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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.27 no.52 Salvador maio/ago 2018  Epub 02-Jul-2019

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2018.v27.n52.p101-121 

Dossiê Temático

IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DO TURISMO NA ILHA GRANDE-RJ

SOCIO-ENVIRONMENTAL IMPACTS OF TOURISM IN ILHA GRANDE-RJ

IMPACTOS SOCIOAMBIENTALES DEL TURISMO EN ILHA GRANDE-RJ

Gercton Bernardo Coitinho* 

Maria Geralda de Miranda** 

Reis Friede*** 

*Mestre em Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). Professor e Coordenador dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Marketing da Universidade Castelo Branco (UCB). E-mail: gercton@gmail.com

**Doutora em Letras com ênfase em estudos pós-coloniais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-doutora em Estudos de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora titular e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). E-mail: mgeraldamiranda@gmail.com

***Doutor em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local do Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). Professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. E-mail: reisfriede@hotmail.com


RESUMO

O turismo se desenvolve em ritmo acelerado na Ilha Grande desde os anos 1980, desencadeando impactos econômicos, sociais e ambientais. Através de pesquisa bibliográfica e documental, associada a entrevistas estruturadas com os habitantes locais, fez-se uma primeira análise desses impactos, focando nos aspectos socioambientais. Observa-se descompasso entre o número crescente de turistas e a evolução da infraestrutura para suportar tal afluxo sem ocasionar impactos ambientais negativos, assim como insipiente educação ambiental e baixo grau associativo dos ilhéus e, ainda, ocorrência de choques culturais advindos da interação entre os locais e os turistas devido às suas diferenças. É positivo gerar um processo que empodere os ilhéus, tornando-os protagonistas deste processo que envolve o desenvolvimento e a manutenção de infraestrutura, efetiva educação ambiental e capacitação da população de modo a permitir interação com outras culturas sem perda de autenticidade.

Palavras-chave: Turismo; Impactos sociais; Impactos ambientais; Desenvolvimento local

ABSTRACT

Tourism has been developing at an accelerated pace in Ilha Grande since the 1980s, inducing economic, social and environmental impacts. Through bibliographic and documentary research, associated with structured interviews with the local inhabitants, a first analysis of these impacts was made focusing on socio-environmental aspects. It can be observed that there is a mismatch between the increasing number of tourists and the evolution of infrastructure to support such an influx without causing negative environmental impacts, as well as insipient environmental education and low associative level of the islanders, and also the occurrence of cultural shocks arising from the interaction between the places and tourists due to their differences. It is positive to generate a process that empowers the islanders, making them protagonists of this process that involves the development and maintenance of infrastructure, effective environmental education and training of the population in order to allow interaction with other cultures without loss of authenticity.

Keywords: Tourism; Social impacts; Environmental impacts; Local development

RESUMEN

El turismo se desarrolla a ritmo acelerado en la Isla Grande desde los años 80, causando impactos económicos, sociales y ambientales. A través de investigación bibliográfica y documental, asociada a entrevistas estructuradas con los habitantes locales, se hizo un primer análisis de estos impactos enfocando en los aspectos socioambientales. Se observa: descompaso entre el número creciente de turistas y la evolución de la infraestructura para soportar tal aflujo sin ocasionar impactos ambientales negativos, así como insipiente educación ambiental y bajo grado asociativo de los isleños y, aún, ocurrencia de choques culturales provenientes de la interacción entre los locales y turistas debido a sus diferencias. Es positivo generar un proceso que empodera a los isleños, haciéndolos protagonistas de este proceso que involucra el desarrollo y mantenimiento de infraestructura, efectiva educación ambiental y capacitación de la población para permitir la interacción con otras culturas sin pérdida de autenticidad.

Palabras clave: Turismo; Impactos sociales; Impactos ambientales; Desarrollo local

Introdução1

A atividade turística vem assumindo uma relevância cada vez maior nas nossas sociedades. Essa atividade se define pelo deslocamento de pessoas que, motivadas por diversos fatores, afastam-se dos seus domicílios para visitar outros lugares e, assim, utilizam serviços e bens disponibilizados para permitir e/ou facilitar esta visitação. Os “negócios turísticos” consistem no emprego desses bens ou serviços pelas pessoas nesses deslocamentos (BARRETO, 2003; LOHMANN; NETTO, 2008; OLIVEIRA, 2008).

Nesse cenário, o Brasil atrai turistas do mundo inteiro, com os mais diversos interesses. De acordo com os dados divulgados pelo Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WORLD TRAVEL & TOURISM COUNCIL, 2016), o setor movimentou o total de R$ 514,3 bilhões em 2015, considerando as atividades diretas, indiretas e induzidas. Este montante é equivalente a 8,7% do PIB brasileiro do ano. O relatório também indicou que o turismo empregava 2.624.500 pessoas diretamente no mesmo período. Se incluídas as atividades indiretas e induzidas, o número total sobe para 7.342.500 empregados, o que representava 8% do total de empregos do país em 2015. Esses resultados econômicos refletem o interesse humano por viagens com as mais diversas finalidades, sendo as de turismo o objeto de análise deste trabalho.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reportou a existência de 1.332.260 empresas de serviços (não financeiros) no setor, produzindo R$ 1,4 trilhão de receita operacional líquida (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2014). Dados da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo (BRAZTOA) indicaram que o mercado turístico brasileiro faturou R$ 11,9 bilhões em 2014, enquanto a receita cambial turística no mesmo ano foi de U$ 6,8 bilhões, segundo o Ministério do Turismo (BRASIL, 2016). Esta tendência de crescimento na receita cambial turística reflete a propensão do aumento da compra dos serviços do turismo. Neste processo, são identificadas basicamente três fases distintas divididas entre os estágios de pré-compra, da experimentação pelo contato com o serviço contratado e a avaliação pós-compra (LOVELOCK, 2006). Embora esteja acompanhando a elevação progressiva mundial, a receita cambial brasileira representou em 2014 apenas 0,53% do total de divisas oriundas da atividade do câmbio turístico no mundo (BRASIL, 2016), fato que revela um imenso potencial a ser ainda explorado de forma racional e sustentável.

A bibliografia econômica que trata do turismo, quando trata dos impactos, foca principalmente nos positivos: balança de pagamentos; aumentos da produção e do emprego; maior arrecadação de impostos e melhoria qualitativa advinda da diversificação de fontes dos mesmos; eventual equidade do sistema, tanto pela melhor distribuição de renda, quanto pela maior integração social advinda dos novos postos de trabalho e das atividades geradoras de renda; possível ordenação do território; efeito benéfico resultante dos intercâmbios sociais e culturais; estímulo para investimentos novos; efeito multiplicador da renda. Os discursos divulgam os impactos positivos da atividade turística, servindo-se de indicadores e de alguns dados estatísticos para incensar o turismo, mas esta visão do tema não considera os outros aspectos envolvidos na complexidade do fenômeno turístico (DIAS, 2003; MOESCH, 2002). Nos Estados Unidos (GURSOY et al, 2002) e na Suíça (KRIPPENDORF, 2001), verificou-se que quanto pior é a percepção dos habitantes no que diz respeito ao estado da economia local, mais intenso será o apoio dos habitantes locais ao desenvolvimento do turismo.

Desde os anos 1970 que os pesquisadores passaram a considerar importantes os aspectos motivacionais, sociais e culturais, ademais dos impactos ambientais advindos da atividade turística (OLIVEIRA, 2008).

