Introdução
As iniciativas que buscam tornar as universidades espaços mais diversos são recentes, mas têm se avolumado. Tais ações relacionam-se, grandemente, ao conhecimento acerca das demandas de estudantes que necessitam de algum apoio. Dentre esses discentes, destacamos aqueles que têm deficiência - especialmente os que se enquadram no Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Podemos dizer que em relação a alguns grupos de pessoas com deficiência já existem ações mais sistematizadas de apoio nas universidades, no entanto, para os estudantes com TEA, ainda há muito a avançar, sobretudo porque a condição foi incorporada à categoria de deficiência recentemente , por meio da Lei nº 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Brasil, 2012) e também em virtude de existirem poucos estudos que relacionem o TEA e o Ensino Superior (Rosa, 2015; Silva, 2020). Quando tal intersecção envolve a linguagem escrita - aliás, uma prática extremamente requerida no Ensino Superior, os estudos são ainda mais escassos.
De modo geral, podemos dizer que as pesquisas ainda são mais centradas na infância (Bosa, 2001; 2002; Schmidt; Bosa, 2003; Lampreia, 2007) e mais abundantes na área de saúde (Schmidt, 2017). No entanto, sobretudo ao admitirmos uma sensibilidade que envolve acolhimento e inclusão em diferentes ambientes, compreender a vertente educacional se torna imprescindível.
Cabe ressaltar que o autismo, por conta da publicação do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), desde 2013 nomeado como Transtorno do Espectro Autista, traz impactos no comportamento, na linguagem e na interação. A pessoa com esse transtorno tem um padrão de neurodesenvolvimento atípico, ou seja, uma condição neurológica diferente daquela que é a mais frequente na população. Fato é que existe uma tendência atual de compreender o TEA como uma alteração na neuroconectividade, que culmina em reação aumentada ou diminuída a estímulos, dentre outras particularidades. Aliás, de acordo com Bosa (2001), as características da pessoa com TEA sugerem um maior comprometimento do lobo frontal, isso porque é essa região do cérebro a responsável pela atenção e pela flexibilidade de comportamento. Em outras palavras, a possível dificuldade em partilhar interesses, bem como se adaptar a mudanças de rotina, pode ser explicada por esse funcionamento cerebral alternativo.
Historicamente, de acordo com Grinker (2010), já tivemos o autismo clássico de um lado, atribuído aos sujeitos com pouca interação, ausência de linguagem e comportamentos repetitivos e, de outro, a Síndrome de Asperger, composta por sujeitos com impacto na interação social, rigidez cognitiva, linguagem e cognição preservadas, ainda que algumas delas apresentassem vasto conhecimento em determinado assunto - o denominado hiperfoco.
As últimas versões do Manual Diagnóstico e Estatístico elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, como o DSM-V (APA, 2014), por exemplo, não mais trazem as divisões em diferentes transtornos (Asperger, Desintegrativo da infância, por exemplo, como ocorreu no passado). Hoje temos uma condição que abrange diferentes condições e funcionalidades, denominado Transtorno do Espectro Autista.
Em relação ao Ensino Superior, há pesquisas que apontam para a centralidade do professor e a necessidade de formação específica para que o docente saiba mediar as demandas relativas ao sujeito com TEA (Donati; Capelinni, 2018; Pereira, 2014; Rocha et al., 2018; Sales; Viana, 2020). Ademais, outros estudos referem a importância da escrita, que muitas vezes é a forma de comunicação do sujeito com TEA, ao mesmo tempo que apontam como o impacto na simbolização pode trazer barreiras no processo de produção textual (Bernardino, 2015).
O foco na escrita se justifica na medida em que é uma prática bastante requerida no Ensino Superior, além de os aspectos mobilizados para escrever serem justamente aqueles historicamente construídos como impactados no TEA: a linguagem e a interação. Isso porque, ainda que as pessoas com TEA que acessam o Ensino Superior possam ser interpretadas como geniais, elas enfrentam muitas barreiras - especialmente diante de metodologias e práticas pouco flexíveis.
Considerando o presente cenário, e as experiências particulares das pesquisadoras em setores de acessibilidade de Instituições Federais de Ensino, portanto, surgiu a necessidade de melhor compreender as características da escrita de estudantes com TEA que cursam o Ensino Superior com o intuito de fomentar e qualificar as práticas de apoio a esse grupo - de modo a permitir não apenas seu ingresso, mas também sua permanência no Ensino Superior.
Em suma, o objetivo é o de mapear as características da escrita da pessoa com Transtorno do Espectro Autista e construir parâmetros que facilitem sua permanência na universidade - a partir do mapeamento das características linguísticas da escrita dos sujeitos pesquisados. Ainda que cientes de que se trata de um recorte muito específico (pelo número de participantes e de universidades envolvidas), acreditamos que as características aqui percebidas podem trazer os primeiros indícios (dada a escassez de pesquisas na área) da forma como a escrita do estudante com TEA (e também dos demais) pode ser mediada no Ensino Superior.
A organização dos traçados
Dada a possibilidade da pesquisa de natureza qualitativa permitir o estudo de fenômenos que envolvem os seres humanos em suas relações sociais nos mais diferentes contextos e poder seguir por diferentes caminhos (Godoy, 1995), essa foi a perspectiva adotada no presente estudo; Ademais, adotou-se também o viés exploratório, uma vez que este permite a ampliação dos conhecimentos de modo condizente com o nosso objeto, isto é, a escrita de adultos com TEA - em razão das investigações se centrarem comumente na fase de aquisição da linguagem escrita.
Os participantes da pesquisa são pessoas com diagnóstico de TEA, maiores de 18 anos, regularmente matriculadas em uma das cinco Universidades Federais do sul do Brasil com o maior número de sujeitos com TEA nos seus quadros de estudantes. A escolha por Universidades Federais se assentou no fato de que existem políticas e iniciativas de inclusão nos referidos espaços, logo, são locais que não apenas recebem estudantes com deficiência, como existe também um movimento para incluí-los.
A primeira fase da investigação envolveu o contato com as universidades e, posteriormente, com os estudantes com TEA. Ressalta-se que todas as Universidades Federais do sul do país foram contatadas por meio dos coordenadores dos núcleos de acessibilidade de cada instituição. Nesse contato, foram apresentados os objetivos da pesquisa e solicitado o número de estudantes com TEA em seus quadros de alunos. Daquelas universidades que retornaram, as cinco com o maior número de estudantes com TEA matriculados foram selecionadas.
Após todos os trâmites éticos, do envio do projeto à plataforma Brasil, e da obtenção das autorizações das instituições, foi solicitado que as coordenações enviassem material explicativo, elaborado pelas pesquisadoras aos estudantes - de modo a preservar a privacidade dos acadêmicos, pois apenas aqueles que quisessem participar entrariam em contato com as pesquisadoras e seguiriam os demais passos da pesquisa. Vale ressaltar que a presente investigação foi autorizada por meio do parecer consubstanciado do Conselho de Ensino e Pesquisa (CEP) sob o nº. 4.522.898.
De todos os estudantes contatados, catorze (14) deles se engajaram na pesquisa e trouxeram as particularidades de suas escritas de forma bastante entregue e generosa. Ressalta-se que dos catorze (14) participantes, dez (10) cumpriram todas as etapas da investigação e quatro (4) deles apresentaram dados parciais. As universidades envolvidas são: duas gaúchas, uma catarinense e duas paranaenses. Os participantes têm idades entre 20 e 48 anos e a maioria (11) teve o diagnóstico de TEA fechado apenas na fase adulta.
Os cursos dos participantes são diversos, sendo que há três acadêmicos de Medicina, e os 11 demais se encontram em cursos variados: Educação Física, Odontologia, Letras-Inglês, Pedagogia, Biomedicina, Engenharia Elétrica, Tecnologia em Redes de Computadores, Museologia, Música, Arquitetura e Urbanismo e Direito. Há também distribuição em diferentes momentos do curso, ou seja, apenas dois (2) encontram-se em fases iniciais, cinco (5) na metade do curso e sete (7) deles já em fases finais. Salienta-se, também, que os participantes receberam pseudônimos, cujas iniciais compõem a sigla TEA, de modo a preservar suas identidades.
Enfim, após as autorizações necessárias e as assinaturas dos termos de consentimento livre e esclarecido, procedemos aos passos da pesquisa propriamente dita, que envolveu também a aplicação de um questionário, porém, no presente artigo focaremos somente na etapa que abarcou a produção de três (3) gêneros textuais: (1) dissertativo-argumentativo, (2) resenha crítica e (3) autobiografia.
A escolha por esses gêneros se justifica porque o primeiro deles é um dos modelos mais requeridos em exames de ingresso no Ensino Superior, o segundo é bastante solicitado no ambiente universitário e o terceiro é um mecanismo importante para entender a posição sujeito da pessoa que escreve - que passa a ser o sujeito e o objeto da sua própria produção.
Ressalta-se que as propostas de elaboração dos três textos foram realizadas de forma remota, durante o primeiro semestre de 2021, em virtude dos protocolos sanitários adotados durante a pandemia causada pelo SARS-COVID-19, mediante observação da pesquisadora, por meio de plataforma de videoconferência, em data e horário acordados e da preferência do participante.
Os textos elaborados pelos participantes foram analisados pela perspectiva discursiva foucaultiana (Foucault, 1996), permeada por sentidos concernentes à linguística textual (Marcuschi, 2008; Koch; Elias, 2012; 2013) e ao dialogismo bakhtiniano (Bakhtin, 1997).
Sentidos e Significados
Conforme adverte Bakhtin (1997), o uso da linguagem perpassa os mais diferentes campos da atividade humana. Embora exista uma unidade nacional da língua, é por meio de enunciados - orais e escritos - que o uso da língua se efetiva. Além de os enunciados refletirem as condições de sua composição, como são as escolhas lexicais, por exemplo, existe um estilo de construção composicional. Em outras palavras, há uma estrutura mais ou menos fixa que define um gênero do discurso e o difere dos demais.
Como bem apontou o autor, os gêneros do discurso são “correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem” (Bakhtin, 1997, p. 268), tanto que não é possível delimitar o número de gêneros. Suas possibilidades estão em aberto porque novos gêneros surgem à medida que a sociedade se transforma, que as interações avançam. Os gêneros: meme e tweet, dentre outros, não existiam há até pouco tempo, mas as práticas circulantes na sociedade “os inventaram”.
Diante do exposto, seria impossível abordar todos os possíveis gêneros textuais. Assim sendo, na investigação em específico foram escolhidos três gêneros como representativos da forma pela qual os estudantes com TEA mobilizam a linguagem escrita. No caso da dissertação, foi sugerido o tema “A importância da presença do estudante com TEA no ensino superior”, mas essa não era uma imposição, poderia ser escolhida qualquer outra temática. No entanto, com exceção de uma participante, todos preferiram desenvolver o tema proposto.
Em relação à resenha crítica, para garantir maior homogeneidade na análise, foi proposto o texto: “O impacto social da educação através das instituições de ensino superior”, de Sérgio Fiúza (s.d.).
No que diz respeito à autobiografia, os participantes foram orientados a discorrer acerca dos aspectos que julgassem mais relevantes em suas personalidades/histórias. Além disso, foi esclarecido que, por questões de limite, não era possível abordar todos os aspectos de suas histórias e que eles poderiam suprimir aquilo que julgassem incômodo.
Antes de adentrarmos efetivamente na análise, é preciso, no entanto, estabelecer a noção de linguagem que aqui admitimos. Ela está em consonância com os sentidos preconizados por Bakhtin, Foucault e muitos autores que não a compreendem como transparente e autoral. O objeto, por assim dizer, já está ressalvado, contestado, elucidado e avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo, correntes. “O falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez” (Bakhtin, 1997, p. 300). Ou seja, o discurso não está ligado apenas às situações que o provocam, mas a todos os enunciados que o precedem e o seguem (Foucault, 2008).
Portanto, ao comentar, por exemplo, o texto de origem paira, mas, ao mesmo tempo, elucida aquilo que estava silencioso no primeiro texto - “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito” (Foucault, 1996, p. 25). Tal aspecto é bastante nítido no gênero resenha crítica, mas pode ser praticado nos demais abordados na investigação - e isso de fato foi notado.
Conforme ressalta Bakhtin (1997, p. 271), “toda compreensão é prenhe de resposta”, ou seja, no jogo enunciativo, no uso dos gêneros do discurso, a produção de sentidos suscita uma resposta - ainda que não seja imediata. Produzimos enunciados para que o outro concorde, divirja, responda, comente - moldamos nossa escrita para o outro e é importante que esse se coloque no jogo discursivo.
Como já mencionado, os sujeitos moldam seus discursos por determinadas formas de gênero - aliás, nos apropriamos deles quase como acontece com a língua materna - sem nos darmos conta. Ocorre que os gêneros requeridos na Universidade não são tão intuitivos assim, uma vez que respondem a certos padrões que são ensinados e adquiridos. Ademais, quando pensamos no TEA, mesmo os gêneros mais elementares, como a conversa face-a-face, podem ter formas alternativas de materialização.
De qualquer modo, ainda que possam existir deslocamentos, carecemos de padronizações, ou seja, entrar na trama do gênero é essencial, porque se tivéssemos que criar uma forma de enunciação a cada nova prática discursiva, a comunicação seria quase impossível. São esses tipos estáveis - que restringem a liberdade de certo modo - os organizadores dos processos comunicativos. No entanto, há de se ressaltar que os gêneros guardam certa flexibilidade - muito maior que a da língua, da gramática. Portanto, são legítimas as transgressões, as sobreposições de gêneros, porque essas práticas inventam novas formas de interação no jogo enunciativo.
Outra característica do enunciado é a sua relação com o falante e com outros participantes da comunicação discursiva. Como bem ressalta Marcuschi (2008), o discurso é uma enunciação na qual entram em jogo os participantes e a situação sócio histórica da enunciação. Além disso, também são mobilizados os aspectos pragmáticos, tipológicos, processos de esquematização e elementos relativos ao gênero.
Ademais, sob a perspectiva foucaultiana, acontecimentos discursivos açambarcam o que há de contínuo e de descontínuo. Efetivam-se materialmente, têm efeitos, consistem em relações e coexistências, dispersões e acumulação. Também são descontínuos em relação uns aos outros e aos sujeitos, que podem ocupar posições diferentes e culminar na dispersão. Há, pois, aspectos que se mantém, por um lado, e há deslocamentos que são inerentes a cada nova tomada do discurso, por outro.
