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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 14-Nov-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.79892 

Artigos

Valorização do magistério e responsabilidade fiscal: é possível um caminho para superar limites e contradições

Appreciation of the magisterium and fiscal responsibilitiy: a way to overcome limits and contradictions is possible

Carlos Eduardo Sanches* 
http://orcid.org/0000-0002-4758-6614

Alboni Marisa Dudeque Pianovski Vieira** 
http://orcid.org/0000-0003-3759-0377

*Universidade Federal do Paraná, UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: carlos@cesanches.com

**Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: alboni@alboni.com


RESUMO

Apesar de aprovada em 2008 e declarada plenamente constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em diferentes oportunidades, a Lei Federal nº 11.78/2008 (BRASIL, 2008) ainda não está efetivamente implementada. O valor do piso nacional do magistério assegurado como vencimento (salário base) e ponto de partida das carreiras, além da reserva de um terço da jornada docente para atividades extraclasse sem estudantes, estão em rota de colisão, segundo governadores e prefeitos, com os limites de despesa com pessoal definidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Por meio de uma pesquisa documental e bibliográfica e aportado nos estudos de Cury (1980; 1985), Gouveia e Ferraz (2013), Oliveira (2010), Pinto (2009) e Saviani (2009), este artigo analisa o contexto da valorização do magistério e o caminho para a instituição da lei do piso, o impacto nas redes públicas de educação básica, além dos entraves oriundos da obediência à LRF. Também apresenta dados apurados por Sanches (2020) em estudo que envolveu três capitais do Sul do Brasil, que utiliza uma metodologia de análise das condições para cumprir piso e hora atividade. Tal pesquisa analisou as receitas e o investimento em remuneração de Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, comparando a proporção que os professores ocupam no quadro de servidores das Prefeituras e quanto eles representam no gasto total com pessoal, para concluir se o magistério provoca desrespeito aos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Palavras-chave: Piso e Remuneração do Magistério; Hora Atividade; Valorização do Magistério; Responsabilidade Fiscal; Metodologia de Cálculo de Impacto

ABSTRACT

Although it was approved in 2008 and declared fully constitutional by the Supreme Federal Court (STF) on different occasions, Federal Law No. 11.78/2008 (BRASIL, 2008) is not yet effectively implemented. The value of the national floor of the magisterium guaranteed as salary (base salary) and starting point of careers, in addition to the reservation of one third of the teaching day for extraclass activities without students, are on a collision course, according to governors and mayors, with the limits of personnel expenditure defined by the Fiscal Responsibility Law (LRF). Through a documentary and bibliographic research and in cury’s studies (1980, 1985), Gouveia and Ferraz (2013), Oliveira (2010), Pinto (2009) and Saviani (2009), this article analyzes the context of the valorization of the magisterium and the path to the establishment of the floor law, the impact on public basic education networks, in addition to the obstacles arising from obedience to the LRF. However, it presents data collected by Sanches (2020), in a study involving three capitals in the south of Brazil, which uses a methodology for analyzing the conditions to meet the floor and hour of activity. This research analyzed the revenues and the investment in remuneration in Curitiba, Florianópolis and Porto Alegre, comparing the proportion that teachers occupy in the civil servants of the City Halls and how much they represent in the total expenditure with personnel, to conclude if the teaching profession provokes disrespect for the limits of the Fiscal Responsibility Law.

Keywords: Floor and Remuneration of the Magisterium; Activity Time; Appreciation of the Magisterium; Fiscal Responsibility; Impact Calculation Methodology

Introdução

A valorização do magistério requer a criação e implementação de políticas púbicas por meio da combinação entre a aprovação de marcos legais e a sua integral implementação. Contudo, no cotidiano das redes públicas da educação básica, o que se pode constatar é uma realidade um pouco diferente, afinal nem sempre legislações são efetivamente cumpridas. Um dos principais exemplos é a Lei Federal nº 11.738/2008 (BRASIL, 2008), que ainda não teve concretizadas as duas principais conquistas.

A lei instituiu o piso salarial nacional para os profissionais do magistério, estabeleceu que este valor deve ser assegurado no vencimento e não no conjunto da remuneração e definiu que ele deve corresponder ao valor inicial das carreiras. Além disso, determinou a reserva de, no mínimo, um terço da jornada docente para atividades extraclasse sem a interação com os estudantes.

Ocorre que os dados do Relatório do 3º Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) (INEP, 2020) evidenciam que, em 2019, apenas 70,4% das redes estaduais e 74,2% das municipais cumpriam o valor do piso nacional no vencimento dos profissionais do magistério. Não obstante, embora conste no Relatório de Monitoramento do PNE que 85,2% dos estados e 74,2% dos municípios preveem em seus planos de carreira a reserva de um terço para hora atividade, a situação de cumprimento desta previsão é incerta porque não há dados oficiais.

Ainda que essas duas previsões alicercem a Lei nº 11.738, com frequência professores reclamam seus direitos e a imprensa noticia o seu descumprimento. Enquanto isso, governadores e prefeitos alegam dificuldade e até impossibilidade financeira para efetivar piso e hora atividade. “Piso de professores pressiona gastos de Estados e municípios” (VALOR ECONÔMICO, 2020).