Na busca incessante por novos mercados, os ofertantes evidenciam seus diferenciais competitivos numa tentativa de persuadir os tomadores de decisão. Entretanto, o estudo do comportamento do consumidor demonstra que este processo é formado por uma complexa combinação de múltiplas variáveis que influenciam diretamente as escolhas dos compradores.

Kotler (2015) descreve quatro principais forças de influência no comportamento do consumidor: fatores culturais, fatores sociais, fatores pessoais e fatores psicológicos. Deve-se ressaltar, entretanto, que embora estejam assim elencadas, estas forças se entrelaçam em diversos momentos, demonstrando a complexidade do estudo das diversas motivações do consumo. A cultura parece ser a base universal para a compreensão do que gera os desejos e motiva os consumidores, pois as pessoas adotam para si os comportamentos, valores, costumes, percepções e desejos espelhando-se naquelas referências que lhe são próximas, quando crescem em uma determinada sociedade, sob o risco de desaprovação ou punição social (KOTLER, 2015; SOLOMON, 2002). A cultura influencia o comportamento social e, por conseguinte, diversifica enormemente a humanidade em seus padrões de consumo, já que a cultura e o consumo se entrelaçam em uma relação de mutualidade profundamente complexa (LARAIA, 2009). Segundo Samara (2005), parte do processo de aprendizagem dos valores culturais repassados às novas gerações se reflete na avaliação dos produtos, e pode se transformar em recomendações de compra. Os fatores sociais que afetam o comportamento do consumidor também são observados em pequenos grupos, família, papéis sociais e status. Solomon (2002) destaca a influência mais efetiva sobre os consumidores individuais como aquela exercida por pequenos grupos. Para o autor, estes grupos pequenos e informais tendem a ser mais importantes na vida cotidiana pela alta influência normativa, sendo os grupos maiores normalmente mais específicos de produtos e atividades, exercendo então uma influência comparativa. A partir daí Solomon (2002) descreve os grupos de associação e de aspiração que Kotler (2015) classifica em “grupos de associação”, como aqueles que exercem uma influência direta sobre uma pessoa que pertence a este grupo, e como “grupos de referência”, os que são tidos como parâmetro de comparação. Os “grupos de aspiração” são citados como “aqueles aos quais o indivíduo almeja pertencer” (KOTLER, 2015, p. 149). As interações entre grupos e indivíduos, segundo o que ressalta a teoria do capital social, são classificadas em dois tipos que se complementam: as excludentes (do inglês bonding) e as inclusivas, do tipo que estende pontes (bridging, em inglês) (OLINTO; MEDEIROS, 2013). Esta sensação de pertencimento aos grupos pode induzir os consumidores a fazerem escolhas nem sempre inteiramente conscientes (HAWKINS; MONTHERSBAUGH; BEST, 2007). As características pessoais como idade e estágio no ciclo de vida, ocupação, situação financeira, estilo de vida e personalidade também são descritas por Kotler (2015) como fatores de influência nas decisões de compra. Esta segmentação do mercado consumidor em grupos com as mesmas características ajuda os especialistas a formularem estratégias para fomentar o consumo de determinado bem ou serviço baseando-se na proposta de satisfação das necessidades destes grupos. Solomon (2002) descreve como a classe social afeta o acesso aos recursos e, consequentemente, os gostos e estilos de vida dos consumidores, quando buscam suprir necessidades que Barbosa e Campbell (2006) classificam como básicas e supérfluas. Os estudos das influências ditas pessoais na tomada de decisão tangenciam-se também na reflexão do estudo do “eu” e de suas motivações de consumo. Algumas necessidades podem ser de origem biológica, essenciais à manutenção da vida, enquanto outras são psicológicas. Para Kotler (2015), uma necessidade se torna um motivo quando sua intensidade move uma pessoa a satisfazê-la. A busca pelo entendimento da satisfação é estudo de diversas teorias da Psicologia sobre a motivação humana. Muito embora não esteja disponível um roteiro claro e comprovado que determine início, meio e fim para os desejos e as motivações, sabe-se que eles são compostos em parte pelo consciente e em outra parte pelo que se conhece como inconsciente. Para Freud, o desejo e o subsequente consumo são atividades afetadas por fatores que nem sempre são claros, guardados em algum lugar do subconsciente do comprador que, apesar da aquisição consciente, pode estar buscando a satisfação de necessidades em níveis desconhecidos de sua consciência (KOTLER, 2015). A implicação da teoria Freudiana aqui é que “os consumidores não conseguem [...] dizer qual sua verdadeira motivação para escolher um produto, mesmo se pudermos criar uma maneira sensível de lhes perguntar diretamente” (SOLOMON, 2002, p. 140). Embora a teoria de Freud faça uma distinção entre a consciência e os níveis de inconsciência, Jung (1987) ressalta que a relação entre os estados não é oposta e sim complementar, resultando na formação de uma nova unidade, o si-mesmo: “É impossível chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo porque, por mais que ampliemos nosso campo de consciência, sempre haverá uma quantidade indeterminada e indeterminável de material inconsciente, que pertence à totalidade do si-mesmo” (JUNG, 1987, p. 53). Há de considerar-se também que as indicações e recomendações de pessoas fidedignas e/ou de celebridades que já usufruíram de algum destino turístico exercem influência significativa sobre as decisões de potenciais consumidores de turismo.

A democratização do acesso à informação decorrente da popularização da internet facilitou a busca por roteiros até então desconhecidos da maioria das pessoas, gerando uma demanda incompatível com a capacidade de carga de alguns destinos e trazendo consigo os problemas decorrentes da ocupação humana desordenada, ainda que temporária.

O conceito de ecoturismo surge então como uma tentativa de conciliação entre o desfrute prazeroso de uma viagem de lazer e a menor alteração possível do estado natural do local visitado, para que a atividade continue sendo atrativa e possível para as próximas gerações.

Pode-se observar que a Ilha Grande vem sofrendo visíveis mudanças ambientais e sociais a partir da crescente expansão do turismo, que se tornou a principal atividade econômica da ilha após a queda na atividade de pesca comercial, aliada à desativação do complexo penal. Esta expansão do turismo trouxe consigo a especulação imobiliária e, economicamente, resultou na migração compulsória dos caiçaras2 de outras partes da ilha para a Vila do Abraão. A infraestrutura urbana da Vila do Abraão não acompanhou o ritmo de adensamento populacional originado pelo turismo, o que ocasionou a precarização dos serviços públicos - abastecimento de água, esgotamento sanitário, recolhimento e destinação do lixo etc.; assim, tornou-se evidente a necessidade de repensar o modelo de turismo explorado atualmente.

Ainda que na teoria as linhas de pensamento contemporâneas apontem para a necessidade de um direcionamento de gestão do turismo social e ambientalmente responsável, o que se percebe ainda são mais apelos comerciais do que ações efetivas e amplas que se preocupem com a sustentabilidade da atividade (KRIPPENDORF, 2001). Entretanto, conforme observa Swarbrooke (2000), a busca de uma definição conceitual para turismo sustentável poderia, erroneamente, simplificar a complexidade do tema, que vem sendo amplamente discutido pela comunidade científica, sociedade e por autoridades mundiais.

