SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39“L’Educatore”: uma revista educativa entre didática, política e estratégias institucionais do associacionismo italiano em Buenos Aires (1880)O método de Castilho nas páginas da “Revista da Instrução Pública para Portugal e Brasil” (1857-1858) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 06-Set-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.87258 

DOSSIÊ: PROCESSOS MIGRATÓRIOS E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA TRANSNACIONAL

Piccolo Mondo de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni: um estudo sobre a produção, circulação, materialidade e conteúdo (1901-1938)

*Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, Guarulhos, São Paulo, Brasil. E-mail: claudia.panizzolo@unifesp.br


RESUMO

Entre as últimas duas décadas do século XIX e as três primeiras do XX é possível encontrar indícios de distribuição e circulação de livros italianos entre os imigrantes e seus descendentes. Este artigo objetiva compreender a produção e a circulação dos livros de leitura de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni, autoras de Piccolo Mondo, aprovados para serem adotados nas escolas elementares da Península e escolas italianas no Brasil no início do século XX e, em seguida, analisar um dos volumes, o Sillabario, destinado ao uso da primeira classe. Ancorado nas contribuições da História da Educação e na História Cultural e tendo a análise documental como procedimento adotado, o presente texto toma como fonte privilegiada os livros de leitura Piccolo Mondo, além de circulares ministeriais, dicionário biobibliográfico e jornais. Opera ainda com a categoria transnacional como uma abordagem metodológica na História da Educação. Os livros são considerados artefatos culturais que se situam na articulação entre as prescrições impostas pelos programas oficiais e os discursos singulares dos professores. Para o processo de internalização da ideia de nação italiana se fez necessário um projeto político-pedagógico capaz de reunir as noções de nação, Estado e educação moral em um único processo virtuoso. Pode-se afirmar que Piccolo Mondo aderiu ao projeto de criar um “homem novo”, cidadão de um Estado capaz de conduzir a nação à conquista da modernidade.

Palavras-chave: Livros De Leitura; Piccolo Mondo; Escola Elementar; Leitura; Civilizado

ABSTRACT

Between the last two decades of the 19th century and the first three of the 20th, it is possible to find signs of distribution and circulation of Italian books among immigrants and their descendants. This article aims to understand the production and circulation of reading books by Fanny Romagnoli and Silvia Albertoni, authors of Piccolo Mondo, approved to be adopted in elementary schools on the Peninsula and in Italian schools in Brazil at the beginning of the 20th century, and then analyze one of the volumes, the Sillabario, intended for first-class use. Anchored in the contributions of the History of Education and Cultural History and having the documental analysis as the adopted procedure, the present text takes as a privileged source the Piccolo Mondo reading book, in addition to Ministerial Circulars, a biobibliographic dictionary and newspapers. It also operates with the transnational category as a methodological approach in the History of Education. Books are considered cultural artifacts that are situated in the articulation between the prescriptions imposed by official programs and the unique discourses of teachers. For the process of internalizing the idea of ​​the Italian Nation, a political-pedagogical project capable of bringing together the notions of nation, state and moral education in a single virtuous process was necessary. It can be said that Piccolo Mondo joined the project of creating a “new man”, a citizen of a Nation capable of leading the Nation to the conquest of modernity.

Keywords : Reading books; Piccolo Mondo; Elementary school; Reading; Civilized

Introdução

Entre as últimas duas décadas do século XIX e as três primeiras do século XX é possível encontrar indícios de distribuição e circulação de livros italianos entre os imigrantes e seus descendentes. As produções de Barausse (2021; 2018; 2016), Luchese (2022; 2021; 2019; 2017), Panizzolo (2022; 2021; 2019; 2018; 2016 ) e Teixeira (2018; 2016) informam que os Silabários, os Livros de leitura, de Religião, de Aritmética, de História Pátria, de Geografia, de Cantos, de excertos literários entre outros que seguiam o programa curricular vigente na Itália, foram produzidos e autorizados a serem adotados nas escolas elementares na Península Itálica, e enviados como subsídio para as escolas italianas no Brasil.

Este artigo objetiva compreender a produção e a circulação dos livros de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni, autoras da série de livros Piccolo Mondo, letture per le scuole elementari1, aprovados para serem adotados nas escolas elementares da Península e escolas italianas no Brasil no início do século XX, e, em seguida, analisar um dos volumes, o Sillabario, livro destinado ao uso da primeira classe, para o ensino da leitura e escrita.

Toma-se como fonte privilegiada os livros de leitura Piccolo Mondo, letture per le scuole elementare, em especial o Sillabario, além de circulares ministeriais, dicionário biobibliográfico e jornais.

O silabário, o livro de leitura, o livro texto, o livro escolar (terminologia que se altera ao longo do tempo e pela própria estrutura material) são compreendidos como fontes privilegiadas para a História da Educação por situar-se no entrecruzamento entre as prescrições impostas pelos programas oficiais e os discursos singulares dos professores (CHOPPIN, 2002). É apresentado por Chiosso (2011) como um precioso documento da escola do passado, capaz de associar ao ensino do abecedário as normas morais e noções de vida cotidiana; de fornecer informações da vida escolar, das práticas educativas e do sentimento de infância.

Nesse sentido, os livros de leitura podem ser tomados como artefatos culturais que produzem sentido e significado, como utensílios culturais que estabelecem elos e vínculos entre as estruturas mentais e as figurações sociais ou, no dizer de Elias (1994), entre a psicogênese e a sociogênese. A teoria do processo civilizador cunhada por Elias (2006) aponta para o desenvolvimento conjunto do aparelho psíquico e das cadeias de relações constituídas pelos indivíduos na sociedade, portanto os modelos, no processo civilizatório, só podem ser assumidos dentro das dinâmicas concretas de cada tempo histórico.

Civilizado é, para Elias (1994), o indivíduo cujo comportamento foi transformado, moldado, condicionado para adquirir novos comportamentos, novos hábitos, que nele se entranham como segunda natureza. Chartier (2004) colabora para que se compreenda que a civilização também se deu por um processo de produção simbólica, através da edição e circulação de livros, que, por meio da leitura, favoreceu que fosse posto em ação, a partir de uma matriz societária, um conjunto de disposições voltadas à imitação e ao aprendizado Tais leituras intentaram ensinar os saberes elementares de ler, contar e escrever, ao mesmo tempo disciplinando condutas e tornando seus leitores civilizados.

