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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.38  Curitiba  2022  Epub 03-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/0104-4060.82007 

DOSSIÊ - Educação de Jovens e Adultos: políticas e processos educativos democráticos

Memoriais de formação e a escrita (auto)biográfica no Estágio Supervisionado na EJA1

Memoriales de formación y la escritura (auto) biográfica en la Pasantía Supervisada en EJA

Ana Maria Soek* 
http://orcid.org/0000-0002-4827-8242

Joaquim Luís Medeiros Alcoforado** 
http://orcid.org/0000-0003-4425-7011

Sonia Maria Chaves Haracemiv* 
http://orcid.org/0000-0001-9305-5227

*Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Educação. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: anasoek@gmail.com; sharacemiv@gmail.com

**Universidade de Coimbra. Faculdade de Psicologia e Educação. Coimbra, Portugal. E-mail: lalcoforado@fpce.uc.pt


RESUMO

Este texto versa sobre os memoriais de formação e sobre a escrita (auto)biográfica no Estágio Supervisionado na Educação de Jovens e Adultos (EJA), no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Resultante de uma pesquisa de doutorado, analisa as interações que se estabelecem entre as dimensões pessoal e profissional na formação inicial docente. Como dispositivos metodológicos, foram utilizadas “oficinas biográficas” conforme propõe Delory-Momberger (2006), “narrativas (auto)biográficas” com base nos estudos de Pineau (1988, 2006), “histórias de vida e de formação” conforme acepção de Nóvoa (1988, 1995) e de Souza (2007), relatos de “experiências” sendo apresentados em forma de “memoriais de formação” segundo Josso (2004) e segundo os pressupostos de Clandinin e Conelly (2015) para as pesquisas narrativas. Toda a análise foi estruturada por meio de Campos Investigativos, como: a identidade e a trajetória de vida em formação pela perspectiva de retrospeção; a prática pedagógica e as experiências da formação inicial docente, vivenciadas durante o estágio supervisionado na EJA, no momento presente; e a constituição da docência a partir do estágio, como constituinte do tornar-se professor(a). Os resultados de prospecção desses campos se inter-relacionam em Núcleos de Significação (AGUIAR; OZELLA, 2006) apontados pelos(as) participantes da pesquisa, de modo a desvelar as contribuições do estágio supervisionado na EJA para a significação e ressignificação dessas experiências de formação.

Palavras-chave: (Auto)biografia docente; Histórias de vida; Estágio supervisionado; Educação de Jovens e Adultos; Formação inicial

RESUMEN

Este texto trata sobre los memoriales de formación y sobre la escritura (auto)biográfica en la Pasantía Supervisada en Educación de Jóvenes y Adultos (EJA), en el curso de Pedagogía de la Universidade Federal do Paraná (UFPR). A partir de una investigación doctoral, analiza las interacciones que se establecen entre las dimensiones personal y profesional en la formación inicial del profesorado. Como dispositivos metodológicos se utilizaron los “talleres biográficos” propuestos por Delory-Momberger (2006), las “narrativas (auto)biográficas” basadas en los estudios de Pineau (1988, 2006), las “historias de vida y formación” definidas por Nóvoa (1988, 1995) y Souza (2007), relatos de “experiencias” siendo presentados en forma de “memoriales de formación” según Josso (2004) y según los supuestos de Clandinin y Conelly (2015) para la investigación narrativa. Todo el análisis se estructuró a través de Campos de Investigación, tales como: identidad y trayectoria de vida en formación desde la perspectiva de la retrospección; la práctica pedagógica y las experiencias de formación inicial docente vividas durante la pasantía supervisada en EJA, en la actualidad; y la constitución de la docencia desde la pasantía, como parte de convertirse en docente. Los resultados de la prospección de estos campos se interrelacionan en Núcleos de Significado (AGUIAR; OZELLA, 2006) señalados por los participantes de la investigación, con el fin de desvelar los aportes de la pasantía supervisada en EJA al significado y resignification de estas experiencias formativas.

Palabras clave: (Auto)biografía de profesores; Historias de vida; Pasantía supervisada; Educación de Jóvenes y Adultos; Formación inicial

ABSTRACT

The present text deals with the formation memorials and (auto)biographical writing of the Supervised Internship in Youth and Adult Education (YAE), of the Pedagogy Course at Universidade Federal do Paraná (UFPR). It is a doctoral research that analyzes the interactions that are established between the personal and professional dimensions in initial teacher training. As methodological devices, “biographical workshops” were used, as proposed by Delory-Momberger (2006), “(auto)biographical narratives” based on the studies by Pineau (1988, 2006), “stories of life and training”, as defined by Nóvoa (1988, 1995) and Souza (2007), reports of “experiences” presented in the form of “training memorials” according to Josso (2004) as well as the teachings of Clandinin and Conelly (2015) for the narrative research. All analysis was structured based on Investigative Fields such as: identity and life trajectory in formation from the perspective of retrospection; the pedagogical practice and the experiences of initial teacher training lived in the supervised internship at YAE, at the present moment; and the constitution of teaching from the internship, as a constituent of becoming a teacher. The result of the prospection of these fields are interrelated in Meaning Cores (AGUIAR; OZELLA, 2006) pointed out by the research participants, in order to unveil the contributions of the supervised internship in YAE in the meaning and re-signification of these training experiences.

Keywords: Teacher autobiography; Life stories; Supervised internship; Youth and Adult Education; Initial formation

Introdução

As histórias de vida e os estudos autobiográficos vêm ganhando visibilidade na produção acadêmica no Brasil e consolidando-se como metodologia de investigação científica na área de Educação. De acordo com Bueno et al. (2006), o movimento (auto)biográfico no país está vinculado às pesquisas na área educacional tanto no âmbito da História da Educação, da Didática e da Formação de Professores quanto em outras áreas que utilizam as narrativas (auto)biográficas como perspectiva de pesquisa e de formação.

Segundo Silva (2014, p. 17) “a formação é uma construção progressiva que se manifesta e se inscreve numa história de vida, em uma trajetória pessoal e profissional, podendo ser expressa por meio da escrita”. Para que essa trajetória seja conhecida, a mesma deve ser relatada pelo próprio sujeito, em forma de memorial, onde sentimentos, sentidos e significados vividos têm dimensões diferenciadas.

Nesta investigação, trata-se do contexto e do espaço-tempo na formação inicial docente com especificidade para o estágio em docência na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA). As narrativas de formação são resultantes da discussão e da reflexão em grupo (Oficinas Biográficas), as quais foram registradas e gravadas em formato de áudio e, posteriormente, transcritas. As reflexões das experiências coletadas no campo do estágio foram reunidas e entregues num relatório final em formato de memorial de formação, juntamente com a escrita narrativa (auto)biográfica que sintetiza todo esse processo formativo.

O intuito é analisar os sentidos atribuídos pelos(as) acadêmicos(as) do curso de Pedagogia aos aspectos experienciais formativos vividos em suas trajetórias de vida e na prática pedagógica - que podem ser significativos para compreender o “tornar-se” professor - e identificar como o estágio supervisionado, realizado na modalidade EJA, pode contribuir para a constituição docente e para o desenvolvimento pessoal e profissional das acadêmicas em processo de formação inicial docente.

Desse modo, o objetivo deste artigo é discorrer sobre como se constituem os Núcleos de Significação dos memoriais de formação e das escritas (auto)biográficas dos(as) acadêmicos(as) participantes da pesquisa. Esta pesquisa é resultante de estudos de doutorado, com aprovação no Comitê de Ética da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com parecer consubstanciado pelo Comitê de Ética2, onde os estudos foram realizados, seguindo todos os preceitos, orientações e normatizações designados por esse comitê.

Narrativas (auto)biográficas na formação docente

Para falar sobre o movimento (auto)biográfico na formação docente e nas histórias de vida em formação, recorremos inicialmente aos trabalhos de Nóvoa (1988, 1995), que, em suas sínteses, considerou que há uma multiplicidade de perspectivas e estratégias geradas a partir de abordagens (auto)biográficas e de histórias de vida. Expressa-se também o “vigor desta ciência da produção do homem concreto”, como definiu Pineau (1988, p. 63), ao colocar centralidade na figura do(a) professor(a) em formação.

Nesta perspectiva, os(as) pesquisadores(as) da área de formação docente têm reforçado a importância de se voltar o olhar para a figura do(a) professor(a) em formação. A opção de ouvir a voz dos(as) acadêmicos(as) em processo de formação inicial, buscando-se interfaces entre as dimensões pessoal e profissional da formação, vem ao encontro da concepção de Goodson (1996), segundo ele o ouvir permite reconhecer que os dados de vida são relevantes à medida que os projetos pessoais estão articulados a outros de natureza coletiva.

Josso (2004, p. 60 apudLOSS, 2015, p. 4) coloca que “a pesquisa-formação como um projeto de autoconhecimento sugere a constituição de um projeto de si auto-orientado, a partir do qual, entra em cena um sujeito que se torna autor ao pensar na sua existencialidade”. Ou ainda, como afirma a autora, “as Pesquisas-ações e as Pesquisas formações são interexperiências da intersubjetividade, busca de uma troca inter-humana sobre os fatos de nossa humanidade, sobre nossas subjetividades genéricas e socioculturais” (JOSSO, 2010, p. 121-122 apud LOSS, 2015, p. 4).

A pesquisa-formação como dispositivo educativo propõe a orientação dos sujeitos à produção de conhecimento e de projeto de formação. Nesse sentido, “o pesquisador-formador instiga o sujeito à construção de um projeto de formação que dá sentido ao seu ato de aprender, no formar-se e transformar-se como pessoa” (LOSS, 2015, p. 4). Assim,

[...] autoformar-se em espaços educativos formais ou não formais significa vivenciar experiências do eu individual e coletivo, a fim de projetar-se a novas possibilidades de ser, conhecer, fazer, conviver e viver plenamente. É dialogando e refletindo sobre o que somos e fazemos que é possível a projeção para o que desejamos ser e fazer durante nossa existência (LOSS, 2015, p. 4).

Conforme propõe Pineau (1988, p. 63),

[...] a autoformação como parte do processo educativo, da construção da auto-ética, permite a sensibilização, a conscientização e a responsabilização, de modo a possibilitar a aprendizagem da importância do “caminhar para si e para o outro”,

ou, ainda, ao realizarmos experiências “com o outro e com o mundo” (FREIRE, 1996, p. 16), “elaboramos e recriamos o nosso mundo interior”; e, dessa forma, “vamos construindo nossa biografia pessoal, a identidade” (LOSS, 2015, p. 4).

Freitas e Souza Júnior (2004, p. 7) apontam para “as contribuições do instrumento narrativo no processo de reconstrução identitária, de validação do conhecimento produzido por professores(as) e, ainda, de construção de autonomia”. Para os autores, “um memorial não é, ou não deve ser escrito para falar propriamente de si, mas para compreender o que cada um entendeu das experiências, fatos, acontecimentos que contribuíram para a formação” reforçando que “a palavra Memorial vem do latim Memoriale e significa memento, fatos memoráveis, que precisam ser lembrados” (FREITAS; SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 3).

No universo das narrativas (auto)biográficas de professores(as), Souza (2007, p. 66) afirma que “narrar é enunciar uma experiência particular refletida sobre a qual construímos um sentido e damos um significado”.

Clandinin e Conelly (2015, p. 11) consideram que “o homem é essencialmente um contador de histórias que extrai sentido do mundo pelas histórias que conta”. Para esses autores, a razão principal para o uso da narrativa na investigação educativa é a de que a educação é construção e reconstrução de histórias pessoais e sociais, tanto os(as) professores(as) como os estudantes são contadores(as) de histórias e, também, personagens em suas próprias histórias e nas de outros. Portanto, “o estudo da narrativa, é o estudo da forma em que os seres humanos experimentam o mundo” (CONNELLY; CLANDININ, 2015, p. 11).

O objetivo, assim, reverte-se no próprio processo formativo, autorreflexivo, desse exercício (auto)biográfico, que perpassa aquele que aceita o desafio de olhar para si e para sua história de formação. Avaliam-se, destarte, os pontos significativos que valem a pena ser contados, narrados - o autor, então, parte de sua experiência para questionar os sentidos de suas vivências e aprendizagens, autobiografando os momentos mais relevantes de sua história pessoal e profissional, refletindo sobre como eles se entrelaçam em diversos contextos educativos e em possíveis experiências formativas.

Sobre os estudos (auto)biográficos e sua grande potencialidade, Bueno et al. (2006, p. 392 apudSOKOLOVICZ; HAGEMEYER, 2017, p. 6) afirmam que eles residem justamente “no potencial explicativo/formador, além de se constituírem como fontes para a compreensão das peculiaridades da formação e das especificidades das situações educativas”.

Cabe ressaltar que, na busca de referenciais de como se faz uma (auto)biografia, não há receitas ou formulários, visto que cada história e suas significações são únicas, pessoais, subjetivas, autoreflexivas, singulares e, como descreveu Pineau (2006), autopoiéticas, como parte da arte formadora da existência.

Estratégias metodológicas

O campo empírico investigado, que “em pesquisa narrativa é denominada ‘contexto’ faz toda a diferença”, pois “o contexto é necessário para dar sentido a qualquer pessoa, evento ou coisa” (CLANDININ; CONELLY, 2015, p. 59). O contexto e o espaço-tempo desta investigação abarcam a formação inicial docente no curso de Pedagogia, especificamente o estágio em docência realizado na modalidade EJA.

Como metodologia, utilizou-se de dispositivos (auto)biográficos e de histórias de vida em formação, além de “Oficinas Biográficas”, para debate e reflexão das experiências do estágio supervisionado e de experiências das histórias de vida que foram significativas para a escolha e definição da profissão. Quanto aos encaminhamentos de escrita (auto)biográfica, participaram da pesquisa 10 acadêmicos(as), em processo de formação inicial docente, de uma turma de estágio supervisionado do curso de Pedagogia. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, sendo utilizados, neste artigo, codinomes para preservar suas identidades.

No delineamento da proposta investigativa, a gênese da pesquisa, as definições da problemática e as possíveis abordagens foram pautadas, inicialmente, em explorar a temática com base no levantamento bibliográfico, tendo em vista torná-lo mais explícito na construção de uma metodologia viável.

Assim que se definiram o contexto e as características dos(as) participantes, procedeu-se com as orientações destinadas tanto ao estágio como aos dispositivos metodológicos para produção dos dados da pesquisa.

Assim sendo, os dispositivos metodológicos utilizados se articulam e se complementam. A ideia dessa triangulação de dispositivos, resultantes das reflexões das Oficinas Biográficas, das escritas (auto)biográficas e dos Memoriais de formação que se articulam e se complementam, foi criar um rol de informações, experiências, registros e reflexões, potencializando esse momento vivido na formação inicial. Desse modo, as oficinas biográficas serviriam de base de orientação e também de socialização de experiências, o que auxiliou para a composição do memorial de formação juntamente com as escritas (auto)biográficas, como registro das experiências mais significativas. Por meio de uma escrita de narrativa (auto)biográfica das experiências e das trajetórias de vida pessoal e familiar, ressinificam-se experiências, influências para tornar-se professor(a) e representações de si que foram sendo transformadas pelo contexto vivencial, como ao dar a primeira aula no estágio supervisionado; configuram-se, dessa forma, experiências formadoras, ou seja, tudo o que substancialmente pudesse emergir nesse momento de formação.

Para Delory-Momberger (2006, p. 362), o trabalho com (auto)biografias, sejam relatos orais, sejam escritos,

[...] não constitui em si a vida do sujeito, mas sim uma reprodução da vida por meio da linguagem. [...] as narrativas estão inscritas em determinado tempo, espaço e inter-relação; longe de serem fixadas numa forma única que lhes daria um passado, objetiva e definitivamente fixo, a narrativa de vida é uma matéria instável, transitória e viva, que se recompõe sem cessar no momento em que ela se anuncia.

Para essa autora, “as experiências não carregam um sentido escondido, porque é ao narrar-se que esses sentidos se constroem”, visto que “[...] nós não fazemos a narrativa de nossa vida porque nós temos uma história; nós temos uma história porque nós fazemos a narrativa de nossa vida” (DELORY-MOMBERGER, 2006, p. 363).

Cada história individual possibilita análise e reflexão sobre as histórias num coletivo. Nesse aspecto, “a narrativa é apenas o passo inicial, sendo necessário certo distanciamento para possibilitar um olhar sobre a ‘escrita de si’, permeado no processo formativo coletivamente” (SOKOLOVICZ, 2015, p. 82-83).

Resultados e discussões

Seguindo os dispositivos metodológicos, e os pressupostos das pesquisas narrativas (auto)biográficas e de pesquisa formação, toda a análise foi estruturada em Campos Investigativos por suas conjecturas de espaço/tempo, a saber:

  • 1) Passado: a identidade e a trajetória de vida em formação vista pela perspectiva de retrospecção;

  • 2) Presente: a prática pedagógica e as experiências de formação inicial docente vivenciada e relatada durante o estágio em docência na EJA; e

  • 3) Futuro: a constituição da docência pelo estágio, como parte do tornar-se professor(a), pela prospecção do porvir e pela análise desses campos em sua inter-relação em Núcleos de Significação por meio dos dados da pesquisa.

Essa demarcação contempla a amplitude formativa, a partir desta triangulação: dimensão pessoal, dimensão profissional e dimensão organizacional, num movimento que concebe o processo de formação por intermédio do(a) professor(a). Conforme também propõe Nóvoa (1995, p. 38), ao afirmar que “a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexão crítica sobre práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal”.

A dimensão pessoal supracitada não exclui a dimensão organizacional, visto que ela pressupõe o processo de formação num contexto social, contemplada por uma proposta de estágio que objetiva a inserção do(a) discente na realidade educacional. Nessa mesma perspectiva de formação, Delory-Momberger (2006 apudSOKOLOVICZ, 2015, p. 66) afirma que nesse “[...] processo é que os sujeitos criam, recriam e reproduzem a realidade social. Esses fatores não são estáveis e, justamente por essas interações, o sujeito é um constante projeto de si”, e ao recriar seu entorno social, recria a si mesmo e vice-versa.

A noção de tempo aqui apresentada decorre das reflexões de Haracemiv (2002), que apresenta as diferentes noções de tempo. A autora não só se refere ao Tempo Chronos - que é o tempo cronológico, medido em horas, dias, meses ou cronogramas de formação -, mas também ao Tempo Kairós - que é o tempo das sensações, do sentir (“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”) -, ao Tempo Transcurso - que é o tempo de travessia, das trajetórias e daqueles com quem se caminha - e, fundamentalmente, ao Tempo Intensidade - que é o tempo e “não tempo” das significações, das relações, do pertencimento e do clima que perpassa todo o processo de formação.

Essas noções de tempo foram fundamentais na organização e na análise dos dados da pesquisa para se chegar aos Núcleos de Significação, visto que não se trata de uma leitura literal e cronológica dos fatos relatados, mas sim de uma leitura tridimensional, por separar escritas, falas, enunciados e narrativas, e por levar em conta a dimensão entre o lembrar e o esquecer, o dito e o não dito, o singular e o plural, entre o que é o processo de formação e o que não é. Entre presenças, ausências e silenciamentos.

De posse dos dados da pesquisa, foi feito um mapeamento e a organização dos recortes relevantes das narrativas (auto)biográficas, dos memoriais de formação e dos momentos de reflexão que foram gravados e transcritos. Nessa categorização, foi organizada uma tabela, realizando, assim, o cruzamento das informações individuais com as coletivas, por meio de um comparativo das informações de cada participante; buscando aglutinar similaridades, presenças e ausências em Campos Investigativos, e por fim em emergência dos Núcleos de Significação, a partir da metodologia proposta por Aguiar e Ozella (2006), atualizado em 2013.

Para definição dos Núcleos de Significação, partiu-se das leituras analíticas de todo o conteúdo da pesquisa, que foi separado e organizado em pré-indicadores e indicadores. Por meio da categorização em Campos Investigativos, identificam-se as temáticas de cada relato ou ainda aquelas que pressupomos existir, mas que foram silenciadas. Desse exercício de aproximação e distanciamento proposto em unidades de análise menor - possibilitando a apreensão de diferenças, particularidades e proximidades entre os(as) participantes - foram surgindo os Núcleos de Significação em cada Campo Investigativo.

No decorrer do processo, surgiram algumas dificuldades específicas. Perceberam-se dificuldades na forma de os(as) estagiários(as) se expressarem, dificuldades em falar de si e, principalmente, dificuldade no ato de escrever sobre si. Para estudantes em formação, às vezes falar ou ler em público já é difícil, para escrever e publicar, ainda mais sobre si, mostrou-se uma tarefa proporcionalmente mais árdua. Por isso, essa “escrita de si” foi considerada tão difícil. Ao analisar esse fato, recorremos aos escritos de Foucault (1992), que, logo no início de sua explanação do texto “A escrita de si”, trata sobre o movimento e a dificuldade de se expor:

[...] que cada um de nós note e escreva as ações e os movimentos da nossa alma, como que para dar mutuamente a conhecer e que estejamos certos que, por vergonha de sermos conhecidos, deixaremos de pecar e de trazer no coração o que quer que seja de perverso (FOUCAULT, 1992, p. 129).

Ao analisar retrospectivamente o papel da escrita na cultura filosófica de si, Foucault (1992) tece analogias sobre o papel que essa “escrita de si” desempenha na formação do ser, e, complementarmente, exploramos aqui, na perspectiva dos juízos de valor, as dificuldades de se expor numa “escrita de si” para outrem. Para Foucault (1992, p. 129), o “fato de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e a vergonha”. O filósofo propõe algumas analogias a esse ato de escrita, a primeira analogia diz que “aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade sê-lo-á o caderno de notas para o solitário” (FOUCAULT, 1992, p. 129). Mas, referente

[...] à prática da ascese como trabalho não apenas sobre os atos, mas, mais precisamente, sobre o pensamento: o constrangimento que a presença alheia exerce sobre a ordem da conduta, exercê-lo-á a escrita na ordem dos movimentos internos da alma (FOUCAULT, 1992, p. 129).

Por fim, a escrita de si surge também segundo Foucault (1992, p. 129), “como uma arma do combate espiritual: uma vez que o demônio é um poder que engana e que faz com que nos enganemos sobre nós mesmos”. Assim, para ele, “a escrita constitui uma prova e como que uma pedra de toque: ao trazer à luz os movimentos do pensamento, dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo” (FOUCAULT, 1992, p. 129).

Dito de outra forma trata-se de uma dificuldade em falar de si e em escrever sobre si, preservando-se, assim, da opinião e do conhecimento do outro sobre nós. Isso foi evidenciado logo no primeiro encontro, em que foi dito: “Eu não vou expor aqui minha vida pessoal, tem coisa que não é preciso que ninguém saiba, faz parte somente da minha vida” (José).

Ironicamente, o mesmo estudante, que mostrou bastante resistência inicial na “escrita de si”, foi o que mais ativamente participou de todas as etapas do processo, escrevendo, no final do semestre, sua escrita (auto)biográfica sem os medos e receios do início. Por outro lado, estudantes que, inicialmente, não demonstraram ter dificuldades de falar de sua vida pessoal tiveram, ao longo do processo, dificuldades na escrita (auto)biográfica.

Essa questão pode ser identificada numa das escritas que inicia descrevendo exatamente esse embaraço: “Escrever minha autobiografia pode ser bastante complicado. Isso por que nós desenvolvemos o hábito de ver os outros, ouvir os outros, ponderar sobre os outros, mas dificilmente fazemos essas mesmas coisas com nós mesmos” (Anny).

Na análise das narrativas (auto)biográficas, percebeu-se que elas expressam as mais diversas formas e estilos, diferindo no vocabulário, na construção frásica e na clareza e expansão do texto, bem como no conteúdo narrado ou no discurso apresentado. Clandinin e Conelly (2015, p. 11) afirmam que o estudo da narrativa “é o estudo da forma em que os seres humanos experimentam o mundo [...] de como traduzem uma capacidade de objetivar e racionalizar”.

O desafio foi demonstrar como acontecem esses processos de significação, por isso a opção metodológica para a interpretação dos dados versou sobre os Núcleos de Significação, conforme descrito e proposto por Aguiar e Ozella (2006, 2013), em que se apoiam na Psicologia Sócio-Histórica de Vygotsky para explicar as noções de sentido e significado, necessidade e motivo.

Segundo os autores, “o sentido coloca-se num plano que se aproxima da subjetividade, que com mais precisão expressa o sujeito, a unidade de todos os processos cognitivos, afetivos e biológicos” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 227). Portanto como afirmam “falar de sentidos é falar de subjetividade, da dialética afetivo/cognitivo, é falar de um sujeito não diluído, de um sujeito histórico e singular ao mesmo tempo” (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 305). Logo,

A apreensão dos sentidos não significa apreendermos uma resposta única, coerente, absolutamente definida, completa, mas expressões muitas vezes parciais, prenhes de contradições, muitas vezes não significadas pelo sujeito, mas que nos apresentam indicadores das formas de ser do sujeito, de processos vividos por ele (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 307).

Já os significados são, segundo os autores, produções históricas e sociais. Logo, “os significados referem-se, assim, aos conteúdos instituídos, mais fixos, compartilhados, que são apropriados pelos sujeitos, configurados a partir de suas próprias subjetividades” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 226).

Na acepção de Vygotsky (2001apudAGUIAR; OZELLA, 2006, p. 226) “o significado, no campo semântico, corresponde às relações que a palavra pode encerrar; já no campo psicológico, é uma generalização, um conceito. São elas que permitem a comunicação, a socialização de nossas experiências”. Os autores colocam que

[...] embora o significado seja mais estável, “dicionarizado”, ele também se transforma no movimento histórico, em que sua natureza interior se modifica, alterando, consequentemente, a relação que mantém com o pensamento, entendido como um processo (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 226).

Segundo Aguiar e Ozella (2006, p. 226) “na perspectiva de melhor compreender” as experiências dos sujeitos em formação e os valores que se atribuem a elas,

[...] os significados constituem o ponto de partida: sabe-se que eles contêm mais do que aparentam e que, por meio de um trabalho de análise e interpretação, pode-se caminhar para as zonas mais instáveis, fluidas e profundas, ou seja, para as zonas de sentido (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 226).

Afirma-se “que o sentido é muito mais amplo do que o significado, pois aquele constitui a articulação dos eventos psicológicos que o sujeito produz frente a uma realidade” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 226-227).

Desse modo, evidencia-se que o significado que cada sujeito confere à sua formação é condicionado pelos seus valores e suas trajetórias de vida, em âmbito pessoal. Sendo assim, o seu modo de situar-se no mundo é significativo para a construção da sua identidade docente. Nesse entendimento, na pesquisa (auto)biográfica,

O sujeito é percebido como um ser singular e social. É singular ao passo que reflete uma forma única de articulação entre os eixos apresentados na Figura 1 a seguir, e social no complexo das relações do indivíduo em sua constituição, porque ele está imerso nessas relações (SOKOLOVICZ, 2015, p. 66).

FONTE: Sokolovicz (2015, p. 66).

FIGURA 1 SISTEMATIZAÇÃO DO COMPLEXO DE RELAÇÕES DO INDIVÍDUO EM SUA CONSTITUIÇÃO 

Identificar os sentidos atribuídos, e os significados construídos a partir das relações estabelecidas durante o período de formação foram os desafios desta pesquisa. Ao privilegiar a perspectiva teórico-metodológica dos Núcleos de Significação de Aguiar e Ozella (2006, p. 238), foi necessário olhar, pelas categorias de sentido e de significado, para o conhecimento como possibilidade. Com esse “recorte”, na tentativa de localizar os Núcleos de Significação nos Campos Investigativos, estabeleceram-se opções de observação, pois, como dizem os autores, o levantamento e a organização dos núcleos de significação já constituem um momento de análise, visto que “[...] o ato de ‘recortar’ é realizado a partir dos critérios propostos pelo pesquisador, e esses critérios são sempre escolhidos em função dos objetivos da pesquisa, e, por isso, nunca são neutros” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 238).

Dessa forma, todo o material coletado na pesquisa foi analisado em pré-indicadores e indicadores, até chegar aos Núcleos de Significação. Chamamos de pré-indicadores a primeira análise resultante das várias leituras flutuantes do material coletado, familiarizando-nos com os dados que tínhamos em mãos. Nessa etapa, selecionamos frases, parágrafos, histórias, enfim, os dados que faziam referência aos temas dos três grandes eixos dos Campos Investigativos, existindo nessa fase um volume extenso de narrativas. Buscamos, preliminarmente, organizar o material, para, então, buscar entender o que fora dito ou escrito, inclusive os silenciamentos daquilo que não fora dito. Sendo assim, nas diversas leituras do material (auto)biográfico, destacamos os conteúdos dos memoriais de formação, demonstrados sem maior carga emocional.

A etapa seguinte, denominada identificação dos indicadores, consistiu-se em categorizar os pré-indicadores por meio dos princípios de similaridade, ou seja, narrativas diversas, mas que versavam sobre a mesma coisa. Essa ação reduziu a diversidade do grande número de pré-indicadores, pois “são os indicadores que possibilitam a construção da direção dos núcleos de significação” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 238). De posse do conjunto de indicadores e de seus conteúdos do material coletado, fez-se uma primeira seleção dos conceitos que ilustram e esclarecem os indicadores. Este momento já caracteriza, segundo os autores, uma fase do processo de análise que aponta um início de nuclearização.

Segundo Vygotsky (2001), uma única palavra pode expressar múltiplos significados. Apoiados na fundamentação de Campos e Vasconcelos (2016, p. 375), foi identificado que o sentido é central à compreensão dos mais variados significados e designa todos os elementos dentro daquela palavra. Por isso, foi realizada uma categorização na intenção de aglutinar os indicadores por similaridade ou por complementação de modo a nos levar a unidades menores de análise. Assim, foram possíveis aproximações entre o que foi dito e escrito por cada participante da pesquisa.

Para cada indicador, escolheu-se uma nomeação, um conceito e uma palavra para compor unidades de análise reduzidas, o que foi, posteriormente, articulado à constituição dos Núcleos de Significação apresentados nos diversos materiais coletados.

Já a terceira etapa é a constituição dos Núcleos de Significação propriamente ditos, seguindo o raciocínio de Aguiar e Ozella (2013), ela resulta do processo de articulação do conjunto de indicadores. Dessa maneira, “o processo de construção dos núcleos de significação já é construtivo-interpretativo, pois é atravessado pela compreensão crítica do pesquisador em relação à realidade” (AGUIAR; OZELLA, 2013, p. 310). Pelo comunicado na expressão das narrativas, sejam escritas, sejam faladas, originou-se um descritor, que, quando combinado frente aos seus sentidos, expressos em palavras, tornou-se um Núcleo de Significação, em torno de cada um dos campos investigativos.

No campo investigativo Identidade, pressupunha-se investigar e analisar pela perspectiva de retrospeção (passado) o que os(as) identifica, enquanto pertencentes a uma mesma classe, a de professores(as) em formação, considerando suas trajetórias de vida pessoal e familiar, suas trajetórias de formação e suas trajetórias de interação entre o pessoal e social.

Nesse campo, os Núcleos de Significação giraram em torno da caracterização da identidade. Expressões como: “Eu sou”, “Vim de uma família”, “Minha mãe e minha avó eram professoras”, “Sou totalmente sem experiência”, “Quero ser como ela quando for professora”, “Não me vejo professora”, revelaram as várias formas de pertencimento a uma mesma identidade. Além disso, os Núcleos de Significação foram associados a palavras como: família, escola, experiências, cultura, trabalho, profissão, decisões, crenças, escolhas, possibilidades, influências, sociedade, sentimentos, legado, representação, linguagem, pessoas, povos, ideias, frustrações.

Na centralidade do campo investigativo sobre Estágio Supervisionado e Prática Pedagógica na Educação de Jovens e Adultos - que visava a identificar o vivido, o sentido, as percepções e as experiências em suas trajetórias de vida e durante a realização do estágio em docência, no presente -, reafirma-se em várias narrativas (auto)biográficas pelas seguintes expressões: “Me senti professor”, “Foi um choque de realidade”, “Tem professores que não gostam de estagiários”, “Dava para perceber que o professor regente não queria a gente lá”, “Precisaria de mais preparação”, “Na nossa aula deu um monte de coisas erradas, mas o professor foi bem profissional ao apontar como melhorar”, “A maior dificuldade que tive foi em relação a me relacionar com as pessoas”, demonstrando como os(as) participantes se sentiram nesse importante momento de formação. Os Núcleos de Significação ficaram por conta de caracterizar o papel da universidade nessa etapa de formação, sendo utilizados termos como: escola, aula, plano de aula, estudantes, experiência do estágio em si, metodologias, conteúdos, sentimentos e sensações ao ministrar a aula, aspectos sociais, identificação com estudantes adultos, dificuldades, aproveitamento das experiências na área educativa, estágio como obrigação, falta de flexibilização dos estágios, crítica aos modelos vigente, estágios como trabalho.

Por fim, no campo investigativo Constituição da Docência, interessava saber o que une os(as) participantes e é comum nesse processo de “tornar-se” professor(a), por meio da prospecção de futuro. Apesar de muitos(as) só terem experiência de docência via estágio supervisionado, eles(as) fazem ponderações como: “Aprender a ser professor pelo exemplo”, “Será que é isso mesmo que eu quero ser?”, “É diferente quando você vai para a escola como professor”, “Agora tenho outro olhar, não mais de estudante, mas sim de professor”, “O conteúdo não é o desafio, o desafio é ganhar a atenção do estudante”, “Aqui na Universidade há muito conteúdo por conteúdo, é difícil fazer relação de como vou usar isso dando uma aula na escola básica”, “Não me sinto preparado para isso [ser professor]”, “Esse estágio não é suficiente para gerar confiança em ser professor”, “Eu não me sinto pronto para a sala de aula”, “Ao dar a aula eu consegui sentir como é ser professor, os desafios que enfrenta”, “Acho que nossa formação não prepara para nenhuma outra modalidade”, “Eu tinha até medo em pensar em dar aula para adultos”, “Não me vejo assumindo uma sala de aula com estudantes tão diversos”, “Me sinto mais segura em atuar com crianças, até porque já fiz outros estágios remunerados com crianças, é bem mais tranquilo”, “Eu queria me sentir reconhecido como professor”. Os núcleos mais significativos são: formação, sentidos atribuídos a ser professor(a), experiências docentes, prospecção do tipo de professor(a) se quer ser, capital cultural, acesso à carreira, possibilidades de exercício da profissão, educação para transformação e mudança social.

Segundo Kenski (2000), a reconstrução e a reflexão das histórias promovem interações do passado com o presente, contribuindo para que o sujeito em formação tenha conhecimento de si, porque recupera as motivações, o porquê de suas escolhas e os sentidos atribuídos aos desempenhos nas histórias de vida.

Além dos aspectos autorreflexivos e formativos empregados no desafio de se (auto)biografar, os(as) acadêmicos(as), ao retratar as histórias de vida e as experiências dos tempos e espaços educacionais e formativos, traduziram sentimentos, representações e significados individuais das memórias, histórias e relações sociais com a escola. Revelando, como reafirma Souza (2007, p. 59), “a potencialidade formativa do método autobiográfico” empregado com acadêmicos(as) em processo de formação inicial, a partir das experiências de estágio supervisionado.

Entende-se, assim, que cada história é única e singular, porém pode-se revelar, nesse exercício do individual/coletivo, singular/universal, tanto as memórias sociais quanto as temporais, institucionais e formadoras dos sujeitos em seus contextos, pois evidenciam práticas individuais que estão inscritas na densidade de determinados contextos sócio-históricos por excelência.

Considerações finais

Segundo Silva (2014, p. 21) vincular um projeto narrativo (auto)biográfico “à estrutura do estágio em encontros institucionalizados, coerente ao seu encaminhamento na forma de etapas”, tinha por propósito possibilitar autonomia por suas percepções, em razão “da condição de sujeitos de sua formação provocada na aprendizagem da reflexibilidade de suas experiências, formativas e existenciais” (SILVA, 2014, p. 21).

Ao considerar a produção da escrita (auto)biográfica, na perspectiva procedimental, realizada pelo(a) estudante estagiário(a) como um esforço reflexivo “sobre si”, objetivou-se a identificação dos momentos significativos de seus percursos de formação, assim como a consequente contribuição para o “tornar-se professor(a)” durante a realização do estágio (SILVA, 2014, p. 21).

Para analisar as relações entre as dimensões pessoal e profissional na formação inicial docente na EJA - possibilitando descrever contextos, situações e processos formativos a partir dos significados atribuídos às experiências, e adotando o suporte da pesquisa (auto)biográfica como dispositivo metodológico -, todo esse processo foi desenvolvido em etapas, articuladas em Campos Investigativos, e analisado na relação desses com os Núcleos de Significação envolvidos nesse processo formativo.

Entende-se que a investigação foi bastante proveitosa no sentido de caracterizar o papel do estágio em docência, enquanto espaço formativo, nos cursos de formação inicial docente, possibilitando contato com a realidade escolar e com experiências de prática pedagógica no contexto de atuação com a EJA. Esses elementos formativos das histórias de vida e dos aspectos de desenvolvimento pessoal, colhidos nos relatos dos(as) acadêmicos(as), podem ser considerados como constitutivos para a identidade, ao analisar as possíveis interações entre as dimensões pessoal e profissional envolvidas na formação inicial docente.

Apontaram-se, também, os limites dos cursos de formação inicial docente na preparação para enfrentar a diversidade educativa não só em termos de perfis de estudantes, mas também das especificidades que cada modalidade de ensino exige, principalmente da insuficiência de preparo pedagógico para atuar com a Educação de Jovens e Adultos.

Por fim, espera-se que, ao trabalhar com processos (auto)biográficos ligados às histórias de vida em formação, possa-se demarcar importantes dispositivos metodológicos nas práticas com estágios supervisionados na formação inicial docente. Como afirma Nóvoa (1988, p. 116)

[...] as histórias de vida e o método autobiográfico integram-se no movimento que procura repensar as questões da formação, acentuando a ideia que “ninguém forma ninguém” e que “a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida”,

permitindo assim, “[...] processos de autoconhecimento e de reflexão sobre a constituição da docência pelas vivências no campo do estágio supervisionado como um projeto de construção e reconstrução de si” (NÓVOA, 1988, p. 116).

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1Os autores agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro recebido na forma de bolsa de doutorado para a primeira autora.

2Parecer do Comitê de Ética da UFPR, nº 3.374.023, e do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE), nº 10927119.8.0000.0102.

Recebido: 19 de Julho de 2021; Aceito: 26 de Outubro de 2021

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