Em sua implantação e desenvolvimento, o ecoturismo deve respeitar os critérios socioambientais que irão conferir sustentabilidade ao turismo como uma atividade econômica e social permanente que poderá vir a promover o desenvolvimento sustentável da sociedade local. Com frequência maior que a desejada, observa-se a distorção deste conceito ou o uso enviesado da expressão “ecoturismo”, ou, ainda, a apropriação de roteiros ecoturísticos por outras modalidades de turismo, sem nenhum respeito aos critérios de sustentabilidade do mesmo (OLIVEIRA, 2008).

Os impactos da ação humana são mais evidentes nos locais onde o fluxo de turistas é maior, como, por exemplo, no local considerado a “capital” da ilha, a Vila do Abraão, que concentra a imensa maioria dos turistas. Contudo, a ilha ainda preserva várias de suas características naturais em grande parte do seu território, especialmente nas áreas onde o acesso do público é restrito. Em 1971, o Decreto Estadual nº 15.273 criou o Parque Estadual da Ilha Grande, considerado patrimônio nacional pelo disposto no §4 do art. 255 da Constituição de 1988, em razão de seu bioma de Mata Atlântica e sua localização na zona costeira. Em 1991, o Decreto nº 40.602 ratifica e consolida a criação do parque, além de ampliar a área protegida, incluindo todas as terras com altitude acima de 100m, entre outras (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 1971, 2007).

A breve descrição histórica da ilha se faz necessária para o entendimento dos fatos que levaram às mudanças sociais ao longo dos séculos, especialmente na transição entre as fases de economia distintas na ilha: a agricultura, com lavouras de cana-de-açúcar, café e banana, com as quais atravessou os períodos colonial e imperial; as atividades envolvidas na operação, inicialmente, do lazareto de quarentena de imigrantes, construído durante o segundo reinado e, posteriormente, dos presídios, já na República; com o fim das instituições penais existentes na Ilha Grande, surgiu a pesca, atividade que quando apresentou seu declínio se fez acompanhar de uma insipiente maricultura e, finalmente, o turismo. Estes fenômenos sociais não podem ser negligenciados ou relegados a segundo plano, já que estão, direta ou indiretamente, como causa primária ou como co-partícipes, vinculados aos impactos ambientais que podem comprometer o futuro da atividade turística na Ilha Grande.

O estabelecimento da atividade turística não aconteceu instantaneamente. Ainda antes de existir qualquer estrutura básica que lhe desse suporte, a maravilhosa natureza local, aliada à idiossincrasia dos autóctones, que vai da cultura policialesca brasileira, remanescente das estruturas prisionais até o desafio sereno da cultura própria dos pescadores, funcionava como grande atrativo turístico da Ilha. A esta primeira fase sucedeu a de criação de estruturas adaptadas ou construídas para responder às demandas do turismo. Esta segunda fase foi assegurada por investimentos autóctones e, também, realizados por habitantes das circunvizinhanças municipais, com participação em tempo e volume distintos por parte dos poderes públicos estaduais e municipais. Com a segunda fase foram atendidas as necessidades imediatas do turismo; mas também vieram os impactos econômico-socioambientais característicos do início da atividade turística, que não foi precedida de um planejamento técnico com participação protagonista da população local.

A avaliação dos impactos, positivos e negativos, apresenta diversas dificuldades, uma vez que ainda não existe sistemática consagrada para tal e, pelo seu caráter interdisciplinar, envolve variáveis quantitativas e qualitativas, algumas de difícil mensuração, ou porque o acesso é dificultoso; ou, então, porque o efeito da ação é diferido longamente no tempo e impossível de ser avaliado em tempo de atividades acadêmicas. No caso de outras variáveis, como, por exemplo, as culturais, é complexo ou impossível separar os efeitos da influência da interação dos autóctones com os turistas daqueles originados nos meios de comunicação de massa que divulgam comportamentos e hábitos distintos dos que os habitantes empregavam antes da chegada dos turistas e/ou do acesso contumaz a estas mídias.

Na Nova Zelândia, em 1998, elaborou-se uma lista de quesitos para tentar avaliar os impactos da atividade turística em dez comunidades. Os impactos foram elencados em seis grupos: econômico (novos investimentos, entrada de capitais, inflação localizada, ativação de negócios locais); emprego (criação de empregos para a comunidade local, qualidade dos empregos, fomento indireto à criação de empregos); infraestrutura (aumento da atividade construtora privada e pública, aumento do volume de negócios com os locais); efeitos sociais adversos (prostituição, poluição sonora, aumento da criminalidade, sujeira, desordem); contato com turistas (número de visitantes recebidos em relação à população local, tempo de estadia, diferenças de comportamento) e atmosfera da cidade (alterações na qualidade de vida dos residentes, característica físicas do local, sentimento de pertencimento dos residentes às suas comunidades) (OLIVEIRA, 2008).

Scheyvens (1999), trabalhando o empoderamento da população local, utiliza a descrição de impactos em quatro categorias como forma de identificar as comunidades fortalecidas ou não: econômico (oportunidades de emprego, formal e informal, e oportunidade de negócios, avaliando regularidade dos ganhos e forma de distribuição dos benefícios), psicológicos (autoestima, valorização da cultura e tradições locais), social (crimes, mendicância, sensação de lotação, desapropriação de terras tradicionalmente ocupadas por moradores, perda de autenticidade e prostituição) e público (participação nas decisões).

Assim, o presente trabalho tem por objetivo analisar o desencadear das atividades turísticas na Ilha Grande, estudar sua evolução e delinear propostas de solução para problemas encontrados.

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida na Ilha Grande, município de Angra dos Reis-RJ (Latitude: 23º 00’ 24” S; Longitude: 44º 19’ 05” W; Altitude: 6m). A Ilha Grande é a maior ilha do estado do Rio de Janeiro e a quinta maior ilha marítima do Brasil. Possui uma área de 193 km², com relevo acidentado e montanhoso, cuja maior elevação é o Pico da Pedra D’Água, com 1.031 metros. Suas costas são recortadas por inúmeras penínsulas e enseadas, formando várias praias. A vegetação é exuberante, formada por mata atlântica, mangue e restinga.

O acesso à Ilha Grande é feito a partir de diversos pontos no continente, já que as distâncias não são grandes. Contudo, o transporte regular normalmente parte de três principais locais: o porto de Angra dos Reis, a 25 Km do Abraão, normalmente utilizado pelos visitantes oriundos de São Paulo; o cais de Conceição de Jacareí, que representa a menor distância entre a rodovia Rio-Santos (BR-101) e o cais do Abraão (a 11,7 Km); e, por último, o cais de Mangaratiba, onde embarca normalmente quem visita a ilha a partir da cidade do Rio de Janeiro, como visto na Figura 1. (página seguinte)

Fonte: Ilha Grande (2017).

Figura 1 Principais rotas de travessia da Ilha Grande ao continente 

Optou-se pela pesquisa exploratória descritiva, de natureza bibliográfica e documental, combinada com um estudo de campo que envolveu reportagem fotográfica e entrevistas em profundidade com os residentes, operadores de turismo e responsáveis por instituições públicas relacionadas à atividade turística.

As fotografias que retratam a Ilha Grande no passado foram obtidas a partir do acervo do jornal Correio da Manhã, disponíveis no Arquivo Nacional (AN); da revista O Cruzeiro, disponível na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (BN) e do acervo do Museu do Cárcere, na Ilha Grande. Também foram fonte de consulta de documentos os jornais O Globo e Jornal do Brasil.

