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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 14-Nov-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.86018 

Artigos

Na contramão da BNCC: do emparedamento colonizador ao livre brincar

Against the BNCC: from colonizing employment to free play

Lea Vargas Tiriba* 
http://orcid.org/0000-0001-9508-5980

Zemilda do Carmo Weber do Nascimento dos Santos* 
http://orcid.org/0000-0002-3592-5906

Kátia Almeida Bizzo Schaefer** 
http://orcid.org/0000-0002-0639-4106

*Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: leatiriba@gmail.com; zemilda11@yahoo.com.br

**Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO; Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: katia.b.schaefer@gmail.com


RESUMO

Este ensaio traz reflexões sobre a Base Nacional Comum Curricular/BNCC, etapa da Educação Infantil, especialmente, no que diz respeito às relações divorciadas entre seres humanos e natureza. Esta questão ganhou visibilidade no contexto da pandemia do COVID-19, decorrente do modelo de desenvolvimento econômico capitalista-colonialista devastador. Os referenciais teóricos são buscados em personagens conceituais que se situam em filosofias ocidentais não hegemônicas e na neurobiologia, a partir de análise do discurso baseada na arqueologia do saber, de Michel Foucault. Essas perspectivas confluem com epistemologias nativas que concebem o humano como ser orgânico-cultural cuja existência é entrelaçada com outros seres, entes e fenômenos viventes, e, que, portanto, se potencializa neste estado de entrelaçamento. As análises revelam que a desatenção da BNCC à condição biofílica dos infantes humanos está relacionada a concepções filosóficas e proposições teórico-práticas marcadas pela visão de mundo moderna, profundamente cosmofóbica, antropocêntrica, racionalista, individualista, adultocêntrica e colonialista. Em contraposição, as análises também desafiam à formulação de pedagogias atentas à emergência planetária, confluentes com os saberes/ciências de nossos povos brasileiros originários e tradicionais no cuidado da biodiversidade; e convidam à proposição de pedagogias nativas comprometidas com as causas das crianças, no que se refere à liberdade de circulação e de escolha, ao convívio e ao livre brincar com a natureza, condições para a integridade dos humanos e, simultaneamente, para a integridade da Terra.

Palavras-chave: BNCC; Educação Infantil; Natureza; Biofilia; Filosofias Não Hegemônicas

ABSTRACT

This essay brings reflections on the National Common Curricular Base/BNCC, stage of Early Childhood Education, especially with regard to the relationship between human beings and nature. This issue gained visibility in the context of the COVID-19 pandemic, when it began to be identified as an effect of the capitalist-colonialist economic development model. Theoretical references are sought in conceptual characters that are situated in non-hegemonic Western philosophies and in neurobiology, based on discourse analysis based on the archeology of knowledge, by Michel Foucault. These perspectives converge with native epistemologies that conceive the human as an organic-cultural being whose existence is intertwined with other living beings, beings and phenomena; being, therefore, potentiates itself in this state of entanglement. The analyzes reveal that the BNCC’s inattention to the biophilic condition of human infants is related to philosophical conceptions and theoretical-practical propositions marked by the modern, deeply cosmophobic, anthropocentric, rationalist, individualistic, adultcentric and colonialist worldview. In opposition, they challenge the formulation of pedagogies attentive to the planetary emergency, confluent with the knowledge/sciences of our original and traditional Brazilian peoples in the care of biodiversity; and invite the proposal of native pedagogies committed to the causes of children, with regard to freedom of movement and choice, living together and free playing with nature, conditions for the integrity of humans and, simultaneously, for the integrity of Earth.

Keywords: BNCC; Child Education; Nature; Biophilia; Non-Hegemonic Philosophies

Introdução

O que ensinar às novas gerações em tempos de necropolíticas que possibilitam a queima de florestas, o envenenamento dos rios, o extermínio de populações indígenas, afro-brasileiras, pobres e pretas das periferias das grandes cidades? Como fazer frente aos pressupostos de um modelo civilizador que, nos últimos 50 anos, extinguiu 68% de todos os mamíferos, aves, peixes, anfíbios e répteis que existiam em 1970; que manteve intocadas apenas 25% das terras do globo terrestre? (WWF, 2020).

Neste artigo, dirigimos o olhar à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), atentas ao que diz respeito às relações entre seres humanos e natureza. Frente ao documento que regulamenta um currículo mínimo para todas as instituições escolares do território brasileiro (BRASIL, 2018), portanto, de extrema importância para a educação, nos âmbitos subjetivo, ideológico, político, cultural, econômico, como também ambiental, perguntamos: como se posiciona a BNCC diante à emergência planetária? Buscando respostas à questão, fazemos a análise dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento e dos Campos de Experiência, componentes do referido documento.

Essa opção se deve ao fato de que, segundo o documento, os Direitos de Desenvolvimento e Aprendizagem asseguram as condições para que as crianças aprendam “[...] em situações nas quais possam desempenhar um papel ativo em ambientes que as convidem a vivenciar desafios e a sentirem-se provocadas a resolvê-los, nas quais possam construir significados sobre si, os outros e o mundo social e natural” (BRASIL, 2018, p. 35). Optamos, ainda, pela análise dos Campos de Experiência, pois, segundo a organização do documento, é nesta dimensão que a vivência dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento é assegurada: eles dão suporte ao entrelaçamento das situações e das experiências concretas da vida cotidiana das crianças com os conhecimentos do patrimônio cultural da humanidade (idem). Os direitos de desenvolvimento e aprendizagem são: conviver; brincar; participar; explorar; expressar e conhecer-se. Esses direitos, vivenciados em interações e brincadeiras (que são os eixos norteadores do currículo da Educação Infantil), estão organizados em cinco Campos de Experiência: O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; e Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações (BRASIL, 2018).

