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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 14-Nov-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.87370 

Dossiê - Histórias da Educação na Pan-Amazônia: Sociedades, Culturas, Tempos e Espaços

Trajetórias e memórias de pioneiros da Amazônia setentrional: singularidades históricas, formação e bases do sistema educacional amapaense

Trajectories and memories of pioneers of the northern Amazon: historical singularities, formation and bases of the Amapaense educational system

Adalberto Carvalho Ribeiro* 
http://orcid.org/0000-0002-5039-7179

*Universidade Federal do Amapá, UNIFAP, Macapá, Amapá, Brasil. E-mail: adalb.cr@gmail.com


RESUMO

O trabalho revela, por meio da metodologia história de vida e das memórias das personagens entrevistadas, que trajetórias estão vinculadas a contextos sociais. Neste caso, os processos socializadores de quatro professores e quatro professoras aposentados são marcados pela história e pela formação, em suas bases, do sistema educacional amapaense localizado na Amazônia setentrional brasileira, assim como por percursos individuais singulares, mas que evidenciam o contexto da região a partir de meados do século XX.

Palavras-chave: Trajetórias de Vida; Memórias; Amazônia Setentrional; Educação Amapaense

ABSTRACT

The work reveals, through the life story methodology and the memories of the interviewed characters, which trajectories are linked to social contexts. In this case, the socializing processes of four retired teachers and four teachers are marked by the history and formation, in its bases, of the Amapá educational system located in the northern Brazilian Amazon, as well as by singular individual paths, but that evidence the context of the region from the mid-twentieth century.

Keywords: Life trajectories; Memoirs; Northern Amazon; Amapá education

RESUMEN

El trabajo revela, por medio de la metodología Historia de Vida y de las memorias de los personajes entrevistados, qué trayectorias están vinculadas a contextos sociales. En este caso, los procesos socializadores de cuatro profesores y cuatro profesoras jubilados están marcados por la historia y la formación, en sus bases, del sistema educativo de Amapá, localizado en la Amazonia septentrional brasileña. También son marcados por recorridos individuales singulares que evidencian el contexto de la región a partir de mediados del siglo XX.

Palabras-clave: Trayectorias de Vida; Memorias; Amazonia Septentrional; Educación de Amapá

Introdução

Este trabalho analisa trajetórias de vida de personagens considerados por nós como “pioneiros da educação amapaense”. Esse é o ponto de distinção. A análise foca no acesso que eles tiveram aos recursos sociais, considerando seus processos socializadores, mas destacando aspectos históricos da socialização escolar e profissional desses profissionais, associando-os com fenômenos típicos da Amazônia, assim como ao contexto social da época em que se implementou o sistema de educação amapaense marcado pelas medidas administrativas no âmbito do então Território Federal do Amapá (TFA), criado no ano de 1943. Além disso, buscamos compreender as heranças culturais e familiares e como essas podem ter influenciado as trajetórias dessas personagens.

O trabalho se ancora fortemente em base conceitual da sociologia da educação e dialoga de forma privilegiada com a literatura de Pierre Bourdieu.

Ao optar por analisar trajetórias individuais e associá-las a contextos sociais, buscamos compreender sobre o acesso aos importantes capitais econômico, cultural e social, os quais denominamos também de recursos sociais. Por outro lado, muitos vestígios das heranças culturais dos sujeitos aqui pesquisados serão revelados porque podem explicar as razões pelas quais percorreram as trajetórias apresentadas e analisadas, e não outras.

A análise das trajetórias das oito personagens revela, como se verifica na seção 3, como histórias de vidas individuais estão associadas, indiscutivelmente, a contextos sociais. Dadas as singularidades de cada trajetória e o fato de as personagens, aposentados por ocasião da pesquisa, terem sido marcadas profissionalmente pelo magistério durante suas carreiras profissionais, as conexões de suas experiências com a construção do sistema educacional amapaense aparecerão de forma bastante evidente.

Este trabalho está dividido em quatro seções, incluindo esta parte introdutória. Na seção próxima, apresentamos a abordagem metodológica e nossas escolhas quanto ao método e à técnica, assim como os critérios para se chegar aos sujeitos da pesquisa. Na seção três, realizamos o esforço conceitual para sustentar o quadro empírico encontrado quando inferimos sobre as conexões entre as histórias de vida com o contexto da Amazônia, entre as trajetórias profissionais com o sistema educacional amapaense. Por fim, à guisa de conclusão, procuramos sintetizar o trabalho reiterando os achados revelados nas seções anteriores.

Metodologia

A abordagem da pesquisa é eminentemente qualitativa e se utiliza do método História de Vida, por meio das Memórias de oito personagens considerados por nós com a distinta característica de pioneiros da educação amapaense. São quatro homens e quatro mulheres que, após contatos realizados, dispuseram-se às entrevistas. A pesquisa foi protocolada junto à Plataforma Brasil e autorizada sob o parecer de nº 1.569.870. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado, e lido, para cada um dos sujeitos entrevistados e lhes explicadas as razões formais daquela ação.

As personagens entrevistadas para a pesquisa são professores e professoras aposentados que estavam com idade acima dos 75 anos, todos eles, por ocasião das visitas. Como sabemos, seriam necessárias formas de abordagem mais específicas para chegar até os sujeitos com os perfis desejados: gente com carreira no magistério encerrada e que tinham sido testemunhas de muitas implementações de políticas educacionais locais, utilizado-se do sistema como alunos e depois contribuído com ele na condição de profissionais da educação. Esse era o perfil de pessoas que procurávamos.

O critério de escolha foi meramente aleatório e atendeu somente ao fato de que os escolhidos deveriam ser pessoas notáveis em suas trajetórias profissionais porque contribuíram para a formação do sistema educacional amapaense. Portanto, a quantidade em número de oito só faz sentido pela ótica da abordagem qualitativa ― uma vez que pretendemos valorizar os aspectos subjetivos de uma pesquisa científica ― porque não observa qualquer relação entre amostra e universo, por exemplo.

Contudo, utilizamos como estratégia a rede de amizade (nosso capital social) e, por meio de colegas e amigos, filhos e/ou parentes das personagens escolhidas (realizamos uma lista prévia de 20 pessoas), chegamos a eles e estabelecemos relações de confiança e reciprocidade.

Assim, as entrevistas puderam ocorrer em clima de agradável conversa informal ainda que um roteiro orientasse as perguntas que estavam divididas em duas partes: 1) uma primeira que buscou saber sobre as heranças culturais, além dos processos socializadores primários; 2) outra, sobre as trajetórias escolares e profissionais.

