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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 26-Abr-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.87138 

DOSSIÊ VALORIZAÇÃO DOCENTE NOS CONTEXTOS DE BRASIL E CHILE FRENTE ÀS MARCHAS E CONTRAMARCHAS DO NEOLIBERALISMO

(Des)Valorização docente na educação básica brasileira: naturalização da precarização promovida pelas premiações de professores

Renata Cecilia Estormovski* 
http://orcid.org/0000-0001-5714-8928

Rosimar Serena Siqueira Esquinsani** 
http://orcid.org/0000-0002-6918-2899

*Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: renataestormovski@yahoo.com.br

**Universidade de Passo Fundo, UPF, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: rosimaresquinsani@upf.br


RESUMO

A pesquisa investiga a concepção de êxito docente divulgada pelo Prêmio Educador Nota 10, discutindo as implicações de sua percepção particular de sucesso para a valorização do trabalho exercido por essa categoria profissional. Utilizando autores como Dardot e Laval e Montaño, o estudo se ampara em uma análise de conteúdo de sínteses divulgadas pelo concurso acerca dos projetos vencedores em dez edições, e discute as concepções frisadas por ele para premiar os professores e, com isso, imputar seus critérios de valorização. O estudo, qualitativo e documental, identifica o empreendedorismo, a concorrência e a meritocracia como definidores do êxito na premiação. A disseminação desses elementos pelo Prêmio colabora com a naturalização da precariedade no trabalho docente ao promover a percepção de que o professor, individualmente, superaria dificuldades e alcançaria seus objetivos, prescindindo de direitos e restringindo a valorização a bonificações individuais e provisórias.

Palavras-chave: Políticas públicas em educação; Condições de trabalho docente; Êxito profissional; Valorização docente

ABSTRACT

The research investigates the concept of teacher success disseminated by the Educador Nota 10 awards, discussing the implications of their perception of success for the recognition of the work performed by this occupational category. Using authors such as Dardot and Laval and Montaño, the study is based on a content analysis of the summaries published by the contest about the winning projects in ten editions, and discusses the conceptions promoted by it to reward teachers and, thus, impose its criteria for recognition. This is a qualitative, documentary study, which identifies entrepreneurism, competition, and meritocracy as concepts that define success in the awards. The dissemination of these elements by the awards contributes to the assimilation of precariousness in teaching work by promoting the perception that the teacher could individually overcome difficulties and achieve their goals, waiving their rights and having their recognition limited to individual and temporary rewards.

Keywords: Public policies of education; Teaching work conditions; Professional success; Teaching recognition

Considerações iniciais

Diferentes dimensões podem nortear o debate acerca da valorização do professor. No campo simbólico, a conquista de reconhecimento e status sociais pode ser a via para análises acerca daquilo que aparece nos discursos docentes como um de seus principais objetivos. No campo dos direitos, questões salariais e garantias legais para a carreira (em suas complexas materializações) permitem a abordagem de outros vieses. Nesta escrita, contudo, versa-se acerca de um modo distinto de se possibilitar a valorização desses profissionais, que discreta e intensamente tem se popularizado em países como o Brasil: aquele disseminado por premiações de professores.

Para o desenvolvimento do estudo, enfoca-se o Prêmio Educador Nota 10, promovido desde 1998 e destinado aos docentes da educação básica. O concurso, que afirma ter como seu objetivo reconhecer e valorizar esse grupo profissional, concede certificados, vales-presente e o título de Educador do Ano àqueles que, entre os inscritos, alcançam os melhores resultados na seleção. Amplamente divulgado por uma rede de veículos de imprensa que inclui os grupos Globo e Abril e a revista Nova Escola, o concurso tem popularidade e legitimidade entre a categoria, o que justifica sua escolha como objeto desta pesquisa (PRÊMIO EDUCADOR NOTA 10, 2022).

Busca-se, nessa direção, compreender a concepção de êxito docente divulgada por esse Prêmio, discutindo as implicações de sua percepção particular de sucesso na docência para a valorização do trabalho exercido por essa categoria profissional. Para isso, realiza-se uma análise de conteúdo (BARDIN, 2016) a partir das sínteses dos projetos vencedores da premiação em dez edições a fim de constatar quais seus indicadores predominantes, compondo os dados que amparam a construção da argumentação. O estudo, qualitativo e documental, utiliza-se de um referencial teórico crítico e inclui o conteúdo da proposta do concurso para amparar a discussão. Embasando-se nas categorias analíticas constituídas, pretende-se desenvolver a hipótese de que a percepção de êxito difundida favorece a naturalização da precariedade no trabalho docente ao imputar valorização a partir de critérios individualistas afins à lógica mercadológica e concorrencial com que os sujeitos que promovem o Prêmio se identificam.

A concepção de êxito docente divulgada pelo Prêmio Educador Nota 10

Há mais de 20 anos o Prêmio Educador Nota 10 é organizado pela Fundação Victor Civita. Promovendo edições anuais, a iniciativa passou a agregar diferentes parceiros ao longo do tempo, sendo que, desde 2014, Fundação Roberto Marinho, Globo e Abril também integram o grupo de promotores do concurso. Apoiadores e financiadores são atualizados a cada ano, com a presença constante de entes como a Revista Nova Escola, a Fundação Lemann, a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação), o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) e o Instituto Natura. Esses entes mantêm a premiação, que em suas sucessivas edições distribui certificados, vales-presente e o título de Educador do Ano1 com o objetivo de reconhecer e valorizar os professores, de acordo com as informações que divulga. Para concorrer, os docentes enviam relatos de suas práticas e percorrem distintas etapas avaliativas, que resultam em 50 finalistas, dos quais 10 são indicados como vencedores e participam de uma celebração de entrega da premiação em São Paulo, geralmente no mês de outubro, na qual o professor-destaque é revelado.