Para analisar os discursos e subjetividades presentes na política pública educacional expressa pela BNCC, tomamos, como eixo, o proposto por Foucault (2015), em sua obra A Arqueologia do saber. Essa escolha se dá pelo fato de que o autor não propõe um método de análise estrutural, mas o estabelecimento de princípios que permitam o desenvolvimento de uma metodologia própria, pois, se cada estudo, cada pesquisa, é singular, o percurso metodológico também o é. Assim, para buscar os elementos que constituirão os dados a serem analisados, é preciso ter princípios; mas, para a construção do percurso, é preciso usar da “arqueologia”, já que as histórias arqueológicas são móveis, deslocam-se pelos discursos e pelas práticas em suas camadas e contornam os saberes, procurando descrever e individualizar os enunciados discursivos (FOUCAULT, 2015). Para o autor, a análise de um discurso, em cada uma dessas frentes, forma sistemas diversos que não se hierarquizam idealmente. O que de fato interessa não são os objetos em si, os modos de enunciação, as escolhas estratégicas ou os conceitos; o que interessa são as regras que possibilitaram sua existência, ou seja, o objetivo, o impacto ou, como diria Spinoza (2014), os afetos que determinarão os fins que o discurso ou a política pública educacional almeja alcançar.

Delimitados o caminho de nossos constructos, seguimos para a definição de um território de sustentação, tanto para a compreensão de natureza e ser humano, como para o proposto no campo das ideias.

Na visão de Deleuze e Guattari (2010), há dois planos que sustentam as ideias: o plano de imanência, que afirma a vida integrada ao universo; e o plano de transcendência, que situa o humano para aquém e/ou para além da condição terrena. No plano imanente, os conceitos sofrem constantes processos de metamorfose, ou seja, são móveis, flutuantes, constituídos de plasticidade que lhes permite se metamorfosear de acordo com a necessidade da experiência vivida. Os autores nomeiam os “criadores” de conceitos, ou seja, os pensadores, pesquisadores, como “personagens conceituais”: são aqueles que pensam e inventam caminhos das sociedades, ao longo da história. Defendem que estes se caracterizam por enxergar soluções para determinadas problemáticas, onde ninguém mais vê. Neste sentido, o personagem conceitual literalmente abre portas e janelas, ou seja, desempareda as ideias e consegue ver além, onde a visão paradigmática não consegue alcançar (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

Situando-nos no primeiro plano, temos como referência a concepção de que nos constituímos como seres enraizados na Terra, em estado de pertencimento ao cosmos. Na mesma direção, Spinoza (2014) diz que as ideias da mente nascem do corpo, a subjetividade tem raízes carnais, é efeito do encontro com outros humanos e não humanos. Na perspectiva do filósofo do século XVII, a ética é regida pelos afetos, pois são eles que apontam caminhos que conduzem a bons ou maus encontros, em níveis micro e macropolíticos. Bons encontros são aqueles que potencializam a existência; maus, os que entristecem, fazem sofrer, despotencializam, tanto o ser individual como a sociedade, a natureza.

Apoiadas em filosofias ocidentais não hegemônicas (SPINOZA, 2014; DELEUZE; GUATTARI, 2010) e na neurobiologia (MATURANA, 2002; MATURANA; VARELA, 2001; MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004), entendemos que os humanos têm raízes cravadas, brotadas da natureza. Esta compreensão nos aproxima de cosmovisões nativas (SANTOS, 2015; KRENAK, 2020; RUFINO, 2021; KAMBEBA, 2020; BENITES, 2020), em que a subjetividade tem origem carnal, é efeito do encontro com outros humanos e não humanos, fruto de afetação cósmica. Por caminhos que confluem filosofias ocidentais e nativas latino-americanas, chegamos a uma perspectiva epistemológica em que o conhecimento se produz em relação de acoplamento estrutural com todos os seres, com tudo que existe, com o cosmos. Na contramão do cartesianismo, nós somos a natureza, ela não existe separada de nós. O conhecimento não se dá pela via exclusiva ou prioritária da razão: conhecemos de corpo inteiro, vivemos imersos no cosmos: viver é conhecer, conhecer é viver! (MATURANA, 2002). Nessa linha, unidade com o cosmos, cuidado, liberdade, autonomia e pertencimento são princípios que sustentam teoricamente as nossas proposições metodológicas. Afeto, desejo, potência de agir, alegria e tristeza são vitalidades que se materializam em espaços de céu, terra e água e configuram processos criativos, sensitivos, artísticos, corporais. São práticas de empoderamento coletivo em que seres/grupos brincantes se envolvem e desenvolvem em estado de buen vivir: princípio do conhecimento ancestral andino, que se refere à plenitude individual e soberania política grupal, em conexão com todos os seres que constituem a aldeia, o mundo (ACOSTA, 2016).

Entretanto, ocorre que as instituições escolares de educação infantil ignoram o estado de profunda imbricação sensorial, cultural, corporal, existencial das crianças com o cosmos, resultando em que sejam mantidas, prioritariamente, em espaços entre paredes. Nas creches e pré-escolas brasileiras, o tempo de brincar ao ar livre é mínimo, se comparado ao vivido em espaços fechados. Pesquisa realizada em centros de educação infantil da cidade de Blumenau/SC, que atendem em horário integral (cerca de 10 horas por dia ou mais) revelam que, em média, as crianças permaneciam por uma ou duas horas; em muitos casos, por 30 minutos, e, raramente, por cerca de 3 horas diárias em espaços abertos (TIRIBA, 2005).

Há de se considerar, ainda, que a obrigatoriedade da oferta de vagas pelo poder público, em contraste com as políticas neoliberais de redução de recursos, vem provocando intensiva ocupação dos espaços do terreno com edificação de salas, e, consequentemente, o confinamento das crianças. Entretanto, ainda que seja uma necessidade humana, não há, nos documentos legais, referências claras quanto à obrigatoriedade de existência de espaços verdes nas instituições, muito menos ao direito de convívio com outras formas de vida (SANTOS, 2018; SILVA; TIRIBA, 2014). Assim, oferecer céu aberto é uma opção de cada professora, não um imperativo pedagógico.