Como sabemos, a investigação qualitativa trabalha com valores, crenças, hábitos, atitudes, representações, opiniões e busca aprofundar fatos e processos particulares e específicos ocorridos com indivíduos e grupos. A abordagem qualitativa é empregada, portanto, para a compreensão de fenômenos caracterizados por muita complexidade interna. A imersão na esfera da subjetividade dos sujeitos enraizados no contexto social é condição essencial para o seu desenvolvimento.

Para Chizotti (1991), entre as características da abordagem qualitativa encontram-se a imersão do pesquisador nas circunstâncias e no contexto da pesquisa, a saber: 1) o mergulho nos sentidos e emoções, 2) o reconhecimento dos atores sociais como sujeitos que produzem conhecimentos e práticas, 3) os resultados como fruto de um trabalho coletivo resultante da dinâmica entre pesquisador e pesquisado.

No método em si, foi por intermédio da História de Vida, portanto, que pudemos captar o que acontece na intersecção do individual com o social, assim como encontrar elementos do presente com vocações passadas. Em outros termos, a vida olhada de forma retrospectiva facultou uma visão total de seu conjunto, podendo tornar possível uma compreensão mais aprofundada do momento passado com o presente.

Por outro lado, a Memória, neste caso usada como técnica de pesquisa, não é muito fácil de ser trabalhada. Ela exigiu sensibilidade e paciência por parte do pesquisador na interação com o investigado, além de requerer atenção quanto aos discursos em que se entrelaçam presente e passado, bem como às eventuais presenças de juízos de valor.

Os sujeitos entrevistados autorizaram a utilização das informações e de suas identidades para fins de pesquisa científica de modo que seus nomes e idades estão revelados e publicados neste trabalho. São eles1.

  • - Gentila Anselmo Nobre nasceu no dia 21 de julho de 1921 na cidade de Parintins-AM.

  • - Maria Helena Solange Amoras Santos nasceu na localidade do Amapá, no ano de 1930, localidade, à época, vinculada ao estado do Pará.

  • - Alba Cavalcante da Silva nasceu às margens do Rio Juruá, no seringal do seu pai, no dia 23 de abril de 1923, no estado do Amazonas.

  • - Ana Alves de Oliveira nasceu no dia 29 de novembro de 1934, em Calçoene, localidade, à época, vinculada ao estado do Pará.

  • - Antônio Munhoz Lopes nasceu na cidade de Belém, capital do estado do Pará, no dia 10 de fevereiro de 1932.

  • - Nestlerino dos Santos Valente nasceu em 1941, no município de Mazagão, localidade, à época, vinculada ao estado do Pará.

  • - Carlos Nilson Costa nasceu no município de Monte Alegre, em 1941, no estado do Pará.

  • - Guilherme Jarbas Barbosa de Santana nasceu em 1941, no município de Oiapoque, localidade, à época, vinculada ao estado do Pará.

Cruzando trajetórias, processos socializadores e contextos sociais: memórias da formação e bases do sistema educacional do estado do Amapá

Nesta seção, refletimos sobre as trajetórias de vida das personagens por nós entrevistadas. A análise foca no acesso que elas tiveram aos recursos sociais, considerando seus processos socializadores, mas destacando aspectos históricos da socialização escolar e profissional referentes a eles, e associando-os com fenômenos típicos da Amazônia, assim como com contexto social em que se implementou o sistema de educação amapaense. Além disso, buscamos compreender as heranças culturais e familiares porque sempre deixam influências nos percursos dos indivíduos.

Por recursos sociais compreendemos os “estoques” de capital econômico, cultural e social, e queremos saber como foram acessados tais recursos sem perder de vista o contexto social em que nasceram nossos entrevistados (na primeira metade do século XX, na Amazônia brasileira).

Quando falamos em contexto e herança em que nasceram os indivíduos, não podemos perder de vista suas origens sociais:

Inúmeras investigações, realizadas em diferentes países, demonstram a relação entre origem social e participação no sistema escolar. Em seu conjunto. Essas investigações evidenciam a influência das variáveis socioeconômicas e socioculturais nos processos de escolarização ou, mais precisamente, na constituição de percursos escolares caracterizados pelo sucesso ou pelo fracasso (NOGUEIRA; FORTES, 2004, p. 57).

As trajetórias de vida das personagens aqui pesquisadas revelam-se vinculadas à formação do sistema educacional amapaense. Adotamos a noção de trajetória conforme Queiroz (1993): seu significado deve considerar o uso que outras áreas do conhecimento e até mesmo o senso comum faz dela; a noção de trajetória é utilizada nas Ciências Exatas significando, basicamente, a linha ou o caminho percorrido por um objeto móvel determinado, de um ponto a outro. Na linguagem cotidiana, o termo trajetória é utilizado, fundamentalmente, no sentido de caminho, percurso ou trajeto.

A noção específica de trajetória escolar, com o pressuposto mencionado, tem a ver com os percursos diferenciados que os indivíduos ou grupos de indivíduos realizam no interior dos sistemas de ensino. Esses percursos podem ser caracterizados como mais ou menos bem-sucedidos (NOGUEIRA; FORTES, 2004).

Por analogia, a noção de trajetória profissional incorpora também percursos em que se disputam os recursos sociais (os capitais: econômico, cultural e social) disponíveis na sociedade. Nos casos aqui abordados, as trajetórias das oito personagens foram plenamente exitosas. Suas disposições individuais foram muito importantes e explicam o sucesso de cada um, mas também o acesso que tiveram ao capital cultural (particularmente ao capital escolar) e ao capital social, (este referente às conexões nos relacionamentos pessoais proporcionados por suas famílias e/ou pelas redes de contatos que eles passaram a acessar desde cedo).

Para melhor compreensão da categoria trajetórias, temos que considerar a noção de socialização em seus aspectos primários (os primeiros anos de processos interacionais no âmbito da família) e secundários (processos interacionais extrafamiliares como interações escolares e comunitárias de modo geral).

Tais noções (trajetórias e socialização) são importantes porque repercutem nas formas de acesso aos capitais: tudo isso formando uma amálgama dialética que configura e reconfigura as disposições individuais dos indivíduos, assim como se desdobram em seus habitus de classe e individuais.

Pelos termos conceituais utilizados anteriormente, verifica-se que estamos nos respaldando, de modo relevante, em categorias analíticas de Pierre Bourdieu (1983; 1989; 1994; 2001; 2004) para verificar, entre outros fenômenos, heranças culturais e trajetórias que se associam com a formação do sistema educacional amapaense. Sendo os recursos sociais formas de capitais, vejamos noções conceituais importantes para compreensão das trajetórias aqui analisadas.

Bourdieu (2001) introduziu o conceito de capital na análise social para se referir não apenas à sua forma econômica, mas sobretudo à sua forma cultural e social. O termo “capital”, prioritariamente da área econômica, foi utilizado por ele no estudo das desigualdades escolares como referência das vantagens culturais e sociais que indivíduos ou famílias mobilizam e, geralmente, os conduzem à um nível socioeconômico mais elevado (BONAMINO et al., 2010, p. 488).

Bourdieu (1989), em outro aspecto, compreende o espaço social como um campo de lutas no qual indivíduos e grupos elaboram estratégias que permitem, ou não, manter ou melhorar sua posição social. Essas estratégias estão relacionadas com os diferentes tipos de capitais acessados, mais ou menos, pelos indivíduos durante as suas trajetórias.

Por essas lentes, percebe-se que os recursos são disputados pelos indivíduos e que, na competição, aqueles mais dotados de capitais tendem a levar vantagem. Não obstante, para Bourdieu (1989), a educação escolar, uma das importantes formas de capital cultural, é um recurso tão útil como o capital econômico na determinação e reprodução das posições sociais. O pesquisador francês desvendou a seletividade educacional que elimina e marginaliza os alunos oriundos das classes populares, enquanto privilegia os mais dotados de capital econômico, cultural e social, o que contribui para a reprodução, de geração em geração, dos capitais acumulados. A teoria de Bourdieu, assim, contraria a convicção, até então amplamente aceita, de que existiria igualdade de oportunidades no sistema educacional.

Nesta seção, da forma como fazemos o enquadramento teórico analítico, estamos considerando para a análise das trajetórias que as formas solidárias e de resistência que existem no meio social não estão fora dos espaços de lutas. O mundo não é só competição! As entrevistas deixaram claros muitos fatos permeados pela solidariedade e afetividade. O contexto comunitário da época, vindo pelas memórias dos pioneiros, por exemplo, prova que muitas ações solidárias e coletivas foram experimentadas e praticadas pelas personagens entrevistadas.

Todavia, na sociedade capitalista em que nos encontramos, as pessoas, de certa forma, são obrigadas a disputar os recursos que pretendem obter, acumular ou preservar. Nesse sentido, é que pelas lentes de Bourdieu (1989), de fato, revelamos trajetórias exitosas, de sucesso, de pioneiros da educação amapaense calcadas em disposições e lutas particulares, disputas e competições em busca de uma melhor posição social conquistada por cada um deles e delas. Assim, para efeitos das interpretações do êxito de cada trajetória das nossas personagens, as noções de capital cultural e de trajetória escolar são centrais.

Citando Bourdieu (2004apudRIBEIRO, 2017), o capital cultural existe em três estados: Incorporado, Objetivado, Institucionalizado, este último se expressando sob a forma dos diplomas ― a chancela legitimada pela Escola capaz de distinguir as pessoas entre si.

O capital cultural está vinculado à teoria do habitus, este construído ao longo da vida do indivíduo. Para Bourdieu (1983, p. 105), habitus é “[...] aquilo que se adquiriu, mas que se encarnou no corpo de forma durável [mas não imutável] sob a forma de disposições permanentes”. O habitus seria ainda algo que se inscreve na pessoa quase geneticamente, assumindo a aparência de algo inato ou mesmo natural.

Assim, os agentes sociais são dotados de habitus que estão inscritos em seus corpos pelas experiências passadas formadas por variados esquemas de percepção, apreciação e ação que permitem operar atos de conhecimento prático fundados no mapeamento e no reconhecimento de estímulos condicionais e convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir (BOURDIEU, 2001).

Bourdieu (1994) destaca a dimensão do passado para explicar a teoria do habitus. Segundo ele, a ação de estruturas sociais, tais como a família, desde a primeira infância (a socialização primária), leva a criança, por meio de um aprendizado quase natural, à incorporação dos habitus primários. Assim, no convívio familiar, as crianças vão construindo seus gostos mais íntimos, seus trejeitos, suas aspirações, sua autoimagem, sua autoestima, enfim, vão incorporando os habitus primários que estarão no princípio das experiências escolares. Essas, se incorporadas, mesmo que parcialmente, constituirão os habitus secundários, os quais estarão no princípio da percepção e da apreciação das demais experiências do indivíduo, incluindo a capacitação e o desempenho profissional.

Bourdieu afirma:

[...]em primeiro lugar, que a ação das estruturas sociais sobre o comportamento individual se dá preponderantemente de dentro para fora e não o inverso. A partir de sua formação inicial em um ambiente social e familiar que corresponde a uma posição específica na estrutura social, os indivíduos incorporariam um conjunto de disposições para a ação típica dessa posição (um habitus familiar ou de classe) e que passaria a conduzi-los ao longo do tempo e nos mais variados ambientes de ação (BORDIEU, 1994 apudNOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002, p. 20).

O conceito de habitus, e a própria teoria de Bourdieu, foram passados em revista por Lahire (2013, p. 17), que o aprofundou e deu melhor compreensão à noção trazendo uma nova discussão também para a categoria “disposições”.

Lahire (2002) vai refinando o conceito ainda não acabado, formulado por Bourdieu:

Toda disposição tem uma gênese em que se pode tentar situar (instancia da socialização e momento da socialização) ou reconstruir (modalidades específicas de socialização). A sociologia disposicional está ligada fundamentalmente a uma sociologia da educação, no sentido amplo, a uma sociologia da socialização. O uso do vocabulário disposicional pressupõe que alguns pesquisadores dediquem uma parte de seus trabalhos ao estudo da constituição (e das condições sociais de produção) das disposições (incorporação). A noção de disposição supõe que seja possível observar uma série de comportamentos, atitudes e práticas que seja coerente; ela proíbe pensar na possibilidade de deduzir uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento. A ocorrência única, ocasional, de um comportamento não permite, em nenhum caso, que se fale de disposição para agir, sentir ou pensar dessa ou daquela maneira. A noção de disposição contém, portanto, a ideia de recorrência, de repetição relativa, de série ou de classe de acontecimentos, de práticas (LAHIRE, 2002, p. 27).

As disposições seriam justamente aquilo que foi incorporado a partir do processo de socialização e que, supostamente, passou a orientar o indivíduo em suas ações subsequentes. Correspondendo a experiências de socialização mais ou menos precoces, intensas, regulares e diversificadas, os indivíduos incorporariam um conjunto de disposições mais ou menos fortes, duradouras, transferíveis e coerentes entre si (NOGUEIRA, 2013).

Para Lahire (2002, p. 27):

A noção de disposição supõe que seja possível observar uma série de comportamentos, atitudes e práticas que seja coerente; ela proíbe pensar na possibilidade de deduzir uma disposição a partir do registro ou da observação de apenas um acontecimento.

Segundo o referido autor, as disposições podem ser ativadas e desativadas. Esse movimento de ativar e desativar disposições pode ser concebido como o produto da interação entre (relações de) forças internas e externas. Disposições, assim, são inclinações, propensões a agir, mas pode ser para além disso.

Em outro giro, na explicitação de categorias conceituais que nos ajudam a entender as trajetórias das personagens aqui tratadas, temos a noção “capital social”. Trata-se de categoria estudada por teóricos, dentre outros, Putnam (1993) e Coleman (1988), mas também por Pierre Bourdieu que tem a sua perspectiva própria do conceito. O sociólogo francês (2004) buscou compreender como pessoas inseridas estavelmente em uma rede de relações sociais podem de alguma forma se beneficiar com a relação ou como a rede pode gerar manifestações positivas para os seus integrantes.

Capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento, ou seja, o conceito consiste em um conjunto de recursos individuais que possibilita a formação de redes de ajuda mútua que quando há mobilização dessa os indivíduos ou as classes envolvidas são beneficiadas ou podem cooperar com benefícios alheios aos seus (BOURDIEU, 2004, p. 67).

Vemos, assim, que na concepção de capital social sustentada por Bourdieu (1980), destacam-se três aspectos: 1) os elementos constitutivos, 2) os benefícios obtidos pelos indivíduos mediante sua participação em grupos ou redes sociais e 3) as formas de reprodução desse tipo de capital.

Portanto, são dois os elementos que constituem o capital social: 1) as redes de relações sociais, que permitem aos indivíduos terem acesso aos recursos dos membros do grupo ou da rede; 2) e a quantidade e a qualidade de recursos do grupo.

Com efeito, as relações estabelecidas entre os indivíduos pertencentes a um determinado grupo não advêm apenas do compartilhamento de relações objetivas ou de proximidade no mesmo espaço econômico e social. Essas relações fundam-se também nas trocas materiais e simbólicas, cuja instauração e perpetuação supõem o reconhecimento dessa proximidade pelos agentes, isto é, essas redes sociais (família, clube, escola, comunidade etc.) dão ao indivíduo o sentimento de pertencimento a um determinado grupo. Já o segundo elemento diz respeito ao volume de capital social de um agente individual que depende tanto da extensão da rede de relações que ele pode efetivamente mobilizar como do volume das diferentes formas de capital (econômico, cultural ou simbólico) que é propriedade exclusiva de cada um dos agentes a quem o indivíduo está ligado (BONAMINO et al., 2010).

Portanto, esses recursos, capital social e capital cultural, podem contar positivamente, sobremaneira, na trajetória das pessoas. Sabemos, por exemplo, que presença do capital cultural no âmbito das famílias tem um desdobramento que extrapola a esfera doméstica e pode repercutir para a vida toda positivamente sendo fundamental para o sucesso escolar do indivíduo.

Especificamente, no quadro empírico da pesquisa, das oito personagens entrevistadas suas memórias revelaram contextos sociais em que suas famílias dispunham, naquela época, de uma potente rede de relacionamentos, assim como os pais evidenciaram o gosto pelos processos educacionais. Outras questões contextuais também ficaram bem evidentes.

Questões de gênero e sobre como as mulheres, mais ainda naquela época, meados do século XX, precisavam lutar com a mesma galhardia, e até com mais vigor que a mulheres lutam hoje, para obterem lugar de destaque.

Questões de classe foram verificadas porque, a maioria dos entrevistados ― à exceção de Antônio Munhoz ― são herdeiros do Campesinato Caboclo2 da Amazônia. Também se verifica nas histórias deles a presença da vida comunitária porque as relações sociais estavam sobremaneira marcadas pelos laços de vizinhança, solidariedade e coletividade.

Das memórias de Munhoz, da criança citadina que cresceu em Belém, a exuberante capital da primeira metade do século XX, pode se destacar

[...] aí eu fui para o Colégio Nazaré dos Irmãos Maristas fazer o Ginásio, porque ela [a mãe] queria, porque a farda era bonita. [...] De elite, até hoje o Colégio Nazaré dos Irmãos Maristas é de elite. [...] Era longe sim, nós morávamos em Sombras, era muito longe. [...] Para mim era um sonho a viagem porque eu ia de zepelim [ônibus da época em que ia para a escola], era lindo o zepelim, era uma festa para as crianças.

Munhoz, particularmente, tem trajetória diferenciada a partir dos “gostos culturais” que suas disposições o permitiram experimentar: ele foi desde o início de sua vida influenciado a valorizar o que se pode chamar de cultura legítima3. Dentre todos, Munhoz é o único herdeiro de casal da típica classe média citadina porque nasceu na capital do estado do Pará, em Belém, e sendo filho de um farmacêutico formado pela Faculdade de Medicina pôde, desde tenra idade, acessar os melhores recursos que desaguariam na sua brilhante carreira e no seu “destino natural” que seria a de um profissional coberto de sucesso.

Assim, é que sobre o acesso aos recursos sociais, e questões de classe, não se pode dizer, para o contexto da época, que aquelas crianças nasceram completamente sem as condições socioeconômicas estruturais e materiais de existência. À exceção de Guilherme Jarbas, não se identifica claramente, nas histórias de vida dos demais, circunstâncias típicas de famílias populares de baixo poder aquisitivo.

No caso de Carlos Nilson, em que a família migrou de Monte Alegre para Macapá, e nesta cidade iniciaram do “zero”, seu pai tornou-se servidor público do TFA na função de investigador da polícia civil. Contudo, antes a família fora pecuarista e fazendeira no município de Monte Alegre e mantinha boas relações com a família do Capitão Janary Nunes, o então Governador do TFA.

Carlos Nilson, em Macapá, se tornaria um dos mais importantes técnicos em assuntos educacionais, especializado em planejamento, tendo ocupado um dos cargos mais relevantes dos sistemas de ensino estadual e municipal: o de Secretário de Educação. De suas memórias brota um importante projeto educacional que daria oportunidade aos jovens amapaenses de cursarem o ensino superior em Macapá sem precisarem mais se deslocar para a capital do estado do Pará.

Então nós trouxemos o Núcleo, fizemos o Núcleo de Educação com a Universidade do Pará. Terminado o Núcleo, todo mundo esperando uma licenciatura plena [...] Voltei com a Odinéia Figueiredo [gestora na UFPA], e ela disse: “É na hora”. Ela é uma pessoa de uma visão muito boa, muito centrada. E eu fiz o seguinte: convenci o Alfredo Ramalho a arranjar dinheiro para fazer a licenciatura plena. No momento em que nós estávamos procurando surgiram duas possibilidades. Uma do Projeto Asteca. Tomamos conhecimento do Projeto Asteca, que eu fiz a parceria com João Lourenço e fomos buscar dinheiro para fazer a outra parte do Colégio Amapaense, com o início da construção do Graziela Reis de Souza. Por outro lado, o governo do Amapá estava sendo indenizado pelos royalties [da Hidrelétrica do Paredão] que eram devidos pelo governo federal que tinha arrecadado, mas não tinha feito repasse para o Território. O secretário era o Coronel Ribeiro. Então surgiu a possibilidade e discutindo - acho que eu ainda tenho esses documentos - da possibilidade do curso de licenciatura plena vir. Aferido o assunto a universidade [UFPA] exigiu um local, pra não ficar mais no Barão, na Diocese etc. E surgiu a possibilidade de se construir os blocos [onde hoje é a UNIFAP]. Saiu o dinheiro do Paredão, foram construídos os blocos para a universidade.

O Núcleo de Educação de Macapá (NEM) era vinculado à Universidade Federal do Pará (UFPA), foi instalado em Macapá no ano de 1971 e, mais tarde, daria lugar à Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). O NEM desempenhou importante papel na educação local no período 1971 a 1990. Inicialmente, funcionou no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, depois no prédio da Diocese de Macapá e, mais tarde, ocorreria a construção dos primeiros quatro blocos de sala de aula em local específico (Rodovia JK), futuras instalações da UNIFAP.

As demais personagens, Helena, Alba, Ana, Gentila, Nestlerino ― e, especialmente, Munhoz ― acessaram capital econômico, cultural e social desde muito cedo, o que influenciou positivamente, sobremaneira, em suas trajetórias de vida e escolares e para seus êxitos profissionais.

Helena tinha um pai cuja ocupação econômica era de pequeno agricultor e criador, mas ele tinha bom domínio das letras e da matemática. Para a época, era um doutor com sua 5ª Série do Ensino Primário, como ela própria disse. Fora isso, foi homem de excelente capital social, uma vez que era bem articulado do ponto de vista das relações sociais e se aproveitava muito bem de sua rede de contatos. De suas memórias, como aluna, aos 11 anos de idade, fica claro que estávamos no ápice da Pedagogia Tradicional.

Usava-se! A professora Emília, sabem como ela fazia? Deixa contar essa é muito interessante. A professora Emília usava palmatória também, mas era de uma forma muito interessante, por exemplo, nós tínhamos a tabuada e a sabatina que era no dia de sábado, então, ela dizia: oh! Vocês vão estudar as casas de 2, 3, 4 e 5 e sábado vai ser a sabatina. […] Aí, nós ficávamos em pé, todos assim, os alunos mais ou menos - naquela época já tinha bastante, era mais ou menos uns 15 alunos daquela Série, várias idades - eu, por exemplo, nessa época devia tá com 11 anos, meu irmão tinha 15 na mesma sala e mesma série, aí vamos pra sabatina. Aí 2+3 aí tu 5, 2+8 tu 7, 2+7 ai tu dizia 9: “Bolo nele!” Ela não batia na gente. Quem batia era o colega de classe.

No dia da entrevista, a professora Helena contava com 88 anos de idade e sua vitalidade física, assim como sua perspicácia mental/intelectual, chamaram logo nossa atenção. Ela se mantém bastante ativa intelectualmente, escreve poemas, é autora de livros, tem página no facebook com interações virtuais cotidianas. Hoje, mora na cidade de Belém, estado do Pará, mas sempre visitando a capital Macapá porque tem filhos e filhas, netos, bisnetos, parentes e amigos com quem mantém vínculos familiares e de amizade.

Em relação a Alba, seus pais detinham importantes posses. Seu pai foi dono de seringal no estado do Amazonas e depois se tornou delegado de polícia adquirindo, também, uma grande fazenda. Homem chegado aos livros, com boa rede de relações sociais e contatos com importantes políticos locais.

Sendo uma das personagens migrantes, Alba se casou com um militar e chegou acompanhando-o à Base Área da Aeronáutica localizada no município de Amapá, no então TFA, o casal e a única filha. Todavia, ela se descobrira grávida pela segunda vez, e de meninas gêmeas. A dureza da vida e a saudade de casa a fez pensar em retornar para o seio da família. De suas memórias, brota esse importante evento:

Mas eu não aguentava. Aí eu telefonei e escrevi para o meu pai pedindo para mandar me buscar, mandasse uma passagem para mim, Naná e para as gêmeas. Ele disse: “Minha filha, você se casou por livre e espontânea vontade”. Rapaz! Eu me lembro tão bem da carta. “Minha filha você se casou por livre e espontânea vontade, não foi obrigada em nada, agora você tem que aguentar o marido, por que você não gosta? Por que você quer vir embora? Não! No Brasil, um país analfabeto principalmente no interior, ajude as crianças, você é culta, ensine!”.

Alba se tornaria “professora leiga” (não havia cursado o magistério nível médio ― a escola das “normalistas” ― mas estudou o curso ginasial em importantes escolas na cidade de Manaus-AM) das crianças que moravam na localidade, inclusive se tornou professora de muitos soldados e militares que, naquela ocasião, não eram completamente alfabetizados. No dia da entrevista, Alba contava com 94 anos de idade tendo nos revelado suas memórias em, aproximadamente, 1 hora e 30 minutos sem interrupção (apesar dos nossos cuidados e sugestão para que fizéssemos uma pausa com a qual ela não concordou). Meses depois, a professora Alba Cavalcante viria a falecer.

Por sua vez, a entrevista com a professora Ana Oliveira ocorreu quando ela estava com 83 anos de idade. Filha de comerciantes, desde muito cedo eles se preocuparam com a educação da menina, tanto que a encaminharam para escola de tipo internato na capital do Pará e mais tarde adquiriram casa própria em Belém para que Ana e o irmão pudessem prosseguir nos estudos. Investimentos pesados que determinaram a admissão de Ana como professora do Ensino Primário no TFA tempos depois.

Assim foi que Ana, a altura dos 9 para os 10 anos de idade, estudou no Instituto Travassos, na cidade de Belém, onde ela daria seus primeiros passos com a educação formal, em regime de internato, pois se tratava de uma escola particular. Ali Ana cursou a 1ª e a 2ª Séries do Ensino Primário, lugar em que as crianças ficavam sob a guarda e responsabilidade de três “mestras”, uma delas se chamava Florisbela. Sobre o regime de internato, relembra:

O regime era muito autoritário! Era hora para tudo! Tinha aula de manhã, a tarde era reforço ou davam uma atividade pra gente fazer e a noite a gente se fechava nos quartos cedo também, depois do jantar. Tinha muitos filhos daquele pessoal do Marajó, fazendeiros. Era com meninos e meninas, os meninos ficavam na parte de baixo no quarto deles e nós ficávamos lá em cima. Já as salas de aulas eram mistas.

Quanto aos homens, aquele que mais pode ter sentido as dificuldades do percurso da vida foi Guilherme Jarbas. Nascido no município de Oiapoque, extremo norte do Amapá, perdeu o pai muito cedo, migrou para a cidade de Macapá e sua mãe passou a sustentar os filhos “[...] pedalando em uma máquina de costura”, disse ele. O preço de cuidar de tudo sozinha foi não poder dar toda a atenção aos filhos, de modo que na trajetória de Guilherme aparece a componente comunidade: como ele próprio diz, “[...] quem cuidava da gente era a redondeza”, em especial a igreja católica por meio da Prelazia de Macapá sob a liderança de religiosos como Pe. Vitório Galianni e Pe. Gaetano.

A igreja católica exercia, assim, importante papel educativo, comunitário e, obviamente, religioso e moral no contexto da cidade de Macapá, àquela época, uma pequena cidade da Amazônia cujo sistema educacional formal era praticamente inexistente.

Guilherme relembra em suas memórias e vê como um grande marco da educação local a oferta de cursos pelo Projeto CADES4, assim como os Cursos de Férias promovidos pela Divisão de Educação, e outros cursos de capacitação que formaram muito professores. “Eram leigos porque eles davam aula no interior e não tinha nada de magistério. Eram tempos de construção do Amapá! O Amapá sendo construído!”, disse ele.

Pelas memórias de Guilherme se verifica, por exemplo, a importância da igreja católica à época. Ela articulava junto aos “colégios de padres” de outras unidades da federação, da sua rede de escolas, o deslocamento de jovens amapaenses aos estudos naqueles outros estabelecimentos. Mas, para o interior do TFA não tinha como se manter completamente presente.

As memórias das nossas personagens revelam que a presença da igreja católica nas paragens mais distantes era periódica e sazonal. Mostram, também, que, nos idos da metade do século XX, a presença de igrejas evangélicas ainda era muito pequena. A predominância era do catolicismo. É a partir de 1943, logo que se instituiu o TFA, que muitos esforços governamentais seriam feitos para a institucionalização do sistema de ensino amapaense.

Como se percebe, especificamente quanto ao acesso aos recursos econômicos, a maioria dos entrevistados sofreu poucos constrangimentos sociais. Todavia, o que chama a atenção é o importante acesso ao recurso capital cultural. Os pais das personagens aqui apresentadas eram, todos, pessoas bem instruídas para aqueles padrões sociais, e o que chama atenção, neste caso, é o papel masculino5, do pai provedor da família, mais do que o da mãe, no quesito escolaridade. O pai provedor, na maioria das histórias aqui narradas, era mais letrado se comparado com a esposa, e também aquele que financiava os estudos dos filhos.

Importa dizer que, nas circunstâncias de comunidades amazônicas, localizadas em áreas remotas, em meados do século XX, o fato de haver livros nas casas dessas personagens, isso, por si só, aponta para a existência de um indicador objetivo: o quanto o capital cultural foi uma porta determinante para trajetórias de sucesso dele.

À exceção de Gentila, que teve uma mãe professora e viúva, e de Guilherme, que foi cuidado pela redondeza e pela igreja, nas demais trajetórias a participação do pai foi decisiva para que aquelas crianças estudassem e tivessem um sólido caminho percorrido no sistema educacional. Assim, o capital cultural dos pais foi marcante para as trajetórias escolares daquelas crianças.

Gentila Nobre é outra personagem migrante. Primeiro, do estado do Amazonas para Belém e depois de Belém para o município de Amapá. Quando entrevistada, contava com 96 anos de idade e gozando de plena lucidez. Suas memórias revelam singularidades dos processos de formação da Amazônia a exemplo da entrada de estrangeiros na região.

[...] Eu fui criada com família judia, que era justamente minha mãe de criação, minha tia madrinha. Ela era casada com o Simon Hasan, que era judeu. E eu fiquei ali, desde a idade de três anos na família. E, depois que ela ficou viúva conseguiu vender tudo para pagar as dívidas que tinha em Barreirinha [AM], no comércio. Fomos embora para Belém, eu acompanhei minha mãe de criação.

Em relação a Nestlerino Valente, o economista do grupo, nasceu no município de Mazagão e fez um processo migratório interno se mudando para a capital Macapá. Um dos traços da infância de Nestlerino é o mesmo de tantas crianças da Amazônia.

Foi dentro do rio! Meu pai tinha um comércio que atendia àquela comunidade e adjacências. Ele veio pra Macapá ser comerciante nessa área comercial. Tinha muito sacrifício, então o Governo do Território estava chegando, a prefeitura foi instalada, a capital passou a ser Macapá, ofereceu bons salários e vários comerciantes daquela época viraram funcionários municipais. Eu vim morar próximo ao centro da cidade, mas ali era uma baixada, ali próximo da família La Roque e meu pai já tinha se separado da minha mãe e foi morar em frente ao mercado central. (grifos do autor).

Mais tarde, já formado em economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nestlerino assumiria a direção do Colégio Comercial do Amapá (CCA) uma vez que a legislação educacional prescrevia que a direção deveria ser ocupada por profissional economista ou contador. O diretor nomeado até então (por carência) era funcionário da empresa Indústria e Comércio de Mineração (ICOMI) e não dispunha de tempo para exercer a função.

[...] Eu entrei e ele saiu da direção e ficou só como professor, e eu fiquei dirigindo o Colégio Comercial. Aí minha fama foi crescendo! Naquela época muitos alunos já eram profissionais respeitados como Claudio Nascimento, Clodoaldo Nascimento, e depois já vinha aquela turma de adultos, turma com responsabilidade.

As memórias de Nestlerino ainda revelam que a história do CCA passa pela Prelazia de Macapá porque, antes, funcionou sob a administração dos padres tendo sido o Padre Jorge Basile um dos seus primeiros diretores. Oportunamente, o colégio foi repassado ao Governo do Território Federal. Além de diretor, Nestlerino também exercia a função de professor no CCA e lá ficou por quatro anos, no período de 1969 a 1973.

O sucesso das personagens pesquisadas pode ser explicado, em boa parte, porque eles demonstraram desde cedo o gosto (para utilizar Pierre Bourdieu novamente) pelas letras, assim como revelaram disposições individuais que evidenciam inclinações e compromisso na realização de suas ações:

  1. Gentila, antes de ser nomeada como professora de Ensino Primário, no TFA, lecionou para duas turmas (uma de brasileiros e outra de franceses ― todos garimpeiros), na localidade do Lourenço, área de garimpo, município de Calçoene.

  2. Nestlerino adquiriu o hábito de frequentar, diária e sistematicamente, a biblioteca pública de Macapá.

  3. Ana, quando a família entrou em crise financeira, passou a lecionar aulas particulares para as crianças que moravam na vizinhança de sua residência em Belém.

  4. Guilherme teve como aprendizado a experiência de “locutor de futebol no campinho” da Prelazia de Macapá, o que lhe abriria, no futuro, o caminho decisivo para o magistério e para a Comunicação.

  5. Alba intuiu a presença de uma “escolinha” na Base Aérea do Amapá uma vez que ainda não havia escolas na localidade.

  6. Helena foi certificada pelo curso da CADES e, depois, foi trabalhar na Escola Industrial de Macapá (EIM) como vice-diretora e ali ficou por mais 16 anos. Em 1980, já em uma segunda tentativa, a Secretaria de Educação continuava a solicitar os serviços de Helena que, desta vez, aceitou desenvolver suas atividades profissionais na parte técnica do ensino, no Departamento de Apoio ao Ensino (DAE) onde permaneceu até 1984 quando se aposentou.

  7. Carlos Nilson foi Secretário Municipal de Educação na década de 1990. Seu trabalho seria marcante porque premiado com vários programas implantados e implementados. Pelo menos dois podem ser destacados: o Programa Merenda Regionalizada e o Programa Descentralização Financeira, este mais conhecido como “Caixa Escolar”.

  8. Munhoz, além de professor, enveredou também pelo campo das artes e do teatro se tornando ator além de ter estudado no Ensino Primário e ginasial nas melhores escolas particulares de Belém.

As memórias das oito personagens revelaram, ainda, aspectos antropológicos que acontecem na Amazônia desde há muito tempo:

  1. O processo de formação do indivíduo do Amazonas. Nossas personagens ― à exceção de Munhoz ― são parte da formação de um estrato social muito peculiar conhecido na Amazônia: o campesinato caboclo; o Homem da Amazônia acostumado às viagens em barcos à vela durante dias, o extrativista ribeirinho que produz para a subsistência na agricultura familiar de corte e queima, além de se dedicar à pesca artesanal/manual, à plantação de frutas no quintal, à coleta de sementes na floresta, além da caça a pequenos animais.

  2. São personagens dos diversos tipos de processos migratórios intrarregionais ― Alba, Gentila, Carlos Nilson e Munhoz migraram de outras “paragens” para o TFA. Helena, Guilherme e Nestlerino fizeram processo migratório interno. Ana migrou para estudar em Belém.

  3. Foram contemporâneos de decisões de caráter político institucional, como a criação do TFA no ano de 1943, assim como testemunhas das mais diversas decisões administrativas pelos “governadores tampões”; mais próximo de suas aposentadorias, ou já aposentados, viram o TFA ser transformado em unidade da federação, no estado do Amapá, com a Constituição de 1988.

  4. Essas personagens são agentes históricos do processo de criação das estruturas institucionais do sistema educacional amapaense. Exerceram importantes cargos nas estruturas nascentes, geriram recursos públicos, colaboraram com a formação de programas educacionais locais, foram também os primeiros a abraçarem as oportunidades que as novas estruturas ofereciam. Estiveram dos trê lados do espectro estrutural do sistema educacional amapaense, como alunos, como professores e como gestores.

Enfim, são oito histórias que permitem ao leitor enxergar fenômenos típicos da sociedade amazônica de meados do século XX e décadas seguintes, e que permitem, ainda, perceber a mudança no desenho institucional amapaense até a chegada dos anos 1990; com eles, o surgimento das novas institucionalidades, a exemplo da criação da Universidade Federal do Amapá por meio do Decreto nº 98.977, de 2 de março de 1990.

Enquanto alunos de suas épocas, as narrativas mostraram a prática da Pedagogia Tradicional e muitas de suas características: a disciplina imposta autoritariamente, o caráter elitista, as formas de exclusão social, as relações verticalizadas entre professores e alunos e, por que não dizer, a crença cega de que a Escola era capaz de salvar o indivíduo proporcionando-lhe uma vida segura no futuro. Nas memórias, surgiram as lembranças da palmatória, da rigidez dos professores, da metodologia de aulas quase que exclusivamente expositivas, as provas de avaliação recorrentes, os exercícios de fixação.

No caráter elitista e nas formas de exclusão, tem-se a presença dos Exames de Admissão (uma espécie de vestibular para o aluno chegar ao curso ginasial), uma rede física de escolas quantitativamente insuficiente, dificuldades de famílias pobres economicamente lograrem êxito com os filhos nas escolas, as acentuadas distorções idade-série. Nas relações verticalizadas, o temor reverencial que os alunos sentiam dos professores, dos inspetores escolares etc.

No sistema de avaliação, as memórias trouxeram a prova de “segunda época” para alunos que ficavam reprovados em disciplinas e que deveriam fazer uma única prova escrita no ano seguinte: de todos os assuntos que foram ensinados durante o ano anterior.

Não obstante, as histórias dessas personagens demonstram, também, os variados esforços do Ministério da Educação e da Divisão de Educação do TFA diante de uma demanda populacional cada vez mais crescente para a implementação da rede de ensino local: desde a construção física dos prédios para novas escolas, passando pelo atendimento à legislação específica com a organização da burocracia de ensino, até aos diversos programas de capacitação e cursos de formação de professores para que se resolvesse um dos problemas estruturais do TFA que era a larga presença de profissionais da educação “leigos”, portanto, sem formação específica de magistério.

Os programas de capacitação e formação de professores chamaram a atenção nas memórias reveladas:

  1. Os Cursos de Férias obrigatoriamente ofertados, anualmente, nos meses de férias aos professores leigos, em especial aos que moravam no interior do TFA.

  2. As capacitações em Supervisão Escolar e Orientação Escolar cursadas em outras unidades da federação.

  3. O advento da Escola Normal de formação ao magistério, que mais tarde seria o Instituto de Educação do Território Federal do Amapá (IETA). Helena, Ana, Alba e Gentila, todas foram alunas da Escola Normal do TFA. Munhoz foi professor nesse educandário.

  4. Os Cursos de Metodologias e de Legislação do Ensino que iniciaram nos finais da década de 1960, seguindo por toda a década de 1970. Por essa época, Ana se tornara formadora de professores porque foi das personagens a realizar cursos especializados em outras unidades da federação brasileira.

  5. Convênios para a aplicação de provas dos exames vestibulares com a UFPA e com o Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará (CEFET/PA) que passaram a se realizar na cidade de Macapá. Carlos Nilson atuou diretamente para a realização dessa importante política educacional local.

  6. A criação e implementação de um Núcleo de Educação em Macapá, na década de 1970, para a oferta de licenciaturas curtas, vinculado a UFPA. Guilherme Jarbas e Carlos Nilson trabalharam para que o TFA recebesse um Campus Universitário.

Em suas trajetórias de vida, todas as nossas personagens femininas trabalharam no interior do TFA e foram alunas, por vários anos, nos Cursos de Férias: Helena, Alba, Gentila e Ana. Tempos depois, já professoras, seriam chamadas ao exercício de diversas funções de gestão no âmbito da Divisão de Educação do TFA. Se desdobraram como gestoras e professoras de novos programas de capacitação de professores, na direção de unidades escolares, como chefes de departamentos e com funções na parte técnica pedagógica do sistema educacional.

Alguns fatos educacionais curiosos aconteceram dadas as condições de falta de profissionais capacitados na rede de ensino local: por exemplo, Carlos Nilson foi professor de Desenho Industrial de sua própria turma no Ensino Ginasial.

Por dentro do sistema educacional, acontecimentos marcavam a história da educação amapaense e das personagens masculinas: os grêmios estudantis, com destaque para o Grêmio Rui Barbosa ― do Colégio Amapaense ― que movimentou a cidade por vários anos com suas festas cívicas e com o concurso de oratória.

As quatro personagens masculinas estiveram vinculadas ao Grêmio Rui Barbosa. Munhoz, já como o conhecido professor Munhoz, diretor e professor do Colégio Amapaense ― onde se encontravam os filhos da elite amapaense ― fazia parte do júri que escolhia os melhores oradores do concurso. Ao mesmo tempo, Munhoz preparava os oradores para as apresentações em público.

Carlos Nilson, Nestlerino e Guilherme Jarbas foram contemporâneos nos trabalhos do Grêmio Rui Barbosa. Exerceram todos os cargos de diretoria do Grêmio e participavam dos concursos de oratória.

Nestlerino, leitor voraz e assíduo frequentador da biblioteca pública, era campeão recorrente do concurso: um dos melhores oradores daquela época e um dos mais aplicados alunos.

Carlos Nilson e Guilherme, por outro lado, ainda fizeram parte da diretoria da União dos Estudantes Amapaenses Secundaristas (UECSA) cujo objetivo era a reunião de estudantes para defesa de direitos.

Carlos Nilson encabeçou a primeira manifestação de estudantes ocorrida no Amapá pelos idos da década de 1960, em pleno regime de ditadura militar. Carlos Nilson, mais tarde, já nos anos 1970, viria a compor por muitos anos a equipe de planejamento estratégico da Divisão de Educação do TFA elaborando projetos para captação de recursos junto ao MEC o que fez estender a rede local de ensino para os quatro cantos do TFA, inclusive para o interior.

Guilherme e Nestlerino, estiveram à frente das direções do CCA e ficaram como assessores de governadores do TFA por muitos anos.

Considerações finais

Foi, especialmente, na literatura decorrente da obra de Pierre Bourdieu que nos apoiamos para compreender fenômenos referentes a trajetórias de vida associados a contextos sociais. Trabalhamos com a categoria recursos sociais destacando, particularmente, os capitais cultural e social. Secundariamente, nos valemos das noções conceituais habitus e disposições que complementaram nossas ferramentas teóricas para a compreensão do quadro empírico.

As evidências encontradas, por meio da análise de conteúdo das memórias de nossas personagens pesquisadas, revelaram percursos importantes de suas trajetórias de vida. O contexto social onde ocorreram a grande maioria dos fatos narrados é o de meados do século XX e décadas seguintes no então Território Federal do Amapá, parte setentrional da Amazônia brasileira.

Corroborou-se, neste trabalho, que trajetórias individuais de vida podem ser associadas a contextos sociais. Os achados revelaram evidências dos traços culturais da Amazônia do século passado, dos movimentos migratórios comuns na região desde tempos atrás, de heranças culturais da formação do Homem da Amazônia.

Dentre os achados mais reveladores, está a importância que os pais deram aos processos escolares dos filhos fazendo incrementar seus recursos sociais, em especial o capital cultural e escolar daquelas crianças. Não é comum, para o contexto da época, haver livros nas casas de crianças com as características dos personagens por nós entrevistados (à exceção de Munhoz).

Utilizando as memórias como técnica de pesquisa, por meio de entrevistas, o trabalho comprovou que tanto os percursos escolares como os percursos profissionais dos sujeitos investigados estão diretamente relacionados e associados à formação do sistema educacional amapaense.

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1Todas as entrevistas foram realizadas antes da pandemia, portanto, anterior a 2020. Infelizmente, das 8 (oito) personagens 4 (quatro) delas vieram a falecer: Guilherme Jarbas e Ana Alves em decorrência da COVID-19; Alba Cavalcante e Antônio Munhoz de outras comorbidades. Os demais estão vivos.

2Sistema que emergiu a partir da metade do século XVIII que se tornaria a base produtiva fundamental da colônia brasileira na região Norte. A partir da segunda metade do século XIX permite a montagem da estrutura dos seringais na Amazônia. Quando este desmoronou já no início do século XX permitiu o crescimento de um forte campesinato extrativista no Acre e no estado do Pará se espraiando por toda a região.

3Por cultura legítima entendemos os diversos códigos culturais aprovados pela sua distinção e de “bom gosto” na sociedade em que vivemos facilitando as interações de todo e qualquer indivíduo ao acessar o sistema escolar, por exemplo, quando o mesmo manifesta subjetiva e objetivamente o domínio da diversidades desses códigos, seja eles nas vestimentas, nos gestos de rotina, nos gostos sociais diversificados, e sobretudo, no domínio dos códigos linguísticos quando o indivíduo é detentor de repertório altamente valorizado pelo sistema formal de ensino.

4Projeto CADES - Campanha de Aperfeiçoamento do Ensino Secundário - do Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) cujo objetivo era aperfeiçoar profissionais do magistério. Os docentes do CADES eram professores de Belém, Ceará, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro que se dirigiam para Macapá: profissionais que realizavam o aperfeiçoamento dos professores locais. Ficavam durante aproximadamente um mês na cidade executando o curso em período intensivo. O projeto foi executado no TFA nos anos de 1964 e 1965. A certificação ocorria após a realização de exames finais aplicados pela UFPA.

5É interessante o fato de, à época, os homens serem mais instruídos que as mulheres. Certamente, isto revela o peso da sociedade patriarcal e a falta de direitos das mulheres que, sequer, podiam estudar.

Recebido: 27 de Agosto de 2022; Aceito: 30 de Julho de 2023

Traducido y revisado por Simone Martins de Oliveira. E-mail: simoneol09@hotmail.com

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