As páginas do site do Prêmio Educador Nota 10, que apresentam o conteúdo de sua proposta e nas quais constam as sínteses dos relatos enviados pelos docentes2 vencedores do concurso3 - que resumem os projetos desenvolvidos por eles em suas escolas -, compõem o corpus deste estudo. Documentos como esses, mais do que expressarem objetivos e descreverem práticas, são fontes de pesquisa porque “articulam interesses, projetam políticas, produzem intervenções sociais” (EVANGELISTA, 2012, p. 53). As percepções contidas em tais aportes são utilizadas como canal de comunicação com os interessados pelo concurso, mas também servem para que a rede política4 que promove o Prêmio possa divulgá-lo, compartilhando e enfatizando sua concepção particular de êxito docente, o que denota sua centralidade para os anseios deste estudo.

As sínteses dos projetos premiados, por exemplo, são replicadas pelos veículos de comunicação, dando origem a reportagens especiais, principalmente se docentes agraciados forem da mesma região em que há alguma sucursal das emissoras de rádio e televisão vinculadas à premiação. A revista Nova Escola, por sua vez, costuma produzir uma edição especial somente com os dez vencedores anuais, ilustrada com fotos e entrevistas com os envolvidos e incluindo também alunos e seus familiares. Breves sistematizações de cada uma dessas práticas ficam acessíveis no site do próprio Prêmio e no endereço eletrônico da Fundação Victor Civita e são essas descrições que serão utilizadas para realizar a análise de conteúdo (BARDIN, 2016) a fim de se alcançar o objetivo a que o estudo se propõe.

Esclarece-se que o Prêmio estipula critérios para a seleção explicitamente, indicando-os como oferecer evidências de aprendizagem, possibilitar a replicação do projeto em outras realidades independentemente de suas condições, ser inclusivo, utilizar metodologias atualizadas e seguir as bases curriculares, atualmente a Base Nacional Comum Curricular. Esses elementos, por mais que tragam indícios, são considerados amplos para se compreenderem aprofundadamente os aspectos que definem o “educador nota 10” e, por isso, optou-se pela análise das sínteses dos projetos vencedores, em um recorte temporal de dez edições (2010-2019). Esse período foi delimitado por ser considerado suficiente para a identificação da percepção de êxito enfatizada pelo concurso, além de contemplar excertos ainda disponíveis on-line. Eventos mais recentes, salienta-se, não foram incluídos em função das adaptações do concurso ao período de pandemia de Covid-19, que alterou a sistemática escolar a partir de 2020.

Em torno de 100 sínteses5, assim, foram submetidas à análise de conteúdo, escolhida como instrumento metodológico por articular “a superfície dos textos” selecionados para o estudo e “os fatores que determinaram estas características” (BARDIN, 2016, p. 47). Sendo considerada como “um conjunto de técnicas de análise de comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (p. 44), a análise de conteúdo é entendida como um “esforço de interpretação” que oscila entre “o rigor da objetividade e a fecundidade da subjetividade” (p. 15). Constatando a presença, a recorrência ou até mesmo a ausência de termos ou temas significativos, baseia-se em um movimento de descrição, inferência e interpretação de mensagens.

Seguindo as orientações de Bardin (2016), após a leitura “flutuante” dos materiais disponíveis acerca do Prêmio, realizou-se a escolha dos documentos e a formulação de hipóteses e objetivos, já explicitadas anteriormente. Então, procedeu-se à exploração do conteúdo das sínteses contempladas no período estabelecido pela pesquisa, que resultou na identificação de dez indicadores analíticos (ou unidades de sentido) que, por se tratar de um estudo qualitativo, representam núcleos de significado que constituem a essência dos relatos e trazem evidências quanto ao que o Prêmio considera como elementar ao êxito do professor. Um tema, conforme a autora (2016), “é a unidade de significação que se liberta naturalmente de um texto” (p. 135) e que auxilia na compreensão de tendências, motivações, valores e até mesmo atitudes.

Assim, ao operar a aplicação do método, esses indicadores desprenderam-se das descrições realizadas pela revista acerca das práticas docentes vencedoras e, para este estudo, oferece-se uma sistematização de suas significações abaixo. Com isso, entende-se que a análise se torna mais clara, tornando coerente a discussão realizada nas próximas seções. Salienta-se que tais significados são elaborações das autoras a partir do exame da documentação supracitada e não representam, necessariamente, o mesmo conteúdo que um dicionário, por exemplo, traria.

QUADRO 1 Indicadores analíticos ou unidades de sentido compreendidos nas sínteses dos projetos vencedores do Prêmio Educador Nota 10 entre 2010 e 2019 e seus significados. 

Indicadores analíticos Significados
1 Aumento das notas em avaliações externas Identificado de forma específica em propostas de gestão escolar, esse elemento é retratado como um diferencial do premiado por indicar o que o concurso considera como a materialização da melhoria da qualidade na educação.
2 Coletividade/Colaboração As etapas dos projetos premiados estimulam a coletividade, de forma que os alunos colaborem uns com os outros na resolução de problemas que são apresentados ou percebidos na realidade.
3 Curiosidade/ interesses dos alunos Destaca-se a sensibilidade do docente em perceber quais são as curiosidades ou os interesses dos discentes, e sua competência em propor práticas articuladas a isso, o que tornaria prazerosas as vivências escolares.
4 Envolvimento da família/comunidade escolar A comunidade escolar é destacada como corresponsável pelos projetos desenvolvidos, tendo suas peculiaridades ou saberes considerados nos diagnósticos que antecedem a elaboração da proposta, no desenvolvimento das atividades programadas e/ou, ainda, na avaliação do trabalho.
5 Estratégias metodológicas variadas e/ou materiais diversificados Frisa-se a diversificação de estratégias metodológicas, materiais e, de modo específico, tecnologias da informação e da comunicação e/ou de mídias sociais nos projetos vencedores. Esses recursos são relacionados ao esforço do docente para que os alunos, em suas distintas formas de aprender, sejam contemplados nas propostas.
6 Inovação É exaltada nas práticas como uma forma de recriá-las, renovando as propostas tradicionais e exaltando a autoria do professor que a propõe.
7 Necessidades dos alunos A percepção do docente quanto às necessidades do grupo é descrita como mobilizadora das práticas, tanto em relação a conhecimentos, quanto em questões atitudinais.
8 Protagonismo Denota-se em projetos que estimulam os estudantes a solucionarem problemas por meio das práticas escolares, encorajando-os a assumirem uma posição de responsabilidade. A resolução de questões sociais complexas (como a violência ou a falta de saneamento básico da comunidade, ou ainda estruturais da escola) são descritas como tendo possibilidade de resolução por meio de ações pontuais e individuais dos sujeitos ou de pequenos grupos locais.
9 Questões emocionais, sociais e comportamentais As propostas são indicadas como um modo de auxiliar no desenvolvimento de atitudes, valores e comportamentos considerados socialmente adequados, como questões de autoestima, combate ao preconceito e estímulo a atitudes de compreensão de outrem.
10 Relação do saber escolar com o cotidiano Proposição de tarefas em que os saberes escolares são compreendidos mais facilmente a partir de sua relação com o cotidiano do grupo, relacionando o conhecimento científico com as experiências na família ou na comunidade.