Cabe ainda esclarecer que a análise realizada neste artigo se ancora no fértil diálogo entre a História Cultural (CHARTIER, 2004; 1998; 1996; 1994) e a História da Educação (CHOPPIN, 2002; CHIOSSO, 2011). Toma ainda a categoria transnacional como uma abordagem metodológica na História da Educação, ao considerar que alguns elementos globais auxiliam na compreensão da questão da produção e circulação de livros de leitura dos dois lados do Atlântico.

Dessa forma, interroga-se sobre as condições de aprovação e circulação da série Piccolo Mondo, letture per le scuole elementari na Península e no Brasil e, especificamente quanto ao Sillabario, sobre sua estrutura, seus conteúdos, perspectiva metodológica e o modo como opera com os saberes elementares do ler e escrever e as normas de conduta.

O texto está organizado em duas seções: na primeira busca-se compreender o lugar dos livros de leitura no projeto político-pedagógico italiano no início do século XX, bem como a aprovação e circulação da série Piccolo Mondo, letture per le scuole elementare na Itália e no Brasil; na segunda empreende-se um estudo sobre a materialidade e os conteúdos da obra estudada, com vistas a conhecer a proposta educacional, bem como os valores nela prescritos.

A produção e a circulação dos livros de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni dos dois lados do Atlântico

Em 1901, quase um quarto de século depois da instrução primária ter se tornado obrigatória, os índices de alfabetização ainda eram preocupantes na Península Itálica, sobretudo quando cotejados os das várias regiões entre si e com os países da Europa, segundo nos informa Chiosso (2011, p. 59):

[...] metade dos habitantes do Reino eram analfabetos. Persistiam fortes desequilíbrios entre as várias regiões do país: em comparação com 32% de analfabetos no norte, 52% eram analfabetos no centro e até 70% no sul. No início do século XX, os analfabetos na Inglaterra eram apenas 3% da população adulta, os franceses eram 5% e os belgas cerca de 12%.

Fazia-se urgente alfabetizar a população, matricular as crianças nas escolas, abrir cursos noturnos para jovens e adultos, escolas rurais, enfim era inegável o papel que a educação tinha a cumprir para “fazer os italianos” - em menção à celebre afirmação de Massimo D’Azeglio, em referência ao Risorgimento, para quem a Itália foi feita - e nesse momento era preciso, portanto, fazer os italianos. Segundo Chiosso (2011, p.61):

A constatação de que não havia italianos equivalia a pensar a Itália como uma nação sem povo, uma nação que se legitimava por uma série de fatores históricos, geográficos e linguísticos, mas, para ser verdadeiramente tal, carecia de um sujeito coletivo adequado. Daí a convicção de que a unificação nacional carecia de uma fusão efetiva e que era, portanto, necessário proceder a posteriori com extrema urgência. O que precisava ser feito, em outras palavras, era justamente a Itália entendida como unidade política nacional, como Estado moderno, como sociedade liberal e moderna.

Tornava-se necessário ampliar a base social, cooptando novos grupos que ainda não tinham sido incluídos, ao mesmo tempo em que era preciso regenerar as “populações italianas para libertá-las da inércia, indiferença e ignorância” (p. 61) e “enquadrá-las dentro dos valores da Nação” (p. 61), concebidos como a vontade de cada um, como a consciência pessoal, ou seja, um grande princípio moral coletivo, para o que era preciso, nas palavras de Chiosso (2011, p.66) ao citar F. Gaeta em Dalla nazionallità al nazionalismo (Da nacionalidade ao nacionalismo):

[...] mobilizar a opinião pública, incutir ideais de atividade e sacrifício, difundir a ideia de que para ser uma nação uma língua, uma tradição, uma área geográfica comum não bastava, mas era preciso uma vontade comum de que não era a ‘convenção inicial’ rousseauniana nem um resultado da natureza, mas uma diligência contínua e incessante.

Para o processo de internalização da ideia de nação se fez necessário um projeto político-pedagógico capaz de reunir as noções de nação, Estado e educação moral em um único processo virtuoso. Condição imprescindível era criar o “homem novo”, um novo italiano, cidadão de um Estado capaz de conduzir a nação à conquista da modernidade e, para tal, se fazia urgente abandonar a moralidade incerta, a prevalência dos interesses individuais, herança de séculos de conformismo, dogmatismo e ceticismo. Coube à educação, aos mestres e aos livros um papel importante com vistas a tal intento.

O livro de leitura, no mais das vezes, era o único livro utilizado na escola primária, algumas vezes acompanhado do livro de aritmética. Segundo Chiosso (2011), tratava-se de livro muitas vezes compilado ou escrito por professores e inspetores escolares, com características tipográficas bastante sóbrias, ao menos até o início do século XX, e vendido a baixo custo, o que o tornava bastante acessível. Os livros de Gramática, História, Geografia, Ciências Naturais, Direitos e Deveres eram adotados a partir da quarta classe, frequentadas por uma minoria de estudantes que davam continuidade para além dos três anos de escolaridade obrigatória. O livro de leitura destinava-se ao curso elementar (escola primária) organizado em duas seções, a inferior composta pelas 1ª, 2ª e 3ª classes, e a superior, pelas 4ª e 5ª classes.

Um dos muitos livros produzidos na Itália é a série graduada Piccolo mondo, letture per le scuole elementari, para a escola feminina e masculina. Em estudos realizados Panizzolo (2019; 2018; 2016) afirma que a série é composta pelSilabário, Livro complementar ao Silabário, Livro de leitura para a segunda classe, Livro de leitura para a terceira classe, Livro de leitura para a quarta classe, Livro de leitura para a quinta classe, de autoria de Fanny Romagnoli, professora integrante da Sociedade de professores bolonheses, e Silvia Albertoni (ainda não foram localizadas informações sobre a autora), publicada pela importante editora Fiorentina Bemporad, que ao lado da Editora Mondadori detinham o maior número de livros aprovados pelo Ministério (GALFRÉ, 2005).