A Vila do Abraão, ou, como a ela se referem os autóctones, simplesmente “Abraão”, é a porta de entrada da grande maioria dos visitantes, uma vez que dispõe do principal terminal de ligação aquaviária com o continente, sendo aqui considerada o locus da observação. É a comunidade onde se concentra a maior parte das hospedarias, restaurantes, lojas de artesanato, de conveniências e agências de turismo que vendem seus passeios de barcos para toda a ilha. Pela concentração de pessoas - e consequente evidência dos impactos causados por estas - a Vila do Abraão é o recorte espacial da pesquisa deste estudo. Não se pode desprezar, contudo, observações sobre a Vila de Dois Rios por sua fundamental importância histórica no processo de povoamento insular, especialmente pela ligação intrínseca da vila com o sistema penitenciário.

Resultados e discussão

A região da Costa Verde vem se consolidando como destino turístico relativamente há pouco tempo. Com a queda na atividade pesqueira, observada a partir da década de 1970, e da desativação do último presídio na ilha, em 1994, o turismo passa a ocupar a posição de destaque na economia insular.

A falta de infraestrutura na ilha já era vista como um problema ainda na década de 1970, prejudicando a vida cotidiana do morador; a inexistência de estruturas para o lazer fazia com que restassem as belezas naturais de suas praias como único atrativo. Este cenário ajudava a manter afastados os eventuais turistas: “Os ilhéus têm nas praias seu único lazer, pois o único cinema que havia na Vila do Abraão [...] está fechado há cinco anos, e se alguma diversão existe é só para os homens: duas maltratadas mesas de sinuca” (ILHA..., 1976).

Os ilhéus dependiam do presídio para quase tudo, desde a energia elétrica,3 gerada a partir da usina do presídio, até ao comércio, movimentado pelos visitantes dos presos e famílias dos funcionários do sistema carcerário.

A violência e as condições desumanas relatadas nas denúncias da imprensa (YOUTUBE, 2017a, 2017b, 2017c) - que muitas vezes geravam ainda mais violência entre os detentos -, especialmente durante as duas décadas finais de existência do Instituto Penal Cândido Mendes (IPCM), despertavam no imaginário popular a sensação de insegurança inerente aos grandes centros urbanos (AMORIM, 1994), afastando qualquer ideia de lazer, descanso ou férias, com uma verdadeira panela de pressão bem ao lado. Panorama social que começou a ser modificado com a desativação do IPCM:

Em 1994, junto com a retirada dos presos, todo o aparato administrativo da penitenciária foi desfeito; agentes e policiais transferidos para outros complexos penais e a região abandonada. No entanto, muitos dos ex-funcionários do Instituto Penal mantiveram suas moradias na ilha, onde nasceram, foram criados e se casaram. Lá também viveram seus pais e avós, da mesma maneira que hoje vivem seus filhos e netos. Alguns dos policiais que chegaram de fora também continuaram na região, uma vez que lhes foi permitido manter as casas oficiais. (SANTOS, 2006, p. 198).

A população da Vila de Dois Rios, essencialmente composta por pessoas ligadas ao sistema carcerário, estava acostumada com a rotina do presídio e por isso não desenvolveu uma cultura de atuação e participação política autônoma, sendo preservada, mesmo após a implosão dos prédios do complexo, a “cultura policialesca brasileira” (GOMES, 2006).

São percebidos na vila, mesmo que informalmente, os antigos métodos coercitivos herdados da hierarquia militar pelos ex-agentes do IPCM, quando se trata da manutenção da ordem e repressão aos crimes cometidos pelos “de fora”. “O nudismo, o atentado ao pudor, o uso de drogas ilegais e o homossexualismo” (GOMES, 2006, p. 235) são algumas das descrições que refletem a percepção dos delitos cometidos pelos turistas não apenas como um problema objetivo de degradação ambiental, mas também de caráter simbólico como atitudes contra os costumes dos nativos. Logo, se antes a vigilância da comunidade se voltava ao detento fugitivo, hoje está atenta ao comportamento dos visitantes.

Verifica-se então uma notória divisão em “antes e depois” do presídio no comportamento social dos moradores que atravessaram o período de transição do cárcere ao turismo. A mais evidente percepção, apesar de não haver infraestrutura hoteleira na Vila de Dois Rios, é a intensificação do fluxo de turistas, que pode chegar a 800 pessoas (day-users), originados, em sua maioria, da da Vila do Abraão (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012a).

A população fixa do Abraão vem crescendo desde o final da década de 1990, embora não se tenha percebido um aumento proporcional no número total de habitantes, o que levanta a hipótese de uma concentração demográfica na Vila do Abraão que pode estar associada ao aquecimento do setor turístico dos últimos anos.

Tabela 1 Comparativo percentual da população fixa total da ilha X Abraão 

População Fixa Ilha Grande População Fixa Abraão % Abraão
Censo IBGE 1991 4.351 1.079 24,80 %
Censo IBGE 1993 4.363 1.139 26,11 %
Censo IBGE 2000 4.511 1.481 32,83 %
Projeção IBGE 2006 5.545 1.821 32,84 %
Censo IBGE 2010 5.021 1.971 39,25 %

Fonte: Adaptado de Instituto Estadual do Ambiente (2012b, p. 11-12) e Wunder (2006).

Complementando o entendimento acerca da evolução da atratividade turística da ilha, pode-se tomar como base os dados sobre a população flutuante. A estimativa foi obtida a partir da análise de quatro diferentes grupos de visitantes, segmentados pela estrutura de estadia escolhida.

Tabela 2 População flutuante na Ilha Grande em dois cenários sazonais 

ANO BASE: 2010 Alta temporada (nov./mar.) Picos da alta temporada (Carnaval e Réveillon)
Hospedados em pousadas, hostels etc.; 3.199 3.901
Hospedados em campings; 1.594 3.130
Outras hospedagens (casa de amigos, familiares, veraneio etc.) 3.210 3.985
Day Users (visitantes que não pernoitam na ilha) 2.156 2.422
TOTAL DA POPULAÇÃO FLUTUANTE 10.159 13.438

Fonte: Adaptado de Instituto Estadual do Ambiente (2012b, p. 14).

Numa comparação entre os resultados obtidos, verifica-se que a população total da ilha (somando-se população fixa e flutuante) representou 15.180 pessoas durante a alta temporada, excetuando-se deste período o réveillon e o carnaval, que representam os picos da estação. Nestes picos sazonais, a população total alcançou a marca de 18.459 pessoas naquele ano (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010).

Para a hospedagem desses visitantes, nota-se que o número de acomodações na Vila do Abraão é o dobro do total de leitos oferecidos em todas as demais localidades da Ilha Grande, acompanhando a tendência de concentração populacional no Abraão, que pode ser considerado um indício das transformações sociais que estão ocorrendo na ilha.

Tabela 3 Número de leitos disponíveis na Ilha Grande 

Localidade Leitos em pousadas, albergues etc. Leitos em campings Leitos em outras hospedagens (casa de amigos, familiares, veraneio e outros) TOTAL em 2010
Araçatiba 245 0 74 319
Aventureiro 0 480 0 480
Bananal 342 0 103 445
Enseada das Estrelas (Saco do Céu) 60 0 18 78
Enseada das Palmas 18 860 5 883
Matariz 80 0 24 104
Parnaioca 0 100 0 100
Praia Vermelha 116 0 35 151
Sítio Forte 123 0 37 160
Vila do Abraão 2.917 1.690 875 5.482
TOTAL 3.901 3.130 1.170 8.201

Fonte: Adaptado de Instituto Estadual do Ambiente (2012b).