FONTE: Elaborado pelas autoras.

Com os indicadores encontrados, confrontados ao referencial teórico da pesquisa e à contextualização do Prêmio, são inferidas três categorias analíticas que sistematizam as propostas vencedoras e, consequentemente, o modo pelo qual o êxito docente é concebido no concurso. Essas categorias, por mais que possuam conceituações distintas, complementam umas às outras, o que será percebido nas seções seguintes, em que se explana a interpretação, etapa final da análise de conteúdo. Os indicadores, já elencados, serão trazidos novamente para a escrita, assim como algumas das sínteses de projetos premiados, a fim de ilustrar esta argumentação.

O empreendedorismo como elemento de êxito na docência na educação básica

No desenvolvimento desta análise, percebeu-se uma sequência de indicadores utilizada por muitos dos professores vencedores e que sintetiza um movimento particular: o docente identifica uma necessidade de aprendizagem nos estudantes, um interesse ou uma curiosidade da turma e, a partir disso, utiliza diferentes materiais e estratégias metodológicas, relaciona o saber com o cotidiano e cria uma atividade inovadora (unidades de sentido 7, 3, 5, 10 e 6, respectivamente). Esse percurso didático se constitui como peculiar nas salas de aula, mas nas sínteses divulgadas pelo concurso é atrelado à capacidade distinta do docente vencedor de acreditar em sua proposta, não desanimar em meio a dificuldades complexas e encontrar respostas diferentes para problemas corriqueiros, superando-os.

As dificuldades vivenciadas pelos professores não são negligenciadas pelo concurso, que nos excertos incluídos na análise enfatiza a falta de estrutura, recursos e materiais nas escolas espalhadas pelo país. Contudo, destacam-se nessa escrita as estratégias criadas pelos docentes para contorná-las e conseguir êxito no trabalho pedagógico, alcançando a aprendizagem de todos os estudantes. As situações de crise e os empecilhos são mostrados como comuns na rotina escolar, com os profissionais premiados sendo aqueles que, ao invés de se desmotivarem, arquitetam meios para sua resolução, mesmo que para isso precisem recolher sucata ou mobilizarem doações da comunidade. E tal potencial de organização e de realização em meio a crises pode ser relacionado ao empreendedorismo, um campo temático que tem sido estimulado não somente em relações comerciais, mas em todas as relações sociais.

Isso porque no neoliberalismo há uma “subjetivação contábil e financeira” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 28) em que “a empresa é promovida como modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que se deve fazer frutificar” (p. 372). Acreditando em seu potencial, o professor-empreendedor premiado é retratado como aquele que não se abala com o grau de dificuldade encontrado em sua rotina e responsabiliza-se individualmente pela resolução de qualquer problema, mesmo que complexo. Inovando e persistindo, utiliza-se das dificuldades para criar estratégias e obter os resultados de que precisa, como no projeto “Filtrando as lágrimas do Rio Doce”, premiado em 2016 e um dos que compõe o corpus desta análise.

Nele, um professor e seus alunos se utilizaram do estudo da tabela periódica para identificar problemas na água da comunidade (retirada de um rio contaminado com o rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais, em 2015) e firmaram parcerias para prover filtros para os moradores do local, solucionando um problema comunitário a partir da iniciativa do docente que mobilizou a solidariedade local. Neste projeto, a sequência de indicadores mencionada no início da seção é ratificada, frisando-se a expertise do professor em planejar e executar uma tática que superou um problema inicial e mostrou resultados que ultrapassaram aqueles previstos para a aprendizagem discente, o que - notoriamente - é digno de reconhecimento na prática deste professor.

Mas a relevância atribuída a esses resultados, similares em diversas outras sínteses que também foram premiadas no período investigado, reforça a vinculação do concurso a percepções que promovem o empreendedorismo como solução para problemáticas sociais. Faz isso delegando responsabilidades ao âmbito local e à esfera individual, com os sujeitos e seus parceiros imediatos sendo incumbidos pela transformação de quaisquer adversidades, mesmo que históricas. Isso é apontado por Montaño (2010) como afim à alteração do padrão de resposta aos problemas sociais imposto pelo neoliberalismo, em que “desresponsabilização do Estado, [...] desoneração do capital e [...] auto-responsabilização [sic] do cidadão e da comunidade local” (p. 185) são entendidas como as condutas norteadoras da sociabilidade. Um novo contrato social orienta que “solidariedade social e universalidade e direito dos serviços” sejam substituídos por “solidariedade local, auto-ajuda [sic] e ajuda mútua” (MONTAÑO, 2010, p. 184), com o terceiro setor tendo centralidade na direção e na execução das políticas sociais, das quais a educação é parte.