O problema, de acordo com os gestores, está no impacto que essas determinações legais provocam na elevação da despesa total com pessoal de cada ente federado, o que resulta na possibilidade de descumprir as regras estipuladas pela Lei Complementar nº 101/2000 (BRASIL, 2000), a conhecida Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Contudo, estudo realizado por Sanches (2020) com a análise das três capitais do Sul do Brasil e que será apresentado à frente, busca compreender em que medida os salários dos professores geram desequilíbrio na despesa com pessoal e infringem os limites definidos pela LRF.

Para além dos entraves com a responsabilidade fiscal, a valorização do magistério é ainda mais agravada à medida que o ganho médio dos professores vem enfrentando forte estagnação diante de outras profissões. O monitoramento do PNE (INEP, 2020) confirma que a média salarial dos profissionais do magistério equivale a 78,1% do rendimento de profissionais das outras áreas e que têm formação em nível superior. O documento também demonstra que embora essa proporção fosse de 65,3%, em 2012, o “poder de compra dos profissionais do magistério, em 2019, recuou para um patamar abaixo do registrado em 2013” (INEP, 2020, p. 352).

[...] o que mais surpreende é que, embora já exista, hoje, uma consciência generalizada de que os professores são mal pagos, o tema ainda é controverso, em especial na mídia ou em algumas abordagens acadêmicas, nas quais se busca demonstrar que os professores não são tão mal pagos quanto se diz (PINTO, 2009, p. 53).

O contexto narrado enfraquece a busca pelo reconhecimento social e pela profissionalização do magistério. Inclusive, contribui para um certo desencanto com a profissão, que “leva a uma naturalização da desvalorização profissional, como se não houvesse outro jeito” (GOUVEIA et al., 2006, p. 267). Como resultado, apenas 2,4% dos adolescentes brasileiros querem seguir a profissão magistério, enquanto em outros países o interesse cresce para 4,2% (OCDE, 2018).

A remuneração depende, também, do prestígio da profissão, o que está intimamente ligado ao perfil do usuário. No caso do Brasil, a elite não coloca os filhos na escola pública; mesmo os professores, coordenadores pedagógicos e diretores de escola, sempre que possível, evitam matricular os filhos em escolas públicas. Com isso, a escola pública passa a ser a escola ‘do filho do outro’, o que reduz sua valorização social, ao contrário do que ocorre nos países desenvolvidos, onde a classe média matricula os filhos na escola pública e, assim, briga pela sua qualidade (PINTO, 2009, p. 53).

Logicamente, não basta restringir a observação do problema relatado neste estudo a uma análise centrada na objetividade dos números e das previsões legais. É preciso considerar as relações sociais e as condições históricas, uma vez que as ações do Estado e dos profissionais do magistério estão inseridas em uma estrutura social alicerçada em permanente relação de troca e que define a organização social do trabalho. Em consequência, “o modo de produção determina todas as manifestações da existência humana, desde as formas da produção dos bens materiais destinados ao consumo e à troca, até as formas da consciência” (SAVIANI, 2009, p. 111).

Ainda que nas atividades desenvolvidas pelo Estado não exista produção direta de valor para acúmulo do capital, é preciso reconhecer que esse cenário acaba por reproduzir uma forma de estrutura e organização na sociedade em que existe uma divisão em classes, hierarquizada pelas relações de poder. A atividade do magistério, como outra qualquer, está inserida em uma estrutura onde a força de trabalho do professor é essencial para assegurar a sua existência e, claro, sobrevivência. Já o poderio técnico e legal, e principalmente a possibilidade de operar a sua própria máquina, posiciona o Estado nessa relação como a classe dominante.

Por isso, “as relações sociais são relações ideológicas porque, a dizer o mundo, representá-lo e conceituá-lo, os discursos o fazem de acordo com os interesses de classe” (CURY, 1985, p. 46). Observar este fenômeno contribui para entender as razões que favorecem ou dificultam a efetivação das determinações da Lei nº 11.738/2008 (BRASIL, 2008), afinal, “cada fenômeno só pode vir a ser compreendido como um momento definido em relação a si e em relação aos outros fenômenos, igual e indistintamente” (CURY, 1985, p. 36).

Nesse contexto, a relação entre classes evidencia que uma delas, a dominante, instituiu uma política para a valorização do magistério. Por outro lado, o acesso a esta política pela classe dominada - professores - está condicionado à espera pelo atendimento prioritário a outras previsões legais.

O professor, como agente pedagógico e mediador da transmissão do saber, também se torna mercadoria. Sua mercadorização crescente como força de trabalho faz dele um assalariado com funções de intelectual. Nesse sentido, ele se proletariza e pode engrossar objetivamente as fileiras da classe trabalhadora. E, como tal, nada impede que ele se ponha a serviço do exercício da dominação (CURY, 1980, p. 83).

Para além das acomodações ou inquietações sobre o cumprimento de piso e hora atividade, essas determinações devem ser compreendidas como uma estratégia para “atrair jovens talentos e estimular a permanência dos atuais profissionais na carreira do magistério, nas redes públicas de educação básica” (SANCHES, 2020, p. 13). Cabe, portanto, buscar conhecer uma realidade pouco descortinada como estratégia para criar condições que possam favorecer o acesso a esse direito. Aliás, este tem sido o objetivo perseguido por educadores há muito tempo.