Paralelamente aos sistemas de hospedagens citados, o fenômeno dos day users também deve ser considerado no desenho do visitante como parte da população flutuante. Diante deste cenário, a Tabela 4 indica a quantidade de atracações de navios transatlânticos em escala na Ilha Grande, comparado a Angra dos Reis. A inversão da quantidade de escalas ao longo dos anos indica a preferência da Ilha Grande como destino turístico de escala, frente à porção continental do município. Em sua análise, Santiago (2010, p. 107) chama atenção para “uma crescente preocupação com a questão, que impulsiona uma reflexão local sobre a presença dos grandes navios de passageiros”. À primeira vista, um número maior de visitantes pode indicar um impulso econômico na atividade turística, mas a característica all included de grande parte dos navios garante que o turista satisfaça boa parte de suas necessidades por meio do serviço contratado. Cabe aqui então a reflexão sobre o papel deste turista como consumidor na ilha, que pode ser considerado negativo nos aspectos econômico e ambiental, mas que não deve ser evitado em razão do efeito propagandístico benéfico para o destino turístico (FUNDAÇÃO DE TURISMO DE ANGRA DOS REIS, 2016).

Tabela 4 Escalas de transatlânticos em Angra dos Reis e Ilha Grande 

Temporada Angra dos Reis Ilha Grande Maioria das escalas
2000/2001 0 0 -
2001/2002 16 0 Angra dos Reis
2002/2003 8 0 Angra dos Reis
2003/2004 0 0 -
2004/2005 14 0 Angra dos Reis
2005/2006 12 0 Angra dos Reis
2006/2007 61 0 Angra dos Reis
2007/2008 30 27 Angra dos Reis
2008/2009 7 35 Ilha Grande
2009/2010 25 66 Ilha Grande
2010/2011 40 28 Angra dos Reis
2011/2012 34 28 Angra dos Reis
2012/2013 32 38 Ilha Grande
2013/2014 25 42 Ilha Grande
2014/2015 18 43 Ilha grande
2015/2016 8 39 Ilha Grande
2016/2017 3 40 Ilha Grande

Fonte: Adaptado de BRASILCRUISE (2017).

Cabe ressalvar a dificuldade de mapeamento exato do número de embarcações que atuam na Baía da Ilha Grande. O relatório do INEA (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012b, p. 51) cita como principais obstáculos a “forte informalidade nos negócios, [...] e um fluxo migratório de embarcações que se dirigem a outras localidades em períodos de baixa estação” e a Fundação de Turismo de Angra dos Reis (TURISANGRA) informa que:

Não há registros da quantidade de embarcações que operam com turismo náutico em Angra dos Reis. Uma vez que a Prefeitura de Angra, o Conselho Municipal de Turismo e o SEBRAE estão empenhados em um projeto de ordenamento e aprimoramento do setor, uma das primeiras ações deverá ser o dimensionamento da atividade. Dessa forma, está sendo elaborado a minuta de um decreto instituindo o cadastramento obrigatório de embarcações que atuam comercialmente com o turismo. Por essa proposta, os operadores deverão efetuar inscrição de sua frota na Fundação de Turismo de Angra dos Reis. No formulário, são solicitadas informações sobre a empresa e sobre a embarcação. A sistematização desses dados constituirá importante ferramenta no planejamento de projetos de infraestrutura, ordenamento e gestão ambiental. (FUNDAÇÃO DE TURISMO DE ANGRA DOS REIS, 2016, p. 19).

No grande número de ancoradouros identificados, especialmente na parte abrigada da ilha (norte), a oferta de embarcações particulares que fazem a travessia é cada vez maior, embora o Grupo CCR tenha o direito da exploração comercial do transporte público oficial por concessão do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que anteriormente pertencia à Barcas S/A:

Os visitantes chegam à Ilha Grande através de: I) barcas da Concessionária Barcas S/A, que detém uma concessão pública para explorar os trechos entre a Vila do Abraão e Angra dos Reis e Mangaratiba; II) escunas que partem dos atracadouros de Mangaratiba, Conceição de Jacareí e Angra dos Reis em horários que mudam ao longo do ano; III) embarcações de diversos tamanhos, que saem de vários atracadouros dos municípios de Mangaratiba e Angra dos Reis sem regularidade de horário e com preço a combinar; IV) lanchas particulares de lazer e barcos à vela e V) transatlânticos. Estima-se que apenas entre 15 a 20% dos visitantes cheguem à ilha por meio de transporte operado através de concessão. (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012, p. 47).

O Gráfico 1 ilustra a evolução da quantidade de passageiros transportados na linha regular da concessionária CCR Barcas, na linha Mangaratiba-Abraão, desde o início da operação. O pico foi alcançado em 2014, quando a linha transportou 302.868 passageiros, como informado no relatório técnico 037/2017 da Câmara de Transportes e Rodovias da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (AGETRANSP).

Fonte: Adaptado de Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários e Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (2017).

Gráfico 1 Quantitativo anual de passageiros na linha social Mangaratiba-Abraão. 

A inegável vocação natural do turismo na ilha é percebida por Gomes (2006), Prado (2003), Santiago (2010) e Wunder (2006) como uma substituição espontânea das atividades econômicas, frente à combinação entre a extinção do sistema carcerário e a diminuição da atividade de pesca. Apesar disso, não se pode desprezar o fato de que o crescimento do turismo já se fazia presente no início da década de 1990, o que pode ser constatado a partir de dois indicadores: transporte e hospedagem. Em 1992, 1993 e 1994 - ano da implosão do último complexo penitenciário da ilha - foram registrados respectivamente 114.812; 130.273 e 168.734 viagens na linha regular Mangaratiba-Abraão, e no mesmo período, Wunder (2006) descreve o aumento exponencial na oferta do número de camas e pousadas tanto em Abraão quanto na ilha como um todo.

Atualmente, o paraíso4 recebe turistas do mundo inteiro em busca de seus atrativos naturais e culturais. Existem hoje dez agências de turismo em operação na Ilha Grande, que oferecem pacotes de passeios marítimos, venda de passagens e translado de barco, caminhadas, mergulho, transfer e receptivos do aeroporto e rodoviária para a ilha.

O crescimento do turismo ao longo das duas décadas posteriores à desativação do presídio pode ser considerado como uma mudança inexorável. Seja pela tendência natural, que já demonstrava sinais isolados de mudanças nas dinâmicas econômicas, seja pela percepção dos visitantes que a ilha estaria mais segura sem os prisioneiros, o fato é que a Ilha Grande entrou em uma espécie de espiral de interesses.

Estimulados pelo interesse na proposta de lazer que motiva as viagens de 97% dos visitantes,5 empresários buscam satisfazer as necessidades dos consumidores, que, satisfeitos, em parte pelo serviço e em parte pela própria atratividade da natureza, recomendam a ilha a outros consumidores. Estes, por sua vez, engrossam a estatística de visitantes, atraindo novos ou expandindo os negócios existentes na ilha.