Piccolo mondo, letture per le scuole elementare foi aprovado para ser adotado nas escolas da península italiana e nas escolas italianas no exterior. Barausse (2008), em sua obra Il libro per la scuola dall’Unità al fascismo; la normativa sui libri di testo dalla legge Casati alla Riforma Gentile -1861-1922 (O livro para a escola da Unificação ao fascismo; a normativa sobre os livros de texto da Lei Casati à Reforma Gentile - 1861-1922), oferece um amplo e detalhado repertório das circulares ministeriais e dos elencos dos livros aprovados. Nela encontra-se a Circular Ministerial n. 74, de 03 de setembro de 1898, que aprovara o livro de Fanny Romagnoli intitulado In alto i cuori - letture per le giovinette raccolte e ordinate, de 1898 (Eleve os corações, leituras para jovenzinhos selecionadas e organizadas), autorizado para leituras domésticas, para compor acervo de bibliotecas escolares e para ser ofertado como prêmio nas escolas. A Circular Ministerial n. 68 de 3 de outubro de 1899 reitera a aprovação anterior.

A Circular Ministerial de 30 de abril de 1900 autoriza novamente o uso de In alto i cuori - letture per le giovinette raccolte e ordinate e inclui Piccolo mondo, letture per le scuole elementari (Pequeno Mundo, leituras para as escolas elementares), o Sillabario para a primeira classe, o Livro complementar ao Sillabario, além dos livros para a segunda e terceira classes.

A Circular Ministerial n. 18 de 1 de março de 1905 inclui a aprovação para províncias específicas, conforme se vê no quadro 1:

QUADRO 1 Aprovação dos livros Piccolo Mondo, Letture per le Scuole Elementari de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni para as Províncias Italianas. 

Livros Piccolo Mondo Sillabario Piccolo Mondo Compimento al Sillabario Piccolo Mondo 2ª classe Piccolo Mondo 3ª classe Piccolo Mondo 4ª classe Piccolo Mondo 5ª classe
Província
Ancona x X x x x x
Arezzo x X x x x x
Ascoli-Piceno x X x x x x
Catania x X x x x x
Como x X x x x x
Firenze x X x x x x
Genova x X x x x x
Palermo x X x x x x
Parma x X x x x x
Pisa x X x x x x
Reggio Calabria x X x x x x
Chieti X x x x x
Venezia x X x x x
Caserta x X x x
Lecce X x x x
Cuneo X x x
Massa- Carrara x X
Siracusa x X
Cremona x

FONTE: Quadro construído pela autora a partir de Barause (2008).

Embora não tenha localizado informações sobre o ano da primeira edição de cada um dos livros e sobre sua circulação, há nas suas capas algumas informações sobre o número de exemplares produzidos à época daquela edição, dando pistas sobre sua circulação, conforme quadro 2, abaixo:

QUADRO 2 A circulação da série graduada Piccolo Mondo, letture per le scuole elementari. 

Nome do livro Ano da edição estudada Exemplares produzidos
Sillabario 1908 220 mil
Compimento al Sillabario 1907 155 mil
Piccolo Mondo- Per la 2ª classe 1901 Exemplar sem capa
Piccolo Mondo- Per la 3ª classe 1906 125 mil
Piccolo Mondo- Per la 4ª classe 1910 Não consta a informação
Piccolo Mondo- Per la 5ª classe 1912 Não consta a informação

FONTE: Quadro construído pela autora a partir de Romagnoli e Albertoni (1908; 1907; 1901; 1906; 1910; 1912).

A ausência de informação nas capas dos livros para a quarta e quinta série pode ter ocorrido devido ao provável decréscimo de alunos que chegavam até essas séries, o que, consequentemente, impactava a demanda por livros, e a opção da casa Editora foi não divulgar números pequenos; da mesma forma, mas no extremo inicial da escolarização é que se pode compreender o maior número de exemplares em circulação do Sillabario, livro destinado ao aprendizado da língua na primeira classe da escola elementar, com ingresso maior de alunos, que, com o passar das séries escolares, motivado pela repetência e evasão apresenta-se quantitativamente decrescente.

Piccolo Mondo, letture per le scuole elementare atravessou o Oceano e chegou em terras brasileiras. De acordo com Teixeira (2018), os livros circularam na cidade mineira de Juiz de Fora. Segundo a autora, em 1894, foi realizada uma solicitação da professora Amalia di Battisti, da Escola Regina Margherita, ao vice-cônsul, para o recebimento de livros didáticos. Em um primeiro momento a solução encontrada foi a da doação pelos próprios imigrantes e “cerca de 190 exemplares de livros, mais algumas centenas de cadernos foram angariados e divididos entre as escolas Umberto Primo e a Regina Margherita” (TEIXEIRA, 2018, p. 237). Todos os livros foram publicados na Itália, com destaque para Ida Baccini e Pietro Dazzi, autores de vários livros e cartilhas adotados pelas escolas italianas. Entre 1899 e 1919, a autora afirma que foram enviados subsídios “sem nenhuma regularidade e dependiam da disponibilidade e boa vontade dos vice-cônsules” (TEIXEIRA, 2018, p. 239).

Em 01 de outubro de 1906, a escola Regina Margherita recebeu 4 exemplares de Piccolo Mondo para a 2ª classe; 4 exemplares de Piccolo Mondo para a 3ª classe; 2 exemplares de Geografia e Storia para a 3ª classe (sem identificação de autoria); além de 2 exemplares de Geografia, Storia e doveri para a 3ª classe. Em 13 de dezembro de 1906, mais uma remessa contendo livros de Pietro Dazzi: 11 Silabários e 1º livro de Leitura, 13 Livros para a 1ª classe - parte 1ª, 29 livros para a 1ª classe - parte 2ª, 7 livros para a 2ª classe, e 9 livros para a 3ª classe; 8 livros Primmi elementi di Geografia, de Silvio Pacini; 12 livros L’Aritmetica, de Giuseppe Baldasseroni; 10 livros Abaco ed aritmetica, de Nazzareno Dati; 29 livros Grammaticachetta Italiana, de Lirilli e Curradini; 13 livros Calcolo mentale e scritto, de Cerrado Ciamberlini; 42 livros Il Risorgimento Nazionale, de Luigi Neretti; 12 livros Manuale Atlante di Geografia e Storia, de Gianni Trapani; além dos livros Piccolo Mondo: 6 livros para a 2ª classe e 6 livros para a 3ª classe.

