do conhecimento. O meio se constitui em fonte de conhecimento, e o ato educacional, que projeta um indivíduo autônomo e crítico, não pode se resumir a uma simples relação de ensino/aprendizagem. Embora tenham vivido em momentos e contextos históricos diferentes e produzido obras com preocupações diferentes - pois Vygotsky se preocupa com o desenvolvimento psicológico do sujeito e Freire com o desenvolvimento pedagógico -, existe uma aproximação entre eles a partir do referencial que está na base de suas teorias: o materialismo dialético e histórico (GADOTTI, 2013, p. 21).

A dramaturgia como Pedagogia

O papel do professor como mediador entre o estudante, o mundo físico e o mundo metafísico faz toda a diferença nas relações autônomas no campo do ensino e da aprendizagem. É aqui que a linguagem da arte dramática surge como uma ferramenta mobilizadora e facilitadora da capacidade imaginativa e do movimento autônomo dentro das relações de ensino/aprendizagem. Essa linguagem traz como características a escuta, a criatividade e a comunicação estética e dramaticamente organizadas. Aqui a estrutura do teatro serve como um espaço de reflexão, de ação e de transformação.

O Teatro do Oprimido, segundo Augusto Boal (2015, p. 13), “[...] é teatro na acepção mais arcaica da palavra: todos os seres humanos são atores, porque agem, e espectadores, porque observam. Somos todos ‘espect-atores’”. Assim, o Teatro do Oprimido é uma forma de teatro entre tantas outras que existe dentro de cada ser humano

[...] e pode ser praticado na solidão de um elevador, em frente a um espelho [...], numa praça pública para milhares de espectadores. Em qualquer lugar... até mesmo dentro de um teatro. [...] A linguagem teatral é a linguagem humana por excelência (BOAL, 2015, p. 13).

Boal (2015) estabelece alguns princípios que norteiam o Teatro do Oprimido (que é um método complexo e coerente) que não devem se perder de vista. O primeiro princípio é o da transformação do espectador em protagonista da ação dramática, e o segundo princípio é a tentativa de modificar a sociedade e não apenas de interpretá-la. Deste modo, o método desenvolvido por Boal (2015) entende que todos nós podemos ser atores. Para isso, este dramaturgo formulou uma série de jogos dramáticos e exercícios que sistematizam exercícios corporais e jogos (diálogos) (BOAL, 2015) e desencadeiam um processo de desmecanização do corpo e da mente, que propiciam maior sensibilidade para entender os problemas e maior capacidade de resolvê-los.

Dentro do “arsenal” do Teatro do Oprimido trabalhamos com a técnica do Teatro-Fórum. Trata-se de uma luta ou um jogo que tem suas regras e que essas regras podem ser modificadas, mas nunca deixarão de existir. O objetivo é sempre mobilizar uma discussão profunda e fecunda sobre situações sociais bem definidas e claras. A dramaturgia parte sempre de uma história real e as soluções propostas pelo protagonista dentro da estrutura da peça conduzirá o debate-fórum, que é o objetivo principal (BOAL, 2015, p. 49). Nesta experiência, com os professores de artes da Rede Municipal de Ensino de São José, nós dividimos o grande grupo, que contava com uma média de 16 professores e professoras por encontro, em quatro pequenos grupos. Nesses pequenos grupos cada um dos participantes contou uma história que aconteceu na vida real e que tivesse uma carga de opressão bem definida. Entre as histórias contadas cada grupo deveria escolher uma, de modo que tivéssemos quatro histórias. Depois voltamos para o grande grupo que dentre essas quatro histórias deveria escolher uma. No entanto, o grupo optou por escolher duas. Uma das histórias narrava as vivências escolares de uma das participantes quando ele tinha por volta de onze anos de idade e frequentava o sexto ano do ensino fundamental. Mas especificamente, nas aulas de Matemática. Onde um professor autoritário e com uma soberba arrogância estabelecia uma espécie de terror dentro do contexto de sua aula e oprimia psicologicamente aqueles alunos que encontravam dificuldades em resolver os exercícios dados pelo professor. A outra história trazia a narrativa de uma das participantes enquanto professora de uma classe do quinto ano do ensino fundamental onde os estudantes excluíam um colega das atividades em grupos que aconteciam dentro da sala. Ou seja, nenhum grupo aceitava a presença do colega por vários motivos e a professora não sabia como intervir. Coube então, ao Teatro-Fórum encontrar as soluções para desoprimi-los. Lembramos que os professores partiram de fragmentos das suas próprias trajetórias, enquanto estudantes ou profissionais, dentro do espaço ensino/aprendizagem.

A partir desse contexto planejamos nossas ações para as oficinas de modo que pudéssemos integrar e ampliar o conhecimento crítico sobre o teatro e uma pedagogia que pudesse ver o estudante como capaz de desenvolver seu próprio aprendizado. As oficinas foram desenvolvidas de abril a novembro de 2017, ao todo tivemos sete encontros. Eram encontros mensais e duravam quatro horas. Deste modo, as oficinas foram divididas em dois momentos. No primeiro momento trabalhamos com os jogos e exercícios; e no segundo momento, com a construção da história e, também, com a construção cênica. Essa construção deve levar em conta aspectos da pintura, da escultura e da música na composição do cenário e da dramatização.

As estratégias de mediação estimularam um grande fórum de discussões que desencadeou sua construção cênica e tudo passou a ser teatro. O olhar dos professores buscou o estudante sem voz, excluído do processo de construção do conhecimento. A estrutura dramática partiu de uma metáfora do conto João e Maria (GAIMAN; MATTOTTI, 2015). Aqui as crianças eram perdidas na floresta da escola. Os conflitos ficaram entre os monstros (os antagonistas) que habitam essas florestas - excesso de regras, professores e diretores autoritários - e as crianças que lá foram abandonadas (os protagonistas). Neste caso, representadas por João e Maria. Na sequência cênica se explorou ao máximo a capacidade opressora dos antagonistas sem dar qualquer possibilidade de reação aos protagonistas.

O ano de 2017 foi ano muito complicado para a educação escolar brasileira. No ano anterior sofremos um golpe de estado que destituiu um governo legitimamente constituído e que vinha, bem ou mal, implementando várias políticas de inclusão econômica, social e cultural. Esse golpe institui um governo conservador, dominado por dogmas religioso arcaicos, e a educação escolar foi atingida de imediato e diretamente por antigas concepções de vida. Disciplinas como a Sociologia, a Filosofia deixaram de ser obrigatórias e a disciplina de Artes teve sua carga horária reduzida e passou a sofrer ataques diretos nas suas formas estéticas. Como, por exemplo, a nudez artística; que passou a ser criticada somente por suas formas sexualizadas. Perdendo o seu caráter estético e artístico. Várias exposições de artes plásticas foram reprimidas de forma violenta por todo o país e a Base Nacional Comum Curricular para o ensino das Artes que perpassa os conhecimentos das Artes Visuais, da Dança, da Música e do Teatro voltou a ser hierarquizada em suas dimensões sem as maleabilidades que interpretam as especificidades do conhecimento da Arte na escola. De modo que todo esse contexto acabou influenciando os debates dentro dos fóruns e atingiu a construção cênica como um todo.

A experiência com o Teatro Fórum

A estrutura dramática foi idealizada no grande fórum e na sua montagem atores e espectadores foram dando outros contornos que possibilitaram a reação dos oprimidos. Assim, foi se encontrando pequenas clareiras no interior da floresta e cada clareira representava uma possibilidade estética, afetiva e pedagógica que combateu as situações de autoritarismo e opressão dentro da sala de aula e no contexto da escola e apresentou um universo escolar que articula as diversas áreas do conhecimento levando-se em conta a importância dos sentidos da criança sobre a sua vida e sobre seus anseios e dramas.

Toda peça de Teatro-Fórum é uma pergunta, dirigida ao público, sobre a opressão que o oprimido sofre e que não sabe como rompê-la (BOAL, 2015).

Maria e João na selva do saber

Cena 1 - A escola como um lugar feliz. Hora do recreio, gritaria, gargalhadas e corre-corre.

Maria está na fila da cantina conversando com uma amiga, esperando o seu lanche predileto.

João está no pátio correndo atrás de uma bola.

O sinal interrompe o momento feliz e os estudantes se dirigem à sala de aula.

Cena 2 - O drama da sala de aula - situações de opressão.

Maria é chamada à lousa para resolver um problema de matemática e ela não sabe como resolver. Há um bloqueio. Ela treme e se urina diante de seus colegas. O professor enraivecido diz que seria melhor ela ir para casa ajudar sua mãe a limpar a casa e pede para ela sair da sala e esperar no corredor ao lado da porta.

Cena 3 - O drama da sala de aula - uma situação de exclusão.

Sai o professor de Matemática e entra a professora de Língua Portuguesa e pede que a turma se organize em cinco grupos. Os estudantes se movimentam e formam os grupos. João procura um grupo e não é aceito; vai para o outro grupo e também não é aceito e assim acontece com todos os grupos, que o rejeitam. O argumento dos colegas é que ele é muito bagunceiro, não participa da atividade e incomoda a todos com empurrões, conversas e cheira mal. A professora intervém e o coloca sentado em sua mesa, isolado dos demais, abre um livro e pede para ele copiar um texto.

Cena 4 - A vigilância sanitária fecha a cantina.

Maria está no pátio e está muito triste com a notícia do fechamento da cantina.

João está jogando bola no pátio e quando ele consegue acertar um belo chute acaba quebrando a vidraça.

Como punição João ficará duas semanas sem recreio.

Cena 5 - Uma escola (sem partido) e uma nova base curricular.

Sem recreio e com dez minutos para o almoço. Isto faz parte da retomada de outra visão escolar, baseada na produtividade, que administra e equaciona o tempo do estudante e do professor.

Novos conteúdos que glorificam a reprodutividade técnica da arte e a introdução do ditado e da prova oral para melhorar a qualidade do ensino.

A tortura psicológica sobre os estudantes se intensifica e os excluídos são levados para a sala do diretor onde os seus nomes são escritos no “livro negro” e os pais são comunicados sobre os “defeitos” de seus filhos.

Cena 6 - Uma pergunta é dirigida a aqueles que não estão em cena: como acabar com aquelas situações de opressão?

Rapidamente um debate se estabelece. Envolvendo atores e espectadores no contexto da trama e também no contexto político do país buscando uma solução para desoprimir os estudantes e também o sistema educacional. As soluções apresentadas passaram por uma greve geral, uma invasão da escola pelos professores que se opõe ao sistema, pela troca dos gestores e por uma ação judicial junto ao Ministério Público exigindo o cumprimento da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente em vigor desde 1996, mas que não eram respeitados. Todas as propostas foram experimentadas em cena, intensificando ainda mais o grande fórum. Depois de discutidas dramaticamente, a solução escolhida foi a perspectiva da lei que prevê e entende a criança e o adolescente como cidadãos de direitos e escola como um lugar de ações democráticas. Apesar de tudo, a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente continuam em vigor. É hora dos direitos.

Cena 7 - O cumprimento da Lei.

Um grande júri se estabelece e a sentença é dada: o diretor e os gestores são afastados e punidos pelos seus atos autoritários e inadequados.

Cena 8 - Uma nova educação e uma nova escola, crítica e comprometida com a imaginação e com a construção do saber.

Diminui-se a carga horária de cálculo e gramática e aumenta-se a carga horária de Artes.

A volta do recreio de vinte minutos. A abertura da cantina com alimentos organicamente produzidos. A felicidade na escola.

A encenação final é acompanhada por uma trilha sonora da música João e Maria de Chico Buarque, executada pelos professores com o acompanhamento de um violão e de instrumentos de percussão.

Considerações finais

Perante o estudo realizado é possível afirmar de que o Teatro do Oprimido em toda a sua plenitude e, neste estudo, a técnica do Teatro Fórum, permitiu que professores e professoras exercessem o protagonismo nos processos de construção da história e da realidade tal como pressupõe Paulo Freire (2006, 2009) e toda a pedagogia do oprimido proposta pelo teatro de Augusto Boal (2015). Isso também permitiu a construção de utopias dentro de um contexto de expectativas críticas e políticas que formulam as bases de um projeto de escola que emancipa o sujeito estudante e também o sujeito professor.

A narrativa do conto João e Maria dos irmãos Grimm orientou a estrutura dramática e a metáfora permitiu uma reflexão sobre a realidade do que é e do que foi ser criança ao longo da história da humanidade. Na releitura da narrativa dos irmãos Grimm os professores encontram os estudantes perdidos na grande floresta que é a escola. Assim, as utopias são possíveis a partir de pequenas clareiras no interior da floresta escura. Cada clareira uma utopia e, uma delas, possibilitou uma realidade estética e afetiva que existe como um ato de resistência e empoderamento necessário no combate ao autoritarismo e a opressão na educação escolar.

Embora não seja um teatro de violência, o Teatro do Oprimido de Augusto Boal busca o conflito. São nos conflitos vividos pelos oprimidos que encontramos a solução para o fim da opressão. Para isso, são necessários a escuta, a criatividade e comunicação. Aqui a perspectiva da arte dramática possibilitou um espaço de reflexão, de ação e de transformação. As soluções encontradas dependem muito do grupo, cabendo ao coordenador da oficina problematizar essas soluções buscando implicações estéticas, éticas e políticas com estratégias que se colocam, em um determinado momento, contra e, em outros momentos, a favor.

As oficinas também permitiram uma reflexão profunda sobre o momento atual das políticas educativas brasileiras que busca processos de racionalidade técnica, ao não vislumbrar espaços e tempos para a reflexão crítica, particularmente no campo das artes. Além disso, a metáfora de João e Maria possibilitou aos professores procurarem pelo olhar do estudante dentro do espaço ensino/aprendizagem e levarem em conta este olhar no processo de construção do saber dentro um espaço constitucionalmente democrático e aberto às experiências.

REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [ Links ]

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Recebido: 28 de Julho de 2021; Aceito: 27 de Outubro de 2021

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Translated by João Gabis Viegas. E-mail: 05cregajovime@gmail.com

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