Esse ciclo de crescimento econômico trouxe consigo os problemas observados na Ilha Grande ultimamente. Fala-se bastante, atualmente, em especulação imobiliária com o surgimento de pousadas e empreendimentos em busca de novas atrações turísticas na ilha. Durante uma das visitas para a pesquisa de campo, foi possível observar a movimentação intensa de carreteiros desembarcando os mais diversos gêneros de materiais para construção. O transporte de cimento, gesso, esquadrias de alumínio, tijolos e treliças de aço indicam que a construção civil está preparando a ilha para receber mais turistas na próxima temporada. Essa movimentação acontece longe dos olhos dos visitantes, já que em uma tarde de segunda-feira da baixa temporada, poucos eram os que estavam na Vila do Abraão. A atividade na vila, aliás, se dá em horários bem definidos: os horários de chegada e partida das barcas da concessionária. É possível acompanhar a movimentação dos agentes, interessados em recepcionar quem chega por essas embarcações. São oferecidos hospedagem, passeios de barco, opções de turismo de natureza ou mesmo o transporte com as malas até a pousada, já que a ilha não dispõe de veículos particulares.

A Vila do Abraão possui duas estruturas destinadas ao apoio da atividade náutica: a Estação Abraão, que é administrada pela TURISANGRA e atende aos passeios turísticos e embarcações particulares; e o Cais das Barcas, que é utilizado pela concessionária para a atracação das barcas das linhas regulares, bem como para o transporte de cargas e do lixo de toda a ilha, que segue dali para o continente (FUNDAÇÃO DE TURISMO DE ANGRA DOS REIS, 2016). A frequente atividade de atracações no cais das barcas coloca em risco quem desembarca ou embarca no local, já que a estrutura da plataforma, embora interditada pela Defesa Civil do município de Angra dos Reis desde 2014, continuou operando parcialmente até maio de 2017.

Fonte: Acervo pessoal do autor (2017).

Figura 2 Cais do Abraão - detalhe da estrutura do cais em colapso, escorada por estacas de madeira enquanto carreteiros aguardam a próxima carga ancorar 

A responsabilidade pelo cais é motivo de atrito entre as esferas do poder público, pois não se sabe ao certo sobre sua propriedade, e este embate burocrático acaba impedindo a solução do problema. Em junho de 2017, a Fundação de Turismo de Angra dos Reis assumiu o compromisso de resolver o problema, em parceria com o Governo do Estado do Rio de Janeiro, de onde viria o aporte financeiro para custear as obras. Entretanto, em razão do estado de calamidade financeira decretado pelo Governo Estadual em junho de 2016, as obras do cais ainda não foram iniciadas e todas as operações com embarcações na Vila do Abraão estão sendo feitas através da Estação Abraão. O píer de madeira recebeu então a adaptação de duas estruturas metálicas de reforço estrutural fixadas na base de concreto, assim as grandes embarcações não têm contato com o deck de madeira.

Fonte: Acervo pessoal do autor (2017).

Figura 3 Estrutura de proteção adaptada ao píer da Estação Abraão. 

O aumento da concentração demográfica na Vila do Abraão também exigiu um ordenamento sanitário para o tratamento do esgoto e abastecimento de água potável. Os sistemas de esgoto sanitário na ilha são, de forma geral, rudimentares, como fossas ou sumidouros. O relatório de levantamento das informações, sistematização e análise crítica da situação atual das atividades turísticas na Ilha Grande destaca que:

Soluções de esgotamento sanitário e seu tratamento apresentam condições de precariedade, sejam das suas instalações ou da própria operação do sistema, que imputam diversos problemas e impactos resultantes da falta de eficiência de remoção de cargas orgânicas, nutrientes e patógenos nestes sistemas. Assim, além de ocorrerem problemas físicos nos sistemas as consequências são bastante negativas quanto a contaminação dos recursos hídricos e também do comprometimento de condições ambientais quanto a poluição de cursos d’água e da região do estuário, trazendo implicações a saúde pública local. (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012, p. 123).

Apenas a Vila do Abraão é atendida, mesmo que parcialmente, por uma estação de tratamento de esgoto (ETE), sob responsabilidade do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Angra dos Reis (SAAE). Composta principalmente por um reator anaeróbio de fluxo ascendente (RAFA), o sistema possui dois problemas principais: na sua implementação não houve um programa de educação ambiental que ajudasse na conscientização da população quanto ao despejo de produtos químicos nocivos aos agentes bacteriológicos que ajudam na decomposição da matéria orgânica, bem como materiais sólidos descartados na rede sanitária, que prejudicam o funcionamento do RAFA; e não foi previsto um plano de manutenção preventiva, sendo apenas consertado sob demanda.

Ao analisar a rede de coleta de esgotos na Vila do Abraão a partir do diagrama exibido na Figura 4, pode-se constatar que mais da metade da vila não dispõe do serviço de esgoto, corroborando a hipótese que os rejeitos destes imóveis sejam vazados diretamente nos rios que desembocam no Abraão.

Fonte: Adaptado de Instituto Estadual do Ambiente (2012b).

Figura 4 Localização e desembocadura do emissário submarino da ETE Abraão. 

Durante uma das visitas à ilha, essa falta de manutenção pôde ser comprovada. Na ocasião, em razão de um rompimento no emissário,6 o reator encontrava-se desligado para manutenção, despejando grande volume de esgoto a cerca de vinte metros da faixa de areia da praia do Abraão. Não foi verificado nenhum aviso sobre a restrição da balneabilidade. De acordo com o INEA (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012b), os próprios moradores afirmam também que é possível identificar periodicamente na praia a pluma de dispersão do emissário submarino.

Fonte: Acervo pessoal do autor (2017).

Figura 5 Duto do emissário submarino da ETE Abraão e o local do rompimento indicado pelo esgoto vazado na praia. 

O RAFA também sofre alterações em seu funcionamento devido às constantes faltas de energia na ilha, já que, quando desligado, serve apenas como uma caixa de passagem sanitária, ocasionando o transbordo de efluentes nas elevatórias que vazam para os córregos e rios da vila, que criam “línguas negras” na areia das praias do Abraão.

Após quase sete anos de expectativa, em 2016 foram iniciadas as obras do Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur), no Abraão. Orçado em R$ 28 milhões, o projeto criado para fomentar o turismo previa um conjunto de melhorias estruturais na vila, como “dois novos sistemas de abastecimento de água e de saneamento e a urbanização da vila, com calçamento, drenagem, recuperação estrutural, construção de pontes, paisagismo e iluminação pública” (ANGRA DOS REIS, 2016). As obras foram iniciadas em 2016, mas o repasse de recursos financiados pelo Governo Federal, junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), à Secretaria Estadual de Obras não foi autorizado, devido ao endividamento do Governo Estadual. Com previsão de inauguração em julho de 2017, verificou-se que a conclusão não cumpriria o cronograma de obras, já que até a última visita à ilha, em junho de 2017, o pátio de obras continuava fora de operação.

Além do esgoto, o lixo também é um problema visível na ilha, já que não existem condições técnicas (e aqui incluem-se as ambientais) para a construção de uma usina de beneficiamento de resíduos sólidos. A coleta na Vila do Abraão é realizada diariamente pelo sistema convencional, no qual o lixo recolhido é misturado e então transportado ao continente.

O efetivo conta com dezesseis pessoas na limpeza urbana e coleta, com o apoio de dois tratores, um caminhão basculante de 6/8m³ e oito carretas para acoplar aos tratores. Estas carretas, quando cheias, são estacionadas em um terreno próximo ao cais, aguardando a embarcação que faz o transporte dos resíduos ao continente. O lixo é então acondicionado em sacos plásticos padronizados pela empresa de coleta, a fim de evitar vazamentos tanto no cais quanto na embarcação, que podem terminar no mar.

O serviço de coleta demanda especial atenção durante a alta temporada:

Durante alta temporada a coleta é realizada por duas equipes, a área do comercio e restaurantes é coletada com o caminhão basculante e a área residencial com o trator e carretas. Em função desta dinâmica de trabalho, o serviço passou a terminar mais cedo na alta temporada, em torno de 14h, enquanto que anteriormente terminava à noite. Ainda durante a alta temporada, muitas vezes há necessidade do uso de dois barcos, um pequeno e um grande, fazendo duas viagens para o continente. Em geral, os resíduos são acondicionados em sacos plásticos de diversas dimensões e o armazenamento temporário até o momento da coleta se dá de diversas formas: diretamente no chão, em carrinhos, na árvore, em contentores, latões etc., ou seja, não há padronização para a apresentação dos resíduos à coleta. (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012b, p. 163).

É possível observar, ao longo das principais ruas e de algumas trilhas da vila, lixeiras com a indicação “papel”, entretanto não existe coleta seletiva na ilha. De acordo com a ONG Organização para a Sustentabilidade da Ilha Grande (OSIG),7 algumas iniciativas de educação ambiental já funcionaram como estímulo para que os moradores fizessem a separação do lixo orgânico do lixo seco, porém, como o material separado era misturado no barco de transporte ao continente, aos poucos a prática foi sendo abandonada. Esta separação do lixo se faz necessária especialmente em outros povoados da ilha, onde a coleta não tem regularidade diária, como na Vila de Dois Rios, onde o caminhão recolhe quinzenalmente o lixo.

Além do lixo domiciliar, o gerenciamento dos resíduos sólidos na Vila do Abraão é administrado de acordo com o Quadro 1.

Quadro 1 Gerenciamento de resíduos sólidos na Vila do Abraão, por tipo 

Tipo de resíduo Sistema de coleta Destino final
Domiciliar Porta a porta Aterro sanitário Ariró
Óleo de cozinha Ponto de entrega voluntária no SAAE; coleta em restaurantes credenciados. Disque Óleo
Resíduos de saúde PACS Abraão Coleta quinzenal no CS realizada pela mesma equipe e equipamento da coleta domiciliar; perfuro cortante em média 4 cx grandes do geral e 1 cx de lixo odontológico; lixo biológico 1 saco 100l/dia. Transportados pela embarcação até o continente; existe coleta especial para os resíduos infectantes no cais de Angra
Podas Mediante agendamento com a subprefeitura O serviço de coleta de podas parou de ser realizado devido a ausência de local adequado para descarte destes resíduos na vila (até pouco tempo era descartado em vale ao lado da curva do Jacatirão na estrada para Dois Rios); há dificuldade em identificar local para instalação do triturador
Descartes Volumosos Moradores devem guardar até o dia definido para coleta e, ou, agendar a coleta com a subprefeitura; Quinzenalmente a embarcação faz o recolhimento (conforme folheto entregue pela subprefeitura). Há previsão de interrupção neste serviço, devido a dificuldades no orçamento municipal
Eletrônicos Não foi identificado sistema de coleta especial destes resíduos. É possível levar ao PEV em Angra; entrega no dia de coleta dos volumosos.

Fonte: Adaptado de Instituto Estadual do Ambiente (2012b).

Algumas iniciativas buscam minimizar os impactos do descarte desses resíduos. Desde 1989, a Brigada Mirim Ecológica da Ilha Grande desenvolve atividades que buscam preservar o ambiente natural da ilha, pelo trabalho de conscientização e educação ambiental promovido por brigadistas e voluntários. De acordo com os dados do último relatório anual de transparência da organização, 42 brigadistas atuavam em 8 localidades da Ilha Grande, sendo a distribuição do contingente proporcional à concentração de visitantes. Entre as diversas atividades, os brigadistas mirins distribuem sacolas de papel aos visitantes e explicam a importância do descarte correto do lixo para a manutenção das areias e trilhas livres de rejeitos sólidos (BRIGADA MIRIM ECOLÓGICA DA ILHA GRANDE, 2014). Apesar do esforço contínuo na conscientização, não é difícil encontrar resíduos ao longo dos locais mais frequentados pelos visitantes, que fazem parte do circuito turístico do Abraão, uma das opções de lazer mais utilizadas pelos day users.

Um fenômeno recorrente que pode ser observado nas últimas trocas de gestão municipal é o acúmulo de lixo entre o réveillon e o carnaval. Por problemas contratuais, a empresa de coleta de lixo presta serviços até o último dia do ano, o que em uma mudança de gestão representa um vácuo entre o fim de um governo e o término do prazo para a licitação de um novo contrato. Durante este período, são amplamente divulgados na imprensa os problemas decorrentes do acúmulo de lixo. Em fevereiro de 2017, uma força tarefa foi mobilizada para remover as mais de 200 toneladas de lixo acumulado na ilha, que produz diariamente 15 toneladas de resíduos (ANGRA DOS REIS, 2017). Os serviços de recolhimento de inservíveis, entulhos e restos de podas também estavam suspensos. Portanto, cabe aqui também a observação dos entulhos resultantes das obras tanto em imóveis residenciais como comerciais, na permanente preparação da ilha para receber cada vez mais visitantes no verão seguinte, já que estes também não recebem o destino adequado.

O Decreto nº 20.172, de 1994, instituiu o Plano Diretor da Área de Proteção Ambiental de Tamoios (APA-Tamoios), criada pelo Decreto nº 9.452, de 1986 (ANGRA DOS REIS, 1994). O plano adotou medidas regulatórias quanto à ocupação da área e do exercício de atividades prejudiciais ao meio ambiente, dividindo a APA em quatro zonas, conforme o Quadro 2.

Quadro 2 Descrição das zonas da APA Tamoios 

ZONA DESCRIÇÃO SIGLA
I Zona de Vida Silvestre ZVS
II Zona de Conservação da Vida Silvestre ZCVS
III Zona de Ocupação Controlada ZOC
IV Zona de Influência Ecológica ZIE

Fonte: Adaptado de Angra dos Reis (1994).

A criação da APA Tamoios impôs regras rígidas que desencorajavam possíveis modificações no cenário natural da área, entretanto, no revés desta vertente, o então governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral Filho publicou, em 2009, o Decreto nº 41.921 (RIO DE JANEIRO, 2009), que liberava áreas para construção dentro dos limites da APA Tamoios, sendo sacrificadas as ZCVS. A suspeita de interesses escusos na decisão do governador resultou em uma denúncia do ato ao Ministério Público Federal, encaminhando-a ao Supremo Tribunal Federal, ainda sem decisão sobre deferimento. A sociedade mobilizou-se em torno do tema, exigindo um diálogo mais transparente, e o governo manteve então o decreto sem aplicação até que o conselho gestor da APA Tamoios concluísse o Plano de Manejo.

No início de 2012, entretanto, a área ambiental do Governo Estadual apresentou uma proposta de finalidades das zonas completamente diferente das anteriores. O jornal O Eco publicou uma edição especial em setembro de 2012, onde denunciava que:

O cerne da inusitada proposta consistia na liberação de áreas supostamente degradadas (o que não se comprova, nem de longe) para a construção de hotéis e pousadas de grande porte e resorts ou condomínios de luxo. A notação das áreas passou a ser Zonas de Interesse de Ocupação Hoteleira (ZITH) e as Zonas de Interesse Residencial e de Turismo (ZIRT), mais tarde alteradas para Zonas de Interesse para Equipamentos Turísticos. (ILHA..., 2012, p. 04).

O temor dos moradores baseava-se na hipótese destas iniciativas “privatizarem” a ilha, servindo aos interesses de grandes grupos econômicos cujos resultados normalmente conflitam com a preservação do ecossistema. A preocupação com o agravamento dos problemas decorrentes do grande fluxo de visitantes, citados anteriormente, incentivou o Governo do Estado do Rio de Janeiro a propor uma Parceria Público Privada (PPP) para gerir a Ilha Grande. O projeto foi concebido sem a consulta aos representantes das organizações sociais da ilha e foi recebido como uma ingerência opressiva, novamente com objetivos econômicos se sobrepondo à preservação ambiental. No site do projeto, chamado Parceria Ilha Grande, é enfatizada “a melhoria dos mecanismos para enfrentar os desafios do desenvolvimento”, e que a PPP:

É a solução mais adequada para atrair capitais privados para a prestação de serviços e a implementação da infraestrutura pública, acelerando os volumes de investimento necessários para a modernização da prestação de serviços públicos e melhorando a experiência dos beneficiários da atuação governamental. O modelo [...] pretende aproveitar todo o potencial turístico da Ilha Grande para ser convertido em recursos a serem aplicados em: infraestrutura pública, serviços integrados e de qualidade e oportunidades econômicas aos moradores. Tudo de forma a não comprometer as características naturais e históricas da ilha. (ILHA GRANDE PARA TODOS, 2016, grifo nosso).

As informações na página do projeto, entretanto, não são claras no esclarecimento de quais atividades turísticas serão exploradas e como será empreendida esta exploração. O fluxograma apresentado na Figura 6 traduz, numa didática simplista, a ideia central do projeto.

Fonte: Ilha Grande para Todos (2016).

Figura 6 Fluxograma PPP Parceria Ilha Grande. 

No intuito de endossar o clamor dos habitantes da ilha, a Prefeitura de Angra dos Reis enviou ofício ao governador demonstrando acreditar no projeto Ilha Grande Sustentável, desenvolvido pelo INEA, que cria o Sistema de Ordenamento Turístico Sustentável para harmonizar o manejo sustentável dos recursos naturais com a atividade turística. Este é um modelo participativo através de uma comissão de acompanhamento, composta por agentes da comunidade encarregados de intermediar as demandas dos moradores e as intervenções possíveis junto ao órgão.

As entrevistas com os moradores mantiveram atualizadas as constatações de Prado (2003) e Santiago (2010), quando suas afirmações sustentavam a ideia dos moradores favoráveis à cobrança de uma taxa de visitação, desde que esta seja revertida em melhorias para a ilha. Esta afirmação corrobora também a necessidade de um diálogo mais próximo com a comunidade e da adoção de uma gestão mais participativa.

Considerações finais

As atividades turísticas trouxeram ganhos econômicos inegáveis para os ilhéus, com novas e diversificadas fontes de ingressos monetários, com a criação de novos e melhores postos de trabalho, com a valorização e dinamicidade conferida ao artesanato local, com os incrementos quanti-qualitativos incorporados à construção civil na ilha e com a abertura de novas possibilidades para empreendimentos diversificados. É positivo implementar e fortalecer o vínculo entre os pescadores remanescentes, os maricultores e os restaurantes locais (gastronomia), o que poderá proporcionar ganhos substanciais aos três setores.

Observa-se um grande descompasso entre o número crescente de turistas que aportam na Ilha Grande e os progressos da infraestrutura básica capaz de suportar tais afluxos. Isso se consubstancia nas insuficiências de: saneamento básico, abastecimento d’água potável, disponibilidade e constância no fornecimento de energia elétrica, coleta e destinação do lixo urbano, reuso dos rejeitos da construção civil, consciência ecológica dos moradores, dentre outros aspectos.

Em parte, essa situação é fruto das profundas e rápidas transformações a que foram submetidos os ilhéus, algumas delas eivadas de boas intenções, mas míopes com respeito às consequências do radicalismo que lhes originou ideologicamente; como as que, ao criar as áreas de preservação, retiraram dos ilhéus o direito de praticar a agricultura de subsistência, que era parte integrante de sua cultura e modo de vida há muitos anos e, com isto, forçaram-nos a adotar a única alternativa factível para a subsistência e/ou sobrevivência econômica, que foi a de aderir às lides turísticas - atividade nova, mas motora sob o ponto de vista econômico.

Há um choque cultural visível entre o “antes” e o “depois” do turismo, que não se restringe às diferentes gerações de ilhéus, tampouco ao local geográfico de moradia, mas que confronta uma cultura caiçara própria porque mesclada com a policialesca advinda das estruturas prisionais existentes na ilha; mas que não pode ser atribuída somente ao turismo, pois é inegável o efeito simultâneo dos veículos de comunicação de massa capitaneados pela televisão nos hábitos e modos locais.

A educação ecológica é insipiente e insuficiente. É difícil para os ilhéus, pelos próprios antecedentes culturais originados na agricultura de subsistência, avaliar e mensurar os impactos ambientais negativos que vêm com o turismo não ecologicamente regulamentado. As Brigadas Mirins Ecológicas constituem um esforço educativo válido, porém insuficiente; é necessário expandir atividades assemelhadas a toda a população da Ilha Grande. É importante, para consubstanciar a educação ecológica, que os serviços públicos de coleta e destinação do lixo e dos resíduos sejam ecologicamente adequados.

A falta de protagonismo da população local, conjugada com a brasileiríssima tolerância, inviabiliza tomar seu destino em suas próprias mãos e resulta no esperar providências do Estado; situação que põe em risco ecológico o futuro da Ilha Grande.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA REGULADORA DE SERVIÇOS PÚBLICOS CONCEDIDOS DE TRANSPORTES AQUAVIÁRIOS, FERROVIÁRIOS E METROVIÁRIOS E DE RODOVIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (AGETRANSP). Quantitativo de passageiros transportados na linha regular Mangaratiba-Abraão, de 1992 a 2016. Rio de Janeiro, 2017. [ Links ]

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1Foram observados os procedimentos éticos durante a realização da pesquisa que deu origem ao texto apresentado.

2Termo que designa o estilo de vida dos nativos de parte do litoral brasileiro, numa equivalência ao “caipira” do interior. Reflete a economia de subsistência baseada na roça e na pesca, denominando aqui os nativos da Ilha Grande.

3Disponível apenas na Vila do Abraão e na Vila de Dois Rios (ILHA..., 1976).

4A Ilha Grande recebe essa atribuição na publicidade e demais materiais organizados para difundir e estimular o turismo na ilha (INSTITUTO ESTADUAL DO AMBIENTE, 2012b).

5 De acordo com os dados da Fundação de Turismo de Angra dos Reis (2016), 3.323 turistas solicitaram informações sobre lazer na Ilha Grande. Apenas 109 declararam como “negócios” ou “outros” o motivo da visita.

6O emissário possui um diâmetro de 100mm e 500m de extensão, com capacidade de vazão aproximada de 1000m³/dia ou 7.500 usuários.

7 Informação verbal. Entrevista obtida em 15 de maio de 2017 com o fundador da ONG, Nelson Palma.

Recebido: 29 de Janeiro de 2018; Aceito: 30 de Julho de 2018

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