Há também indícios de adoção do livro Piccolo Mondo para 4ª classe pela Scuola Italo Brasiliana Associação de Mútuo Socorro de São Caetano Principe di Napoli, no estado de São Paulo, ao longo da década de 1920, período em que Giovvani Cardo era o professor. Não foram localizados registros sobre a fundação da escola, estrutura curricular, organização dos tempos e espaços, métodos e cultura material. Apenas esse livro preservado no Acervo do Museu Histórico Municipal de São Caetano do Sul. Não se sabe se o livro teria sido doação do próprio professor para ensinar as crianças ou, como em Juiz de Fora, uma doação das famílias imigrantes, ou ainda enviado pelo governo italiano. Mas consta entre os documentos da Scuola.

Segundo Barausse (2018), nos planos didáticos das escolas italianas no Rio de Janeiro e Porto Alegre adotados na década de 1920, que se encontram sob a guarda do Ministério das Relações Exteriores da Itália, consta a presença de Piccolo Mondo, letture per le scuole elementari ainda que não seja possível precisar a edição e a que classe se destinava.

Além de circular em língua italiana, Piccolo Mondo circulou em português. Na edição 216, de 15 de setembro de 1908, consta a notícia sobre a versão do livro para o idioma português, que passou a chamar-se Mundo Infantil, conforme se lê abaixo:

Os editores nossos amigos Souza & Barros, tiveram a delicadeza de enviar à Federação um exemplar do livrinho italiano Mundo Infantil, original italiano de Fanny Romagnoli e Sylvia Albertoni e traduzido pelo sr. J. F. Lima Cortes.

O Mundo Infantil destinado como o seu título deixa perceber à escola primária, foi aprovado pelo Conselho de Instrução Publica do Estado, no anno passado.

O estylo de todo o livro, cuidadosamente traduzido, é leve; as histórias são interessantes, curtas e preenchem os fins a que se destinam: instruir, deleitando a infância (A FEDERAÇÃO, 15/09/1908, p. 2).

O tradutor, João Fernandes de Lima Cortes, cursou a Faculdade de Direito em Recife até o quarto ano, tendo, no entanto, abandonado o curso. Lecionou Latim, Português e Francês em renomados colégios, como o Colégio Pedro II e o Colégio Abílio, ambos no Rio de Janeiro, além de ministrar muitas aulas avulsas e particulares. Exerceu também a função de juiz distrital em Garibaldi, no Rio Grande do Sul, e publicou as seguintes obras: Modo de medir as Odes de Horacio, em 1879; Resumo da Grammatica portuguesa, em 1888; e verteu do latim para o português: Lelio ou Tratado sobre amizade por M. F. Cicero, em 1888, Discurso de Cicero em favor de M. Marcello, em 1905, e, do italiano, Piccolo Mondo, que foi traduzido como Mundo Infantil, em 1907. Não foi localizado o livro e não se tem informação sobre para qual classe havia sido destinada a tradução (GUARANÁ, 1925; O BRASIL,13/03/1909; TAMBARA, 2003).

Com relação à Casa Editora Souza & Barros, fundada em 1895, era de propriedade do tente-coronel Luiz Manoel de Souza Filho e de João Rodrigues de Barros. Os proprietários, além da editora, possuíam uma livraria (não se tem a informação de quando foi inaugurada) que funcionou em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul até 1928, ocasião de encerramento também da casa editora (A FEDERAÇÃO, 11/07/1928).

Em 1938 há uma notícia no jornal A Comarca, de Mogy-Mirin, sobre livros à venda na Casa Cardona. Entre os livros anunciados, estão cartilhas, livros de leitura e séries graduadas que alcançaram expressiva circulação2 nas primeiras décadas do século XX, tais como os de João Köpke (Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Livros de Leitura); Puiggari-Barreto (Primeiro e Segundo Livros de Leitura); Antonio Firmino de Proença (Cartilha Proença; Primeiro Livro de Leitura e Leitura para Principiante); Thomaz Galhardo (Cartilha da Infância e Terceiro Livro de Leitura); Erasmo Braga ( Primeiro, Segundo, Terceiro Livros de Leitura); Mariano de Oliveira (Páginas Infantis, Nova Cartilha ); Rita M. Barreto (Coração de crianças, Leituras preparatórias, Primeiro, Segundo e Terceiro Livros de Leitura). Ao lado desses renomados livros, aparecem Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni com duas indicações, na primeira constando apenas Piccolo Mondo, e a segunda com a informação de que é o Segundo Livro de Leitura) (A COMARCA, 28/07/1938).

O livro não foi localizado, o que não nos permite afirmar se a edição era em italiano, ou se a opção editorial tenha sido a de abandonar a versão Mundo Infantil, e conservar o título em italiano e o conteúdo traduzido, para, assim, atrelar ao livro o reconhecimento já alcançado na Itália. De toda forma, estar entre importantes livros de leitura, que estiveram sobre as carteiras das crianças brasileiras por décadas, (con)formando o cidadão brasileiro, ensinando a ler e a escrever a partir de um determinado padrão de conduta e de valores é um indício da notoriedade que Piccolo Mondo alcançou.

Na próxima seção será realizado um estudo sobre um dos livros da série publicada pelas autoras, o Sillabario.

Sillabario per la prima classe

O Sillabario tomado como objeto de estudo neste artigo é de 1908. Segue a mesma estrutura visual dos demais livros da série, não apresenta indicação específica se para meninos ou meninas e é composto por 72 páginas, com ilustrações a cada nova lição.

Na capa (ver figura 1) consta o título do livro, os nomes das autoras Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni; a informação de que a publicação está em conformidade com os programas e instruções ministeriais de 29 de janeiro de 1905, exigência imposta às casas editoras pelas circulares ministeriais; logo abaixo a indicação da casa editora, a R. Bemporad & Figli - livreiros e editores, situada em Firenze. Consta na parte superior do título a indicação de 220 mil, o que provavelmente indique o número de exemplares já publicados. Na sequência a página de rosto reitera todos os mesmos elementos e informa que o livro foi aprovado por muitas comissões escolares provinciais (o equivalente a estados).