A situação se revela ainda mais grave se considerarmos a realidade de milhões de crianças para quem a escola pública se constitui como o único lugar de que dispõem para brincar: elas vivem nas periferias das grandes cidades; milhares delas, em zonas de sacrifício do capitalismo, vítimas de injustiças e racismos ambientais (COSENZA; KASSIADOU; SÁNCHEZ, 2014) que as privam de acesso à espaços verdes, bens e serviços ambientais. Na perspectiva em que compreendemos o desenvolvimento humano, a não liberdade de movimentos em relação aos espaços circundantes - do bairro, da cidade, da escola - gera carência de afetação, reduz as possibilidades de cognição, cria as condições para a tristeza, para a subserviência, para a imposição do que Rufino (2021) nomeia como carrego colonial: peso existencial, mal estar, baixo-astral civilizacional, que tem origem em um “[...] modelo de existência somente possível em detrimento do desvio, da subordinação e da humilhação de tantas outras formas viventes [...]” (RUFINO, 2001, p. 8). O termo diz de um entristecimento que vai se instituindo no corpo e na alma, desde a mais tenra infância, por um modo de organização social/escolar que mantém as crianças e jovens em espaços fechados, impede e/ou regula externamente a movimentação, impossibilita a liberdade de escolha, restringe radicalmente a sua autonomia, portanto, a sua capacidade criativa.

Assim, a proposição de desemparedar (TIRIBA, 2018) nasce da necessidade de ultrapassar as portas, a alvenaria e o cimento - elementos hegemônicos nos ambientes ocidentais - como primeiro movimento metodológico de integração ao ambiente terreno.

Circular livremente é o mínimo que se pode assegurar nos espaços escolares. A proposta de desemparedamento é concreta, tem o sentido de assegurar a condição corpórea, sensitiva e biofílica. Wilson (1984) define a biofilia como tendência inata do ser humano a buscar o que é vivo, tendência que se fortalece ou se atenua em função das condições de convívio que lhes são oferecidas pela cultura: menor conexão, menor afetação, menor apego. Fromm (2013) define biofilia como amor à vida, uma orientação total, um modo de relação com a existência manifesto em gestos, olhares, posturas, que expressam vitalidade: corpo, mente, coração abertos ao devir, portanto à vida em suas múltiplas expressões: todas as formas de vida, não apenas a humana. Da articulação dessas definições, emerge a liberdade como condição para o exercício da potência de agir-pensar a partir das causas de cada ser, de seus desejos próprios. A carência de afetos, via controle do corpo, limita as possibilidades de bons encontros, aqueles que afirmam e fortalecem o conatus, que é a capacidade do ser perseverar na existência.

Quanto mais cada um busca o que lhe é útil, isto é, quanto mais se esforça por conservar o seu ser, e é capaz disso, tanto mais é dotado de virtude; e, inversamente, à medida que cada um se descuida do que lhe é útil, isto é, à medida que se descuida de conservar o seu ser, é impotente. (SPINOZA, 2014, p. 170).

Partimos do pressuposto de que a impotência é efeito das forças que compõem a colonialidade do poder; isto é, a rede de forças que visa garantir as condições de estabelecimento do sistema capitalista como modelo de funcionamento das relações de poder. Trata-se do sistema-mundo-colonial-moderno (SEGATO, 2021; QUIJANO, 2010) que produziu o Antropoceno: impacto de culturas humanas sobre o planeta, que vem alterando o tempo da Terra (ARTAXO, 2020). O enfrentamento da emergência planetária e a alimentação de sociedades de buen vivir passam pela derrocada de poderes que subjugam territórios, culturas, grupos, pessoas. Ao criar obstáculos à natureza brincante do humano, o modelo escolar emparedado impede a afetação cósmica, fragiliza o vínculo biofílico, entristece, despontencializa, impõe o carrego colonial. Sem escancarar as portas, sem ultrapassar as paredes e os muros, são escassas as afetações e vivências sensoriais que alimentem a biofilia: a condição existencial de entrelaçamento com o cosmos, base para a constituição do amor à vida, sentimento que é próprio das cosmovisões biocêntricas de nossos povos originários. A alimentação da biofilia é, portanto, uma bandeira de luta contracolonial pelo direito às condições socioambientais que assegurem a diversidade de modos de viver de povos que estão na base da sociedade brasileira. Povos de quem as crianças de hoje são herdeiras culturais.

Postas as referências que orientam este texto, voltamos à pergunta inicial: o que ensinar às novas gerações de um planeta barbarizado pela ganância ensandecida de um sistema econômico para o qual os territórios e os povos são, respectivamente, fonte de matérias primas e mão de obra barata para a reprodução do capital? A resposta imediata: precisamos ensinar o amor à vida, a liberdade, a soberania política, a alegria.

Na contramão dos efeitos maléficos da colonialidade do poder (SEGATO, 2021; QUIJANO, 2010) sobre nossos povos, valorizamos princípios e práticas de viver e de educar que afirmam a liberdade de movimento-pensamento como essencial à plenitude na vida. Estudos de epistemologias nativas nos recolocam no território singular de nossas raízes e origens étnicas, ratificando, ainda nos dias de hoje, em terras brasileiras latino-americanas e caribenhas, a percepção de que somos natureza. Da cultura filosófica de nossos povos originários e tradicionais, buscamos equilíbrios sustentáveis das dimensões animal, social e cultural que nos constituem. Ampliamos, assim, a corresponsabilidade para uma dimensão cósmica, a partir de princípios e práticas culturais e ancestrais de coexistência.

Para dar conta dos desafios a que nos propomos neste ensaio, a seguir traremos reflexões sobre os conceitos de ser humano e de natureza e sobre o brincar, referências que dão sustentação às nossas proposições. Na sequência, faremos a análise dos elementos que destacamos do currículo da BNCC: os Direitos de Desenvolvimento e Aprendizagem e os Campos de Experiências (BRASIL, 2018). Finalmente, com a clareza de que o emparedamento subjuga, consideramos que a crítica ao modelo escolar ocidental não pode ser simplesmente teórica, precisa se materializar como intervenção política, alimentando movimentos pedagógicos insurgentes, em busca do que - nos planos micro e macropolíticos - é bom, alegra e potencializa a existência.

A natureza, o ser humano, o brincar

Spinoza (2014) afirma que Deus é natureza. É a causa em si e substância única no universo. No paradigma monista, tudo que existe faz parte da natureza, é a natureza. Para o filósofo, os seres vivos - plantas e animais (incluindo, logicamente, os humanos) - são modos de expressão dos atributos da natureza, parte dessa essência única, e, por isso, cuidar do ambiente também representa cuidar de si e de outros seres. Está tudo interligado. Nessa perspectiva, no escólio da proposição 29, da primeira parte da obra Ética, o filósofo define natureza naturante e natureza naturada:

[...] por natureza naturante devemos compreender o que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é [...], Deus, enquanto é considerado como causa livre. Por natureza naturada, por sua vez, compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus, ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de Deus, enquanto considerados como coisas que existem em Deus, e que, sem Deus, não podem existir nem ser concebidas (SPINOZA, 2014, p. 35).

Desse modo, apenas Deus é natureza naturante. Por sua vez, os seres vivos são natureza naturada, como parte da essência única que é a natureza naturante. Trazer o conceito de natureza em Spinoza nos ajuda a questionar o paradigma antropocêntrico e buscar aproximações com outras formas de entender o cosmos, a partir de uma visão biocêntrica, cosmológica, que percebe o universo como uma rede complexa de relações ambientais, vitais, energéticas, da qual o ser humano é parte, é natureza naturada.

Com a quebra do paradigma sustentado na ideia do humano como centro de tudo, torna-se possível vislumbrar outras formas de agir que sejam consonantes com formas de vida e de cuidado ambiental no caminho da potência e da saúde cósmica.

Spinoza associou o verdadeiro conhecimento ao seu conceito de ética, no qual, com sua visão monista, demonstrou de forma matematicamente lógica que o ser humano é parte da essência única que é a natureza e que o verdadeiro conhecimento é oriundo dos afetos que, por sua vez, se dão no corpo. Para Spinoza, ação e pensamento estão intrinsecamente relacionados e fazem parte de um corpo único, corpo que se afeta, que se emociona, que pensa, que é modo de expressão de uma natureza única. E acrescenta: é nas relações de afeto que é possível viver bons ou maus encontros, que geram afetos alegres ou afetos tristes, respectivamente. Quando se vive afetos alegres (oriundos de bons encontros), há a potencialização da capacidade de agir e de pensar. Quando se vive afetos tristes (oriundos de maus encontros), a capacidade de agir e de pensar é refreada. Por isso torna-se fundamental saber escolher que encontros viver! Mas o autor afirma também que o ser humano ocidental se distanciou da capacidade de escolher os encontros, exatamente por ter ignorado sua condição de natureza naturada, que afeta e é afetada. É essa condição de integração com o mundo que mobiliza a potência de agir, que leva à busca de bons encontros, capacidade que ele chama de conatus - o desejo inato de perseverar em si, de assegurar afetos alegres. À luz da filosofia de Spinoza, o desejo é o princípio do viver ético.

Maturana e Varela (2001) adensam o debate, trazendo o conceito de “autopoiese”, segundo o qual os seres vivos, para se conservarem, produzem de modo contínuo a si próprios a partir de uma rede contínua de interações, tanto dentro de cada corpo (metabolismos celulares) como na interação com outros corpos e com o ambiente. A conservação é dinâmica, ou seja, se transforma nessas interações contínuas. Para os autores, “[...] o que caracteriza o ser vivo é sua organização autopoiética. Seres vivos diferentes se distinguem porque têm estruturas distintas, mas são iguais em organização” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 55). São seres autônomos exatamente pela organização autopoiética que faz com que sejam unidades em situação de interdependência com outros seres e com o ambiente, em contínua mutação para que se conservem; ou seja, para que se mantenha a potência do conatus, para que perseverem na existência. Podemos pensar que o conatus é a força que luta pela manutenção da condição biofílica, isto é, pela condição de conectividade com o cosmos.

Maturana e Verden-Zöller (2004) apresentam a Biologia do Amar ao afirmar que um humano é constitutivamente ser de amor, mas a humanidade que segue a cultura patriarcal (que é o caso da cultura eurocêntrica colonial, predominante no Brasil) se afasta da sua condição de conservar; e que, na falta da qualidade das relações consigo mesmo, com o outro e com o meio, não há conservação do dinamismo vital necessário para uma vida saudável, pois não há escuta, não há a percepção da amorosidade, da interdependência autopoiética nas relações. Podemos dizer, então, que a precarização da condição de interdependência autopoiética significa fragilização da condição biofílica, enfraquecimento da capacidade de perseverança na existência.

Para além do filósofo europeu contra hegemônico, do neurobiólogo cultural chileno e de tantos outros cientistas, filosofias de povos originários afirmam a condição biofílica do humano. Nas palavras de Krenak (2020, p. 83):

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.

Em diferentes cosmologias brasileiras e andinas não existe diferenciação entre natureza e cultura. Em oposição à visão antropocêntrica, o cosmos é habitado por várias categorias de seres: todos os seres têm uma essência, uma alma, um espírito que dá vida, energia a todas as coisas deste mundo e do universo (RUFINO, 2021; KRENAK, 2020).

Antônio Bispo dos Santos (2015), lavrador piauiense quilombola, traz o conceito de cosmofobia para designar o efeito mórbido da cosmovisão monoteísta judaico-cristã, para quem o humano é um ser que se constitui subjetivamente como isolado da natureza. Nas palavras do autor, é um ser cosmofóbico. porque, ao comer o fruto proibido, passa a ser impedido de desfrutar do que a terra oferece como dádiva, e condenado a ganhar o sustento com o suor do seu corpo. Se a terra é amaldiçoada e o trabalho é castigo, a relação é de indiferença ou desprezo, pela própria terra e pelos demais seres que compõem o mundo. Para Santos (2015), aí nasceu a desterritorialização: aí surgiu a cosmofobia, o medo do sagrado, a indiferença e/ou desprezo da cultura “branca” em relação à terra e aos povos “afro pindorâmicos”, que têm outros modos de sentir e pensar a existência. Como diz o autor, seu povo quilombola cuida da roça porque acredita na terra, cuida da mandioca e é cuidado por ela. Ao contrário, o isolamento cartesiano, a solidão resultante da crença no estado de separação artificial dos seres terrenos, gera descrença e ignorância quanto à potência da terra, enquanto força viva dadivosa, universo de trocas infindáveis entre seres e processos naturais que abrigam e conduzem a vida.

Krenak (2020, p. 42) afirma a associação do povo à biodiversidade e desdenha da ideia de supremacia dos humanos:

[...] a gente se filia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade. É importante saber com quem podemos nos associar, em uma perspectiva existencial mesmo, em vez de ficarmos convencidos de que estamos com a bola toda.

O brincar é ato constitutivo do humano, em todos os tempos e em todas as culturas. A condição de filiação à natureza é assegurada pelo brincar; e o brincar livre é condição vital ao exercício de liberdade e conhecimento.

Para Spinoza (2014, p. 233) a liberdade está atrelada à ideia de beatitude:

[...] compreendemos claramente em que consiste nossa salvação, beatitude ou liberdade: no amor constante e eterno para com Deus, ou seja, no amor de Deus para com os homens [...].

Nessa perspectiva, podemos concluir que a liberdade é aliançada ao amor para com a natureza, que, para Spinoza, é Deus. Ou seja, o sentimento de beatitude, de perfeita satisfação e plenitude, exige conectividade com a natureza viva, brota e se desenvolve em relações de proximidade, interconexão corpóreo-afetiva entre os seres. Se a interconexão está na origem da beatitude, então a liberdade é princípio ético, porque é condição para a potência de agir.

A ideia de liberdade é apresentada por Maturana e Verden-Zöller (2004) como experiência de gostar de viver o que se vive e como se vive. Entretanto, afirmam que somos limitados em nossa identidade individual e social e não respeitamos a nós mesmos, sequer nos damos conta de que temos o potencial de liberdade para decidirmos o que chamamos de nossas próprias escolhas: sustentamos o que dizemos que não queremos sustentar, como o mal-estar, a dor e a destruição provocada em nós ou por nós. Para a reconexão do potencial de liberdade, o biólogo aposta no brincar livre como exercício de escolher o que é bom viver, mas ele só é possível quando não se está submetido ao direcionamento do outro.

O brincar livre é espaço da imaginação, do corpo se manifestar, se reinventar, ser o que quiser ser, é a suspensão de uma lógica de dominação do corpo do outro, de moralização, de produção de mercado... Deixar brincar, acreditar na potência do corpo, do que ele quer brincar, como brincar, com quem brincar e com que brincar. Deixar o corpo ser o que ele é. O brincar livre suspende as regras que não levam à liberdade de viver o que é bom para si, entendendo, por meio da percepção dos próprios afetos, que ser bom para si não diz de egoísmo, descaso com o outro e com o ambiente. Em outro paradigma, tanto na lógica de Spinoza, como de Maturana e dos povos originários do Brasil, a única condição de ser bom para si é a inclusão do outro e do ambiente como parte essencial desse bom encontro.

Os ambientes naturais nutrem esse processo, convidam ao brincar livre, tanto por ser bom, por sermos biofílicos, como pela diversidade de possibilidades sensoriais, estéticas, cognitivas, físicas e emocionais que proporcionam. A instabilidade climática, do piso de terra, do movimento dos seres que habitam o cosmos e das diferentes cores que surgem na mudança das horas, das nuvens e do sol, fazem com que a imprevisibilidade ganhe certa magia e se torne um convite quase que irresistível para se aventurar em brincadeiras, emergindo o potencial criativo e imaginativo, inerente à condição vital de ser brincante. Na busca por esse modo de brincar, o corpo pede natureza porque é natureza. Então busca a água, a terra, o sol, o vento… e as pessoas. Elas brincam e se potencializam nesse brincar. Descobrem o mundo através do emocionar, do agir pela emoção, gerar novas emoções e novas ações e, com tudo isso, possibilitar que todas as aprendizagens significativas fluam, se potencializem, se relacionem eticamente com a vida. Tudo isso ocorre no instante do brincar livre.

Para Maturana e Verden-Zöller (2004), brincar é um ato de amor e nós somos seres biologicamente amorosos e brincantes, porque amor e brincadeira são modos de vida e relação

[...] do ponto de vista biológico, o amor é a disposição corporal sob a qual uma pessoa realiza as ações que constituem o outro como um legítimo outro em coexistência. [...] O amor é a emoção que fundamenta o social. Cada vez que se destrói o amor, desaparece o fenômeno social (MATURANA; VERDEN-ZOLLER, 2004, p. 235).

Ao brincar livremente, considerando que só é possível isso ocorrer no instante do acontecimento, sem projetos de aprendizagens futuras, deixamos essa emoção fluir, já que a verdadeira razão vem dos afetos, do emocionar-se na relação consigo mesmo, com o outro e com o ambiente (SPINOZA, 2014). Assim torna-se possível a experiência de brincar sem perspectivas de futuro ou culpas do passado, mas um brincar que se afirma no presente, ao se entregar ao instante do brincar, do sentir e do emocionar. É na relação imanente, é no presente que há condição de escutar as crianças, valorizando o brincar livre, já como exercício de um corpo autêntico, que age em seu desejo de liberdade, ao se potencializar como ser biofílico. Caso contrário, a criança é negada em seus desejos e acaba por buscar resultados esperados por outros, em um tempo que não existe, já que o único tempo real, imanente, é o aqui e agora. As crianças já são o que precisam ser no instante em que se encontram. Perceber-se livre na natureza do brincar é entrar em contato com seu próprio corpo, é se relacionar com um ambiente que acolhe o instante como o mais importante momento, no qual não há culpa, não há cobrança, não há projeções. Há criação, reinvenção, vida presentificada e relacional. Há natureza, sentires, liberdade, saúde e aprendizagem.

Os Direitos de Aprendizagem e de Desenvolvimento e os Campos de Experiências: descaminhos que impedem a circulação da seiva da vida na infância

Que espaços há, na BNCC, para o amor, para a liberdade, o desejo, o livre brincar? Partindo desta provocação, iniciamos a análise dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento e dos Campos de Experiências a partir de outras perguntas/provocações: em que medida o documento aproxima ou afasta as crianças brasileiras do mundo ao qual são afiliadas, valoriza e fortalece, ou esvanece a biofilia? Em que medida suas proposições favorecem movimentos de pôr(-se) em harmonia, conformar(-se), combinar(-se) com a biodiversidade?

Assim, tomando como objeto de análise o primeiro Direito: “Conviver”, identificamos a invisibilidade das inúmeras outras formas de vida, de outros seres integrantes do território pluriverso vital: “Conviver com outras crianças e adultos, em pequenos e grandes grupos, utilizando diferentes linguagens, ampliando o conhecimento de si e do outro, o respeito em relação à cultura e às diferenças entre as pessoas” (BRASIL, 2018, p. 38, grifos nossos).

Ao ignorar os demais seres não humanos, incluindo apenas crianças e adultos entre os sujeitos de convívio, condena-as à solidão da espécie, alimenta a cosmofobia. Desconsidera, assim, modos de viver e de sentir de povos originários brasileiros, para quem a existência se dá em estado de conexão, em um pluriverso imanente que inclui todos os outros seres viventes.

Referindo-se ao povo Guarani Mbya, Benites (2020) diz da importância do território em que se vive (TeKoa), na constituição do ser/pessoa guarani (nhe’ẽ). Na cosmovisão desta etnia, as águas, as matas, o chão, o universo estelar e os seres cosmológicos - tudo que existe no Tekoa - interfere na pessoa, conforma o teko, que é o modo de ser guarani. Nhe’ẽ, Teko, Tekoa se interpenetram na constituição existencial das pessoas, na perpetuação da cultura. Assim, cada ser é modo finito do território-cosmos. Aqui podemos identificar confluências entre as filosofias guarani e espinozana: o ser finito traz consigo a infinitude do cosmos.

O caráter antropocêntrico do documento é claramente perceptível também no direito de aprendizagem que aborda o brincar:

Brincar cotidianamente de diversas formas, em diferentes espaços e tempos, com diferentes parceiros (crianças e adultos), ampliando e diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais. (BRASIL, 2018, p. 38, grifos nossos).

A BNCC restringe as brincadeiras aos parceiros humanos e não se refere a outros seres animais e vegetais, embora estes apaixonem as crianças. A ênfase colocada no brincar como caminho, ampliação e diversificação do acesso a produções culturais e aos bens culturais revela o olhar antropocêntrico e racionalista. As experiências se dão como que em um plano transcendente, fora do território onde a vida se materializa cotidianamente. O ambiente perde em sua riqueza pluriversa ao assumir a condição de paisagem, onde são valorizadas unicamente as experiências sociais e relacionais dos humanos.

A BNCC não enfatiza o brincar livre, atividade intimamente relacionada à natureza. Pois, pelos conceitos já descritos de biofilia, conatus e autopoiese, se o ser busca, quando livre, perseverar em si, e nessa condição apresenta uma atração vital por outros seres e fenômenos naturais, tal liberdade o conduz a eles.

No Direito de Aprendizagem que visa assegurar a participação das crianças nas vivências e experiências, novamente observa-se a exclusão da relação com o cosmo.

Participar ativamente, com adultos e outras crianças, tanto do planejamento da gestão da escola e das atividades propostas pelo educador quanto da realização das atividades da vida cotidiana, tais como a escolha das brincadeiras, dos materiais e dos ambientes, desenvolvendo diferentes linguagens e elaborando conhecimentos, decidindo e se posicionando (BNCC, 2018, p. 38).

Na contramão do proposto pelas cosmovisões dos povos originários, esse Direito confere um lugar de centralidade aos ambientes institucionais modernos, conferindo “autonomia” para as crianças participarem do planejamento pedagógico na dimensão da escolha das brincadeiras, dos materiais e dos ambientes. No entanto, não está posto que o ambiente natural pode e deve ser o lugar privilegiado para o brincar livre. Em seguida, o documento traz o Direito de

Expressar, como sujeito dialógico, criativo e sensível, suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas, opiniões, questionamentos, por meio de diferentes linguagens (BNCC, 2018, p. 38, grifos nossos).

Novamente a dualidade, a bipartição entre natureza e cultura emerge, dando centralidade a criança como ser restrito a linguagem, ao pensamento e a sensibilidade. Ainda que essas dimensões sejam de suma importância na constituição do humano criança, a nosso ver, elas não podem ser concebidas separadas ou apartadas da condição da criança como “ser” integrante e integrado ao cosmo, condição esta que, por si só, abarca múltiplas formas de se expressar. Como nas palavras de Kambeba (2020, p. 25) referindo-se a formas de expressão das crianças indígenas:

Na aldeia onde nasci, Belém dos Solimões, no Amazonas, as crianças desde cedo aprendiam que o rio é um companheiro, um amigo, mas também que, para entrar em suas águas, deveriam pedir licença aos encantados, habitantes do leito do rio e protetores do mundo das águas. No contexto da educação indígena, seguir as pegadas dos animais, andar na mata sem estalar as folhas, conhecer as armadilhas da natureza, suas ervas medicinais, além de aprender a extrair tintas para a pintura de objetos pessoais, a fazer arte com sementes e fibras da mata, são formas de manter uma relação de dependência com a natureza.

Na sequência dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, o direito de “Conhecer-se” não inclui o conhecimento de si enquanto ser orgânico-cultural, humano-planetário, membro de uma espécie, entre outras. No texto, o foco está apenas nos pares humanos, outros seres não interessam, o conhecer-se significa,

[...] construir sua identidade pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cuidados, interações, brincadeiras e linguagens vivenciadas na instituição escolar e em seu contexto familiar e comunitário (BRASIL, 2018, p. 38).

Entretanto, se, como diz Spinoza (2014), o bem supremo dos que buscam a virtude consiste em conhecer o cosmos/a natureza, a essência da mente, do intelecto, consiste em um conhecimento que envolve o conhecimento da própria natureza, sem o qual a mente/intelecto não pode existir, ou mesmo ser concebida. Se assim compreendemos a constituição do “conhecer” ou “conhecer-se”, novamente identificamos a BNCC como política pública que mantém a lógica moderna, uma vez que prioriza apenas o social e cultural, e ainda este último, como cultura baseada apenas nas relações humanas. Novamente emerge a concepção dualista, o divórcio entre natureza e cultura. Os grupos de pertencimento, apenas são constituídos pelos pares humanos, mesmo os animais ditos na sociedade contemporânea como “de estimação”, estão excluídos do discurso, da narrativa, do documento em si.

Em apenas um dos direitos, o de “Explorar”, há alguma referência expressa à natureza. Ela emerge como fonte que oferece “elementos” para os conhecimentos e para as brincadeiras infantis:

Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza, na escola e fora dela, ampliando seus saberes sobre a cultura, em suas diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia. (BRASIL, 2018, p. 38, grifos nossos).

Reduzindo o universo natural a “elementos” da natureza, incluindo seus seres e processos entre os objetos de exploração, a BNCC revela, de maneira ostensiva, os elos que aprisionam as propostas curriculares ao objetivo de domínio e controle. Na perspectiva do capitalismo colonialista, em que a natureza é matéria-prima morta para a produção industrial, a relação exploratória é, essencialmente, operação mental. Em nada diz respeito à cuidado, reverência, contemplação, como na cosmovisão dos povos originários:

Alguns povos tem o entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados dos outros seres. O meu povo, assim como outros parentes, tem essa tradição de suspender o céu. Quando ele fica muito perto da terra, há um tipo de humanidade que, por suas experiências culturais, sente essa pressão. Ela é sazonal, aqui nos trópicos essa proximidade se dá na entrada da primavera. Então é preciso dançar e cantar para suspendê-lo, para que as mudanças referentes a saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem. Quando fazemos o taru andé, esse ritual é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência (KRENAK, 2020, p. 46-47).

Os Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento passam ao largo do pluriverso ancestral habitado por nossos povos originários, onde terras, saberes, sentimentos, águas, peixes, aves, montanhas, odores, sabores, seres humanos e deuses existem amalgamados, em estado de afetação recíproca, cósmica.

Esta mesma indiferença antropológica verificamos ao adentrar o primeiro Campo de Experiências, denominado “O eu, o outro e o nós”. Aqui é afirmada a importância de outros humanos na constituição da subjetividade e de outros modos de viver e pensar, o que é importante! Mas, ao excluir os demais seres da biodiversidade, exclui também a possibilidade de reconhecimento e valorização de cosmovisões nativas em que seres humanos e não humanos são indissociáveis. Rufino (2021) convida à ampliação da roda da democracia para outros seres, não humanos:

Quando falo dos corpos como alvo não me refiro somente aqueles que foram aprisionados como sendo o ‘outro’ da conjunção branco/macho/adulto/cristão. Falo também de planta, bicho, chão, água palavra, saberes, espíritos e sonhos. Ao contrário do que muita gente sabida pensa, tudo que há no mundo tem corpo para bailar (RUFINO, 2021, p. 51).

A seguir, o texto que apresenta o Campo de Experiências “Corpo, gestos e movimentos” propõe a produção de “[...] conhecimentos sobre si, sobre o outro, sobre o universo social e cultural, tornando-se, progressivamente, conscientes dessa corporeidade [...]” (BRASIL, 2018, p. 40-41) porque à lógica curricular moderna interessa a consciência, não o “corpo-natureza”, que é lugar de desejo. Ao contrário, o verdadeiro conhecimento emerge das emoções oriundas de bons encontros que proporcionam afetos alegres ao corpo humano (SPINOZA, 2014). As crianças movimentam-se pelo brincar, segundo seus desejos, segundo o que exerce poder de afetá-las. Para a educação das crianças indígenas, o corpo é referência central (BENITES, 2020). O corpo se percebe capaz porque pode inventar o brincar e, assim, é possível viver a experiência com bons afetos que se tornam marcas para toda a sua vida. O brincar proporciona a alegria da busca pela liberdade de ação que é uma mola propulsora de criação, de inventividade, de elaboração e de reelaboração da vida com tudo que ela tem e é.

Contudo, a sociedade brasileira segue, predominantemente, parâmetros culturais eurocêntricos, colonizadores, patriarcais e produtivistas, nos quais o corpo é desvalorizado, onde há a aposta em saberes oferecidos por adultos para as crianças. E assim isso se perpetua: viramos adultos que desaprenderam a brincar, que reproduzem esse processo às crianças que chegam às escolas, acreditando que temos que propor e até ditar as brincadeiras que devem acontecer em tempos e espaços também definidos por nós, como orienta a BNCC.

O Campo de Experiências “Traços, sons, cores e formas” não inclui as experiências com a natureza como fundamentais para a constituição de um senso estético e crítico na relação com o mundo. Como assegurar as definições das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) quanto aos princípios estéticos orientadores das propostas pedagógicas, se as crianças são mantidas em espaços fechados na maior parte do tempo em que permanecem na escola? Referindo-nos ao conceito de aisthetiké, que, em grego, significa “aquele que nota, que percebe”, que possibilidades de afetação, percepções e, portanto, de expressões criadoras são possíveis quando a vida cotidiana transcorre entre paredes? Outra vez, Kambeba (2020, p. 28) aponta possibilidades:

A educação é transmitida de várias formas dentro da aldeia. A música faz com que as crianças e os adultos memorizem as palavras da língua nativa e afirmem um comprometimento todo dia com sua manutenção e perpetuação. Os grafismos, que representam a espiritualidade e a identidade, são ensinados no contexto [...] do “notório saber”, porque a educação que vem da aldeia é algo único, próprio de cada nação.

O campo “Escuta, fala, pensamento e imaginação” foca nas culturas oral e escrita, embora a natureza seja a base de sustentação da expressão humana, importante referência para a construção da linguagem. Linguagem que se estrutura a partir do que emociona os corpos em relação a tudo que compõe o ambiente. É a partir de uma escuta sensível, de corpo inteiro, e pelo emocionar, que se dá o conhecimento e se estabelecem as relações que proporcionam alegria, prazer, potência e consciência de pertencimento planetário (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2004). No que concerne a linguagem, Kambeba (2020, p. 29) diz

[...] também a literatura se apresenta como uma ferramenta para o fortalecimento da educação indígena, do registro, da memória pelo desenho do pensamento, transformado em palavras e sons. Com sua escrita literária os povos originários mostram saber ecoar em seus lugares de fala na cidade, divulgando sua cultura e pensando um mundo melhor onde o bem viver entre indígenas e não indígenas seja possível.