A proposta de análise de Foucault (2008) segue dois horizontes: um viés crítico (arqueológico), o qual se volta para as formas de limitação, exclusão do discurso, seu deslocamento e o regime de suas necessidades e um viés genealógico, o qual questiona a formação das normas, as condições de aparição, de variação, os princípios que regem seu funcionamento e crescimento, ou seja, a formação efetiva do discurso. Grosso modo, podemos dizer que a arqueologia se volta ao como e a genealogia ao porque, portanto, nunca são tarefas inteiramente separadas.
Para tornar as análises mais didáticas, no entanto, ainda que não existam regras imutáveis de como fazê-las, tomaremos por base alguns princípios: (1) textualidade, (2) contextualização/interação e (3) dispersões. A textualidade envolve aspectos como a coesão, coerência, gêneros textuais, progressão sequencial e referencial e intertextualidade. A contextualização, bastante atrelada ao primeiro aspecto, leva em consideração o trabalho para se fazer claro e a interação do autor com o leitor. Aliás, os princípios (1) e (2) são bastante próximos e estão aqui discriminados por questões meramente didáticas - no sentido de separar aquilo que está mais atrelado ao texto em si daquelas outras dimensões que demandam intenções e acionamento de outros conhecimentos, bem como o trabalho “generoso” de buscar reconstituir as intenções do autor. No que diz respeito às dispersões, essas irão se centrar nos caminhos alternativos e nos alargamentos/centralizações que os participantes podem operar quando mobilizam a escrita.
Por fim, salientamos que traremos os possíveis caminhos didáticos que podem ser adotados a partir dos dados obtidos em cada um dos três princípios elencados. Importante ressaltar, no entanto, que praticamente todos os estudos já existentes se pautam em métodos de alfabetização, ou seja, nos reservamos as possibilidades de, a partir de nossas análises, propor ações mais acessíveis.
Textualidade
Há sem dúvidas algumas minúcias da textualidade que não foram adotadas por todos os participantes e em todos os textos - mas provavelmente tais constatações seriam percebidas em quaisquer grupos estudados - e podem sugerir diferentes engajamentos com a escrita e com os processos prévios de construção textual. Mas é importante reforçar que nos textos analisados essas particularidades não tornaram as produções caóticas ou não passíveis de compreensão. Além disso, é importante ressaltar que os participantes mobilizaram estruturas - sintática e ortográfica - sem particularidades significativas.
Importante salientar, ainda, que a atividade da escrita requer um processo contínuo de repetição e de progressão - há a retomada de referentes, para garantir a compreensão, e a introdução de novos elementos para atingir o desenvolvimento do texto. As retomadas dos referentes do texto, a chamada progressão referencial, pode ser realizada a partir dos seguintes elementos linguísticos: pronomes, numerais, advérbios locativos, elipses (omissão de um ou mais termos que podem ser facilmente identificados), formas nominais reiteradas (repetidas), formas nominais sinônimas ou quase sinônimas (menina/garotinha), formas nominais hipernomínicas (cachorro/animal), nomes genéricos (pessoas/bichos) (Koch; Elias, 2012).
Em relação à progressão sequencial, essa não ocorre ao retomar um termo, e inserir novos, mas trata-se de um conjunto de estratégias linguísticas que permite o avançar do texto, bem como o estabelecimento de sentidos. Dentre esses recursos, podemos citar o uso de estruturas sintáticas recorrentes (paralelismo), a retomada de um termo já explicado (parafraseamento), o uso de termos pertencentes a um mesmo conjunto de conhecimento de mundo (manutenção temática), mudança de parágrafo a cada modificação na temática central (paragrafação), processos de progressão sem a presença de conjunções, isto é, apenas com enunciados lado a lado, como com o uso de conectores - de alternância “ou”, de adição “e” e de adversidade “mas” (sequenciação textual), e a apresentação de um assunto já sabido (tema) com a inserção de algo novo (progressão tema-rema), dentre outros (Koch; Elias, 2012).
A noção de gênero, como estrutura que guarda algumas regras, a despeito das dispersões que serão analisadas posteriormente, é adotada pelos participantes e regem suas produções. Inclusive, mesmo aqueles gêneros desconhecidos e/ou nunca praticados foram acolhidos e absorvidos pelos participantes. No entanto, nem sempre os elementos coesivos intra e entre parágrafos são mobilizados, apesar de não provocarem comprometimento substancial da coerência - especialmente porque a coesão não é condição essencial para garantir a textualidade (Marcuschi, 2008).
Por fim, para encerrar as questões relativas ao texto, de modo geral, os participantes têm características da escrita que não se afastam de forma notória dos aspectos relativos à ortografia e à sintaxe. O apoio da oralidade na escrita surge de forma bastante rara - no recorte do estudo - conectada aos propósitos do texto e remetem a uma interseccionalidade entre os gêneros (Marcuschi, 2003) - provavelmente aqueles veiculados na internet - e que têm forte conexão com a oralidade. E as transgressões observadas não comprometem a compreensão de forma significativa.
Como já foi aqui abordado, os impactos na linguagem/interação compõem, inclusive, a definição do transtorno, logo, para o estudante com TEA, escrever é comumente uma tarefa complexa porque é preciso controlar o sentido que se quer transmitir (de modo a ser claro e acessível ao leitor) e, ao mesmo tempo, manipular todos os fatores que envolvem a escrita em si - escolhas lexicais, semânticas, ortográficas, dentre outras. Assim sendo, alguns aspectos, tanto da forma como do conteúdo, podem escapar (Ney; Hübner, 2022). Portanto, a leitura deve ser um processo colaborativo, ou seja, o professor (o leitor por excelência das produções do estudante) deve participar desse processo, preenchendo as possíveis lacunas de sentido, mas também deve propor produções bem direcionadas.
Dito de outro modo, quando o docente propõe um texto, as temáticas devem estar definidas, assim como a extensão e as características do gênero textual devem estar bem esclarecidas. Com isso, o trabalho com a escrita tende a ser atravessado por menos barreiras, uma vez que os diversos aspectos que precisam ser manipulados ao escrever são minimizados e elucidados.
Contextualização/Interação
De forma geral, anteriormente o texto era compreendido e elaborado a partir do seu contexto, ou seja, dos elementos, dos referentes utilizados e que davam sentido àquilo que era escrito. Ao longo do tempo, no entanto, essa noção foi ampliada para a ideia de contexto, ou seja, não apenas o entorno verbal, mas as condições sociais de produção (Koch; Elias, 2012).
Porém, a linguística textual foi além e passou a considerar, também, o contexto sociocognitivo, ou seja, a pressuposição de que os sujeitos se movem no interior de determinadas normas e convenções sociais e que toda manifestação de linguagem está atravessada pela cultura, ou seja, por determinados conhecimentos: enciclopédico, sócio-interacional, procedural. Ou seja, compreender o texto de alguém envolve entender o contexto, a relação entre as partes do texto, essa questão mais gramatical, mas também o contexto da produção e o compartilhar de determinados conhecimentos daquela cultura a qual o escritor está engajado (Koch; Elias, 2012). No caso do sujeito com TEA, é importante não perder de vista a diversidade de comportamentos e de reações que lhe são inerentes.
Os componentes do contexto são uma espécie de frames/esquemas que intervém na comunicação. O contexto condiciona o discurso e o transforma, ou seja, ele é construído e reconstruído ao longo da atividade discursiva e ao escrever o sujeito faz suposições sobre o leitor e acerca da forma de “capturá-lo”. Aliás, o contexto tem uma série de funções dentro do texto: permite avaliar aquilo que é adequado ou inadequado, coloca em evidência aquilo que é esperado em termos de continuidade temática e progressão textual e explica ou justifica o que foi dito, o que deve e o que não deve ser dito (Koch; Elias, 2012).
A propósito, a investigação tratou do desenvolvimento de determinados assuntos - de si (do participante), do TEA, da universidade - e há de se considerar que a delimitação de um tema é imprescindível para garantir a compreensão, assim como a necessidade de abandono do tema e sua retomada devem ser apontadas pelo sujeito que escreve. Termos como: “abrindo um parêntese” e “retomando o assunto” são exemplos, respectivamente, de abandono e retomada do tema. Esses recursos garantem a coerência do texto, ou seja, não é proibido inserir novos assuntos, mas essa ação precisa ser sinalizada, bem como quando retomado o tema inicial. Essas ações envolvem aspectos contextuais e a interação com o outro, sobretudo. De modo geral, não foram praticadas pelos participantes da investigação, mas é possível recuperar esses momentos de “desvio” e “retomada” ainda que não sejam indicados textualmente.
Também, alguns dos participantes não explicaram parte de seus argumentos, provavelmente por pressuporem o já conhecimento antecipado do leitor - no sentido de não serem redundantes. Isso fica evidente em algumas ocasiões nas quais as características do TEA são citadas, porém não elucidadas, esmiuçadas. Essa ausência de esclarecimento provavelmente se atrela à pessoa a quem o texto se destina. Intui-se que uma pesquisadora da área domine essas particularidades, portanto, explicar esses detalhes a uma estudiosa do TEA parece uma tarefa em vão. Assim sendo, se um exercício avaliativo requer que o estudante explique com detalhes - esses comandos precisam trazer tais sentidos - por mais óbvios que possam ser.
Embora a produção dos textos não tenha envolvido uma preparação - no sentido de estudos prévios - é essencial pontuar que as propostas envolveram assuntos que são de domínio do escrevente. Como mencionado há pouco, é essencial ter um conhecimento enciclopédico - e não apenas relativo à língua - quando se escreve. Em resumo, é preciso ter sobre o que escrever. A autobiografia (que demanda a mobilização da história da própria vida), a dissertação (que tinha como tema proposto a presença do estudante com TEA no ensino superior) e a resenha crítica (que tocava no impacto do ensino superior para a sociedade) não são assuntos estranhos aos participantes, uma vez que todos têm o diagnóstico de TEA e frequentam a Educação Superior - claro que nem todos têm as mesmas experiências, mas os sentidos suscitados por esses temas tocam a todos de algum modo. E esses aspectos se tornam centrais para propiciar a materialidade textual, sobretudo com sentidos apreensíveis.
Assim sendo, é importante sistematizar os conhecimentos que serão demandados em um determinado texto/trabalho sugerido. Ainda que pareça pressuposto que um estudante do ensino superior deveria fazer essa tarefa de forma completamente autônoma, informar de maneira minuciosa os caminhos - tipo de material a consultar, como organizar os elementos conceituais, as informações que serão mobilizadas para compor o texto -, é uma mediação essencial (e o docente, por sua formação específica, tem posição privilegiada nesse processo). Sempre que possível, é importante que o estudante tenha retornos sobre aquilo que escreve ainda antes do produto final. Como já referido, se a interação e a comunicação são dimensões impactadas no TEA, é justamente esses aspectos que precisam ser investidos em sala de aula, como bem apontam Oliveira, Costa e Silva (2019), por meio de clareza, organização e literalidade nas explicações.
Dispersões
Como bem ressalta Foucault (1996, p. 26), “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento da sua volta”. Dessa passagem - e de tudo aquilo que já foi aqui mobilizado - é possível concluir acerca da complexidade da linguagem. Isto porque, ao mesmo tempo em que operamos sobre sentidos já falados, já experimentados, também nos colocamos de algum modo, uma vez que há dispersões a cada nova tomada de palavra, ou seja: ainda que dito pela primeira vez, não deixa de ser uma repetição, mas não mera reprodução - porque algo de inédito emerge a cada vez que praticamos a linguagem (Foucault, 1996).
Nesse sentido, todos os participantes deixaram suas marcas pessoais, ou seja, não fizeram apenas uma retransmissão de discursos alheios. Obviamente, alguns sujeitos seguem de forma mais padronizada as características de um gênero textual e a própria tecnologia da escrita, mas há aqueles que ampliam e ressignificam as margens do texto.
A flexibilidade, nesse caso, não se trata de um sistema sem contornos, mas exige que as estruturas requeridas não sejam engessadas. A flexibilidade, por esse viés, diz respeito a acolher as particularidades do sujeito - nesse caso, atreladas às características da pessoa com TEA. Isso porque as dispersões percebidas no texto do estudo não são realizadas de forma aleatória, mas relacionadas àquilo que constituem a forma como o sujeito com TEA se relaciona como o mundo.
Aqui, estamos focando nas características dos gêneros - e não propriamente na língua. Há textos que dizem muito, que desfocam, que rememoram, que não operam distanciamentos (são escritos em terceira pessoa quando deveriam ser em primeira - autobiografia) e aproximações (são escritos em primeira pessoa quando deveriam ser em terceira - dissertação). Aliás, essas aproximações e aprofundamentos em determinados compartimentos do texto coadunam com interesses específicos ou mesmo o foco em detalhes - que constituem as possíveis características do TEA. É importante, no entanto, ressignificar tais características, como bem apontam Nascimento, Prommerchenkel e Santos (2023), já que esses interesses restritos podem ser utilizados como poderosas ferramentas para o engajamento na aprendizagem. Não apenas os focos de interesse podem, tanto quanto possível, serem temáticas nas aulas, como os estudantes podem compartilhar esses conhecimentos com o restante da turma.
Por fim, nas entrelinhas das linhas produzidas podemos dizer que essas dispersões mostram a presença de um autor vivo e bastante atuante. Rompendo com os sentidos circulantes de que o sujeito com TEA tem dificuldades na escrita - os textos produzidos operam sentidos, dialogam com o leitor, elucidam pontos nebulosos, confusos. Há, sem dúvidas, nós desatados, mas esses não podem ser interpretados como meras dificuldades com a escrita - numa análise superficial e sem retorno, ou mesmo como uma comorbidade (dislexia) -, mas como marcas de um sujeito que traz algo de novo quando o texto se constrói.
Podemos dizer, pelos traçados obtidos, que ao mobilizar sentidos, ora são vislumbrados um total respeito aos gêneros, na medida em que ocorre o seguimento irrestrito de seus padrões e de suas estruturas de produção; ora são percebidas diluições notórias de suas fronteiras. Essa última constatação é atestada pelo fato de que alguns participantes se colocaram pessoalmente em seus textos dissertativos (ou seja, não estabeleceram o distanciamento requerido pelo gênero que deve ser escrito em terceira pessoa) ou mesmo em uma reconfiguração do gênero resenha crítica (na qual o texto de origem, que é o foco da resenha, foi desconsiderado) e da autobiografia (escrita em terceira pessoa, ou seja, o autor falou de si como se discorresse sobre outrem).
O foco nos detalhes também é um aspecto notório em algumas produções, além da rigidez nas estruturas e os dados mnemônicos surpreendentes. Em outras palavras, algumas das características que constituem o TEA em termos de comportamento (hiperfoco, rigidez cognitiva, memória prodigiosa), aqui se materializam na forma como a escrita se realiza. Interessante ressaltar, no entanto, que uma das verdades que constituem a formação discursiva sobre o TEA não se efetivou nessa investigação: a síntese, a escrita breve e sem detalhes. Pelo contrário, as produções foram detalhadas, umas mais que as outras, mas de um modo geral exibiram muitas informações e dialogaram com o leitor - já que os autores, na maior parte do tempo, buscaram elucidar possíveis pontos nebulosos.
Como já pontuado, ao mesmo tempo em que é influenciado pelos outros que o antecedem, ao produzir enunciados, o sujeito também influencia os outros que são extremamente ativos, pois o texto se dirige a um interlocutor a quem se solicita uma atitude responsiva. O enunciado tem vontade de resposta. Um enunciado não apenas é influenciado por outros, mas se dirige a um interlocutor, requer uma atitude responsiva.
Disso decorre que é importante um retorno acerca das produções escritas - é essencial refletir sobre o texto, se voltar para ele - mesmo em fases mais adiantadas de estudo. Isso porque cada gênero do discurso tem um tipo de destinatário e o direcionamento é característico do enunciado. Afinal, “a escolha de todos os recursos linguísticos é feita pelo falante sob maior ou menor influência do destinatário e da sua resposta antecipada” (Bakhtin, 1997, p. 303).
No entanto, o contexto universitário, de modo geral, tem uma demarcação clara acerca da escrita e a quem ela se destina. Ela serve para avaliar, para checar aquilo que foi aprendido e para atribuir conceitos. O interlocutor, na perspectiva do ensino superior, é basicamente o professor, logo, esse tem um papel fundamental no processo interativo de construção de sentidos e não apenas na atribuição de notas. Dizer que houve fuga ao tema, por exemplo, é uma forma superficial de entender a construção dos sentidos, porque na progressão do texto pode ter ocorrido o alargamento do tema, ou mesmo o foco em um compartimento da temática - e tais aspectos, além de refletirem as particularidades do sujeito que escreve (no caso do TEA, o foco nos detalhes em detrimento do todo), não “roubam” a textualidade da produção, como ficou nítido nas análises. Enfim, mais do que haver comandos claros sobre como se deve escrever, é essencial que se fale - sobretudo no sentido de refletir - sobre aquilo que se escreve.
Importante destacar, ainda, que a investigação é um recorte que precisa ser redimensionado para as práticas no âmbito universitário. Se, por um lado, a coleta precisou de novas formas de realização - tendo em vista os protocolos sanitários relativos à pandemia -, provavelmente esse formato favoreceu muitos dos participantes. Primeiramente, não foi imposto que mantivessem suas câmeras ligadas e os participantes estavam em suas casas. Em segundo lugar, tratou-se de um momento tranquilo, sem sobrecarga sensorial, numa relação de um para um, cujas dúvidas foram prontamente sanadas. Obviamente que nem todos esses aspectos podem ser contemplados, controlados em sala de aula, mas podem gerar um impacto positivo nas produções escritas.
Ademais, um dos aspectos percebidos nos textos de alguns participantes - e que talvez se deva à fraca coerência central comumente ligada ao diagnóstico - é a exploração minuciosa de alguns detalhes e a consequente desvinculação com o tema central. De modo sintético, sobre a coerência central podemos dizer que os sujeitos com TEA tendem a ter um estilo de processamento mais focado nos detalhes, em detrimento das pessoas neurotípicas - que apresentariam um processamento mais global (Varanda; Fernandes, 2011) -, daí textos que trazem minúcias de assuntos que, por vezes, tangenciam o tema central.
Somado a isso, é preciso ressaltar que o TEA pode impactar as funções executivas, especialmente aquelas relativas ao planejamento (Bosa, 2001). Essa funcionalidade pode culminar na necessidade de um tempo maior para iniciar a produção textual - uma vez que essa envolve organização prévia, como o estabelecimento dos caminhos a serem seguidos: os sentidos que emergirão e aqueles que não serão considerados - daí a necessidade de mais tempo e mesmo de que as produções sejam realizadas de forma gradativa (fracionada) por parte de muitos participantes - aspecto comprovado na investigação.
Como foi aqui largamente apontado, escrever um texto envolve aspectos contextuais e interativos que, de modo geral, podem ser impactados na funcionalidade dos sujeitos com TEA, daí a importância dos retornos sobre a escrita e, sobretudo, da sinalização dos caminhos a serem seguidos. Isso porque, a apropriação da escrita não se encerra com a alfabetização, pelo contrário, continua por toda a vida - e não se sustenta/aprimora apenas com leituras (mas com a prática e a reflexão sobre a própria escrita).
Além disso, ao produzir um texto tentamos garantir a unidade e, por conseguinte, propiciar a compreensão por parte de quem o lê. O estudante com TEA, no entanto, pode não conseguir conter os deslocamentos e, em decorrência disso, seguir caminhos alternativos - e será a mediação do outro quem dará a direção dos traçados.
Em suma, o docente tem papel primordial no processo de acessibilidade e precisa estar instrumentalizado para tal (Armenara, 2022). O professor desempenha ação direta na contenção das dispersões na escrita, uma vez que pode trazer clareza em termos de informações relativas ao gênero textual requerido e ao formato demandado. É importante, sobretudo, compreender que apontar os equívocos não é desrespeitar a funcionalidade do sujeito, pelo contrário, é reconhecer todos os estudantes, o que inclui a pessoa com TEA, como aprendizes que carecem de instrução e aprimoramento.
Por fim, é importante ressaltar que os pilares da acessibilidade se assentam em práticas e metodologias que beneficiem a todos. Obviamente, no entanto, por mais universal que possa ser um planejamento, alguns sujeitos têm particularidades muito singulares. A própria nomenclatura atribuída ao sujeito com TEA - neurodiversa - aponta para um caminho de possível tomada de posicionamento, inclusive necessária, por parte da Educação Superior: um movimento democrático, no sentido de ser mais universal, mas sem abandonar a perspectiva de que há aspectos muito particulares em cada construção do conhecimento, em cada prática discursiva.
Considerações finais
Em linhas gerais, a investigação trouxe indícios que fazem funcionar uma vez mais os sentidos do Modelo Social da Deficiência, ou seja, uma sensibilidade que convoca a todos no empreendimento da acessibilidade/inclusão (Oliver, 1983; 1996). De antemão, é preciso reforçar que o TEA é uma condição, uma forma de funcionamento e, a despeito das mediações às quais os sujeitos podem (ou não) se engajar, de modo geral suas práticas não se desatrelam de sua condição. Dito de outro modo, o foco nos detalhes ou mesmo o hiperfoco em determinado assunto podem atravessar os textos dos estudantes com TEA (Weisheimer, 2019). Portanto, existe a necessidade de uma coparticipação ativa do professor no processo de significação do texto.
Para além de estabelecer esses pontos de sentidos, é importante compreender que a tecnologia da escrita está para além de codificar e decodificar grafemas. Isto é, assim como as habilidades sociais, especialmente aquelas voltadas à oralidade, podem ser ensinadas, também é essencial que o docente aponte para aquilo que merece ser elucidado, melhor embasado ou mesmo sintetizado dos traçados escritos praticados pelo estudante. Existe, portanto, a necessidade de que o outro procure não os desvios, mas as linhas que se atrelam ao tema pedido - ou seja, quais caminhos foram traçados, quais atalhos podem ser sugeridos (se é que são necessários).
Muitas vezes, e aqui falamos do lugar de profissionais que orientam práticas educativas, focamos muito naquilo que deve ser oferecido aos estudantes com TEA - comandos diretos, períodos curtos, sem ambiguidades e instruções minuciosas. Obviamente que essas orientações são importantes, mas pouco se fala sobre como o leitor deve operar sobre a escrita do estudante com TEA - não para relevar tudo, mas no sentido de compreender que algumas marcas são inerentes às funcionalidades do sujeito.
Na presente investigação, uma das verdades que circula sobre o TEA, a de produções textuais sintéticas, não se confirmou. No entanto, a amostra abundante de escrita não exclui a necessidade de mediação, até porque a textualidade não se relaciona à extensão, pois ela deve produzir efeitos de sentidos (Marcuschi, 2008). Essas constatações também mostram que nem todas as características dos sujeitos que se enquadram no espectro são idênticas e/ou imutáveis, mas que é preciso reverter uma sensibilidade já antiga e que insiste. É necessário, pois, ainda que admitamos as possibilidades de mudança, aliás inerentes a todos, abandonar o movimento que busca tornar todas as produções típicas (ou neurotípicas) e acolher os caminhos alternativos.
Em outras palavras, a presença de pessoas com deficiência na Educação Superior é ainda tímida - e reflete os processos de exclusão e de opressão historicamente vivenciados. Reverter essa realidade é colaborar com o acesso e a permanência desse grupo - que abrange os sujeitos com TEA -, participando do processo de acolhida de sentidos múltiplos.
Como já adiantado, uma das formas para fomentar o acesso mais igualitário ao ensino superior é propiciar caminhos que sejam acessíveis e considerem as diferenças e as especificidades dos estudantes. A presença do estudante com TEA, em certa medida, coloca uma lente de aumento nas metodologias excludentes e na produção de conhecimentos atrelados a formas - de ser e de estar no mundo - bastante específicas e normocentradas.
Portanto, a diversidade do estudante com TEA, que também se materializa na produção escrita, inscreve a necessidade de tornar as mediações e as avaliações mais abertas à variação humana. E o que queremos ressaltar, por fim, é que essas dispersões de sentidos, esse alargamento em determinadas formações discursivas, são justamente os movimentos necessários para que as universidades se tornem espaços acolhedores, não apenas para determinados grupos, o que traria a memória de exclusão e poderia gerar novas lógicas de desigualdade, mas para todos.