As informações sobre os exemplares publicados e as diversas aprovações são importantes para a decifração do livro. Tal como afirmou Chartier (1998), “O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação” (p. 8). Essa ordem é bastante evidenciada pelo editor, ao atribuir notoriedade e autoridade às autoras e relevância ao Sillabario por sua expressiva aprovação e circulação.

No verso da página de rosto, aparecem a indicação de 1908 como o ano da publicação e a informação da Tipografia de Vittorio Sieni, localizada em Corso de Tintori, nº 26, Firenze, como o local da impressão do livro.

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, capa).

FIGURA 1 Capa do Sillabario. 

O Sillabario, indicado para ser o primeiro livro da primeira classe do curso elementar, introduz os futuros leitores no mundo letrado por meio da apresentação das vogais, “i, u, e, o, a” e na sequência os encontros vocálicos iniciados com “i” e com “u”. Todas as letras são apresentadas em letra de forma e letra cursiva, conforme se vê na figura 2:

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 4-5).

FIGURA 2 Vogais e encontros vocálicos. 

Na sequência as autoras dedicam atenção à apresentação das consoantes. A sequência apresentada é: n, t, m, r, p, v, d, s, l, b, c, z, f, g, h, q; seguidas pelos encontros consonantais gh, gn, gl. A primeira “lição” é a do “n” contendo a letra a ser ensinada em letra de forma, a sua família silábica em letra de forma e cursiva, palavras com esta letra no início, meio ou fim, sempre em letra de forma, além de algumas pequenas frases, cujas sílabas estão ora separadas, ora unidas. A lição é acompanhada de uma imagem ilustrativa do que é nela apresentado. A escrita de todas as palavras é sempre separada por sílaba, o que nos conduz à hipótese, ainda a ser melhor investigada, de que, ao ler dessa forma pausada, o leitor é conduzido a fazê-lo de forma clara e a pronunciar todas as letras, o que, para o ensino da língua italiana, é bastante importante, sobretudo no caso de letras “dobradas”, como em Anna, ensinado no sillabario como “an na”. Seria, portanto, uma estratégia das autoras e/ou do editor, denominada por Chartier (1996, p. 96) panóplia de narrativas, que funcionaria como “uma maquinaria [que] deverão [sic] produzir efeitos obrigatórios, garantindo boa leitura”.

Um outro destaque da “lição” é para o negrito em várias letras, principalmente, mas não exclusivamente na letra “n” que está sendo ensinada, mas sempre na primeira letra da palavra, conforme se vê na figura 3:

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 6-7).

FIGURA 3 A “lição” do n. 

Nas lições referentes às letras “n” e “q”, a estrutura permanece a mesma, ampliando, no entanto, o tamanho e a quantidade de leitura. Ao que parece, as autoras partem do pressuposto de que, conhecendo mais letras, sílabas e palavras, o repertório das crianças será ampliado, dando-lhes condições de intensificar a dedicação à leitura. Assim, enquanto nas primeiras lições havia de 2 a 4 pequenas frases de uma ou duas linhas, da lição “l” em diante, além de frases, passam a ser apresentadas historietas bem curtas, mas com nexo entre as frases, conforme se vê na figura 4.

Depois da lição do “q”, o Sillabario assume uma estrutura mais semelhante à de um livro de leitura, rareando a apresentação das sílabas e palavras por historietas, mas conservando as ilustrações, conforme se vê na figura 5.

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 22-23).

FIGURA 4 A lição do “l”. 

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 64-65).

FIGURA 5 A lição do “q”. 

Romagnoli e Albertoni (1908) inserem ao longo do Sillabario dez exercícios denominados Esercizi orali e scritti (Exercícios orais e escritos), prescrevendo desta forma, mesmo sem apresentar um manual aos professores, o modo como eles deveriam conduzir a sua realização. Todos os exercícios apresentam elementos gramaticais a serem ensinados, tais como masculino e feminino, singular e plural e os artigos definidos e indefinidos, como se vê na figura 6. Com relação às imagens, cabe indagar: o que representariam para as crianças? Provavelmente muitas desconhecessem, por exemplo, tubarões, cisnes e garças, mas, ao que parece, a preocupação das autoras se assentava na questão gramatical do uso adequado do singular e do plural, em detrimento de um eventual distanciamento do universo de conhecimento concreto das crianças.

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 53).

FIGURA 6 Exercícios orais e escritos. 

Ao tomar o Sillabario como fonte, é possível uma aproximação com os princípios metodológicos presentes em suas páginas. Em uma primeira leitura se poderia supor uma adesão aos métodos sintéticos, que vão das partes para o todo, ao se levar em consideração o ensino da letra, da sílaba, da palavra. Recorre-se à Frade (2005, p. 22) para a definição do método:

[...] nos métodos sintéticos, temos a eleição de princípios organizativos diferenciados, que privilegiam as correspondências fonográficas. Essa tendência compreende o método alfabético, que toma como unidade a letra; o método fônico, que toma como unidade o fonema; o método silábico, que toma como unidade um segmento fonológico mais facilmente pronunciável, que é a sílaba. A disputa sobre qual unidade de análise a ser considerada - a letra, o fonema ou a sílaba -, é que deu o tom das diferenciações em torno das correspondências fonográficas. Para esse conjunto de métodos denominados sintéticos, propõe-se um distanciamento da situação de uso e do significado, para a promoção de estratégias de análise do sistema de escrita.

Dentre os métodos sintéticos, o mais antigo, amplamente utilizado em países da Europa e no Brasil até o início do século XX, é o método alfabético, que consiste em apresentar partes mínimas da escrita, as letras do alfabeto, que, ao se juntarem umas às outras, formavam as sílabas que dariam origem às palavras. Segundo Frade (2005) “os aprendizes, primeiro, deveriam decorar o alfabeto, letra por letra, para encontrar as partes que formariam a sílaba ou outro segmento da palavra” (FRADE, 2005, p. 23) e somente depois de um tempo é que viriam a entender que essas sílabas poderiam se transformar em palavra. Outra característica bastante utilizada era o procedimento de soletração, que gerava exaustivos exercícios de “cantilenas”, ou seja, cantorias com os nomes das letras e suas combinações, e o treino repetitivo com possíveis combinações de letras em silabários. O livro escrito por Romagnoli e Albertoni, embora parta das letras, delas avança rapidamente para sílabas, palavras e frases. Do que é possível apreender, sem um manual ou orientações aos professores, não é a valorização da memorização do alfabeto, que, aliás, não é ensinado em sua sequência; também não é a utilização de cantilenas de junção de letras em sílabas e encontros silábicos e vocálicos, que são pouco explorados no livro.