O protagonismo, outro indicador de análise (de número 8) que se salienta no exemplo trazido acima e em outras descrições, colabora com essa compreensão e com a definição do empreendedorismo como campo temático que compõe o sucesso no trabalho docente. Na medida em que propaga a percepção de que cada um dos sujeitos deve fazer acontecer, independentemente de sua profissão ou espaço social, sem delegar ao Estado ou a qualquer outro ente a incumbência de prover recursos ou apresentar resultados para os problemas educacionais (e sociais), o Prêmio difunde a visão de que os professores, ao se assumirem responsáveis pelas dificuldades que encontram, colocam a mão na massa e conseguem fazer a diferença - para utilizar termos ratificados nas sínteses.

Nessas descrições enviadas à premiação, articula-se o docente à racionalidade de um “sujeito unitário” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 332): “o sujeito do envolvimento total de si mesmo” que, movido pelo desejo de realizar, entende a si como o único responsável para que projetos obtenham sucesso. Satisfazendo uma espécie de “ordem imperiosa do próprio desejo, à qual ele não pode resistir” (p. 332), “não tem medo de ir contra a corrente: cria, desarranja, rompe o curso ordinário das coisas” (p. 151) e entende as crises como uma possibilidade de realizar mudanças e mostrar seu potencial criativo e resiliente. O professor é apresentado pelo Prêmio sob essa perspectiva, sendo anunciado como aquele que se contrapõe a quaisquer problemas e limitações, utilizando seu ímpeto de empreender para pôr em prática seu potencial e alcançar o êxito em seus objetivos.

Além disso, o empreendedorismo se destaca no modo como o regulamento da premiação apresenta as etapas avaliativas às quais os docentes se submetem ao se inscreverem para disputar a vaga de Educador do Ano. Distintos momentos, que são coordenados por diferentes profissionais, servem para avaliar o relato encaminhado pelo professor, aferindo a validade das comprovações que devem evidenciar a qualidade de seu projeto, seu potencial de realização e sua capacidade de superar os desafios a que se propõe. O profissional inscrito pode ser requisitado, via telefone, para esclarecer dúvidas da comissão que o avalia e para encaminhar materiais complementares, que provem sua eficácia, sendo recorrentemente testado. Os professores precisam provar que sua proposta inscrita no Prêmio Educador Nota 10, além de se sobressair a de outros docentes, tem resultados comprováveis, serve de inspiração e pode ser divulgada como uma boa prática, pois a replicação dos projetos vencedores consta como um requisito até mesmo para sua seleção.

Essa reprodução em outros contextos também remonta ao cenário empresarial, em que casos de sucesso são utilizados para motivar outros empreendedores. Em um mercado no qual, como o neoliberalismo argumenta, todos competem com suposta liberdade e em determinada situação de igualdade, se parte dos sujeitos se arriscam, criam oportunidades e obtêm êxito, todos, então, poderiam ter esses mesmos resultados. No Prêmio, todos os professores - estejam eles em cargos de gestão ou não, atuando em qualquer etapa ou modalidade da educação básica, em diferentes disciplinas, tanto em escolas públicas ou particulares e filantrópicas - são considerados passíveis de serem laureados como o Educador do Ano, sendo entendidos como em condições igualitárias de empreender e alcançar seus objetivos.

Quando há a explicitação acerca da necessidade de que as propostas enviadas ao Prêmio possam ser reproduzidas em quaisquer condições físicas ou materiais, também há uma aproximação com essa percepção, já que, mais uma vez, a capacidade empreendedora é tida como capaz de superar limitações do contexto. O papel do Estado em apoiar e prover condições mínimas de trabalho ao docente não se salienta como um fator que pode ser relacionado com o êxito do professor no Prêmio. Ao contrário, o entusiasmo e a motivação do profissional para inovar e superar os desafios de sua prática são denotados como determinantes para o sucesso de seu empreendimento, que não dependeria, bem como no livre mercado, de condições pré-estabelecidas.

Nesse sentido, um clima de otimismo se constitui como importante para o empreendedorismo. Como Harvey (2014) indica, a crença de que qualquer projeto pode ter sucesso auxilia as pessoas a acreditarem em si e a arriscarem, o que se mostra como uma forma de motivar a iniciativa dos sujeitos para empreender. Isso reforça a compreensão expressa acima, já que, na premiação, os docentes, independentemente de seus vínculos e de condições estruturais, são entendidos como empreendedores em potencial - não de negócios, mas de práticas educacionais exitosas que servem como bons exemplos para os demais profissionais. Tal compreensão é complementada pelas demais categorias analíticas, expostas nas seções seguintes, e que criam um panorama de como o trabalho docente de qualidade é entendido pela proposta.

A concorrência generalizada como um dos alicerces do Prêmio Educador Nota 10

Os indicadores de análise identificados no Prêmio também articulam ao empreendedorismo, como condição para o êxito na docência, a concorrência. Esse campo temático se salienta como intrínseco a premiações, destacando-se no conteúdo da proposta do concurso ao estimular a disputa entre os docentes na busca pela valorização, restrita à obtenção dos brindes e do título atribuído ao profissional que demonstra maior potencial durante o processo avaliativo. Além disso, na contextualização realizada no site do Prêmio, a percepção de que, ao competirem entre si, os professores qualificariam sua atuação a fim de provarem sua eficiência e, com isso, o processo formativo como um todo, destaca essa categoria como estrutural à iniciativa. Mas, além disso, esse elemento se sobressai nas sínteses dos projetos premiados, indicando que um trabalho exitoso faz com que os resultados alcançados pelos docentes superem os de seus pares, o que se amplia para a validação do desempenho dos alunos e das instituições de ensino.

O concurso dá destaque, nos indicadores observados, à elevação de índices em avaliações externas (primeira unidade de sentido apontada pela pesquisa), relacionando o êxito na docência à capacidade de obter posições de destaque (com sua turma e sua escola) em exames aplicados pelas secretarias de educação das quais a instituição faz parte ou em aferições formuladas em âmbito nacional. Essa concepção afasta de uma formação humana os processos pedagógicos e, por mais que explicitamente possa não ser assumida pelas instituições, constitui parte da concorrência generalizada (LAVAL, 2019) que rege as práticas sociais e, em relação a elas, as educativas.

Na descrição divulgada pelo Prêmio de “Minha escola: reconstrução coletiva”, projeto destacado em 2015 por ressaltar a capacidade de um diretor para retirar sua escola de uma situação de violência e depredação, o aumento do índice da instituição em avaliações externas é mencionado, denotando que esse seria um dos avanços resultantes do trabalho realizado. Outras propostas também incluem esse indicador, como “Gestando sonhos, alcançando metas!”, de 2019, que salienta como a motivação dos docentes e o estabelecimento de metas de aprendizagem resultaram em ganhos nesses exames. Isso é provado por meio, justamente, da utilização dos índices, demonstrando sua elevação quando do desenvolvimento da iniciativa.

Por mais que a concorrência não apareça de forma declarada nessas e nas demais sínteses, é indicada pela valorização dada a tais aferições, com o alcance de metas definidas por essas avaliações, a ênfase nos resultados obtidos e a proeminência da instituição em ranqueamentos elaborados a partir da divulgação de suas notas se tornando definidores da qualidade do trabalho desempenhado nas instituições. Há, assim, a necessidade constante de que as escolas se mostrem melhores, tanto de outras que também realizam os exames e que figuram nos rankings, quanto de si mesmas. Afinal, o índice atingido é sempre um lembrete quanto a um maior a ser conquistado na próxima edição, até porque a estagnação ou, ainda pior, o decréscimo das notas trazem conotações negativas às escolas e aos profissionais que nela atuam, considerados os únicos responsáveis pelo fracasso ou, então, pelo sucesso da instituição.

A concorrência, desse modo, se naturaliza no cotidiano da escola, estimulando condutas movidas pela disputa constante. Em uma instituição que adota o funcionamento similar ao de uma empresa (LAVAL, 2019), o êxito é mensurável em números e as avaliações externas provêm esse indicativo, que se torna significativo quando uma instituição alcança uma posição de destaque perante as demais. Metas são gradativamente aumentadas, constituindo um movimento contínuo no qual a competição não cessa. Pelo contrário, somente com a vigilância permanente quanto a seus resultados e também aos de seus concorrentes, a escola (e, em relação a ela, seus profissionais) se manteria atraente aos seus clientes. E essa lógica parece se aproximar da frisada nos excertos elaborados pelo concurso a partir de práticas selecionadas por ele.

A desigualdade entre as escolas se torna um fato comum, o que leva à percepção de que alguns docentes seriam melhores do que os outros. Divide-se, assim, a própria classe profissional, o que é reforçado pela exigência do Prêmio Educador Nota 10 de que os projetos possam ser replicados em quaisquer condições materiais, físicas e regionais, exaltando que alguns profissionais são capazes de criar e inovar, enquanto outros devem apenas repetir as propostas que tiveram sua eficácia validada. Aqueles com melhores avaliações guiam o trabalho dos demais, ignorando a diversidade e a complexidade dos contextos escolares e ratificando a percepção de que apenas ao professor compete a responsabilidade pelo êxito da escola.

Outro indicador que atrela à concorrência o sucesso na docência é o que estimula os pais ou responsáveis pelos estudantes a participarem ativamente (unidade de sentido de número 4) da seleção de temáticas relevantes para as aulas, das etapas constitutivas do trabalho pedagógico planejado pelo professor e da avaliação das práticas desenvolvidas. Com as escolas sendo compreendidas, pela racionalidade neoliberal, como objetos de consumo (LAVAL, 2019) dentre os quais as famílias podem escolher, inclui-las nas decisões pedagógicas aproxima as instituições de ensino das expectativas dos familiares, tornando-as competitivas perante as demais. Promove-se, assim, a comprovação contínua da validade do trabalho desenvolvido e garante que essa escola siga sendo a opção dos pais, o que não se resume às da esfera privada, mas inclui instituições públicas e filantrópicas cujo financiamento depende do número de matrículas que possuem, movendo a concorrência generalizada mencionada por Laval (2019).

Não que as famílias não devam acompanhar o processo educativo: pelo contrário, essa é uma das ações mais esperadas pelos docentes. Contudo, essa lógica divulgada pelo Prêmio é similar àquela das avaliações externas, em que ao invés de se buscar acompanhar o desenvolvimento de cada estudante de acordo com suas necessidades e possibilidades de aprendizagem, apresenta-se apenas um indicativo final para ser avaliado. É como se a escola estivesse prestando contas, apresentando um resultado e comprovando sua qualidade em busca do consentimento dos responsáveis pelos estudantes. E, com isso, mantendo-se atrativa para eles em um mercado que disputa a ocupação das vagas pelos estudantes.

Com a concorrência sendo entendida como o modo pelo qual o neoliberalismo entende haver a garantia da livre iniciativa dos sujeitos, com suas vantagens competitivas levando a uma disputa que qualificaria o consumo e, em relação a ele, a dinâmica social (HARVEY, 2005), competir se coloca como a forma de qualificar a ação empreendedora. Isso porque, estando em uma arena constante de disputa, o sujeito, para se destacar, não precisa apenas criar respostas para os problemas com os quais se depara, mas fazer isso de um modo mais competente do que seus pares. Essa perspectiva é ilustrada pelo Prêmio em análise, sendo que somente os docentes que se submetem às regras do concurso e conseguem se destacar perante seus colegas - subordinando-se à concorrência com seus pares e às rigorosas etapas de avaliação - podem vir a ser valorizados. Tal argumentação será aprofundada em seguida, com a explanação acerca da terceira categoria analítica encontrada: a meritocracia.

O mérito do professor como forma de responsabilização e elemento constituinte do sucesso na docência

Complementando os dois campos temáticos identificados, a meritocracia é a terceira categoria analítica que se salienta neste estudo, podendo ser entendida, assim como o elemento discutido anteriormente, como estrutural a concursos. Afinal, a ideia de premiar e destacar um profissional - ou um pequeno grupo deles - contém a percepção de que alguns seriam mais dedicados e teriam uma atuação distinta, merecendo um reconhecimento singular. No Prêmio Educador Nota 10, ao competir (já que as categorias analíticas, por mais que representando conceitos diferentes, estão em relação), os docentes precisam provar seu mérito para se sobressaírem e alcançarem posições proeminentes. Só assim recebem brindes e condecorações prometidos pela premiação e têm seu projeto divulgado e enfatizado pelas publicações e reportagens da rede política que promove o concurso.

O conteúdo da proposta indica essa compreensão em diversos momentos, reforçando que somente um grupo dos inscritos se torna finalista e vencedor, sendo que apenas um deles é considerado o Educador do Ano a cada edição. Isso depende da pertinência do projeto encaminhado ao concurso, mas também da capacidade do docente de provar sua competência e de comprovar o esforço empenhado para fazer com que o projeto tivesse bons resultados. Benefícios não são entendidos como passíveis de serem distribuídos universalmente, mas são reduzidos a gratificações que refletem a lógica neoliberal de que a justiça é “a justa recompensa do mérito” (DARDOT; LAVAL, 2016) e, portanto, os que são conceituados como menos esforçados ou que não refletem os resultados esperados, não mereceriam retribuições. Questões contextuais não são tidas como relevantes, mais uma vez, e a disparidade entre as condições educacionais às quais docentes e estudantes têm acesso são entendidas como comuns.

Nas unidades de sentido identificadas essa percepção é fortalecida, sendo que o protagonismo (oitavo indicador listado), já citado quando da explanação acerca de como o empreendedorismo direciona a concepção de êxito docente no Prêmio, igualmente salienta a meritocracia. Isso porque, nas sínteses dos projetos vencedores, destaca-se o viés de que os sujeitos, ao assumirem uma postura ativa diante dos problemas que encontram, conseguem superá-los e, com isso, recebem o reconhecimento merecido pelo seu esmero. O mérito de parte substantiva dos excertos analisados está em o professor não depender de auxílio externo e, mesmo diante de um empecilho que supera sua esfera direta de atuação, criar meios e buscar parcerias para solucioná-lo na esfera local, como em “Filtrando as lágrimas do Rio Doce”, iniciativa já descrita e que reafirma a proposição em tela.

É também nessa direção que a colaboração e a coletividade são compreendidas, bem como a valorização dada pelo Prêmio a projetos que se dedicam ao desenvolvimento de questões emocionais, sociais e comportamentais (unidades de sentido números 2 e 9, respectivamente). Preocupações com aspectos socioemocionais, por mais que estejam sendo relacionados nos últimos tempos à proposição da Base Nacional Comum Curricular, já se destacavam nas propostas premiadas dos anos anteriores e, além de reforçar princípios neoliberais, se vinculam a uma tendência neoconservadora que vem se materializando principalmente nas duas últimas décadas. Nela, o individualismo se soma à moralidade, construindo um quadro particular a partir do qual a educação se constitui e redefinindo os critérios a partir dos quais o trabalho do professor é julgado.

Essa relação é indicada porque, como foi possível identificar nas sínteses analisadas, mais do que união e formação de laços, a coletividade e a cooperação (em si divergentes quanto ao estímulo à concorrência presente na gênese do concurso) são divulgadas pelo Prêmio como uma forma de os alunos resolverem com autonomia situações-problema trazidas pelo professor ou percebidos no cotidiano. A ajuda mútua, aliada a valores como a tolerância, o respeito ao outro, o afastamento de conflitos e a conciliação são entendidos como construções morais que qualificam o trabalho do professor. Mais do que ensinar conteúdos escolares, assim, o docente é incumbido com a tarefa de conscientizar seus alunos acerca de comportamentos socialmente aceitáveis e sobre a sua posição de responsabilidade perante o mundo. Não que o tratamento dessas questões em aula, por si, seja negativo. Contudo, a conformação com um padrão de aceitação perante as condições que são impostas aos sujeitos em uma sociedade que naturaliza a injustiça social e que não promove o questionamento das bases que a sustentam conforma uma perspectiva conciliatória, que encara com naturalidade a desigualdade em uma concepção romantizada da educação.

Como exposto anteriormente, Montaño (2010) afirma esse estímulo para que os sujeitos se autorresponsabilizem e se unam com seus parceiros imediatos para amenizar os problemas da realidade como intrínseco ao padrão de resposta aos serviços sociais exigido pelo neoliberalismo. O constante incentivo para que a sociedade se assuma como agente das mudanças que espera, desobriga o Estado de prover programas de apoio universais para os cidadãos, ao mesmo tempo em que afasta o mercado de qualquer ação atenuante quanto aos efeitos de sua exploração. Com os sujeitos sendo conscientizados de seu papel como gestores de sua própria vida, em situações nas quais seu esforço isolado não é suficiente, são estimulados a colaborarem uns com os outros, em iniciativas nas quais a solidariedade local e a ajuda mútua supririam as demandas, ao mesmo tempo em que exaltariam suas qualidades benevolentes.

O esforço do docente em promover distintas estratégias, disponibilizar variados materiais e recursos e propor diferentes metodologias (indicador de número 5) para garantir a aprendizagem dos discentes também aponta a relação entre as unidades de sentido encontradas e reafirma a meritocracia como categoria analítica. Na síntese de “Quem escreve sou eu!”, a necessidade de que os alunos do 5º ano do ensino fundamental escrevessem melhor fez com o professor desenvolvesse distintas sequências de revisão textual a fim de qualificar a produção escrita. Tudo foi documentado em um blog, o que motivou os alunos e proporcionou à família o acesso às atividades desenvolvidas. Em “Desastre natural: informar para prevenir”, a professora se utilizou de múltiplas estratégias e materiais (pesquisa em várias referências bibliográficas, vídeos, seminários, análise de mapas e gráficos, e produção de cartas) para que os alunos reconhecessem sinais de um desastre natural.