A Lei nº 11.738 como marco na valorização do magistério

O primeiro marco legal para a valorização do magistério no Brasil foi o Decreto Imperial datado de 15 de outubro de 1827 (BRASIL, 1827). A norma fixada por Dom Pedro I previu medidas para contratar professores para as escolas de primeiras letras, estabeleceu o que deveria ser ensinado aos estudantes e definiu a necessidade de formação para o exercício dessa atividade, além de determinar um valor para sua remuneração.

Desde então, avanços foram inseridos nos marcos legais com maior ou menor intensidade em diferentes períodos. O limitado espaço de importância que a educação sempre ocupou, a baixa compreensão do magistério como uma profissão e a dificuldade de organização dos professores para reclamarem seus direitos permearam essa história durante quase todo o século XX.

A partir dos anos 1970, cresceu o movimento de organização dos educadores em associações, fato que permitiu buscar novos espaços para fincar bandeiras em defesa da educação pública e da valorização profissional, mesmo em meio ao regime militar.

No final dos anos de 1970, em função das reformas educacionais do regime militar, o número de professores na rede pública havia crescido exponencialmente, a perspectiva de profissionalização e valorização do magistério havia sido sinalizada pelos Estatutos Estaduais e Municipais do Magistério, mas as condições de trabalho permaneciam precárias e o rendimento dos professores sofria um processo de depreciação constante, principalmente após a crise do petróleo. Esse cenário de arrocho salarial e a perspectiva de construção de uma identidade profissional tornaram-se combustíveis para um ciclo de mobilizações coletivas e de greves (GOUVEIA; FERRAZ, 2013, p. 116).

Na busca por condições adequadas de trabalho e remuneração atrativa, as greves de professores, ainda organizadas pelas associações, intensificaram-se. “Constituído na sua imensa maioria por professores de escolas públicas, o magistério estava impossibilitado de se organizar em sindicatos, já que os funcionários públicos eram impedidos de fazê­lo” (OLIVEIRA, 2010, p. 28). O movimento despertou atenção e paralisou professores nas capitais e algumas regiões do interior com a “intensidade, o alcance e a sua radicalidade” (GOUVEIA; FERRAZ, 2013, p. 116) até então nunca registrados.

Um dos efeitos práticos desse movimento foi o impulso para a criação de legislações específicas voltadas para estabelecer regras de ingresso no quadro do magistério e a definição de evolução salarial. Surgem, portanto, os primeiros estatutos e planos de carreira de professores no Brasil. “Anteriores à Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, temos os planos de carreira estaduais de Rio Grande do Sul (1974) e São Paulo (1985), bem como os municipais de Porto Alegre e Florianópolis, ambos também do ano de 1988” (TREIN; GIL, 2015, p. 4).

Esse movimento foi importante para a mobilização do tema da educação na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Contudo, Gouveia e Ferraz (2013, p. 117) destacam que o movimento dos professores “não significou a substituição da pauta geral da política educacional pela pauta corporativa, nem tampouco a derrota das entidades associativas sobre a temática educacional para as associações de caráter trabalhista”.

Todavia, a busca pela valorização seguiu rumo a novos desafios e ampliou a reclamação de direitos não apenas aos professores, mas, também, para todos os profissionais da educação. A Emenda Constitucional nº 53/2006 (BRASIL, 2006) estendeu a necessidade de plano de carreira e “piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal” (BRASIL, 2006, p. 1).

Entretanto, a própria EC 53 trouxe outra previsão que restringiu a busca pelo piso salarial nacional somente para os profissionais do magistério. No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi inserida a necessidade de “prazo para fixar, em lei específica, piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica” (BRASIL, 2006, p. 2).

Apesar de estarem criadas as condições, somente o magistério foi contemplado com a vigência da Lei Federal nº 11.738/2008 (BRASIL, 2008), marco legal que impôs uma nova realidade no cotidiano do poder público brasileiro ao estabelecer o piso como um valor e ao definir que ele deveria ser cumprido no vencimento e não no conjunto da remuneração.

A lei criou um conceito de piso diferente da lógica praticada até então por estados e municípios na política de remuneração de servidores públicos, isso porque, para efeito de cálculo do salário mínimo, é levado em conta não apenas o vencimento do servidor, mas as diversas verbas remuneratórias. Essa situação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal ao decidir, por unanimidade, que “Os artigos 7º, IV, e 39, § 3º (redação da EC 19/98), da Constituição, referem-se ao total da remuneração recebida pelo servidor” (BRASIL, 2009, n.p).

Como resultado desse cenário conflitante, os governadores do Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul ingressaram junto ao Supremo Tribunal Federal com uma reclamação de inconstitucionalidade contra a Lei nº 11.738. Porém, o STF julgou improcedente a ADI 4.167 (BRASIL, 2011) e reconheceu o piso do magistério como “mecanismo de fomento ao sistema educacional e de valorização profissional, e não apenas como instrumento de proteção mínima ao trabalhador” (BRASIL, 2011, p. 1).

Na época, o Supremo também decidiu como constitucional “a norma geral federal que reserva o percentual mínimo de 1/3 da carga horária dos docentes na educação básica para a dedicação às atividades extraclasse” (BRASIL, 2011, p. 1), mas tal decisão foi resultado de um empate em cinco votos, o que não permitiu formar maioria contrária dos ministros.

Desde então, muitos gestores utilizavam esse fato para justificar o não atendimento dessa ampliação da hora atividade e a discussão retornou ao plenário do STF por meio de uma reclamação de uma professora integrante do quadro do magistério estadual de Santa Catarina. Ela ingressou com um recurso extraordinário para alegar a falta de condições para usufruir do benefício.

Nessa oportunidade, a polêmica foi superada porque seis ministros do STF acompanharam o voto do relator, Edson Fachin, considerando que “a distribuição da carga horária da jornada dos professores operada pela lei federal não viola o pacto federativo” (BRASIL, 2020, p. 2). Dessa forma, o Supremo apaziguou a questão julgando “constitucional a norma geral federal que reserva fração mínima de um terço da carga horária dos professores da educação básica para dedicação às atividades extraclasse” (BRASIL, 2020, p. 27).

Apesar de superadas as divergências tanto no aspecto do valor quanto da reserva de um terço para hora atividade, o magistério ainda não alcançou uma posição na estrutura da sociedade e na organização social do trabalho que lhe permitam uma posição como profissão fundada em reconhecimento social e remuneração condizente.

Tomando o conceito genérico de profissão como um termo que se refere a atividades especializadas, que possuem um corpo de saberes específico e acessível apenas a certo grupo profissional, com códigos e normas próprias e que se inserem em determinado lugar na divisão social do trabalho, pode-se indagar até que ponto o magistério obteve ou obtém condições de se definir como tal (OLIVEIRA, 2010, p. 19).

A profissionalização ainda é um desafio porque está submetida a um “[...] processo de construção histórica que varia com o contexto socioeconômico a que está submetida, mas que, sobretudo, tem definido tipos de formação e especialização, de carreira e remuneração para um determinado grupo social que vem crescendo e consolidando-se” (OLIVEIRA, 2010, p. 19).

A superação desse desafio passa pela efetivação das conquistas legais, mas, sobretudo, pela capacidade de posicionar o magistério como classe imprescindível na organização social do trabalho para o equilíbrio da estrutura social. Nesse sentido, é preciso conhecer melhor as causas que embasam as alegações sobre os impactos provocados com o cumprimento de piso e hora atividade na estrutura do Estado.

Piso e hora atividade e seus impactos nas redes de ensino

Desde que começaram as ser implantadas no Brasil, as carreiras do magistério contemplaram uma estrutura salarial quase sempre composta por um vencimento, isto é, salário base, acrescido de vantagens pecuniárias. Com o passar do tempo, adicionais, gratificações, bônus e outros eventos salariais foram sendo acrescidos nestas estruturas sobre uma base pouco ou quase nada expandida.

A Lei nº 11.738/2008 (BRASIL, 2008) buscou alterar a configuração da remuneração para uma base salarial mais ampla, projetando maior segurança e expectativa de carreira. Inclusive, este conceito de piso é capaz de inibir iniciativas de estados e municípios que acabam por ceifar verbas remuneratórias com muita rapidez. E, não por outra razão, a própria lei determinou uma obrigação aos entes federados para adequarem suas carreiras, a fim de que pudessem cumprir o piso.

Art. 6º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão elaborar ou adequar seus Planos de Carreira e Remuneração do Magistério até 31 de dezembro de 2009, tendo em vista o cumprimento do piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica, conforme disposto no parágrafo único do art. 206 da Constituição Federal (BRASIL, 2008, p. 2).

Talvez antecipando eventuais problemas em relação ao cumprimento do piso com a estrutura de carreira predominante até aquele momento, os parlamentares aprovaram na Lei nº 11.738 uma regra de transição. Os entes federados tiveram o prazo de um ano para que a nova realidade pudesse ser absorvida.

Art. 3º [...]

§ 2º. Até 31 de dezembro de 2009, admitir-se-á que o piso salarial profissional nacional compreenda vantagens pecuniárias, pagas a qualquer título, nos casos em que a aplicação do disposto neste artigo resulte em valor inferior ao de que trata o art. 2º desta Lei, sendo resguardadas as vantagens daqueles que percebam valores acima do referido nesta Lei (BRASIL, 2008, p. 1).

Oportuno lembrar que um vencimento tímido, quando acrescido de verbas remuneratórias de caráter eventual e transitório, reduz a base para efeito de cálculo dos encargos sociais. Logo, essas verbas não são computadas quando do gozo de licenças e não integram a base de cálculo para a aposentadoria. Elas evaporam e empobrecem uma carreira porque são atrativas apenas durante o período em que são recebidas.

Por outro lado, e às vezes, controverso ou mal compreendido, o tempo destinado para a hora atividade é um mecanismo que atende a uma previsão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que prevê “período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho” (BRASIL, 1996, p. 27). Desde o final do século XX, os planos de carreira do magistério estabeleciam a reserva entre 20% e 25% da jornada docente para hora atividade conforme recomendações do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 1997).

Resultado de grande mobilização de professores, da sua representação sindical e de movimentos sociais, esse período de atividades fora da sala de aula foi ampliado com a Lei nº 11.738. “Na composição da jornada de trabalho, observar-se-á o limite máximo de 2/3 (dois terços) da carga horária para o desempenho das atividades de interação com os educandos” (BRASIL, 2008, p. 1).

Para orientar a sua implementação, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação editou o Parecer CNE/CEB n.º 18/2012 (BRASIL, 2012). De maneira bastante clara, destacou que o tempo para a hora atividade compõe a jornada de trabalho docente.

Observe-se que o período que deve ser reservado dentro da jornada de trabalho para atividades extraclasses é para:

Estudo: investir na formação contínua, graduação para quem tem nível médio, pós-graduação para quem é graduado, mestrado, doutorado. Sem falar nos cursos de curta duração que permitirão a carreira horizontal. Sem formação contínua o servidor estagnará no tempo quanto à qualidade do seu trabalho, o que comprometerá a qualidade da Educação, que é direito social e humano fundamental;

Planejamento: planejar as aulas, da melhor forma possível, o que é fundamental para efetividade do ensino;

Avaliação: corrigir provas, redações etc. Não é justo nem correto que o professor trabalhe em casa, fora da jornada sem ser remunerado, corrigindo centenas de provas, redações e outros trabalhos (BRASIL, 2012, p. 27).

Essa manifestação do CNE reconhece que a atividade docente não se restringe apenas ao tempo destinado para interação com estudantes e dessa forma a Lei nº 11.738 provocou uma mudança no coração da gestão das redes públicas de ensino ao combinar avanço salarial e melhoria da prática pedagógica. Ainda assim, gestores reclamam incapacidade financeira e a elevação da despesa com pessoal para cumprir as determinações. Logo, esse fato requer uma análise neste estudo.

A responsabilidade fiscal em confronto com os direitos do magistério

Mecanismo que busca disciplinar o uso dos recursos públicos, a Lei Complementar nº 101/2000 (BRASIL, 2000) surgiu no apagar das luzes do século passado sob forte pressão de uma agenda econômica mundial. Preocupados com a reação dos Estados nacionais frente a um cenário econômico em crise, organismos internacionais recomendaram a adoção de uma série de medidas visando o controle de gastos, a austeridade fiscal, a abertura econômica, além da redução de investimento em políticas públicas.

Um dos principais marcos da LRF é o controle de despesa com pessoal. O poder executivo não pode investir mais que 49% da Receita Corrente Líquida (RCL)1, no caso dos estados e do Distrito Federal, e 54% quando dos municípios, em remuneração de servidores concursados, contratados, comissionados e agentes públicos. Além disso, quando os governos estaduais e as prefeituras investem 95% desse patamar máximo, ficam impedidos de conceder aumentos e reajustes salarias, realizar concursos públicos ou contratar servidores, bem como alterar os planos de carreira se a medida resultar em aumento de despesa com pessoal. Isso porque o limite prudencial, que corresponde à utilização de 46,55% da RCL no caso dos estados e 51,3% para os municípios, foi alcançado.

Mas a própria LRF excetua possibilidades de ampliação do investimento em remuneração mesmo com o limite prudencial extrapolado, as quais têm estreita relação para efeito de cumprimento de piso e hora atividade. Decisões judiciais e determinações legais - por exemplo, as da Lei nº 11.738 - e aquelas previstas quando da contratação, além da reposição das perdas inflacionárias, não são impeditivos para estados e municípios com aplicação superior ao limite prudencial conforme o art. 22 da LC 101/2000 (BRASIL, 2000).

Obviamente as receitas públicas não podem ser destinadas integralmente para o pagamento de servidores. Direitos precisam ser assegurados à população e os serviços públicos devem ter qualidade. Contudo, na ação do Estado, é preciso reconhecer a necessidade de quadro de pessoal e no quantitativo adequado. Além disso, especificamente na área da educação, os recursos pedagógicos, técnicos e tecnológicos sempre representarão uma proporção pequena diante do quadro do magistério.

A educação no setor público, diferentemente de outras áreas da atividade humana, não produz mercadorias - forma pessoas. Ela tem no ser humano seu ponto de partida e seu ponto de chegada, pois embora o processo educativo seja mediado por meios materiais, como as estruturas das escolas, equipamentos, materiais pedagógicos e outros, é na relação humana que ele se realiza. Por isso, para além de qualquer outra melhoria estrutural, embora importante, o foco das ações para aprimorar o processo educativo deve estar no desenvolvimento de políticas que valorizem o trabalho do professor e signifiquem melhor aprendizagem para os estudantes (BRASIL, 2012, p. 13).

Destaque para o fato de que a Lei nº 11.494/2007 (BRASIL, 2007) - vigorou até o final de 2020 - determinava a aplicação mínima de 60% da receita do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) em remuneração dos profissionais do magistério. A partir de 2021, com o Fundeb permanente, a Lei nº 14.113/2020 (BRASIL, 2020) alterou essa previsão e elevou o patamar mínimo de investimento em remuneração para 70%, além de ampliar essa abrangência porque o investimento mínimo agora deve ser destinado para todos os profissionais da educação2.

Com efeito, apesar de contar com recursos específicos para custear as despesas na área da educação, os investimentos em remuneração do magistério não estão apartados do montante que cada ente federado pode aplicar. Dessa forma, os investimentos para cumprir piso e carreira repercutem diretamente no total de remuneração dos governos estaduais e prefeituras. Inclusive, quando da concessão de benefícios, de adequação das carreiras e atualização do valor do piso, as medidas adotadas precisam ser aprovadas pelos respectivos poderes legislativos. Tal aprovação está condicionada a uma regra definida pela Constituição Federal (art. 169) e pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 15) que preveem a demonstração da capacidade do ente federado em absorver essa ampliação de despesa.

Nesse contexto, é claro que as previsões da responsabilidade fiscal tendem a prevalecer sobre o direito das conquistas do magistério e isso favorece as justificativas de governadores e prefeitos embasadas na LRF que, quase sempre, estão relacionadas à possibilidade de punição pessoal do gestor público (art. 73) e para o próprio ente federado (art. 23). Enquanto isso, a Lei nº 11.738 fica fragilizada porque seu teor não apresenta qualquer possibilidade de punição ou responsabilização pelo seu descumprimento. “Com reajuste no piso do magistério, prefeitos terão de escolher qual lei federal vão descumprir em 2020” (GZH, 2020, n.p).

O problema é agravado à medida que os gestores criticam o mecanismo de atualização do piso que tem superado a variação da inflação. Só para lembrar, a Lei nº 11.738 atrela a atualização do valor do piso ao crescimento do valor aluno-ano Fundeb considerando os dois exercícios anteriores. “Magistério: 80% das gestões não podem pagar o piso” (TRIBUNA HOJE, 2020, n.p).

Se considerarmos janeiro de 2009, data em que o piso do magistério entrou em vigor, e dezembro de 2020, é possível observar que o IPCA3 teve crescimento de 92%. Enquanto isso, a atualização do piso alcançou 203,8% no período. Esse contexto alicerça a argumentação de governadores e prefeitos, assim como os dados do monitoramento do PNE realizado pelo Inep demonstram a fragilidade no cumprimento do direito dos profissionais do magistério.

De início, é preciso reiterar que a própria Lei nº 11.738 concedeu um período para que as carreiras pudessem ser adequadas e as verbas remuneratórias consideradas para efeito de cumprimento do piso. Ainda que a análise dos planos de carreira não seja objeto desse estudo, registramos que um processo de adequação de planos não significa subtração de remuneração porque é necessário respeitar o princípio constitucional da irredutibilidade salarial (art. 7º).

Um segundo aspecto tem relação direta com a estratégia da utilização do piso como mecanismo de valorização do magistério, tal qual a decisão do Supremo Tribunal Federal. Em contraponto à alegação dos gestores sobre o crescimento do piso acima da inflação, é recomendável retomar a conclusão do monitoramento do PNE que comprovou quão distante está a remuneração média dos professores comparada com os profissionais de outras áreas. Ademais, o crescimento do piso acima da inflação ainda não foi suficiente para assegurar equivalência entre remuneração do magistério e de outros profissionais.

Em tempo algum será possível assegurar qualidade na educação - conforme determinação da própria Constituição e decisão do STF - se não houver o cumprimento do que foi estabelecido pela Lei nº 11.738. Não há outro caminho para a efetivação do magistério como profissão e para alcançar o reconhecimento social.

E o melhor indicador de prestígio de uma profissão é o salário pago àqueles que a abraçam como fonte de vida e sustento. Quando se fala em valorização salarial, contudo, há que se ter claro de que a medida não é, necessariamente, um valor muito acima, mas, simples e tão somente, o que já é pago por outras profissões (PINTO, 2009, p. 60).

Para tanto, as restrições impostas pela responsabilidade fiscal frente ao direito dos professores merecem ser analisadas com base nos números, mas sob a ótica alegada pelos próprios gestores. Afinal, os valores de receitas e despesa com pessoal podem revelar informações que não foram apropriadas por governadores, prefeitos, professores e representantes do movimento sindical. Submeter os dados a um tipo de análise específica pode dar luz sobre o problema da valorização do magistério.

O problema do piso e hora atividade têm em sua gênese outras questões que não apenas a Lei 11.738. Afinal será que é o montante destinado à remuneração do magistério que inviabiliza as prefeituras e os governos estaduais de cumprirem os limites de gasto com pessoal? (SANCHES, 2020, p. 167).

Em um cenário onde o Estado é o detentor do poder e seu aparato técnico legitima a organização social do trabalho do professor sem acessar direitos assegurados na legislação, é preciso conhecer em que medida a responsabilidade fiscal impede o cumprimento de piso e hora atividade. Uma observação do problema no ponto central da reclamação dos gestores públicos pode, ainda, desnudar as justificativas comumente usadas para embasar as decisões de governadores e prefeitos.

Uma proposta de análise dos números

Estados e municípios têm realidades diferentes na sua capacidade de arrecadação, no quantitativo de servidores e na forma como suas remunerações estão estruturadas. Contudo, ainda que o ganho médio do magistério seja proporcionalmente menor que o de profissionais das outras áreas, é lógico estimar que o número de professores corresponde a uma proporção razoável no quadro de servidores.

Longe de ser grupos economicamente marginais, profissões periféricas ou secundárias em relação à economia da produção material, os agentes escolares constituem, portanto, hoje, tanto por causa de seu número como de sua função, uma das principais peças da economia das sociedades modernas avançadas (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 22).

Essa realidade posiciona o quadro do magistério em qualquer ente federado como uma classe importante na organização social do trabalho, mas, também, como imprescindível para o funcionamento da estrutura social. Se o Censo Escolar da Educação Básica (INEP, 2021) confirma que 47,3 milhões de estudantes estão matriculados atualmente, é preciso destacar que 81,4% desse contingente frequenta as escolas públicas. Da mesma forma, são quase 2,2 milhões de professores atuando nessa etapa de ensino, sendo que 75% nas redes públicas.

Logo, também é razoável estimar que boa parte do investimento em salários dos governos estaduais e das prefeituras é destinado para esses profissionais. Por outro lado, conclui-se que qualquer mudança em sua remuneração poderia repercutir de maneira significativa no contexto do ente federado.

Quase sempre amparados por análises superficiais e pressionados por crises econômicas que afetam as receitas, governadores e prefeitos têm na ampliação da despesa total com pessoal a principal resistência para efetivar piso e hora atividade. Para superar esse cenário e conhecer diferentes realidades pelo país, uma metodologia utilizada por Sanches (2020) permite conhecer em que medida o magistério provoca desequilíbrio na despesa com pessoal dos governos estaduais e prefeituras.

Ela propõe uma investigação mais detalhada acerca da realidade de cada ente federado analisando a participação do magistério na composição da despesa total com pessoal comparada com a sua proporção no quadro de servidores. Sobretudo, objetiva descortinar a possibilidade de cumprimento da Lei nº 11.738 no campo definido pelo Estado como o mais importante a ser respeitado: a responsabilidade fiscal.

A proposta inicia com o levantamento do número de servidores no Poder Executivo (estadual ou municipal) e, também, do magistério. Depois, é preciso confrontar as duas informações para descobrir a qual percentual o magistério corresponde no quadro geral do funcionalismo.

Nesse primeiro passo, cada localidade terá sua própria proporção e é bastante lógico concluir que não há possibilidade de estabelecer uma relação ideal entre profissionais do magistério e demais servidores em um ente federado. Com realidades distintas, infraestrutura diferente nos órgãos locais e nas escolas, previsões específicas em suas legislações, por certo o número de docentes e profissionais que atuam nas atividades de suporte pedagógico varia em cada local.

Na segunda parte, o objetivo é conhecer o peso do magistério na despesa total com pessoal do Poder Executivo pesquisado. Assim, devem-se buscar os valores da Receita Corrente Líquida, do montante destinado à despesa total com pessoal naquele Poder Executivo e aqueles utilizados para a remuneração do magistério. Um alerta sempre necessário é o fato de que não estamos tratando apenas dos valores referentes ao pagamento dos vencimentos e demais verbas remuneratórias, uma vez que as despesas decorrentes da remuneração, como os encargos sociais, também fazem parte porque integram a base para apurar o cumprimento dos limites definidos pela LRF e o patamar mínimo do Fundeb a ser destinado para o pagamento dos profissionais da área.

Outra observação importante diz respeito a um dos principais equívocos na busca pela garantia de piso e hora atividade e nas adequações de carreira: priorizar a discussão apenas sobre a receita do Fundeb. Por certo é preciso conhecer a receita total de impostos para compreender, com exatidão, o mínimo necessário que deve ser aplicado pelo ente federado para o alcance dos 25% destinados MDE. Não raro, mesmo as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação têm pequeno acesso a essas informações e à destinação desses recursos.

De posse de todos os dados, é necessário confrontar o investimento em despesa total com pessoal do governo estadual ou da prefeitura com a RCL para saber o percentual utilizado. Na sequência, recomenda-se confrontar o valor destinado à remuneração do magistério com o volume total da despesa com pessoal. O resultado demonstrará qual proporção a remuneração dos professores representa no gasto total com pessoal do ente federado. Para registro, também é impossível estabelecer uma recomendação entre patamar da remuneração do magistério em comparação com demais servidores por causa das variações nos seus planos de carreira e dos diferentes vencimentos iniciais e evoluções para cada área. Mesmo dentro apenas do magistério, existem estruturas distintas e dispersão salarial nas carreiras, em outras, nem o valor do piso é cumprido, como já vimos.

Para descartar por definitivo a visão míope sobre o problema, após a coleta dos dados, basta comparar as duas informações colhidas: qual o tamanho do magistério no quadro de servidores e qual proporção ele representa na despesa total com pessoal. Independentemente do percentual da Receita Corrente Líquida utilizado em despesa com pessoal, dentro ou fora dos limites prudencial e máximo, a informação colhida revela a situação real no período analisado.

Assim sendo, “é razoável concluir que deve haver, no mínimo, um equilíbrio entre o quantitativo de profissionais do magistério e o montante que sua remuneração representa na despesa total com pessoal de um ente federado” (SANCHES, 2020, p. 189). Com a aplicação dessa metodologia, é possível compreender em que medida o investimento de remuneração do magistério desequilibra a despesa com pessoal do ente federado e qualificar as discussões entre gestores, professores e movimento sindical.

Em estudo que abrangeu as três capitais do Sul do Brasil, analisando essa situação nos anos de 2017 a 2019 (SANCHES, 2020), foi possível concluir que a remuneração do magistério não é um fator de desequilíbrio frente aos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Primeiro, porque a proporção da remuneração do magistério na despesa total com pessoal de cada uma destas prefeituras mostrou-se baixa, mas, também, porque o magistério representa uma parcela considerável nos quadros dos servidores municipais.

Em Curitiba, o magistério representou, em média, no período pesquisado 16,7% do total destinado para remuneração do funcionalismo, mas atualmente os profissionais desta área correspondem a 52,9% de todos os servidores. Em Florianópolis, o magistério representou 14,8% do volume destinado a remuneração de pessoal, mesmo correspondendo a mais de um terço (35,6%) do total de servidores. Já Porto Alegre apresenta situação ainda mais desanimadora. O magistério correspondeu a somente 9,5% do investimento realizado com salários dos servidores no período pesquisado e, atualmente, representa 39% de todo o quadro de pessoal da prefeitura (SANCHES, 2020, p. 183).

Os dados coletados em sistemas públicos oficiais e nos portais da transparência evidenciam que apesar de o magistério posicionar-se com um volume significativo dentro do funcionalismo municipal, o conjunto da sua remuneração é consideravelmente pequeno dentro da despesa total com pessoal nas três capitais. Como se não bastasse, os prefeitos de Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre adotaram medidas em 2017 (início dos mandatos) para cumprir as previsões da Lei de Responsabilidade Fiscal, as quais atingiram diretamente a valorização do magistério como estratégia. Na capital paranaense, nem o valor do piso nacional no início da carreira foi garantido para os professores que atuam na Educação Infantil.

A partir da constatação dessa pesquisa é possível estimar que a suspensão dos planos de carreira (aprovados em 2014) pelo prefeito de Curitiba e os anúncios de arrocho salarial no início das atuais gestões em Florianópolis e Porto Alegre tiveram como objetivo a lógica da subordinação do Estado aos mandamentos do mercado. Apesar do comprometimento das receitas provocado pela contínua crise econômica, não se pode afirmar que o magistério é o causador das medidas anunciadas (SANCHES, 2020, p. 184).

Evidente que a realidade das três capitais do Sul do Brasil não pode ser tomada como verdade absoluta para as demais redes municipais e estaduais. Poderá haver locais onde a aplicação da metodologia desvende um cenário em que o magistério é o causador de desequilíbrio entre receitas e aplicação em remuneração, ou de infração aos limites definidos pela LRF. Contudo, parece bastante frágil qualquer alegação sem uma apuração mais atenta.

Os dados apresentados e a realidade das medidas adotadas em Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre também evidenciam um pouco das resistências e a postura dos gestores, tanto conservadores quanto progressistas, confirmam a força que medidas de contenção de despesas assumem dentro da estrutura do Estado (SANCHES, 2020, p. 187).

O contexto narrado reflete com precisão a posição do magistério na estrutura social do trabalho, a relação entre as classes e a posição contraditória do Estado como classe dominante. O acesso ao direito está subjugado a condicionantes que na relação entre gestores e professores são criadas e decididas pela classe que exerce o poder. Por isso, quando percorrido sobre a realidade dos números e no solo defendido pelos gestores como o mais importante, a metodologia proposta favorece a interpretação das condições locais e abre uma nova janela para a efetivação de piso e hora atividade.

Conclusões

Atualmente, 30% dos estados e 25% das prefeituras não cumprem o valor do piso nacional do magistério no vencimento. Além disso, 15% das redes estaduais e 25% das municipais sequer têm previsão em suas legislações para reservar um terço da jornada docente em atividades extraclasse sem estudantes. A situação é agravada à medida que o ganho médio dos professores está estagnado e não reduz em relação aos profissionais de outras áreas. Para agravar o cenário, sem atualização do piso nacional em patamares acima da inflação, jamais ele poderá ser considerado como estratégia de valorização do magistério.

A definição da Lei nº 11.738/2008 (BRASIL, 2008) como um problema no Brasil nem sempre encontra respaldo nos números das receitas e despesas com remuneração. Apesar de não poder ser considerada como uma regra absoluta, a realidade apurada por Sanches em estudo que analisou Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre pode se alastrar pelas diferentes regiões do país e impedir o cumprimento de um marco legal e o acesso a um direito. A falta de discussão mais qualificada sobre as condições de cada ente federado favorece a tomada de decisão por quem opera o poder do Estado.

O confronto entre governadores e prefeitos de um lado e professores e representantes do movimento sindical do outro só favorece uma lógica da responsabilidade fiscal prevalecendo sobre a política de valorização do magistério. É preciso mudar essa realidade e o caminho a ser percorrido não pode desviar as conquistas trazidas pela lei do piso, a efetivação de planos de carreira adequados às realidades locais e a garantia de condições necessárias de trabalho para os professores, mas também é necessário esperar dos gestores públicos uma nova postura em relação à política de valorização do magistério.

Uma contribuição para esse caminho é a proposta da metodologia utilizada na análise da situação das três capitais do Sul do Brasil para descartar ou confirmar, em cada rede de ensino, que piso e hora atividade inviabilizam ou não o cumprimento da responsabilidade fiscal. Ao conhecer o peso que o investimento em remuneração dos professores exerce no Poder Executivo, poderão ser abertos caminhos, inclusive, para a reorganização da composição da despesa com pessoal dos estados e municípios. Afinal, é preciso retribuir ao magistério o que lhe é de direito; no mínimo, isso.

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1É formada pelo total de recursos arrecadados pelos entes federados e que podem ser destinados ao pagamento com pessoal.

2O art. 61 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação define quais são os profissionais da educação.

3 Índice de Preços para o Consumidor Amplo é medido mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para identificar a variação dos preços. O Banco Central considera o IPCA como índice brasileiro oficial da inflação ou deflação.

Recebido: 07 de Março de 2021; Aceito: 20 de Junho de 2023

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