Aproximadamente na metade do Sillabario é apresentada uma tabela de página inteira com a sequência das letras do alfabeto, o que difere da estrutura adotada ao longo do livro. Compõe-se de seis colunas, assim distribuídas: as quatro primeiras em letra de forma, sendo a inicial com os sons das letras; a segunda com as letras minúsculas e a terceira com as letras maiúsculas; a quarta coluna com nomes próprios iniciados com essas letras. As duas últimas colunas, em letra cursiva, a quinta coluna com as letras maiúsculas e a última coluna com nomes de cidades italianas que iniciam com essa letra, conforme se vê na figura 7.

FONTE: Romagnoli e Albertoni (1908, p. 45).

FIGURA 7 Tabela de sons, letras e palavras. 

Embora essa tabela nos remeta ao outro método sintético denominado fônico, “cujo princípio é de que é preciso ensinar as relações entre sons e letras, para que se relacione a palavra falada com a escrita” (FRADE, 2005, p. 25), tornando o som a unidade mínima de análise, reitero que, pela ausência de orientações aos professores sobre o Sillabario, o que por certo limita a compreensão acerca dos protocolos impostos para a sua adoção, é possível afirmar que a proposta das autoras não parece ter sido pautada no ensino dos sons. Uma hipótese é de que essa tabela tenha sido inserida como um exercício para o treino dos sons, ao mesmo tempo que uma oportunidade de aprendizagem do uso das letras minúsculas e maiúsculas, do nome próprio e da própria sequência do alfabeto.

Um outro método de marcha sintética é o da silabação, em que “a principal unidade a ser analisada pelos alunos é a sílaba” (FRADE, 2005, p. 27). A respeito desse método, Frade (2005) afirma que os métodos que seguem a marcha sintética, isto é, os que partem das partes para o todo, muitas vezes “tendem a priorizar apenas a decodificação, ou seja, a análise fonológica, com pouca ênfase no sentido dos textos e no uso social da escrita” (p. 30), o que não parece ser o caso do Sillabario, conforme será discutido abaixo.

Enfim, o Sillabario apresenta algumas características do método sintético, ainda que valorize as frases e as pequenas historietas. Este artigo não tem por objetivo classificar o método adotado, inclusive porque tal análise requer ampliar questões que não cabem dentro do que se propôs aqui, como, por exemplo, investigar em profundidade o caráter político da alfabetização, o seu contexto de aplicação, a escolha do universo vocabular, dentre entre outras questões que dão ao método um significado muito mais amplo, que extrapola a escolha por um ou outro princípio.

Considerando que “a leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num espaço, relação consigo e com os outros” (CHARTIER, 1998, p. 16-7), o estudo do Sillabario permite compreender como uma realidade é construída e pensada a partir das representações sociais determinadas pelos interesses dos grupos que as criam e que, portanto, não são neutras, mas, ao contrário, são conduzidas por estratégias que visam legitimar seus discursos. Chartier (1994, p. 104) as define como um conjunto de “[...] representações coletivas que incorporam nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e apreciação a partir dos quais estes classificam, julgam e agem”.

Romagnoli e Albertoni ensinam a ler e escrever por meio de letras, sílabas, palavras, mas também por pequenas frases e historietas, o que evidencia com bastante clareza as expectativas depositadas nas crianças. Ao analisá-las se sobressai a temática do trabalho. Todos trabalham, adultos e crianças, como se lê no pequeno texto: “Somos muitos na família: pai, mãe e cinco filhos. O pai trabalha como carpinteiro e a mãe tece as roupas. Ainda somos pequenos, não podemos trabalhar, mas cuidamos das roupas que nossa mãe faz, para que não se deteriorem em pouco tempo” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 55).

É recorrente a presença de crianças que trabalham para contribuir nas tarefas da estrutura familiar, com um senso de responsabilidade que praticamente as impulsiona ao trabalho: “Adele é uma viúva pobre e Laura é uma de suas sobrinhas - Adele trabalhava de manhã à noite - agora Adele está doente e Laura tem que trabalhar muito” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 22).

Trabalhar é apresentado como a grande expectativa da vida, ou seja, vive-se para trabalhar, muito e sempre: “Beniamino está acostumado a trabalhar de manhã à noite” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 23); “agora meus pais trabalham de manhã à noite - um dia eu vou trabalhar no lugar deles” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 35).

As crianças desempenham também trabalhos que são apresentados como pessoais e compatíveis com a infância, invariavelmente relacionados às demandas da casa ou a saberes manuais, como é o caso de Pierina: “[...] tem dez anos e costura muito bem - amanhã será o dia Natalício de uma de suas tias e Pierina lhe dará um trabalhinho feito por ela” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 42); de Clara: “como o papai vai ficar feliz quando vir a camisa pronta! foi a primeira vez que Clara fez um trabalho difícil sozinha - teve que desfazer muitas vezes, mas à força de refletir e tentar ela conseguiu “ (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 66); e de Eugênia, que “[...] ama flores - guarda angélicas, cravos, camélias, violetas, rosas, tulipas, rosas e ervas aromáticas em vasos e canteiros - Eugenia cuida de suas flores e as dá aos seus queridos - Eugenia tem um alma delicada e boa” (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 44). Eugênia é uma dentre muitas crianças que além de trabalhadoras apresentam virtudes, como ser delicada, generosa, obediente, diligente, resiliente etc.:

Nina e Luisa são irmãs. A Nina ainda tem pouca idade, mas muito juízo. Quando a mãe veste a bebê, Nina lhe entrega os sapatos ou o vestido - quando a mãe tem que ficar na cozinha, Nina cuida de Luisa, diverte-a e a mantém longe de qualquer perigo. Nina já sabe tirar o pó dos móveis mais baixos e sabe usar sua vassoura. Que mulherzinha! (ROMAGNOLI; ALBERTONI, 1908, p. 60-61).

Para compreender o lugar que o trabalho e os valores morais ocupam no Sillabario, recorre-se a Chiosso (2011) em seu livro Alfabeti d’Italia; la lotta contro l’ignoranza nell’Italia Unita (Alfabetizados da Itália; a luta contra a ignorância na Itália Unificada). Segundo Chiosso, (2011) o protótipo de livro de leitura que circulou na Península em parte dos séculos XIX e XX nasceu com a publicação do livro Giannetto3, de Luigi Alessandro Parravicini, pedagogista, diretor escolar em Como e Venezia, vencedor do prêmio de obra original para o exercício da leitura e instrução moral proposto pela Sociedade de Firenze, no ano de 1835, para a difusão do método de ensino recíproco. O modelo construído a partir do Giannetto circulou por muito tempo nos livros destinados à infância e teve por objetivo.

A formação de um aluno consciente dos deveres, respeitoso e obediente, amante do estudo, consciente do bem e do mal, capaz de autocontrole do corpo, dos gestos, das palavras, decente e limpo, desejoso de melhorar a si mesmo e sua própria condição de vida (CHIOSSO, 2011, p. 301).

Esses mesmos princípios se encontram no Sillabario com a presença do que Chiosso (2011) denominou de “força plasmadora da moral civil” e a “importância do trabalho concebido como a chave de acesso para se merecer a vida e melhorar as próprias condições” (CHIOSSO, 2011, p. 302). As frases e pequenas historietas podem então ser compreendidas como “[...] instrumentos diretos de condicionamento ou modelação, de adaptação do indivíduo a esses modos de comportamento, que a estrutura e a situação da sociedade onde vive tornam necessários” (ELIAS, 1994, p. 95). Dessa forma, muito provavelmente as autoras intentavam substituir comportamentos usuais e compartilhados, por novos; aqueles se tornam errados, condenáveis, incivilizados e insuportáveis; esses passam a ser esperados e necessários, por serem corretos, adequados e considerados civilizados. Tomando de empréstimo de Elias (1994), os comportamentos a serem abandonados equivaleriam a “[...] um padrão de relações humanas e uma estrutura de sentimento” (ELIAS, 1994, p. 80); ao passo que os novos comportamentos a ser adquiridos corresponderiam a um outro padrão de relações, de sentimento e de estrutura cognitiva.

Nesse processo de construção de civilidade, a obediência deve ser aprendida e apreendida através do autocontrole, que disciplina a vontade. Leão (2007, p. 64) esclarece que o próprio ato de ler pode ser considerado “[...] um exercício permanente de autocontrole”. Nesse sentido, aprender a ler as letras, as sílabas, as palavras, as frases e as historietas do Sillabario se inscreve em um determinado aprendizado social, o de aprender a dominar suas emoções.

Considerações finais

Os livros de leitura Piccolo Mondo, letture per le scuole elementari que foram distribuídos às escolas italianas no Brasil eram livros recém-publicados na Itália. Constavam de Circular Ministerial que autorizava o uso nas escolas da Península, foram aprovados para adoção em várias regiões da Itália no mesmo período em que foram enviados ao Brasil, para distribuição pelo Consulado às escolas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Juiz de Fora. Embora ainda não se saiba como foi elaborada essa seleção, quais os critérios adotados, como se dava a relação entre o Ministério das Relações Exteriores e as casas editoras, pode-se afirmar com segurança que o livro adotado do lado de cá do Atlântico era o mesmo autorizado para ser adotado do lado de lá do Oceano.

Das frases e historietas de Piccolo Mondo emergem regras de condutas individuais e coletivas consideradas à época os pilares de uma sociedade ‘moderna’, portanto as autoras pretenderam, em vez de descrever a sociedade, transformá-la. Nesse sentido, a visão de infância e de crianças é idílica, de uma criança obediente, generosa, resiliente e muito laboriosa, revelando mais a imagem que se desejava do que a verdadeira imagem das crianças.

Aprendia-se a ler lendo um determinado padrão de conduta, por meio da disciplinarização da alma e do coração das crianças, procurando ensinar a todos um código de civilidade, por meio da coerção do corpo e da imposição de normas de comportamento sociável. Os livros tinham por finalidade contribuir para que a escola levasse ao termo e ao cabo o importante projeto que a ela foi atribuído, afinal era preciso inventar o italiano na Península e fora dela.

REFERÊNCIAS

A COMARCA, de Mogy- Mirin, 28/07/1938. [ Links ]

A FEDERAÇÃO, do Rio Grande do Sul, 11/07/1928. [ Links ]

A FEDERAÇÃO, do Rio Grande do Sul, 15/09/1908. [ Links ]

BARAUSSE, Alberto. Il libro per la scuola dall’unità al fascismo: la normativa sui libri di testo dalla legge Casati alla Riforma Gentile (1861- 1922). Macerata: Alfabetica Edizioni, 2008. (Fonti e documenti 2). [ Links ]

BARAUSSE, Alberto. Escolarização étnica italiana e cultura escolar em São Paulo: as iniciativas de Gaetano Nesi e Gemma Manetti pela infância escolar italiana entre o final do século XIX e o início do século XX. Revista Inter Ação, v. 46, n. 2, p. 422-440, 2021. Disponível em: https://revistas.ufg.br/interacao/article/view/67954. Acesso em 09 mar. 2023. [ Links ]

BARAUSSE, Alberto. Livros didáticos e italianidade no Brasil nos anos 1920-1930. In: LUCHESE, Terciane Ângela (Org.). Escolarização, culturas e instituições: escolas étnicas italianas em terras brasileiras. Caxias do Sul: Educs, 2018. p. 29-74. [ Links ]

BARAUSSE, Alberto. Os livros escolares como instrumentos para a promoção da identidade nacional italiana no Brasil durante os primeiros anos do fascismo (1922-1925). História da. Educação, v. 20, n. 49, p. 81-94, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/heduc/a/C6MKG7LSKkVzKjhNNrLBfWm/?lang=pt. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

CHARTIER, Roger (Org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. [ Links ]

CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, v. 7, n. 13, p. 97-113, 1994. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1973. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. 2. ed. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1998. [ Links ]

CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do antigo regime. São Paulo: UNESP, 2004. [ Links ]

CHIOSSO, Giorgio. Alfabeti d’Italia: la lotta contro l’ignoranza nell’Italia unita. Torino: Società Editrice Internazionale, 2011. [ Links ]