Finalmente, no campo de experiências “Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações”, a natureza é inserida como mundo físico a ser explorado, manipulado pelas crianças. Reforçam-se, assim, os conhecimentos matemáticos e físicos como instrumentos de submissão da natureza aos processos fabris. Neste campo, afirma-se o ideário das “Competências Gerais”, em que a natureza é concebida como “mundo físico”, o que se traduz como “mundo à parte”, ao qual o humano não pertence, território abstrato de estudos, que pode e deve ser esquadrinhado para desvendar quais e quantos elementos de exploração podem ser ofertados ao “mundo pós-moderno da produção”.

Em suma, o que podemos concluir é que as proposições relativas aos Campos de Experiências, bem como, dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento, foram construídas a partir de referências modernas, dualistas e a partir de um plano de sustentação transcendente. O fato de não considerar o plano imanente e a conexão como essencial para a vivência em “comum” unidade, nos leva a denominar a BNCC como “necro” política, ou seja, uma política pública que promove, favorece a “morte” de uma infância saudável.

Considerações

Expressão do racionalismo moderno, a BNCC é desencarnada: valoriza a dimensão intelectual, desacredita dos sentidos e contribui para a constituição de pessoas desgarradas da Terra, situa as crianças de costas para a biodiversidade, produz subjetividades cosmofóbicas (SANTOS, 2015). Suas proposições se orientam pela premissa cartesiana que divorcia os seres humanos da natureza e os lança a um patamar antropocêntrico, supostamente superior aos demais seres. A questão é que esse lugar excepcional vem servindo para justificar o que seria um direito “natural” de controle e de domínio humano sobre a natureza.

Situamos o desemparedamento no horizonte utópico da decolonialidade, indagando a geopolítica do conhecimento moderno, aproximando-nos de perspectivas epistemológicas não hegemônicas e apostando na invenção de cartografias pedagógicas que sejam ecológicas, populares e libertárias, contra à tentativa de imposição de uma via única para a existência. Considerando que a instituição escolar nasceu na Europa e foi transposta para o continente latino-americano e caribenho como um importante aparelho ideológico de controle e cerceamento de modos de pensar e viver de nossos povos originários e negros escravizados, a proposta questiona o seu formato emparedado, enquanto espaço-tempo de internalização e hegemonização de culturas alienígenas. Entendendo que essas culturas se impõem via contenção dos corpos, submissão dos desejos, embotamento cognitivo e entristecimento espiritual, indagamos o emparedamento como estratégia que corresponde às intenções das forças sociais dominantes no sentido de manter princípios, valores, modos de funcionamento social e comportamento individual que dão sustentação e perpetuam, ainda nos dias de hoje, as relações modernidade/colonialidade. Sendo a conexão um direito, a proposta de desemparedar tem o sentido de deslocar, libertar o corpo dos espaços entre paredes para que ele vivencie afetações outras, orgânicas, relacionadas ao vento, à luz, aos sons, cantos e encantos de outros seres e fenômenos, humanos e não humanos, que contêm e conduzem a vida.

A BNCC define conteúdos, tempos e espaços organizados intencionalmente a serviço das causas adultas, sob os auspícios de um sistema regido por relações de lucro e de poder que se materializa graças ao aprisionamento das crianças, por longas horas em espaços fechados. A liberdade do corpo é pressuposto de metodologias decoloniais porque a vida tem princípio e fim em si mesma, é causa de si. A razão possibilitará a escolha de caminhos para uma existência em estado de felicidade, beatitude, sustentabilidade. Esses caminhos não passam pela crença exacerbada no intelecto.

Este é o efeito de desemparedar: devolver o humano a um lugar em que é possível uma outra percepção da ontologia do ser. Nesse lugar, a primeira afetação é física, é sensorial. O conhecer é selvagem, porque suas raízes são sensórias. Ao negar a imanência do instante, o agora, as proposições da BNCC negam o contato com sua essência natural. Afastando as crianças do brincar no chão do mundo, contribuem para a sua alienação como ser que a ele pertence, alimentam o sentimento antropocêntrico, ratificam modelo econômico devastador porque amor exige proximidade.

A BNCC traz a questão ambiental como tema transversal, mas, na prática, a reduz a conteúdos a serem apropriados pelas crianças, ignorando que a crise ecológica, para além de ser conhecida e compreendida, necessita ser enfrentada. Esse desafio é monumental, porque a superação da emergência planetária passa pelo enfrentamento dos pressupostos ontológico, epistemológico e antropológico do paradigma da modernidade, que, enredados, vem dando sustentação filosófica-econômica-científica-cultural ao sistema capitalista.

Por fim, as estratégias encontradas, ou, as teorias subliminares que embasam a BNCC, traduzem o sistema que forma os discursos individualizados, segregados da natureza. Ela é uma afronta à manutenção da vida, pois não contempla, em toda sua extensão, o plano de imanência de onde se originam todos os seres vivos.

Distanciar as crianças da natureza e tratá-las como universo que serve à curiosidade e à manipulação são estratégias necropolíticas para, de um lado, manter as primeiras sob as garras da colonialidade do poder; e, de outro lado, manter a natureza sob as garras do capital. Em sentido oposto, é urgente desemparedar, ultrapassar as paredes e muros, remover cimento dos pátios escolares, oferecer quintais, jardins, plantações, criações, riachos, praias, dunas e descampados como espaços de viver-brincar-conhecer. A escola pode ser lugar de experiências étnico-culturais enraizadas, de vivências que devolvam aos infantes humanos a sua condição de pertencimento carnal aos territórios de sua ancestralidade.

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Recebido: 14 de Maio de 2022; Aceito: 04 de Agosto de 2023

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