Esse esforço do professor é retratado pelo concurso como afim a sua capacidade de empreender diante das dificuldades encontradas, mas principalmente como articulado à sua dedicação - uma característica singular e louvável que precisaria ser imitada por seus pares - em seu trabalho. A identificação de tal constante nas propostas premiadas denota que o educador nota 10 busca ir além do trivial e se dedica a engajar os estudantes no processo de ensino-aprendizagem, superando, com sua obstinação, criatividade e conhecimento, barreiras que possam impedir o desenvolvimento dos alunos. Esse afinco do professor em suas práticas cotidianas é um dos pontos enfatizados pelo Prêmio e, aliado aos demais campos temáticos, colabora com uma conformação particular quanto ao êxito na docência.

O Prêmio Educador Nota 10: a naturalização da precariedade no trabalho do professor como condição de valorização

Para conceder a valorização que afirma objetivar, o Prêmio analisado neste estudo se articula a três critérios: o empreendedorismo, a concorrência e a meritocracia. Os educadores nota 10 são anunciados como os únicos responsáveis pelo sucesso das práticas pedagógicas, com aqueles que conseguiram alcançar o êxito na disputa sendo indicados como exemplos de que seria possível, sim, fazer a educação dar certo e ter bons resultados - pelo menos a partir das concepções defendidas pelo concurso por meio dos sujeitos coletivos que a promovem. O ímpeto do professor para criar e realizar ações profícuas mesmo em meio a dificuldades, seu esforço, seu comprometimento e a qualificação de seu fazer estimulada pela competitividade de iniciativas como o Prêmio construiria um quadro de distinção profissional, que justificaria a valorização desse seleto grupo, materializada em bonificações individuais e provisórias.

Garantias para a categoria não são mencionadas como atinentes ao êxito do professor, nem como elementos que promoveriam seu reconhecimento. Pelo contrário, no perfil de docência enfatizado pelo Prêmio indica-se que mesmo sendo temporário, sem tempo disponível para estudos, planejamento e avaliação, e ainda que sua escola não tenha estrutura física e pedagógica apropriada, por exemplo, o professor conseguiria transpor dificuldades e desenvolver práticas pedagógicas de qualidade. Não que isso não ocorra no cotidiano da educação básica brasileira, mas a divulgação desses traços profissionais por um evento legitimado pela sociedade constitui um padrão de atuação individualista e concorrencial, que colabora com a naturalização da precariedade no trabalho docente.

Aliás, percebe-se a omissão do concurso quanto às responsabilidades estatais no provimento de condições para o professor efetivar sua prática, o que pode ser relacionado à generalização da retórica de que o Estado está em crise constante e, por isso, não poderia realizar investimentos nas instituições, muito menos prover melhorias salariais ao funcionalismo. Afinal, os docentes são parte desse corpo profissional que tende a ser referenciado como ineficiente, com as provisões do concurso suprindo carências daquele pequeno percentual que demonstra sua distinção. A separação entre o econômico e o político construída no neoliberalismo (CROCHICK, 2021) justifica essas acepções, sobrepondo a primeira esfera à segunda e afastando as necessidades sociais das decisões financeiras - com essa racionalidade sendo entendida como insuperável.

A concepção de valorização difundida pelo concurso, assim, se afasta daquela prevista como preceito constitucional e que exige estabilidade e planos de carreira para o progressivo desenvolvimento profissional, bem como financiamento público vinculado. Cordeiro e Gouveia (2021, p. 104) ressaltam que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) “organizou a agenda nacional e local no que diz respeito aos elementos da política de valorização, ao estabelecer um bloco de metas exclusivo para tratar da formação - inicial e continuada, remuneração e carreira”. Contudo, os recursos e, pode-se acrescer, a mobilização política atualmente investidos não são considerados suficientes para efetivar suas metas, que poderiam concretizar avanços substantivos nesse âmbito. A valorização docente, nessa direção, acaba ressignificada para o acolhimento de iniciativas como a do Prêmio investigado, afim à lógica neoliberal vigente.

Além disso, como Laval (2019) referencia, esse viés colabora para que a escola seja entendida como um espaço de lutas individuais pelo conhecimento em busca de rentabilidade futura, e não de formação humana, pública e universal. Ao mesmo tempo, corrobora a apatia histórica de elites dirigentes com a educação. Como o autor argumenta:

A escassez de recursos, a falta de docentes, a superlotação das classes, embora revelem uma lógica de empobrecimento dos serviços públicos, também se devem a uma velha tradição das elites econômicas e políticas, que, quando se trata da educação das crianças das classes populares, são generosas nos discursos e mesquinhas nos recursos financeiros (LAVAL, 2019, p. 20).

Isso porque concursos como o analisado estimulam os professores a se mostrarem competitivos e comprovarem sua eficiência na função de formadores de capital humano independentemente de limitações contextuais. Nessa relação, o esforço de cada sujeito é compreendido como basilar às suas conquistas, já que desigualdades não justificariam o fracasso social, com o empreendedorismo (inclusive de si mesmo, com a pessoa sendo gestora de sua individualidade para que sua vida seja bem-sucedida) sendo agregado como alternativa (DARDOT; LAVAL, 2016). A partir dessa perspectiva, o Prêmio dissemina uma concepção de docência que celebra o sucesso particular do professor, enquanto normaliza suas dificuldades, com o conteúdo de sua proposta sendo amplamente divulgado e favorecendo a conformação com suas acepções.

O Prêmio Educador Nota 10, ainda, retrata o êxito como condição para a valorização que diz efetivar, mas que se restringe a condecorações e brindes pontuais e provisórios. Desenvolvimento profissional, garantias para a carreira e condições estruturais adequadas são prescindidas em troca dessas gratificações, restritas à parcela dos profissionais que comprova sua eficácia, qualidade e autenticidade. Responsabilizando o docente por encontrar saídas e elaborar projetos de sucesso mesmo sem condições elementares, naturaliza-se a frágil concretização das garantias para o coletivo e, em relação a isso, a precarização do trabalho do professor da educação básica.

Considerações finais

As três categorias identificadas no Prêmio Educador Nota 10 como responsáveis pelo êxito docente - o empreendedorismo, a concorrência e a meritocracia - disseminam a percepção de que um professor articulado a tais elementos em sua prática é capaz de resolver sozinho os problemas complexos de seu cotidiano. Obstinado e esforçado, o bom professor é movido pela ânsia de realizar e pela concorrência com seus pares, o que qualificaria seu fazer e o tornaria digno de reconhecimento. Sem depender de auxílios estatais, de condições adequadas de trabalho e de salário digno, questões que não são mencionadas pelo Prêmio e apontam um viés oposto ao indicado pela análise de conteúdo desenvolvida, a concepção de êxito divulgada pela premiação traz implicações para o trabalho docente.

No Prêmio, a valorização da docência está restrita a vales-presente, assinaturas de revista e certificados destinados a uma pequena parcela dos docentes, não sendo identificadas materializações que apontem como o Prêmio possa resultar em ganhos na carreira, em conquistas salariais ou no provimento de infraestrutura qualificada para as escolas. Os vales-presente recebidos podem até ajudar na aquisição de materiais e equipamentos, mas não são suficientes para alterar a realidade de desigualdade educacional em que o país se assenta e que se evidencia em pesquisas realizadas no campo. A busca pela implementação de políticas educacionais que proporcionem condições dignas de trabalho também não se constitui como prioridade da premiação, nem como possível (já que se alia a uma perspectiva que busca a diminuição da atuação do Estado em serviços sociais) ou necessária (pois um professor esforçado bastaria).

Para além de entregar títulos e brindes, assim, essa iniciativa difunde concepções singulares de uma rede política específica. A perspectiva societária e a racionalidade a que os sujeitos coletivos que a compõem se vinculam denotam uma articulação com o neoliberalismo, com suas prescrições sendo tratadas pela expertise dos grupos da mídia que realizam a premiação e disseminadas sob um viés que romantiza a educação e a docência, ao mesmo tempo em que promove sua precarização. No Prêmio Educador Nota 10, esses grupos relacionam o êxito docente à resolução dos problemas educacionais complexos, com tais questões sendo retratadas como uma responsabilidade pessoal do professor, solucionável por sua atuação empreendedora, meritocrática e competitiva, mesmo sem condições de trabalho elementares. Assim, impulsionaria a melhoria da educação, com sua valorização profissional sendo individualizada, em um viés controverso acerca da docência e que naturaliza a precariedade em premiações como a aqui analisada.

REFERÊNCIAS

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BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016. [ Links ]

CORDEIRO, Daniele Meira; GOUVEIA, Andréa Barbosa. Valorização do professor da educação básica e as metas do PNE: um estudo do caso de Piraquara/ PR. Rev. Bras. Polít. Adm. Educ., v. 37, n. 1, p. 87 - 108, 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/rbpae/article/view/104640/61611 . Acesso em: 04 ago. 2022. [ Links ]

CROCHICK, José Leon. Educação, neoliberalismo e/ou sociedade administrada. Educar em Revista, v. 37, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/Jbh9vxXVdWdSrG9cSLy6fcg/?format=pdf&lang=pt . Acesso em: 04 ago. 2022. [ Links ]

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. [ Links ]

EVANGELISTA, Olinda. Apontamentos para o trabalho com documentos de política educacional. In: ARAÚJO, Ronaldo Marcos de Lima; RODRIGUES, Doriedson S. (orgs.). A pesquisa em trabalho, educação e políticas educacionais. Campinas: Alínea, 2012. p. 52-71. [ Links ]

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MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

PRÊMIO EDUCADOR NOTA 10. O maior e mais importante Prêmio da Educação Básica brasileira. Disponível em: www.educadornota10.org/. Acesso em: 10 jul. 2022. [ Links ]

1 Os finalistas são premiados (como exposto no regulamento) com uma assinatura digital da Revista Nova Escola e um certificado de classificação; os vencedores acumulam com a assinatura digital da Revista Nova Escola e o certificado de finalista, mais um certificado (o de vencedor) e um vale-presente no valor de R$ 15.000,00. E o Educador do Ano, somados aos prêmios já recebidos nas demais etapas, ganha outro certificado (pela obtenção do grau máximo atribuído pela premiação) e mais um vale-presente também de R$ 15.000,00.

2 Não são divulgados os relatos que originalmente foram encaminhados pelos docentes, mas breves descrições (com cerca de dez linhas) elaboradas pelo próprio concurso. Assim, ao realizar-se a análise de conteúdo, não estão sendo julgados os docentes autores dos projetos, mas o modo como o Prêmio se apropria das práticas pedagógicas e o que divulga como exitoso a partir de suas próprias concepções.

3 Professores que atuam diretamente em sala de aula e também em funções de gestão e coordenação pedagógica podem enviar descrições de seus projetos ao concurso.

4 Redes políticas, segundo Ball (2014), são comunidades formadas por sujeitos distintos dos tradicionais que atuam na direção ou na execução de políticas, compartilhando ideias convergentes quanto a problemas sociais e suas resoluções pautadas em sua experiência no mercado.

5 Até 2011 eram escolhidos dois grandes vencedores: o Educador do Ano e o Gestor Nota 10, tendo sido analisadas 11 sínteses dessas edições; em 2014, apenas nove vencedores foram divulgados pelo site do concurso. Isso explica o número de textos examinados não ser exatamente 100, mesmo que a lógica do Prêmio seja de premiar dez vencedores por edição.

Recebido: 06 de Agosto de 2022; Aceito: 24 de Novembro de 2022

Translated by Letícia de Mello Padoin - E-mail: leticiapadoin@gmail.com

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