CHOPPIN, Allain. O historiador e o livro escolar. História da Educação, v. 6, n. 11, p. 5-24, 2002. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/asphe/article/view/30596. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

ELIAS, Norbert. Escritos e ensaios. 1. Estado, processo, opinião pública. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. [ Links ]

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. [ Links ]

FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de fazer de professores. Belo Horizonte: Centro de alfabetização, leitura e escrita - Ceale: FAE/ UFMG, 2005. [ Links ]

GALFRÉ, Monica. Il regime degli editori: libri, scuola e fascismo. Roma: Editori Laterza, 2005. [ Links ]

GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-bibliográfico sergipano. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1925. [ Links ]

LEÃO, Andrea Borges. Norbert Elias & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. [ Links ]

LUCHESE, Terciane Ângela. “Libriccini com amore per l’infanzia”: Silabários escritos e impressos no Brasil para as escolas étnico-italianas (1906-1907). In: LUCHESE, Terciane Ângela et al (Orgs.). Migrações e história da educação: saberes, práticas e instituições, um olhar transnacional. Caxias do Sul: Educs, 2021. p.307-336. [ Links ]

LUCHESE, Terciane Ângela. Da Itália ao Brasil: Indícios da Produção, Circulação e Consumo de Livros de Leitura (1875-1945). História da Educação, v. 21, n. 51, p. 123-142, 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/68984. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

LUCHESE, Terciane Ângela. ‘E não nos deixeis cair em tentação’: livros de leitura religiosa do governo fascista para as escolas italianas no Brasil (anos 20 e 30 do século XX). Cadernos de História da Educação, v. 18, n. 2, p. 368-385, 2019. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/che/article/view/50289. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

LUCHESE, Terciane Ângela. ‘Quando il Mondo era Roma’: livros escolares para fascistizar os italianos no exterior, o caso brasileiro (1922-1938). Cadernos de História da Educação, v. 21, p. 1-17, 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/362500697_’Quando_il_Mondo_era_Roma’_livros_escolares_para_fascistizar_os_italianos_no_exterior_o_caso_brasileiro_1922-1938. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

MORTATTTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização: 1876-1994. São Paulo: Editora da UNESP, 2000. [ Links ]

O BRASIL, de Caxias, Rio Grande do Sul, 13/03/1909. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. Italianizar os brasileirinhos, paulistanizar os italianinhos: um estudo sobre os livros de leitura que circularam nas escolas em São Paulo no início do século XX. In: Castro, C. A.; Castellanos, S. L.V. (Orgs.). História da escola: métodos, disciplinas, currículos e espaços de leitura. São Luís: EDFUMA, 2018. p. 100-125. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. Livros de leitura e a construção da identidade nacional de crianças italianas e descendentes (São Paulo no início do século XX). Acta Scientiarum. Education v. 41, n. 1, p. 1-13, 2019. Disponível em: https://www.redalyc.org/journal/3033/303360435041/html/. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. Livros escolares para a escola elementar italiana nos dois lados do Atlântico: o estudo do Libro d’appunti de Giovanni Soli (entre o final do século XIX e início do século XX). Cadernos de História da Educação, v. 21, p. 1-25, 2022. Disponível em: file:///C:/Users/claud/Downloads/120a+-+Claudia+Panizollo+-+Portugues+-+DIAGRAMADO%20(2).pdf. Acesso em: 9 mar. 2023. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. Piccolo mondo letture per le scuole elementari: mutualismo e educação em uma escola étnica italiana em São Paulo In: MAZZA, D.; NORÕES, K. (Orgs.). Educação e migrações internas e internacionais: um diálogo necessário. Jundiaí: Paco Editorial, 2016. p. 80-100. [ Links ]

PANIZZOLO, Claudia. Scuole italiane all’estero: um estudo sobre os livros de leitura que circularam nas escolas étnico-italianas no Brasil (fins do século XIX e início do século XX). In: LUCHESE, Terciane Ângela et al. (Orgs.). Migrações e história da educação: saberes, práticas e instituições, um olhar transnacional. Caxias do Sul: Educs, 2021. p. 281-306. [ Links ]

PARRAVICINI, Luigi Alessandro. Giannetto. Napoli: Gaetano Nobile Libraio- Tipografo, 1841. [ Links ]

PFROMM NETO, Samuel; ROSAMILHA, Nelson; DIB, Claudio Zaki. O livro na educação. Rio de Janeiro: Primor/INL, 1974. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari. Compimento al Sillabario, per la I classe. Firenze: Bemporad, 1907. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari. Sillabario, per la I classe. Firenze : Bemporad, 1908. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari, per la II classe. Firenze: Bemporad, 1901. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari, per la III classe. Firenze: Bemporad, 1906. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari, per la IV classe. Firenze: Bemporad, 1910. [ Links ]

ROMAGNOLI, Fanny, ALBERTONI, Silvia. Piccolo mondo, letture per le scuole elementari, per la IV classe. Firenze: Bemporad, 1912. [ Links ]

TAMBARA, Elomar. Bosquejo de um ostensor do repertório de textos escolares utilizados no ensino primário e secundário no século XIX no Brasil. Pelotas: Seiva Publicações, 2003. [ Links ]

TEIXEIRA, Mariana Eliane. Ecos do nacionalismo: os sentidos da italianidade em Juiz de Fora (1878-1922). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUBD-ABYDZB. Acesso em: 11 maio 2023. [ Links ]

TEIXEIRA, Mariana Eliane. Literatura e nacionalismo italiano nas escolas de imigrantes em Juiz de Fora - MG. In: ANHEZINI, Karina (Org.). Anais da XXI Semana de História: usos públicos e políticos da história ao papel do historiador. Franca: UNESP- FCHS, p. 233-250, 2018. [ Links ]

1As traduções foram realizadas por mim.

2A respeito da notoriedade desses autores de livros de leitura consultar Mortatti (2000) e Pfromm Neto et al. (1974).

3A este respeito consultar o próprio livro de Parravicini (1841) com os acréscimos das advertências de Filippo Piccinini e de Cosimo Ridolfi.

Recebido: 15 de Agosto de 2022; Aceito: 21 de Março de 2023

Translated by Osny Batista da Silva Junior, e-mail: osnybatista@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons