SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39Trajectories and memories of pioneers of the northern Amazon: historical singularities, formation and bases of the Amapaense educational systemLife History and Feminisms in the Amazon: a case study author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Educar em Revista

Print version ISSN 0104-4060On-line version ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub Nov 14, 2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.85642 

Dossiê - Histórias da Educação na Pan-Amazônia: Sociedades, Culturas, Tempos e Espaços

O cotidiano escolar na história de Vilhena-RO durante o processo de colonização da Amazônia no século XX

The school life in the history of Vilhena-RO during the process of colonization of the Amazon in the twentieth century

*Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: aranteshelen@hotmail.com

**Universidade Federal de Rondônia, UNIR, Porto Velho, Rondônia, Brasil. E-mail: josiane.brolo@unir.br

***Universidade do Estado de Mato Grosso, UNEMAT, Cáceres, Mato Grosso, Brasil. E-mail: alceuzoia@gmail.com


RESUMO

Este trabalho discute sobre o cotidiano escolar da Escola Wilson Camargo, localizada na região Norte do Brasil, no município de Vilhena, Rondônia, tendo como delimitação temporal os anos de 1960 a 1980. Trata-se de uma pesquisa historiográfica cujo recorte temporal refere-se ao processo inicial de colonização na região amazônica, ocasionado pelas estratégias políticas no Brasil, durante a Ditadura Militar, no século XX. Para tal, foram analisadas fontes encontradas na Escola investigada, assim como foram entrevistados ex-alunos e professores. Propõe-se uma interpretação da história da educação e da cultura escolar produzida no cotidiano da escola com vistas a historicizar as práticas fabricadas pelos sujeitos que compunham o espaço escolar.

Palavras-chave: História da Educação; Cultura Escolar; Práticas Escolares; Colonização; Amazônia

ABSTRACT

This paper discusses the daily school of the Wilson Camargo School, located in the northern region of Brazil, in Vilhena, Rondonia, among the years 1960 to 1980 as temporal delimitation. This is historiographical research, whose temporal cut-out refers to the initial process of colonization in the Amazon region, caused by political strategies in Brazil during the Military Dictatorship in the 20th century. For this, sources found in the investigated school were analyzed, as well as former students and teachers were interviewed. It proposes an interpretation of the history of education and school culture produced in the daily life of the school with a view to historicizing the practices manufactured by the subjects who made up the school space.

Keywords: History of Education; School Culture; School Practices; Colonization; Amazon

RESUMEN

Este trabajo discute sobre el cotidiano escolar de la Escuela Wilson Camargo, localizada en la región Norte de Brasil, en el municipio de Vilhena, Rondônia, teniendo como delimitación temporal los años 1960 a 1980. Se trata de una investigación historiográfica, cuyo recorte temporal se refiere al proceso inicial de colonización en la región amazónica, ocasionado por las estrategias políticas en Brasil durante la Dictadura Militar, en el siglo XX. Para ello, se analizaron fuentes encontradas en la Escuela investigada, así como fueron entrevistados exalumnos y profesores. Se propone una interpretación de la historia de la educación y de la cultura escolar producida en el cotidiano de la escuela con vistas a poner en perspectiva histórica las prácticas fabricadas por los sujetos que componían el espacio escolar.

Palabras clave: Historia de la Educación; Cultura Escolar; Prácticas Escolares; Colonización; Amazonia

Introdução

Este trabalho destina-se a compreender a cultura escolar a partir de práticas escolares da Escola Wilson Camargo, primeira escola do município de Vilhena, Rondônia, em especial, sobre as atividades desenvolvidas na escola no período de 1960 a 1980, momento inicial de formação da cidade e acentuado processo de migração na região.

Deste modo, pretendemos adentrar a “caixa preta” da escola, como enfatiza Benito (2017), para produzir uma escrita de como a escola desenvolvia suas atividades cotidianas em tal momento histórico, destacando os métodos, os costumes e as práticas que compunham o interior da instituição escolar.

Propomo-nos a refletir a partir da pesquisa histórica tendo como fontes documentos e narrativas de memórias dos sujeitos que compunham o espaço da primeira escola de Vilhena. Nesse sentido, as principais inferências teóricas que subsidiam esta pesquisa são: Certeau (2012), Benito (2017), Julia (2001) e Vidal (2005).

Para a execução da pesquisa, buscamos a princípio fontes documentais nos arquivos da instituição de ensino, como: fotos, ofícios, livros de matrícula, provas, documentos legislativos, assim como a construção de narrativas de ex-professores e de ex-alunos da escola1 que compunham o cotidiano em estudo.

É nesse sentido que intentamos descrever as práticas que envolveram o espaço educacional constituído na escola Wilson Camargo, entendendo que é a partir dessas que se tece a vida cotidiana da escola (BENITO, 2017), que se fazem e perfazem as culturas escolares.

A escola produz elementos culturais que permitem sua identificação e diferenciação, ao que chamamos de cultura escolar. Assim, compreendemos com Julia (2001, p. 10) que:

[...] poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normas que definem conhecimento a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas em levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os professores primários e os demais professores.

Para Julia (2001), a cultura escolar é carregada de normas que vão se constituindo na prática e, consequentemente, constitui os sujeitos escolarizados. Vidal (2005) chama a atenção para a discussão de Julia, que, sensibilizado, convida os historiadores da educação a se interrogarem sobre as práticas cotidianas, sobre o funcionamento interno da escola a partir de todos os vestígios históricos, não apenas privilegiando os documentos oficiais.

Assim, entende-se que o trato com as fontes exige o desempenho de apreciar as surpresas e as petrificações que os arquivos podem provocar. De acordo com Vidal (JULIA, 2001apudVIDAL, 2005, p. 25), Julia aponta para a “[...] concepção de cultura escolar como inventiva”. Vidal ainda externa a necessidade de olhar para as distintas formas de pensar a escola, os saberes e como a escola se relacionava e se organizava na história. Com isso, sugere-se a problematização do pensar a educação na perspectiva da pluralidade, lugar de encontros e desencontros. Espaços onde os sujeitos se entrelaçam na formação de quem aprende, mas também de quem ensina.

É nessa trilha conectada a mediadores culturais que buscamos responder o seguinte questionamento: quais são as práticas culturais que instituíam e ocorriam no espaço da primeira escola de Vilhena, Rondônia, no período de 1960 a 1980, momento marcado pelos processos políticos de migração e colonização da Amazônia no século XX?

Portanto, a proposta de pesquisa se consolida para reinterpretar as práticas que perpassam o cotidiano escolar na história de uma cidade que se constituía em meio à floresta amazônica; assim, organizamos o texto em dois momentos. Na primeira parte, abordaremos a questão organizacional da educação em Vilhena-RO, procurando contextualizar o locus da pesquisa e a delimitação temporal histórica a nível nacional. Em seguida, discutiremos a construção de algumas práticas escolares desenvolvidas no interior da primeira escola de Vilhena, a Escola Wilson Camargo.

Para fundamentar o uso da memória, sinalizamos um dos modos de análise em Certeau (2012, p. 153) quando esse ensina que a memória não tem um lugar próprio, é uma arte que se move tranquilamente em um “[...] espaço de não lugar [...]”. Certeau considera que a memória não é imóvel, ela se revela no momento oportuno, e a temporalidade de duração se torna menos precisa à conjuntura. A memória, de acordo com o autor, circula como “metamorfoseadora”, não é articuladora, ou seja, as memórias vão sendo construídas sem a necessidade de manipulação. Essas, ao longo dos momentos, são tocadas e rememoradas podendo ser interrompidas; desse modo, o tempo não é exterior a nenhum de nós, mas se faz vivo e pulsante cada vez que o presente toca o passado (ROHDEN, 2019), cada vez que as memórias se movem em um não lugar (CERTEAU, 2012), “[...] de uma metis que, aproveitando as ocasiões, não cessa de restaurar nos lugares onde os poderes distribuem a insólita pertinência do tempo” (CERTEAU, 2012, p. 165).

Diante disso, ao rememorar, pode-se perceber na própria fala daquele que narra que as memórias se aproveitam da ocasião, são modificadas ao narrar, se movem, se deslocam, ou seja, ocupam um “não lugar” como explicado por Certeau (2012). Dessa maneira, vamos nos aproximando das memórias entrelaçadas à história, no tempo presente, ou seja, quando o passado toca o tempo do agora, não como tal ou qual aconteceu determinada ação, como reiterado por Farge (2017). Contudo, propensos a produzir e provocar uma leitura do tempo, nesse caso, do cotidiano escolar de Vilhena-RO em seu passado, reinterpretado de forma inversa e ocupando um espaço móvel, da arte de provocar deslocamentos em um não lugar que brilha no tempo (CERTEAU, 2012).

Eis o desafio desta pesquisa que se justifica na tessitura da história da educação e dos sentidos que decorrem no cotidiano das ações educativas da escola em estudo. Quiçá não chegaremos a respostas conclusas, entretanto, as fontes irão nos guiar para propormos um diálogo sobre os questionamentos expostos.

Contextualização do lócus da pesquisa: a cidade de Vilhena-RO e a organização inicial da educação

Em meados de 1960, Vilhena era um vilarejo que teve como marco a crescente migração impulsionada pela política de integração nacional proposta desde a década de 1940 por Getúlio Vargas com a chamada campanha Marcha para Oeste2. Com a abertura da rodovia BR-029, atual BR-364, houve um maior incentivo estratégico-político para a ocupação das terras no Norte do Brasil. Nesse contexto, as peças publicitárias foram um dos fatores predominantes no acelerado processo de colonização não só de Vilhena, mas também na criação de outros municípios de Rondônia pertencentes à Amazônia brasileira (BRASIL, 2000).

Segundo Gomes (2012), as muitas propagandas alimentavam os sonhos da terra própria, apontando um caminho para melhores condições de criação dos filhos dos migrantes em Rondônia. Brondizio e Siqueira (1992, p. 187) evidenciam que o slogan utilizado no período era de que a Amazônia seria uma “[...] terra sem gente para gente sem terra”. Essa propaganda estava diretamente vinculada a um discurso ideológico político da época para convencer as pessoas de outras regiões do país a migrarem para a Amazônia. Havia estratégias e políticas criadas pelo Governo do Regime Militar que fomentavam tal persuasão na tentativa de povoar para expandir a economia do País. Entretanto, como apresenta Roquette-Pinto (1996), havia diversas etnias de povos indígenas que viviam na região amazônica, ou seja, a terra já era habitada pelos povos originários, o que não é evidenciado pela História Oficial.

Com a colonização desenfreada, os espaços não estavam preparados para receber um contingente maior de pessoas e, consequentemente, as necessidades sociais começaram a ter destaque nas relações cotidianas das famílias migrantes. Aos poucos, o cenário amazônico foi se transformando em área urbana e, em um processo violento de ocupação demográfica, o que era mata, floresta se transformava em uma vila com pouca infraestrutura para sobrevivência e com inúmeras dificuldades.

Devido ao grande contingente de famílias já alocadas em Vilhena, na década de 1960, o Governo do então Território de Rondônia, por meio do Decreto nº 353, de 10 de agosto de 1960, criou a Escola Isolada de Vilhena, sendo essa a primeira escola da cidade. Entretanto, a escola iniciou seus trabalhos somente em meados de 1962 devido à falta de profissionais para a atuação na docência (MARTINS, 2017).

Nesse contexto, a escola, segundo a narrativa da professora Bitello (2017), começou a funcionar com muitas precariedades: “Mas, funcionou e funciona até hoje”. Cabe destacar que as atividades escolares foram também inicialmente organizadas na casa da professora Noeme Barros Pereira. “A aula antes de chegar na escola foi na casa de uma professora. Era uma casa de madeirinha bem rústica e simples. Depois que veio a criação da escolinha. E aos poucos foi ficando grande” (BITELLO, 2017). Posteriormente, o funcionamento da escola se deu nas estruturas da Força Aérea Brasileira (FAB) até meados de 1970, sob a responsabilidade da mesma professora, mantida pelo Território Federal de Rondônia (BRASIL, 2000).

Sabemos que os espaços mais afastados dos grandes centros urbanos em desenvolvimento, no Brasil, enfrentaram muitas problemáticas com relação a processos educacionais entre as décadas de 1960 a 1990 (CAMBI, 1999). A exemplo disso, as cidades da região colonizada no século XX se constituíram sem qualquer panejamento material, físico ou pedagógico.

Dessa maneira, formava-se uma sociedade que dependia de estrutura básica para as famílias que passaram a habitar demograficamente a cidade de Vilhena e toda a região amazônica. Contudo, isso acarretou consequências desastrosas não só nas políticas de desenvolvimento social e ambiental, mas também na educação. Vale mencionar, aqui, o conceito de Certeau (2012) sobre reinvenção, uma vez que, mesmo diante de todas as diversidades e conflitos que os migrantes trabalhadores passaram, esses reinventaram modos de viver com os produtos que lhe eram fabricados, de maneira a enfrentar as dificuldades sociais e, assim, reinventar o cotidiano (CERTEAU, 2012).

Neste cenário, no ano de 1970, a escola começa a ser estruturada na região central da cidade, espaço de permanência até os dias de hoje. A escola não tinha muita coisa e até mesmo a água que chegava até ela era escassa. A água vinha com o auxílio de um caminhão que abastecia alguns comércios da cidade e o que sobrava abastecia a caixa d’água da escola, com destino à manutenção básica da escola e ao saciamento da sede dos alunos. Assim, as dificuldades estavam relacionadas às mais diversas naturezas; além da pedagógica, as de cunho material e humano eram também obstáculos que precisavam ser superados; no entanto, toda logística se tornava difícil pois a cidade estava à aproximadamente 700 quilômetros da capital Porto Velho. Sendo o trajeto não pavimentado, era impedido o translado em época de estação chuvosa.

Contudo, para desenvolver as atividades educacionais, a estrutura física da escola estava organizada conforme mostra a Tabela 1.

TABELA 1 ESTRUTURA FÍSICA E ORGANIZAÇÃO DA ESCOLA WILSON CAMARGO NO ANO DE 1962 

Salas de aula 2
Cozinha 1
Banheiro 1
Despensa 1
Secretaria 1
Bancos de madeira 4
Mesas de madeira 2
Fichas de matrícula 20
Quadro negro 2
Filtro de barro 1

FONTE: Martins (2017).

Entretanto, mesmo com todas as carências e dificuldades, a partir das narrativas construídas, é possível perceber que a escola assumia, na localidade que se formava, uma respeitada posição; muitos procuravam-na para arrumar emprego, para promover festividades, para o atendimento médico voluntário, entre outros motivos. A escola ocupava um lugar de destaque social entre seus moradores:

A escola era o centro de todas as coisas. Tudo que as famílias precisavam, corriam para a escola, que era sinal de muito respeito. Nós professores éramos muito respeitados. Parecia que a escola tinha que resolver todas as coisas, a gente se unia e tentava fazer o que dava conta. Nosso trabalho tinha cooperação (MASSARONE, 2017).

Percebe-se como a escola era de extrema serventia social para a comunidade, e havia uma atmosfera de reciprocidade entre a sociedade que se formava e os funcionários da escola. A escola não exercia somente o ofício institucional e formativo da comunidade, mas também atendia às necessidades pessoais da população por meio da cooperação. De acordo com as contribuições de Brasil (2000, p. 113):

[...] os primeiros anos de ensino eram destinados a preocupação de alfabetizar os alunos. O ensino era limitado a instruções nível primário, funcionando no estilo multisseriado, devido ao número reduzido de alunos, falta de recursos humanos e materiais. A pequena escola, porém, soube suprir e cumprir suas funções sociais naquele momento inicial.

No ano de 1966, com um número considerável de crianças, o espaço físico da escola se tornou pequeno e os responsáveis pela instituição, junto ao Departamento de Educação do Território de Rondônia, alugaram uma casa ao lado desse lugar onde funcionava a escola para o atendimento às crianças e aos adolescentes da região. A escola era uma casinha simples, de madeira, assoalho, com mesas e carteiras feitas de tábuas longas que serviam de apoio para os dias de aula.

No ano de 1974, a Portaria nº 096/SEC, de 4 de junho, institui a 5ª série do ensino de 1º grau e passa a ter um atendimento do ensino desse nível. Sobre esse fato, citamos a seguinte menção de uma das narradoras:

Tinha só até a 4ª série na escola, quando as crianças terminavam a 4ª série não tinha mais o que fazer. Eu juntei o pessoal da escola e falei vamos abrir a 5ª série eu vou ser a professora de matemática. Como eu tinha habilidade com números fui ser a professora. Os professores faziam tudo, limpava as salas, arrumava a merenda quando tinha. A Marisa Castiel era a representante da educação e ficava em Porto Velho, ela me chamava e eu atendia ao pedido dela que era para levar as fichas dos alunos. Todo mês eu pegava o “Búfalo” que era o avião do exército, e todo mês ele deixava o meu lugar e dizia: Esse lugar aqui é da nossa diretora! Eu trazia de volta alguns poucos materiais que eles davam. Eu enchia as caixas, e voltava de ônibus. Uma tortura! (BITELLO, 2017).

No depoimento da ex-professora, podemos perceber que a iniciativa de ampliar os atendimentos de ensino partiu dos próprios professores, que perceberam a necessidade de uma educação institucionalizada para a sociedade. Ao término da 4ª série, as crianças não tinham mais atividades na escola, e muitas partiam para o campo com a função de ajudar seus pais nas plantações e no cuidado com os animais; muitas vezes, inclusive, para dar continuidade ao trabalho do pai no plantio da terra.

A luta dos professores em concretizar a continuidade do ensino estava na possibilidade de garantir às crianças e aos adolescentes a permanência na escola e a continuação dos aprendizados; uma maneira de permanecer empregados, uma vez que a cidade estava em crescimento e o trabalho gerava outros tipos de renda para a contribuição familiar. Nesse cenário, em um espaço que tinha tudo para ser feito, os professores não mediram esforços para se juntar e superar a negligência do Estado. Esse garantiu as possibilidades para o processo de colonização, porém, deixou a educação à mercê, que somente ficou nas propagandas que prometiam escola aos filhos dos que se aventurassem a deixar sua terra de origem e migrar para habitar a Amazônia.

No que diz respeito à organização temporal escolar, essa estabelecia uma carga horária que deveria atingir 180 dias letivos e 720 horas totais de aulas ministradas, com um calendário que determinava o início das aulas em fevereiro e o término em novembro. As aulas só eram dispensadas nos dias de feriados nacionais e estaduais e aos domingos. Os sábados eram contados como dias letivos nos quais os professores se reuniam para fazer os planos de aulas, rodas de conversas sobre as turmas e faxinas na escola. As férias estavam de acordo com o calendário escolar anunciado pela Secretaria de Educação do Território da época. Os calendários escolares eram modificados conforme as instruções públicas ou qualquer alteração advinda da secretaria do Território de Rondônia.

Contudo, a escola sofreu uma segunda alteração de seu nome no dia 6 de outubro de 1977 com o Parecer de nº 033/CTE, passando a se chamar Escola Territorial de 1º e 2º graus Wilson Camargo. No ano de 1993, com o Decreto de nº 5956, a Escola Estadual de 1º e 2º graus Wilson Camargo. No ano de 1996, em 11 de dezembro, com a Resolução nº 074/CEE/RO alterou-se novamente a denominação da escola para Instituto Estadual de Educação Wilson Camargo.

Aos poucos, a estrutura da escola foi sendo organizada, da mesma maneira que ocorria com a comunidade local, acompanhando as mudanças no tempo e no espaço social. A adaptação dos professores e alunos ia sendo construída de acordo com a realidade cotidiana da sociedade que se formava, como se estivesse visível “[...] toda poeira e suor da cidade” (CERTEAU, 2012, p. 71). Portanto, pensar a implementação da educação é pensar também no processo de colonização, pois esses estão intrínsecos ao movimento político nacional em voga no século XX. Nesse sentido, podemos dizer que a educação era uma ferramenta de atração e fixação dos migrantes que mudavam para a cidade que se constituía.

Memórias das práticas escolares: “era jeito de mãe”

Esse subtítulo faz alusão a alguns depoimentos analisados na pesquisa. “O jeito de mãe” é oriundo das composições que professoras e alunos teciam sobre o fato de não haver uma metodologia com rigor acadêmico na execução das aulas, mas que as práticas eram constituídas na relação cotidiana com os alunos, de modo intuitivo, acolhedor e maternal.

No depoimento de Spagnollo (2017), destacamos: “Os professores eram muito bons, cada um tinha seu método. Bom! Acho que não era método, né?! Era intuição, era jeito para as coisas. Era jeito de mãe!”.

Nesse cenário, quando inferimos sobre um “jeito de mãe”, um trabalho feito por “intuição”, entendemos que interessa pontuar que os saberes e as práticas que foram fabricados apresentam a formação docente atravessada por particularidades familiares/pessoais, trajeto religioso e questões emocionais que vão se juntando e constituindo o fazer docente que se materializa no professor e no cotidiano da sala de aula. Entretanto, esses saberes experienciais, mesmo que também válidos, precisam ser vistos para além da boa vontade dos professores, ou seja, também para as negligências do Estado no que concerne à educação, à formação docente naquela ocasião; não havia acompanhamento pedagógico, formação para a docência, o que se configurava como um verdadeiro abandono educacional já que havia a promessa da educação. Essa era, na realidade, instrumento de atração dos migrantes, pois, na prática, não houve condições suficientes para dar suporte a uma educação pública de qualidade.

Destacamos, também, a narrativa de uma professora que apresenta resquícios de alguns apontamentos em momentos formativos da profissão, o que não anula a crítica tecida ao Estado:

Todos os sábados nós fazíamos nosso planejamento, com o tempo foi acabando. Quando o Francisco Canceliero passou a supervisor do município começou novamente as reuniões, ele reunia o pessoal para fazer os planejamentos. Ele deixou a semente plantada, depois as supervisoras deram continuidade com os planejamentos. Ninguém entrava na sala de aula sem o planejamento, cada um buscava o que encontrava de melhor (MASSARONE, 2017).

Diante disso, percebe-se que um modelo educacional intuitivo e sem direcionamentos pedagógicos comuns se configurava no interior da sala de aula, onde cada professor agia como pensava ser o melhor para determinado momento. É possível a leitura dos fragmentos extraídos das narrativas que construímos a partir das memórias que os professores elaboravam as aulas com o pouco de recurso que lhes era oferecido e com as experiências diárias que cada um enfrentava naquele cotidiano. Como relembrado: “No começo não tínhamos nada, a gente ensinava o que achava necessário ensinar” (BITELLO, 2017). Deste modo, intuição era o caminho condutor para as práticas escolares; na lida cotidiana, surgiam alguns contratempos e necessidades que eram superados não pelos poderes públicos, mas pelos próprios professores e moradores da comunidade vilhenense.

Quando eu cheguei na escola Wilson Camargo a professora Bitello e a professora Dora já fazia parte do quadro de professores, elas são muito antigas lá. Devo muito às professoras porque elas me ensinavam muito, eu não tinha experiência de nada, não sabia nada e elas me conduziam em tudo. A professora Elvira, também é uma grande amiga que hoje, é minha comadre. Como eu não sabia nem elaborar um plano de aula ela fazia o plano dela e deixava dentro de uma gaveta para mim, as atividades que ela dava para os alunos dela eu dava para os meus. Ela sempre me dava os materiais, não tenho como agradecer o que elas me ensinaram (GONÇALVES, 2017).

As experiências da vida profissional eram tecidas diariamente, o que evidencia que não existia um modelo pedagógico específico a ser seguido.

Diante das tramas compostas dessa organização de ensino, podemos dizer que são as representações da cultura que dão sentido a um período da história vivida pelos sujeitos. Sendo assim, a negligência, o desamparo, as limitações e tantos outros elementos que se juntavam à não atuação do Estado, demonstram um conflito no cotidiano escolar: a sobrevivência da escola.

Quando os professores manuseavam e criavam seus próprios materiais didáticos, não deixavam de legitimar os dispositivos do governo ou a representação do sistema educacional. No entanto, o que havia de diferente nessa ação era a maneira com que esses instrumentos institucionais eram produzidos na sala de aula: [...] Bem no começo eu fazia os livros também, recortava jornal e colava na folha branca. Eu dizia que era nosso livro de aprender, passava para os alunos copiar e fazer leituras” (BITELLO, 2017). Apesar da falta de material didático, as aulas não eram interrompidas, e os professores criavam, inventavam materiais com o que dispunham; porém, nem sempre conseguiam sustentar as necessidades, o que é evidenciado na fala de uma ex-aluna da escola:

As informações eram muito lentas para nós, a gente tinha muita dificuldade com isso. Por exemplo, o “Jornal Nacional” na década de 1970 a gente só ia assistir depois de uma semana que já tinha acontecido o fato, isso para quem pudesse ter uma televisão. Os livros eram muito difíceis de adquirir. Lembro que essa professora Vilma tinha conseguido uma coleção daqueles, da coleção Ouro, ficamos muito felizes. A professora começou a pedir os livros que a gente queria, nos pagávamos e demorava chegar, chegavam depois de uns dois meses. Eu gosto muito de livros, tanto que hoje, tenho a minha biblioteca no meu comércio. Foi essa professora que me incentivou a ler, ela não conseguia chegar a mim. Ela chegou com um livro e me cativou com as historinhas e eu peguei confiança nela, olha para você ver. Com o livro! (VEIT, 2017).

Novamente, Certeau (2012) se faz importante neste estudo no que se refere à invenção do cotidiano e à forma como nos apropriamos e reinventamos a partir dos produtos que nos são oferecidos. Os poucos materiais que os professores possuíam eram utilizados como fonte e recurso para o processo de ensino e aprendizagem. As professoras narram que, por volta da década de 1970, começaram a chegar muitas revistas, muitos gibis, giz de cera e tesoura, e os trabalhos começaram a ganhar formas e cores diferentes daquelas dos anos anteriores; transformavam utensílios em materiais pedagógicos, faziam o que Certeau (2012) chama de bricoleur na invenção e reinvenção do cotidiano. De acordo com Rohden: “[...] para Certeau o bricoleur é a própria manifestação da astúcia humana, que foge à regra, que se aproveita de qualquer elemento para fazer surgir suas artes cotidianas” (CERTEAU, 2012apudROHDEN, 2019, p. 161).

Bitencourt (2017) considera o processo de formação como um percurso de vida em que o sujeito toma das experiências cotidianas para construir uma consciência de transformação que se forma e se desconstrói ao mesmo tempo, havendo uma interação de conhecimento. Considerando seus apontamentos, é possível perceber nas memórias das professoras a validade dos meios, dos instrumentos em que se apoiavam para ensinar, trabalhar com elementos da realidade dada e vivida, buscando os recursos que tinham a oferecer e ensinar para que os resultados minimamente acontecessem. Porém, entendemos que apesar do esforço individual e coletivo, no exercício da docência não bastam os saberes da experiência, da prática; na história da educação nacional, percebemos o quanto a preocupação maior sempre se voltou de modo efetivo para interesses sociais, econômicos da classe mais rica, para perpetuar o poder daqueles que o detém, o que não inviabiliza o jogo entre o fraco e o forte, das táticas versus estratégias. As fugas do homem ordinário compõem e legitimam as artes de fazer com aquilo que lhes é oferecido por um lugar da ordem, de poder (CERTEAU, 2012).

Contudo, as práticas escolares, de acordo com as narrativas, pautavam-se em ações severas e ríspidas e, muitas vezes, causavam medo e temor nos alunos. Grande parte das crianças tinha dificuldades no processo, e existia forte cobrança com relação à escrita, à leitura e aos cálculos. As provas eram sempre aplicadas no final de cada bimestre, sendo o quadro de dias letivos divididos em quatro bimestres. As provas eram de caráter oral e de escrita. A prova escrita era feita com perguntas sobre os conteúdos aplicados em sala de aula, enquanto a prova oral era um texto selecionado pela professora. Quem “tomava a lição”, era sempre a diretora, pessoa responsável por todas as atividades desenvolvidas na escola. O texto inquerido da criança-aluno era recortado e colado em um pequeno pedaço de cartolina. Ainda, a criança que fosse passar pelo processo de avaliação podia levar o texto para casa e treinar a leitura. Dos trechos das narrativas construídas, destacamos:

As apostilas não vinham separadas, era uma só com as disciplinas de Português, Matemática, Ciências e vinha uma página separando os conteúdos. Acho que era a economia de papel. A gente elaborava a prova escrita e oral. As provas orais eram uma tortura, as crianças que tinham muita vergonha a gente sempre deixava por último. Porque as crianças saiam muito tensas (MASSARONE, 2017).

As piores provas eram a de leitura oral, com toda certeza. Eu até fazia xixi nas calças! Me lembro como se fosse hoje. Era aterrorizante! (SPAGNOLLO, 2017).

A gente não fazia o que queria, a gente fazia o que era mandado. A cobrança era bem firme, não tinha psicologia nenhuma, passava o que tinha que passar e a gente tinha que aprender, era obrigação da professora ensinar e nossa de aprender. Ela chamava muita nossa atenção, a nossa escola era nossa segunda casa, a gente passava 4 horas na escola. A gente aprendia artes, aprendia a ler, escrever e as quatro operações. A gente tinha que saber a tabuada e a letra tinha que ser bem bonita. A gente tinha muita prova oral, o professor chamava o dia que ele queria, era a famosa prova surpresa e tinha vez que avisava para a gente ir treinando para fazer a prova oral. Quem não conseguia eles davam outra chance na semana seguinte e tinha que se sentar na frente, não tem aquele negócio de que a criança ia ficar traumatizada, isso não existia (VEIT, 2017).

Além disso, em fontes históricas encontradas, entendemos como se institucionalizavam as tais cobranças narradas. Selecionamos um boletim escolar da época para ilustrar como eram descritas as habilidades que os alunos deveriam alcançar no decorrer do processo de aprendizagem. Para tal, apresentamos na Figura 1 o boletim utilizado até o final da década de 1960 a fim de demonstrar como era o processo de avaliação da escola Wilson Camargo cujos critérios de classificação correspondiam a: O - Ótimo, MB - Muito Bom, B - Bom, R - Regular e S - Sofrível, estando esse último conceito relacionado à não aprovação do aluno.

FONTE: Instituto Estadual de Educação Wilson Camargo, 2016.

FIGURA 1 BOLETIM DA ESCOLA WILSON CAMARGO NA DÉCADA DE 1960 

Assim, para que os alunos obtivessem os conceitos apresentados tinham que dominar as áreas do programa que era estruturado, conforme mostra a Tabela 2 sobre a forma e a divisão curricular.

TABELA 2 DOMÍNIO DAS ÁREAS DO PROGRAMA 1ª A 5ª SÉRIE DO 1º GRAU 

Disciplina Avaliação e desenvolvimento
Grande Área
Comunicação e expressão Redação
Leitura
Ortografia
Aspectos Gramaticais
Ciências Iniciação às Ciências
Matemática Conceituação
Cálculos
Problemas
Integração Social

FONTE: Martins, 2017.

As atitudes e os hábitos de trabalho também eram quesitos avaliativos, e os alunos precisavam desenvolver suas habilidades na interação social com os demais colegas de turma. Nesse sentido, as crianças tinham que aprender e reproduzir em seus hábitos as seguintes atitudes: Ser asseado e cuidadoso com a aparência; ter boas atitudes; mostrar interesse no trabalho; imprimir ordem e limpeza aos trabalhos; ter cuidado com o material; fazer bom uso do tempo; levar a sério as tarefas; frequentar a escola com assiduidade; obedecer aos horários; atender às ordens com presteza; respeitar as autoridades; cooperar com os colegas; relacionar-se bem com os outros. Percebe-se, ainda, que a divisão das disciplinas se concentrava principalmente na gramática e nos cálculos; assim, a primeira necessidade que a comunidade estudantil teria que alcançar era a formação básica e os princípios fundamentais da leitura e escrita, para que pudesse atender a demanda de mercado.

Na Figura 2, podemos observar como se organizava o sistema de avaliação das disciplinas. Esse boletim faz parte do percurso histórico de um dos alunos da escola Wilson Camargo. Na escola, tinha como função certificar a aprovação e concedia a autorização para cursar a série seguinte do processo educacional.

FONTE: Instituto Estadual de Educação Wilson Camargo, 2016.

FIGURA 2 BOLETIM DA ESCOLA WILSON CAMARGO NA DÉCADA DE 1970 

Na década de 1970, tal boletim era usado nas avaliações da 6ª à 8ª série do 1º grau da escola investigada. Ao analisar, podemos perceber que as “menções adotadas” como critério de avaliação correspondem até duas letras do alfabeto que se relacionam a um valor numérico. Eram doze disciplinas obrigatórias e uma formação especial. A disciplina de formação especial poderia ser escolhida entre as que eram oferecidas no período de matrícula: Organização Técnica Comercial, Técnicas Agrícolas e Organização Técnica Industrial.

Cabe, aqui, mobilizar nossa reflexão a fim de perceber que o cotidiano escolar, as práticas e o currículo não são campos separados da tessitura dos saberes. Goodson (2019) afirma que, entre as décadas de 1970 e 1980, os serviços públicos eram colocados em grande escala nas mãos dos servidores. A escola, enquanto um desses setores que oferece o serviço público, era deixada sob responsabilidade de professores e educadores para que “[...] iniciassem e promovessem a mudança necessária”; também a “[...] boa vontade educacional e o senso de propósito e paixão [...]” (GOODSON, 2019, p. 33) eram assumidos pelos professores como um trabalho que se estendia aos laços familiares.

Ainda nesse período em tela de que trata esta pesquisa, percebemos moldes curriculares que se abrem para dialogar com os elementos externos, por exemplo, as exigências para a mão-de-obra de trabalho. Na Figura 1, aprecia-se que os critérios de avaliação são denominados “Atitudes e Hábitos de Trabalho”, sendo os itens pontuados na formação técnica do trabalho. Na Figura 2, o ensino ainda se volta para o trabalho, com o termo “Organização e Técnicas Comerciais” ou como “Formação Especial” para atender às necessidades do mercado exigidas pelos discursos fundamentalistas da proposta político-econômica do Regime Militar, da qual o País estava sob poder.

Deste modo, o caráter tecnicista do ensino se confundia com as características dos princípios higienistas e os valores morais e cívicos, buscando formar para a obediência, a devoção cívica e em especial, a mão-de-obra trabalhadora.

Contudo, os vestígios tecidos nesta pesquisa demonstram culturalmente as relações educacionais entrelaçadas à organização de uma sociedade marcada pelas ações político-econômicas que se desejava instaurar e manter para contribuição de um projeto maior, nesse caso, o fortalecimento das estratégias de um governo ditatorial. Esse, mesmo em seu panóptico (FOUCAULT, 2002), haveria que lidar com as táticas sutis dos heróis sem nome (CERTEAU, 2012), uma vez que a história contada é a dos heróis gloriosos, aqueles que a História Oficial nomeia como corajosos, imponentes, comumente ligados a um lugar de poder, e não a história dos “[...] figurantes, da multidão de heróis quantificados que perdem nomes e rostos tornando-se a linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem a ninguém” (CERTEAU, 2012, p. 57-58).

Considerações finais

Buscamos, a partir desta pesquisa historiográfica, revisitar a história da educação de Vilhena, em Rondônia, no período de 1960 a 1980, de modo a analisar a cultura escolar a partir de suas práticas do cotidiano. Trata-se de uma história da educação que se entrelaça à formação de uma cidade no processo de colonização e migração acentuada na Amazônia durante o Governo Militar.

A investigação nos mostra que a escola nasce concomitantemente à construção da cidade com a organização social do município. Entretanto, há uma negligência por parte do Estado em fundar e gerir o processo educacional, que é deixado sem estrutura e sem o acompanhamento necessário a um bom funcionamento. Além disso, os modos de ensinar se misturavam com a formação de si próprio (BRAGANÇA, 2009), materializando o ensino somente a partir das experiências pessoais e da boa vontade das professoras da época.

Contudo, a investigação historiográfica sobre a cultura do cotidiano escolar ocupa-se em trazer ao dia a dia do espaço escolar um aspecto analítico; sendo assim, conforme explica Michel de Certeau (2012), a cultura do cotidiano se apresenta como um espaço rico em significados e ações uma vez que nele confrontam-se aspectos políticos, sociais, econômicos e religiosos, isto é, todo um campo de produção simbólica humana. Nesse sentido, o cotidiano é intrínseco à dinâmica das transformações socioculturais ao longo do tempo. Diante disso, “[...] o cotidiano não é um espaço separado da vida, onde se age mecanicamente sem nenhum significado ou influência. Trata-se de um espaço, assim como o político ou econômico, cheio de significados sociais que faz e refaz o viver humano” (FREIRE, 2008, p. 7).

Nesse contexto de significantes e significados, entende-se que o cotidiano da escola se revela como produtor de uma cultura própria, com suas normas e seus sujeitos, materiais e métodos, práticas que perpassam o tempo, que chamamos de cultura escolar. Essa, conforme enfatiza Faria Filho (2007, p. 195), seria:

[...] a forma como em uma situação histórica concreta e particular são articuladas e representadas, pelos sujeitos escolares, as dimensões espaços temporais do fenômeno educativo escolar, os conhecimentos, as sensibilidades e os valores a serem transmitidos e materialidade e os métodos escolares.

As experiências do cotidiano, tecidas ao longo deste trabalho, desvelam uma história não mencionada nas obras oficiais. Assim, buscamos evidenciar essa historiografia legitimando o espaço escolar e diferenciando-o de outros espaços sociais.

Pensar a história da educação a partir do cotidiano é fomentar os pressupostos da Nova História Cultural, a qual se afasta das histórias construídas e fundamentadas somente em documentos oficiais produzidos por aqueles que ocupam um lugar de poder. Consequentemente, aproxima-se para dizer dos pormenores de uma história em que “[...] algo essencial se joga nesta historicidade cotidiana, indissociável da existência dos sujeitos que são os atores e autores de operações conjunturais” (CERTEAU, 2012, p. 82).

Os vestígios dos materiais produzidos no cotidiano da escola provocaram um movimento essencial na composição dessa pesquisa e na apreciação do modelo de organização de ensino investigado. As memórias das professoras e dos alunos marcam a necessidade de potencializar as intensidades das práticas e dos saberes produzidos no interior da escola, revelando, ainda, a trama das memórias que recriam cenas do passado de modo inverso no presente (CERTEAU, 1982).

Os depoimentos analisados como fonte oral nos deram contribuições da leitura do passado, e, nesse viés, entendemos que “[...] somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída” (HALBWACHS, 2015, p. 39), e como estão articuladas em torno dos acontecimentos tanto individuais como coletivos.

Não chegamos a respostas finais ou conclusivas, ainda há muitos vestígios na história da educação de Vilhena a serem estudados, analisados, merecedores do olhar minucioso e analítico dos historiadores da educação; assim, então, se ampliam as possiblidades de contribuir com os estudos da cultura escolar de modo a inferir sobre os “[...] enfrentamentos cotidianos, as estratégias e ações dos atores educacionais, o intricado e difícil movimento de apropriação das prescrições para o ensino no âmbito destas práticas” (SOUZA, 2008, p. 280).

REFERÊNCIAS

BENITO, Agustín Escolano. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Tradução: Heloísa Helena Pimenta Rocha, Vera Lucia da Silva. Campinas: Alínea, 2017. [ Links ]

BITELLO, Eli. Depoimento [Entrevista realizada por Helen Arantes Martins]. Entrevista para a pesquisa sobre a História da Educação em Vilhena. [Mídia de gravação: gravador digital]. Vilhena, 03 fev. 2017. [ Links ]

BITENCOURT, Loriége Pessoa. Aprendizagem da docência do professor formador de educadores matemáticos. Curitiba: CRV, 2017. [ Links ]

BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício de historiador. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. [ Links ]

BRASIL, Pedro. Vilhena conta sua História. Vilhena: Gráfica Delta, 2000. [ Links ]

BRASIL. Território Federal de Rondônia. Decreto nº 353, de 10 de agosto de 1960. Dispõe sobre a criação da primeira escola de Vilhena com denominação de Escola Isolada Wilson Camargo. Disponível: Arquivo Setorial da Educação do Estado de Rondônia, 1960. [ Links ]

BRASIL. Território Federal de Rondônia. Portaria nº 033, de 06 de outubro de 1977. Dispõe sobre a alteração no nome da escola, passando a Escola Territorial de 1º e 2º graus Wilson Camargo. Disponível: Arquivo Setorial da Educação do Estado de Rondônia, 1977. [ Links ]

BRASIL. Estado de Rondônia. Decreto nº 5.956, de 27 de maio de 1993. Dispõe sobre as escolas Estaduais de 1º e 2º graus “Marechal Rondon”, em Ji-Paraná e “Wilson Camargo”, em Vilhena, e dá outras providências. Disponível: Arquivo Setorial do Estado de Rondônia, 1993. [ Links ]

BRASIL. Território Federal de Rondônia. Portaria nº 074, de 11 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a alteração no nome da escola, passando Instituto Estadual de Educação Wilson Camargo. Disponível: Arquivo Setorial da Educação do Estado de Rondônia, 1996. [ Links ]

BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza. Histórias e memórias de professores. RevistAleph, n. 12, p. 37-41, 2009. Disponível: https://periodicos.uff.br/revistaleph/article/view/38933. Acesso em: 26 ago. 2023. [ Links ]

BRONDIZIO, Eduardo Sonnewend; SIQUEIRA, Andrea Dalledone. O habitante esquecido: Caboclo no contexto amazônico. São Paulo em Perspectiva, v. 6, n. 1-2, p. 187-192, 1992. [ Links ]

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999. [ Links ]

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Tradução de: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. [ Links ]

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 19. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. [ Links ]

FARIA FILHO, Luciano Mendes. Escolarização e cultura escolar no Brasil: reflexões em torno de alguns pressupostos e desafios. In: BENCOSTTA, Marcus Levy Albino (Org.). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários históricos. São Paulo: Cortez, 2007. p. 193-236. [ Links ]

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Tradução: Fátima Murad. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. [ Links ]

FREIRE, Diego José Fernandes. Um olhar sobre os estudos históricos do cotidiano. História e-História, v. 15, p. 1-12, 2008. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2002. [ Links ]

GOODSON, Ivo. Currículo, narrativa pessoal e futuro social. Tradução: Maria Inês Petrucci-Rosa e José Pereira de Queiroz. Campinas: Editora da Unicamp, 2019. [ Links ]

GOMES, Emmanoel. História e Geografia de Rondônia. Vilhena: Express Ltda, 2012. [ Links ]

GONÇALVES, Maria. Depoimento [Entrevista realizada por Helen Arantes Martins]. Entrevista para a pesquisa sobre a História da Educação em Vilhena. [Mídia de gravação: gravador digital]. Vilhena, 20 jan. 2017. [ Links ]

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2015. [ Links ]

INSTITUTO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO WILSON CAMARGO. Boletim da Escola Wilson Camargo na década de 1960. 1 fotografia color., tamanho original 14,71 cm x 9,6 cm, 2016. [ Links ]

INSTITUTO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO WILSON CAMARGO. Boletim da Escola Wilson Camargo na década de 1970. 1 fotografia color., tamanho original 9,7 cm x 9, 5 cm, 2016. [ Links ]

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto Histórico. Trad. Gisele de Souza. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, p. 9-43, 2001. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4250681/mod_resource/content/1/273-846-1-PB.pdf. Acesso em: 26 ago. 2023. [ Links ]

MARTINS, Helen Arantes. Os modos de lembrar e contar: memórias de uma escola no Município de Vilhena/RO (1960-1980). Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do Estado de Mato Grosso, Cáceres, 2017. [ Links ]

MASSARONE, Angela Maria. Depoimento [Entrevista realizada por Helen Arantes Martins]. Entrevista para a pesquisa sobre a História da Educação em Vilhena. [Mídia de gravação: gravador digital]. Vilhena, 19 jan. 2017. [ Links ]

ROHDEN, Josiane Brolo. A reinvenção da escola: histórias, memórias e práticas educativas no período colonizatório de Sinop/MT (1973-1979). Cuiabá: EdUFMT, 2016. [ Links ]

ROHDEN, Josiane Brolo. Memórias Crianceiras e seus despropósitos: uma investigação histórico-poética do brincar-bricoleur de meninos e meninas do/no m/Mato. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2019. [ Links ]

ROQUETTE-PINTO, Edgar. Rondônia. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1996. [ Links ]

SOUZA, Rosa Fátima. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

SPAGNOLLO, João Ricardo. Depoimento [Entrevista realizada por Helen Arantes Martins]. Entrevista para a pesquisa sobre a História da Educação em Vilhena. [Mídia de gravação: gravador digital]. Vilhena, 18 jan. 2017. [ Links ]

VEIT, Rosa. Depoimento [Entrevista realizada por Helen Arantes Martins]. Entrevista para a pesquisa sobre a História da Educação em Vilhena. [Mídia de gravação: gravador digital]. Vilhena, 10 mar. 2017. [ Links ]

VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares: estudo sobre práticas de leitura e escrita na escola pública primária (Brasil e França, final do século XIX). Campinas: Autores associados, 2005. [ Links ]

1Tal forma de nomear os sujeitos nos depoimentos orais citados neste trabalho foi devidamente aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa.

2A Marcha para Oeste foi uma política do governo de Vargas; nascida em 1943, incentivava as pessoas a migrarem para a região central do Brasil, na perspectiva de ocupar os espaços vazios do País, garantir a segurança das fronteiras e gerar riquezas (ROHDEN, 2016).

Recebido: 14 de Abril de 2022; Aceito: 10 de Julho de 2023

Traducido y revisado por Simone Martins de Oliveira. E-mail: simoneol09@hotmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons