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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.27 no.52 Salvador mayo/ago 2018  Epub 02-Jul-2019

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2018.v27.n52.p123-138 

Artigos

INFÂNCIA NO CONTEXTO PRISIONAL: REFLEXÕES SOBRE PROCESSOS EDUCATIVOS E DIGNIDADE HUMANA

CHILDHOOD IN THE PRISON CONTEXT: REFLECTIONS ON EDUCATIONAL PROCESSES AND HUMAN DIGNITY

INFANCIA EN EL CONTEXTO PRISIONERO: REFLEXIONES SOBRE PROCESOS EDUCATIVOS Y DIGNIDAD HUMANA

Marilúcia Antônia de Resende Peroza*  UEPG

*Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: malu.uepg@gmail.com


RESUMO

O texto apresenta uma discussão sobre os processos educativos de crianças que vivem a infância no contexto prisional na companhia de mães que cumprem pena de privação de liberdade. Considera-se sua invisibilidade perante a sociedade e no próprio sistema penitenciário. O estudo realizado no ambiente materno-infantil de um presídio feminino no estado do Paraná, de abordagem qualitativa, efetivou-se por meio de observação participante, entrevistas narrativas e estudo documental tendo como base Rousseau (2014), Goffman (2005), Kant (2007, 2013) e Comparato (2010), entre outros. Defende-se que os processos educativos vivenciados no cárcere podem contemplar as especificidades do desenvolvimento da criança e sua dignidade humana, contudo, vê como necessária a efetivação da lei de medidas alternativas de cumprimento de pena para mulheres grávidas e/ou com crianças pequenas sob sua responsabilidade.

Palavras-chave: Criança; Infância; Dignidade humana; Sistema prisional; Processos educativos

ABSTRACT

This article presents a discussion on educational processes of children that spend their infancies in the prison context in the company of their mothers who are serving a sentence of deprivation of liberty. The study, justified by the invisibility of these children to the society and to the penitenciary system itself, was carried out in the child-mother unit of a female prison in the state of Paraná. With a qualitative research method, the data was collected through participant observation, narrative interviews, and document review, having, as theoretical basis, authors such as Rousseau (2014), Goffman (2005), Kant (2007, 2013), Comparato (2010), among others. The analysis show that the educational processes experienced in confinement can contemplate the specificities of child development and human dignity, however, the implementation of the law of alternative measures to imprisonment for pregnant women and/or mothers of young children under their responsibility is necessary.

Keywords: Child; Childhood; Human dignity; Prison system; Educational processes

RESUMEN

El texto presenta una discusión sobre los procesos educativos de niños que viven la infancia en contexto carcelario en compañía de madres que cumplen pena de privación de la libertad. Se considera su invisibilidad ante la sociedad y en el propio sistema penitenciario. El estudio realizado en el ambiente materno-infantil de un penal femenino en el estado de Paraná, de carácter cualitativo, ese realizó a través de observación participante, entrevistas narrativas y estudio documental teniendo como base a Rousseau (2014), Goffman (2005), Kant (2007, 2013), y Comparato (2010) entre otros. Defendemos que los procesos educativos vividos en la cárcel pueden contemplar las especificidades del desarrollo de los niños y su dignidad humana, a pesar de esto, vemos como necesario el cumplimiento efectivo de la ley de medidas alternativas de cumplimiento de pena para mujeres embarazadas y/o con niños pequeños bajo su responsabilidad.

Palabras clave: Niño; Infancia; Dignidad humana; Sistema penitenciario; Procesos educativos

Introdução1

Nas últimas décadas, tem-se ampliado as discussões a respeito do lugar que a criança ocupa na sociedade. As diferentes áreas do conhecimento têm-se empenhado em estabelecer um diálogo com o universo infantil, tomando a criança não mais como objeto de pesquisas, mas como partícipes ativos em seus processos de investigação. A criança, assim, assume novo status nos campos da Sociologia, da Psicologia, da Pedagogia, entre outros. Por outro lado, o reconhecimento da criança enquanto sujeito de direitos tem promovido a construção de uma série de políticas públicas a fim de garantir-lhes meios para o pleno desenvolvimento. No entanto, à revelia de seu status frente aos campos de estudos ou no âmbito dos direitos, grupos de crianças seguem invisíveis e à margem da sociedade. É o que acontece com as crianças que nascem e vivem parte de sua infância no contexto prisional pelo fato de suas mães cumprirem pena de privação de liberdade.

Recentemente, a presença de mães presas com seus filhos enquanto aguardam julgamento foi noticiada, de modo especial por ter exposto o caso de uma mulher, personalidade pública, cujos advogados solicitaram o cumprimento de pena alternativa, em virtude da acusada ser mãe de uma criança com idade inferior a 12 anos. O julgamento do caso levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a considerar a Lei de Medidas Cautelares, Lei nº 12.403/2011 (BRASIL, 2011), que prevê penas alternativas às presas provisórias, grávidas ou que tenham filhos pequenos sob sua responsabilidade. Este caso, no entanto, reabriu a discussão ocasionando uma decisão da Corte, em fevereiro de 2018, que beneficiou mais de 4 mil mulheres detidas em cadeias e presídios. Esta decisão, entretanto, não elimina o problema relacionado à presença das crianças no ambiente prisional no território brasileiro, por um lado, pela morosidade na efetivação da legislação, por outro, por não se aplicar a presas condenadas, àquelas que ofereçam perigo, ou cujo crime seja considerado hediondo.

A existência de crianças no ambiente prisional provoca tanto a indignação, devido às condições de privação de liberdade em que vivem, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990 (BRASIL, 1990), quanto indagações sobre como se dá o processo educativo dessas crianças e os impactos para o seu desenvolvimento. Ampliando a reflexão, é possível questionar sobre as formas de interação delas com a instituição, as relações de afeto e os vínculos estabelecidos, enfim, que experiências vivenciam naquele ambiente de/para adultos.

Este artigo apresenta dados de uma pesquisa que buscou compreender os processos educativos que as crianças vivenciam no interior de uma penitenciária feminina no Paraná, a única do estado que possui uma estrutura para receber mulheres grávidas e com seus filhos pequenos, nascidos no período de espera de julgamento e/ou cumprimento da pena. O objeto de estudo provoca certo estranhamento, uma vez que para muitos é improvável a presença de crianças no cárcere. No entanto, a permanência das crianças no espaço prisional está inscrita na Lei de Execução Penal,2 Lei nº 7.210 (BRASIL, 1984), de 11 de julho de 1984, que prevê, no parágrafo 2º do artigo 83, que “os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade”, e define a idade máxima de permanência da criança em seu Artigo 89: “a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestantes e parturientes e de creche para abrigar crianças de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”.

Ainda que a Lei de Execução Penal (LEP) permita a permanência da criança até os sete anos de idade com sua mãe, de modo geral, as instituições penais têm tentado garantir a permanência durante o período mínimo de lactação, ou seja, até os seis meses. A penitenciária na qual a pesquisa foi desenvolvida faz um trabalho interdisciplinar de conscientização junto às mulheres para que, aquelas cujos familiares tenham condições de cuidar, encaminhem seus filhos antes de completarem três anos de idade, exceto em casos em que as mães não possuam alternativas de encaminhamento. De acordo com a direção da penitenciária, a maioria das mães progrediam de regime, para a semiliberdade, antes que as crianças completassem três anos.

No que se refere à estrutura e organização do tempo de mulheres e crianças no espaço prisional, de modo geral, os bebês até os seis meses ficavam com as mães nas celas da Galeria A, tendo uma média de 40 minutos a duas horas de banho de sol diariamente, no pátio do espaço materno-infantil da PFP.3 Já as crianças maiores de seis meses permaneciam neste espaço todo o tempo e as mães, organizadas em duplas fixas, revezavam-se nos horários de manhã e tarde para cuidar das crianças. À noite essas crianças ficavam sob os cuidados da agente penitenciária de plantão. Ainda que não estivesse no projeto inicial da pesquisa, o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI), frequentado por um grupo de 8 crianças da penitenciária, foi inserido como locus complementar na investigação por trazer elementos significativos sobre os impactos do sistema prisional no desenvolvimento da criança.

Para defender a tese de que as crianças que vivem no contexto prisional estão inseridas em um processo educativo e que este pode ser pensado a partir das especificidades de seu desenvolvimento e pautados nos princípios da dignidade humana, foi necessária uma trajetória de pesquisa que permitisse a aproximação e análise da realidade prisional. Sendo assim, tomou-se como base a abordagem qualitativa da pesquisa que, de acordo com André (1995, p. 17), possibilita ao pesquisador uma “visão holística dos fenômenos, isto é, que leve em conta todos os componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas”. A partir desta abordagem, optou-se por iniciar a pesquisa com a imersão no ambiente prisional, tendo a observação participante como um instrumento que permitiu o envolvimento com a realidade e os sujeitos, mediado pelo fazer cotidiano. Esta estratégia metodológica permitiu, também, conhecer os bebês e crianças pequenas, que possuem um modo peculiar de estabelecer a comunicação. Assim, Lüdke e André (1986, p. 26) defendem que:

Usada como principal método de investigação ou associada a outras técnicas de coleta, a observação possibilita o contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado. [...] A observação direta permite também que o observador chegue mais perto da ‘perspectiva dos sujeitos’, um importante alvo nas abordagens qualitativas.

Participaram da fase de observação cerca de 60 mulheres que frequentavam o espaço materno-infantil, entre agentes penitenciárias, equipe administrativa, equipe de trabalho e mulheres-mães que cumpriam pena de privação de liberdade ou aguardavam julgamento. Foram observadas 18 crianças que viviam no espaço materno-infantil, com idade entre cinco meses e 3 anos, sendo que, desse total, 8 crianças eram atendidas no CMEI. As observações foram sistematizadas em forma de registros diários sobre as vivências evidenciadas nas relações estabelecidas naquele espaço. Estes registros fundamentaram a organização das entrevistas, das categorias de análise e a compreensão a respeito do processo educativo das crianças.

As observações foram seguidas das entrevistas narrativas, que se constituem, segundo Jovchelovitch e Bauer (2008, p. 95), “uma forma de entrevista não estruturada, de profundidade, com características específicas”. Estas entrevistas se caracterizam por valorizar o relato oral como uma via para conhecer uma realidade de forma aprofundada. Para as entrevistas narrativas foram selecionadas 7 mulheres-mães que frequentavam o espaço materno-infantil, 4 agentes penitenciárias, dentre elas a diretora do presídio, e 4 profissionais do CMEI. As entrevistas possibilitaram trazer o olhar dos sujeitos a respeito da vivência no espaço prisional, bem como da vida das crianças naquele ambiente e fora dele. Observar as crianças, ouvir mulheres-mães e profissionais que conviviam com elas possibilitou conhecer os modos como o nascer e viver no cárcere interferem nos processos educativos das crianças e perceber as necessárias mudanças para que possam se desenvolver plenamente.

O uso desses instrumentos metodológicos resultou em uma quantidade significativa de dados, principalmente discursivos. Desta forma, recorreu-se à análise de conteúdo como uma possibilidade para estudar a temática em suas significações e para a categorização dos elementos mais significativos da pesquisa. A análise de conteúdo consiste em uma metodologia de tratamento e estudo de dados expressos em diferentes formas de comunicação, ou seja, os discursos emitidos em diferentes linguagens - orais, escritas, de imagens ou gestos, entre outros. Para Bardin (1977, p. 30), a análise de conteúdo se revela como um conjunto de estratégias cujo objetivo é trazer rigor à leitura do real e possibilitar uma compreensão da comunicação para além de seus significados imediatos.

A análise referente às condições em que esse grupo de crianças vive a infância considerou a invisibilidade das crianças no sistema penitenciário traduzida em uma quase total negligência em relação às especificidades de seu desenvolvimento e aos princípios da dignidade humana. A invisibilidade das crianças no âmbito do sistema prisional pode ser comprovada pela ausência e imprecisão de dados sobre quem e quantas são essas crianças no Brasil (SANTA RITA, 2007; SIMÕES, 2013), informações que não constam nos relatórios oficiais do Departamento Penitenciário (DEPEN). Fora dos relatórios, as crianças acabam por não serem foco de políticas propostas pelo sistema.

Na análise dessa realidade, o processo educativo é concebido como um percurso contínuo, vivenciado pelos sujeitos a partir das relações estabelecidas com a família, com outras crianças e adultos, e com a comunidade à qual pertencem. Nesta perspectiva, compreende-se a educação em seu sentido mais amplo: como processo que se vive ao longo da vida, permeado por determinantes internos aos sujeitos, mas fortemente impactados por sua relação com fatores externos, tais como: a classe social, a organização política e econômica, as condições de acesso aos bens culturais e aos equipamentos sociais, entre outros.

As discussões a respeito da dignidade humana evidenciam um conceito em constituição. Construída ao longo do tempo e modificando-se com as sociedades, a dignidade humana vem se forjando enquanto um valor intrínseco ao ser humano sendo sistematizado, a partir do século XX, no ordenamento jurídico como direitos fundamentais. Ainda que o valor agregado ao ser humano esteja presente na ordem do discurso desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França, é na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que se estabelece enquanto normativa. Para Comparato (2010, p. 43), “o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um valor próprio veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo”. Sendo assim, parte-se da compreensão de que para além do ordenamento jurídico, a humanidade presente na criança se revela no fato de que, chamada à existência, compartilha com os demais seres humanos da mesma condição: inclui-se na espécie, possui uma natureza humana, faz parte de um momento histórico, insere-se em uma cultura, pertence a um grupo social, aprende nas interações o que é e como viver.

O presente texto pretende apresentar, inicialmente, uma caracterização das crianças que viviam no espaço materno-infantil da penitenciária e alguns dados sobre os possíveis impactos deste ambiente no desenvolvimento das crianças. Em seguida, debate-se a relação mãe e filho no interior do sistema prisional e as implicações para os processos educativos da criança. Por fim, discute-se os impasses e contradições que permeiam a vivência da maternidade e da infância no cárcere nos limites da violação dos direitos e da dignidade humana como elementos para (re)pensar a presença de crianças no espaço prisional.

Os processos educativos da criança no contexto prisional

A compreensão a respeito dos processos educativos vividos pelas crianças no cárcere deve considerar as profundas contradições engendradas no âmbito da sociedade capitalista cujo sistema político, social e econômico produz uma massa cada vez maior de sujeitos que estão à margem dos processos produtivos. Estas contradições se evidenciam de forma cruel nas relações de poder estabelecidas no interior do sistema prisional, onde a descaracterização dos sujeitos (GOFFMAN, 2005) e o desrespeito à dignidade humana se naturalizam (LEMGRUBER, 1983). Neste ambiente hostil, percebe-se que à margem está a criança, vulnerável e destituída de seus direitos, dentre eles o da liberdade e da oportunidade de vivenciar dignamente a infância. No entanto, neste espaço, as crianças estabelecem relações concretas com seus pares, com os adultos e com o sistema e suas regras, relações que constituem a base de um processo educativo. Sendo assim, parte-se do pressuposto de que é possível pensar uma proposta educativa que possibilite práticas e interações pautadas no respeito às especificidades do desenvolvimento infantil e nos princípios da dignidade humana, no entanto os dados indicam a necessidade de possibilitar às mães medidas alternativas de cumprimento de pena que não impliquem no encarceramento da criança.

Algumas pesquisas (AZEVEDO, 2010; BRITO, 2007; GALVÃO, 2012; ORMEÑO, 2013; SANTA RITA, 2007) têm pautado a invisibilidade da mulher privada de liberdade no contexto prisional. Todavia, a invisibilidade da criança se torna maior, uma vez que, no conjunto de dados divulgados pelo Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen), não há referências sobre o número de crianças que nascem e vivem neste ambiente. O levantamento nacional de dados do Infopen Mulheres 2014 (BRASIL, 2016b) informa que houve uma tentativa de saber o número de filhos de presos, por reconhecerem que o encarceramento dos pais causa impactos na vida dos filhos. Assim, inseriram uma questão no formulário encaminhado às Unidades Penais, mas menos de 20% delas informaram este dado, o que pode ser interpretado como uma informação negligenciada pelas instituições prisionais. O último relatório do Infopen (BRASIL, 2017)4 traz, pela primeira vez, dados referentes aos filhos de presos e presas no Brasil. Mas esclarece:

A informação sobre a quantidade de filhos das pessoas privadas de liberdade no Brasil estava disponível para apenas 9% da população prisional (ou 63.971 pessoas). [...] Dada a baixa representatividade da amostra coletada, não é possível extrair conclusões para a totalidade da população prisional no Brasil. (BRASIL, 2017, p. 39).

Os dados imprecisos referentes à quantidade de crianças filhas de detentos e daquelas que nascem e ficam com suas mães no interior do sistema prisional demonstra a invisibilidade desta população para a estrutura penal brasileira. De acordo com Santa Rita (2007), a falta de informações sobre a realidade de mulheres e crianças neste contexto se constitui como a primeira dificuldade para as pesquisas. Em seu estudo constatou, por meio de questionários enviados às unidades prisionais femininas, que havia 289 crianças em 37 das 79 unidades que responderam, sendo a maioria na faixa etária de 0 a 6 meses (SANTA RITA, 2007, p. 105).

Quando da realização do estudo aqui tratado, em julho de 2015, o número de crianças atendidas na penitenciária girava em torno de 40,5 sendo a maioria na faixa etária entre zero e seis meses, atendendo a uma idade máxima de três anos. As mulheres grávidas eram direcionadas para o Complexo Médico Penal (CMP) até que tivessem a criança. Segundo a diretora, naquele momento havia cerca de 20 gestantes no CMP aguardando a transferência após o parto. Ao chegarem com seus bebês, as mulheres eram direcionadas à “Galeria A”, ala específica dentro da Administração, longe das demais mulheres privadas de liberdade. Era composta de oito celas com dois metros quadrados que abrigavam duas mulheres com seus bebês em cada uma; e uma cela maior que acolhia até seis mulheres com suas crianças.

Nas observações, constatou-se que a rotina das crianças seguia aquela proposta às mulheres. Acordavam às 5h da manhã, tomavam o café, saíam para o pátio coberto ou parque enquanto as mulheres limpavam o espaço; às 10h almoçavam, às 10h30 dormiam; às 11h voltavam para o pátio ou parque, às 14h lanchavam, às 16h30 jantavam e às 18h dormiam. Durante a noite, as crianças menores de 6 meses ficavam com as mães nas celas; já as que viviam no espaço materno-infantil ficavam sob os cuidados da agente de plantão. Ressalta-se que, naquele período, uma agente penitenciária era responsável por 18 crianças durante a noite.

Uma análise dos impactos desse cotidiano sobre as crianças deve considerar quem são os sujeitos infantis e suas especificidades. É preciso compreender que a criança possui formas peculiares de expressar sentimentos e dizer o que sentem. Rousseau (2014) compreende que a criança, desde muito pequena, é capaz de estabelecer uma comunicação com as pessoas e com o ambiente por meio de linguagens que lhes são comuns. No corpo e nas expressões revelam suas necessidades e sentimentos:

Durante muito tempo se procurou saber se havia uma língua natural e comum a todos os homens. Sem dúvida, existe uma: é a que as crianças falam antes de saber falar. Não é uma língua articulada, mas é acentuada e inteligível. [...]. À linguagem da voz junta-se a do gesto, não menos enérgica. Esse gesto não está nas débeis mãos das crianças, está em seus rostos. [...]. A expressão das sensações está nas caretas e a expressão dos sentimentos está nos olhares. (ROUSSEAU, 2014, p. 53).

Na medida em que cresce, a curiosidade da criança pelas coisas e pelos fenômenos se caracteriza pela busca por conhecer e se apropriar do mundo. Nesta perspectiva, encontramos em Wallon (2015) a compreensão de que desde muito pequena a criança estabelece uma comunicação com o meio a partir de movimentos corporais, através dos quais se aproxima dos outros e expressa suas necessidades. O seu desenvolvimento se constitui a partir da inter-relação dos fatores biológicos e do contexto social em que o indivíduo está inserido. Neste caso, a organização do ambiente, a linguagem e os elementos simbólicos da cultura são apreendidos e expressos no corpo, revelando suas interpretações e necessidades. Nos bebês e crianças pequenas, a linguagem se evidencia em balbucios, olhares, expressões corporais, silêncios, choro e tantas outras formas (WALLON, 2015).

Um traço marcante nas crianças do espaço materno-infantil é a expressão do olhar. Nelas, o olhar curioso para o mundo está presente, ainda que seja um lugar com limites tão demarcados e experiências tão repetitivas, onde o olhar para o outro, aquele que não compõe o cotidiano, causa estranhamento e medo. Durante o período de observações, percebeu-se o quanto os olhos delas eram expressivos e capazes de revelar alegria ou tristeza, surpresa, medo ou desconforto, como evidenciado no relato a seguir:

É perceptível o modo como as crianças nos olham desconfiadas, arredias, até que se acostumem conosco. Quando as interpelamos, primeiro baixam a cabeça desviando os olhos, fogem e algumas saem chorando, buscando a mãe ou outra pessoa com quem têm relação próxima. (OBSERVAÇÃO 2 - 11.02.15).

O ato de baixar os olhos podia significar, às vezes, submissão, outras vezes, desconfiança em relação a determinada situação. No ambiente prisional, as mulheres são proibidas de olhar diretamente para os olhos das autoridades (guardas, diretora, profissionais) e visitantes e, raramente, observava-se trocas de olhares entre as mães e seus filhos. Como um elemento simbólico, o olhar expressa um comportamento socialmente definido naquele contexto. No cotidiano do espaço materno-infantil, muitas vezes, o olhar da criança substituía a fala e a iniciativa de sair ou de se aproximar do que se desejava.

Eram evidentes as marcas presentes nos modos como as crianças viam o mundo e estabeleciam relações com aquele ambiente. Por se tratar de um espaço de segurança, as oportunidades de descobrir e explorar o exterior eram quase inexistentes. A escassez de experiências comuns a qualquer bebê ou criança pequena, como ir ao supermercado, brincar com um animal, passear pela rua, demarcava lacunas importantes nas experiências que possibilitavam o seu desenvolvimento. Essas lacunas se expressavam, por exemplo, nas formas de diálogo e nos elementos simbólicos que permeavam as experiências de linguagem vivenciadas a partir do ambiente materno-infantil, característica ressaltada pelas professoras do CMEI:

Eles são mais quietos. O Manoel, ele fala muito, mas ele repete imagens, ele produz imagens do que ele vê. Então ele fala coisas muito repetitivas, ele não forma frase, não conta histórias, ele não conta experiências de vida. Eles não trazem pra gente muitas experiências. A maioria vem, eles te contam que foram passear, que foram... na verdade eles não têm, né? Eles não têm momento de lazer. Porque ali é muito fechado pra eles, não tem, assim... por conta disso eles não trazem, por não vivenciarem. Falta muito a vivência deles, de histórias pra poder relatar. Para eles o imaginário é comprometido. Porque, de onde vem o imaginário da criança? Das histórias que a mãe conta? Do que eles vivenciam? Dos passeios? (MARIA6 - PROFESSORA).

Para Vygotsky (1989), a linguagem e o pensamento se articulam no âmbito do contexto sociocultural, tendo como base de sua constituição a inter-relação dos aspectos cognitivos e afetivos, naquilo que ele denomina como “plenitude da vida”, ou seja, na integralidade da criança e em sua relação com o ambiente, “cada ideia contém uma atitude afetiva transmutada com relação ao fragmento da realidade ao qual se refere” (VYGOTSKY, 1989, p. 7). Seus estudos consideram a atividade da criança um recurso para o desenvolvimento de seus processos mentais.

No relato da professora do CMEI, evidencia-se uma marca significativa dos impactos do sistema sobre as crianças: o limite do diálogo, os silêncios, as repetições, características que permeiam as relações no sistema prisional. Sendo o silêncio uma forma de exercer o controle sobre as mulheres, essa prática era reproduzida na relação dos adultos com as crianças. Os silêncios se faziam sentir nas ausências em relação às narrativas relacionadas a suas histórias de vida e de suas famílias, às expressões de sentimento de mãe para filho e vice-versa. Também no uso constante da chupeta que calava, recurso imprescindível para acalmá-las em momentos de crise, principalmente à noite, quando estavam longe da mãe. Experiências que fazem refletir sobre a constituição de sujeitos que vivem sob a égide dos limites impostos pelo sistema.

Um outro aspecto a ser analisado consiste no movimento, uma das linguagens da criança. Ao defender que as crianças são ativas e que o movimento é necessário ao seu desenvolvimento, Rousseau (2014) criticava as atitudes de imobilizá-las em faixas e panos, o que era comum na época. Para ele, “viver não é respirar, mas agir; é fazer uso de nossos órgãos, de nossos sentidos, de nossas faculdades, de todas as partes de nós mesmos que nos dão o sentimento de nossa existência” (ROUSSEAU, 2014, p. 16). A vida e os impulsos da criança se revelam no movimento, na busca curiosa pela experiência de conhecer.

As experiências das crianças no interior do sistema estavam, em grande medida, circunstanciadas pelos processos disciplinares presentes em seus elementos materiais e simbólicos. Os limites do movimento e das experiências se expressavam nas grades que cercavam o espaço externo e as janelas dos quartos; nos ritos de baixar os olhos e colocar as mãos para trás diante das autoridades; no silêncio e no uso constante da chupeta e do carrinho. A disciplina do corpo e da vontade se constituem como meios de controle, chegando a ser uma prática naturalizada, como descrito a partir da observação:

Compartilho com a educadora minhas preocupações referentes ao uso constante de carrinho, que imobiliza a criança, e o fato de elas não brincarem muito. Ela disse que o carrinho é usado como uma forma mais ágil no cuidado de duas crianças que não andam. As agentes penitenciárias sempre alertam sobre o fato de deixar a criança muito no colo prejudicar em momentos em que elas têm que cuidar de todas juntas no período noturno. Isso faz com que sempre preparem as crianças, e a si mesmas, para ‘subir creche’,7 ou seja, torná-las o mais independente das mães para minimizar sofrimentos posteriores. (OBSERVAÇÃO PFP 6 - 20.02.15).

Na disciplina do corpo e das vontades da criança, nos limites de suas necessidades de afeto e cuidados, uma forma de preparar para um futuro quase imediato: o dia que deixaria a cela para ir ao espaço materno-infantil; que deixaria o peito para usar a mamadeira e começar a comer; que deixaria o carrinho para andar... o que se constituía como uma forma de conformar as crianças às regras do sistema, e nunca vivenciar plenamente o tempo presente. No entanto, nos interstícios dos acontecimentos cotidianos, elas comunicavam seus desagrados e revelavam os modos como percebiam o ambiente, seus medos e necessidades. Nos bebês, as percepções se expressavam, via de regra, no choro e no constante adoecimento; nas crianças pequenas, a impaciência e irritabilidade revelavam que aquele espaço ficara pequeno e que havia algo além dos muros, um lugar para o qual as “guardas” e os visitantes iam e de lá voltavam.

Foi possível perceber que, apesar de ser uma oportunidade de convivência com a mãe, o espaço prisional impunha vários condicionantes à constituição dos sujeitos, por ser um espaço de adultos e para o cumprimento de sua pena. Por consequência, esses condicionantes impactavam no processo educativo das crianças, uma vez que se estabeleciam em um espaço de violência simbólica, longe do convívio com a sociedade mais ampla, da organização de seu grupo social e das oportunidades para seu pleno desenvolvimento. Por outro lado, para muitas mulheres e crianças, aquele ainda era o ambiente mais seguro que lhes podia ser propiciado.

A relação mãe e filho no cárcere: implicações para os processos educativos da criança

A população prisional brasileira tem aumentado consideravelmente nos últimos anos. De acordo com dados do Infopen (BRASIL, 2017), entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento aumentou em 157%. Um estudo produzido pelo Ministério da Justiça (CONECTAS DIREITOS HUMANOS, 2014) divulgou a situação alarmante a que homens e mulheres presos estão sujeitos no Brasil. Nesta publicação, denunciam-se as dificuldades em se obter informações acerca da população carcerária brasileira, em virtude da pouca presteza e interesse dos responsáveis pela administração penitenciária nos estados em consolidá-los e divulgá-los. Além disso, o Infopen reconhece que existe deficiência de dados sobre o perfil das mulheres em privação de liberdade, provocando a invisibilidade de suas demandas específicas. Esse fator é evidenciado no levantamento de 2014 - Infopen Mulheres 2014 (BRASIL, 2016b), que não apresenta informações quanto ao número de mulheres grávidas ou com filhos dentro do sistema, ainda que a grande maioria delas esteja em idade reprodutiva.

As lacunas referentes aos dados têm sido contrapostas, nos últimos anos, com o aumento do interesse pelas pesquisas que tratam da condição da mulher privada de liberdade, revelando que existe um atendimento ineficiente, ainda pautado na supremacia do masculino e na discriminação em razão do gênero. Para Simões (2013, p. 31), a presença da mulher no sistema prisional “suscita questões específicas, particulares e ainda desconhecidas por parte de muitos estudiosos que se dedicaram, historicamente, à abordagem do tema sob o ponto de vista do indivíduo do sexo masculino, privado de liberdade”. Na mesma direção, Santa Rita (2007, p. 62) afirma que as unidades penais para mulheres, arquitetonicamente, não consideram suas peculiaridades, pois são construídas para abrigar homens. Alocadas em instalações improvisadas, grande parte delas está em celas ou alas femininas dentro de complexos masculinos, havendo poucos espaços apropriados à sua condição de mulher e mãe.

Vale ressaltar que dentre os prejuízos acarretados com o encarceramento da mulher, a desagregação familiar pode ser considerada o maior deles, pois, na maioria das vezes, a mulher é a principal responsável pelo sustento e cuidado dos filhos. Presas grávidas, em alguns casos, são obrigadas a entregar os bebês aos familiares, abrigo ou adoção, mesmo antes de se cumprirem os seis meses definidos pela legislação como período mínimo para a amamentação. Essa realidade poderia ser minorada se fosse cumprida a legislação que preserva mães e crianças dessa ruptura - Lei de Medidas Cautelares (BRASIL, 2011), Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2002), no seu Art. 5º, e Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984),8 para citar algumas.

Considerados esses dilemas e tomando como referência uma unidade prisional que permite, por um tempo maior, a convivência entre as mães e os filhos que tiveram durante o período de detenção, é possível analisar os condicionantes impostos pelo sistema prisional e que permeiam a experiência da maternidade, a construção de vínculos entre mãe e bebê e os impactos nos processos educativos das crianças.

O sistema prisional é visto por Goffman (2005, p. 22) como “estufas para mudar pessoas”, por propor um processo constante de destituição e de reconfiguração do eu. Os estabelecimentos prisionais se caracterizam enquanto espaço de poder que, tendo a disciplina como principal mecanismo para atuar sobre os indivíduos, impacta em seus processos de subjetivação. O controle e a sujeição daqueles que se tornam objetos de punição configuram-se dentro de um processo de descaracterização do eu. Goffman (2005, p. 23-24) afirma que, de modo geral, ao se inserirem como internados em instituições totais,9 os sujeitos passam por diferentes fases até se adaptarem ao ambiente. Para ele, as instituições totais não substituem algo já formado pela “cultura específica” do indivíduo, no entanto, criam uma constante tensão entre as experiências vividas fora do espaço de reclusão e o mundo institucional, proporcionando uma força estratégica de controle, pautada na “mutilação do eu”.

Desse modo, a entrada no sistema prisional pressupõe uma ruptura com a vida externa à instituição, caracterizada por algumas perdas. Para Goffman (2005, p. 27), a perda mais significativa talvez não esteja relacionada aos aspectos físicos ou aos bens e comodidades que porventura se tinha no ambiente externo, mas de algo que marca a identidade: o nome. Assim, após tornarem-se um número, as mulheres começam um processo de privação que passa pela destituição da feminilidade e o distanciamento da família e da sociedade. Conforme Goffman (2005, p. 24), o isolamento social se constitui como um elemento do processo de mutilação do eu. Ainda que nos sistemas prisionais não haja imposição explícita do isolamento, visto que são permitidas visitas periódicas das famílias, veladamente, são colocados impeditivos ou obstáculos que levam, gradualmente, ao total abandono das mulheres encarceradas.

O sentimento de abandono impacta significativamente a vida da mulher que vivencia a experiência da privação de liberdade. Esse fator tem sido abordado em diversos estudos (GALVÃO, 2012; INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2015; SANTA RITA, 2007) que tratam do encarceramento feminino, permitindo considerar que esta experiência está profundamente relacionada à condição feminina. Para Simões (2013, p. 40), “o efeito psicológico do abandono social agrava a pena sobre a mulher encarcerada e tem consequências sérias para sua reintegração na sociedade e na família ao ser libertada”. Isso porque, na maioria das vezes, os laços familiares e de afeto com os filhos são rompidos durante o cumprimento da pena. Além disso, que uma mulher que cometeu um crime internaliza a visão que dela faz a sociedade, julgando-se uma pessoa sem moral, um indivíduo “que não presta” (LEMGRUBER, 1983, p. 86) e que, portanto, não é um bom exemplo para os filhos. Isso pode ser constatado na fala de Anita:

Ah, é pesado, né? [Ela começa a ficar com os olhos marejados]. Porque minha família não liga pra mim [começa a chorar]. Eu esperaria mais apoio, porque minha família tá longe, a gente tá presa. Eu sei que eles não têm culpa do que a gente fez. [...] Ah, uma carta, sei lá, a gente acaba ficando sozinha [choro com revolta]. Mas eu não culpo eles não, porque eu errei, né, então eu que tenho que pagar pelo que eu fiz e ir pra frente, né? Eu tenho que aprender e nunca mais voltar pra cá. (ANITA - MÃE).

Pode-se presumir que o sentimento de abandono, a autoimagem negativa e a percepção de não ser uma referência positiva podem interferir na constituição da criança e de seu processo educativo no cárcere. Somam-se a estes outros aspectos que influenciam a formação da criança, tais como a privação de um contato com outros membros familiares; a ausência da figura masculina nos processos de constituição de identidade e de papéis sociais; a mãe enquanto uma referência destituída de autoridade e de autonomia diante do poder e da regulação do sistema; o convívio constante com os sentimentos de revolta e/ou de abandono da mãe.

As formas como se configuram as relações maternas interferem no desenvolvimento da criança. Piccinini e colaboradores (2008, p. 63) afirmam que, no período da gravidez, a mulher passa por um processo de mudanças nos aspectos biológicos, somáticos, psicológicos e sociais, que podem influenciar a dinâmica psíquica individual, bem como as relações que a gestante estabelece em seu meio. Assim, uma gravidez tranquila e bem acompanhada no que se refere à saúde, alimentação e afetividade pode influenciar significativamente na relação estabelecida entre a mãe e o bebê no puerpério. De acordo com Chagas (2004), pesquisas da Neuropsicologia voltadas para a educação, salientam os necessários cuidados com o bebê, ainda no ambiente uterino, como forma de preservar e estimular o desenvolvimento neuropsicomotor, fundamental para as aprendizagens da criança. Os fatores a serem observados incluem uma alimentação saudável, afeto, acompanhamento da saúde da mãe e do bebê, evitar situações de estresse e uso de drogas, dentre outros. Em uma análise desses fatores, Chagas (2004) enfatiza que:

O desenvolvimento humano depende da interação entre a natureza e a criança. Há pouco tempo a crença era de que os genes com os quais nascemos determinavam o desenvolvimento do cérebro e que deste dependia a nossa relação com o mundo. As novas descobertas mostraram que o desenvolvimento iniciado antes do nascimento é influenciado por fatores ambienteis, incluindo o tipo de criação, cuidado, estimulação oferecida à criança. (CHAGAS, 2004, p. 39).

O caso das mulheres privadas de liberdade que estão grávidas se apresenta como uma realidade bastante peculiar. Elas e seus bebês vivenciam esse período em condições adversas e expostas a momentos fortes de estresse, angústia e medo. Alguns condicionantes apontam para fatores de risco para a mãe e o bebê: sob a tutela do Estado, estão à mercê do precário atendimento oferecido em termos de saúde, alimentação e estrutura física à gestante e puérpera; sob a ordem jurídica, a maioria das mulheres, de modo especial as grávidas ou com seus bebês, são presas provisórias e poderiam cumprir pena alternativa até o julgamento. No relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), as pesquisadoras assim se posicionam:

Defendemos a tese de que toda gestação no espaço prisional é uma gravidez de alto risco, logo, bastaria a comprovação de situação de prisão da mulher para a aplicação da modalidade domiciliar prevista no inciso IV artigo 318 do Código de Processo Penal, mesmo antes do sétimo mês de gestação. [...]. Ademais, o exercício de maternidade em situação de prisão aparece de forma geral mediado e controlado pelas instituições de controle. (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2015, p. 22).

Assim, ressalta-se a necessidade e as inúmeras possibilidades de penas alternativas para mulheres grávidas ou com crianças pequenas sob sua responsabilidade. Algumas mulheres, como Simone, ressaltam a necessidade de possibilitar cumprimento da pena de outras maneiras que não na prisão, um direito que muitas delas desconhecem:

Você tá condenada, querendo ou não, a gente tem filho, não só aqui dentro, mas a gente tem filho lá fora. Eu acho, sim, que a gente poderia, sim, arrumar alguma coisa pra ter uma nova chance. Não visando, assim, ser absolvida do seu crime. Arrumar uma prisão domiciliar pra você, tipo assinar um termo pra você não ficar na rua. Outra coisa que você possa cumprir que não seja ficar aqui. Não por nós, mas pelos filhos. Dizer não, fez coisa errada, fez, mas tem uma criança, então vamos dar uma chance pra essa pessoa tentar reintegrar na sociedade. Vamos colocar uma tornozeleira no pé dela, tem que se apresentar, tem que trabalhar, me apresenta a carteira de trabalho registrada, todo mês você vem aqui e se apresenta periodicamente pra gente te ver. Então, eu acho que teria que ter outras alternativas. (SIMONE - MÃE).

No caso do Paraná, naquele momento, as gestantes eram levadas para o Complexo Médico Penal até que tivessem o bebê. Elas relataram que lá vivenciaram experiências de uso de algemas no parto, fome, falta de atendimento médico e exames, tratamento desumano e uma estrutura física precária durante a gestação. Para as mulheres, o uso de algemas durante o parto aparece como o ápice da degradação e de humilhação, uma vez que, com dor, sem forças e em um momento de extrema vulnerabilidade, ainda estavam imobilizadas.

Uma das mulheres, ao ser questionada sobre como foi o parto, respondeu: ‘Péssimo!’ ‘E por quê?’, pergunta a educadora. Ela responde: ‘Imagina, com dor, algemada, com um atendimento precário, pensei que ia morrer!’ (OBSERVAÇÃO PFP 2 - 11.02.15).

A suspensão do uso de algemas durante o parto foi determinada pelo Decreto nº 8.858 (BRASIL, 2016a), de 27 de setembro de 2016, que no artigo 3º estabelece:

É vedado emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade do sistema nacional durante o trabalho de parto, no trajeto da parturiente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto, durante o período em que se encontrar hospitalizada.

Uma experiência traumatizante e desnecessária, que só recentemente passou a ser negada por lei.

As reflexões sobre a experiência da gestação materna e os primeiros anos de vida da criança no contexto prisional apontam as inúmeras implicações para o desenvolvimento da criança, reforçando, mais uma vez, a necessidade de considerar as medidas alternativas como via de minimizar estes impactos. Essa perspectiva encontra mais relevância quando se analisam os paradoxos que permeiam a vivência da maternidade e as primeiras experiências da infância no contexto prisional.

Paradoxos da maternidade e da infância no sistema prisional: entre a violação de direitos e a dignidade humana

Compreender os processos educativos da criança de zero a três anos implica, necessariamente, considerar sua relação com a mãe, ou pessoa que exerça a função materna, a partir da qual ela se insere nas outras relações sociais. Nesta trajetória que envolve uma construção bio-psico-sócio-cultural, as interações têm um papel fundamental na constituição da criança. Os vínculos estabelecidos na infância contribuem para uma vivência sadia nas demais relações que vão se desenvolver ao longo da vida. A relação entre mãe e criança, no interior do sistema prisional, está permeada por contradições que se evidenciam nas legislações, nas tomadas de decisão referentes às crianças e mulheres, no tratamento a elas dispensado, nas relações de poder, dentre outras. A fim de compreender as possibilidades e as limitações oferecidas pelo sistema no estabelecimento de vínculos entre mães e crianças, essas contradições precisam ser consideradas.

Para tanto, cabe iniciarmos fazendo referência à concepção de dignidade humana que rege as relações sociais na contemporaneidade. O conceito referente à dignidade humana, e sua atribuição aos sujeitos, pode ser considerado como em vias de constituição. Isso porque sua compreensão vem se constituindo ao longo do tempo e delineando os elementos que configuram as relações humanas no âmbito das sociedades. Historicamente, o que fundamentou a igualdade entre todos os seres humanos foi inicialmente a percepção da pessoa como imagem e semelhança de Deus. Posteriormente, no âmbito filosófico, primeiro pelos sofistas e depois pelos os estoicos, afirmou-se que o fundamento universal da igualdade entre os homens estava na natureza, uma vez que, por ser o homem parte da natureza, traz em si o princípio da liberdade. No entanto, o movimento antropocêntrico da modernidade buscou na razão os fundamentos para justificar a essência humana e, com Kant, tem-se uma nova elaboração teórica a respeito do conceito de pessoa como sujeito de direitos universais.

O postulado ético de Kant pressupõe que somente um ser racional é capaz de agir segundo leis ou princípios e que este ser racional tem vontade e capacidade de agir com uma finalidade, o que denominou de razão prática. Para o filósofo, a representação de um princípio objetivo, obrigatório, para uma vontade formula-se enquanto um imperativo. Por sua vez, os imperativos se caracterizam como hipotéticos, quando se referem a uma necessidade prática para alcançar algo desejado; ou categóricos, quando representam uma ação com um fim em si mesma (COMPARATO, 2010). Segundo Kant (2013, p. 31), “o imperativo categórico, que em geral só enuncia o que é obrigatório, é: aja conforme a uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como uma lei universal”. Dessa premissa decorre toda a compreensão kantiana do princípio ético no qual se afirma que o ser humano existe com um fim em si mesmo e não como um meio. Nesta perspectiva, Kant (2007, p. 68, grifo do autor) afirma:

Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objecto do respeito). Estes não são portanto meros fins subjectivos cuja existência tenha para nós um valor como efeito da nossa acção, mas sim fins objectivos, quer dizer coisas cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que se não pode pôr nenhum outro no seu lugar em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto; mas se todo o valor fosse condicional, e por conseguinte contingente, em parte alguma se poderia encontrar um princípio prático supremo para a razão.

Kant (2007) defende que a dignidade da pessoa não se revela apenas no fato de ser considerada e tratada como um fim em si mesma e não como meio para que se alcance uma finalidade. A dignidade está inscrita no fato de que o ser humano, por sua vontade racional, vive em condições de autonomia, sendo capaz de guiar-se por sua consciência e pelas leis que se impõe. Neste sentido, Comparato (2010, p. 34, grifo do autor) afirma que a ética kantiana parte do pressuposto de que “todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma”.

A premissa kantiana vem justificando o reconhecimento das liberdades individuais, bem como dos direitos humanos vinculados às políticas públicas em âmbito econômico e social. Ela ressalta o valor relativo das coisas ao passo que se contrapõe ao valor absoluto da pessoa humana que, na contemporaneidade, se expressam na descoberta do mundo dos valores que passam a ocasionar transformações nos fundamentos da ética. Neste sentido, o pensamento filosófico a partir do século XX vem referenciando uma visão existencialista do ser humano, ressaltando sua singularidade e unicidade, sua historicidade e seu contexto.

O caminho que leva à compreensão da criança enquanto sujeito de direitos no âmbito normativo tem seu início em meados do século XX, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, e que revela uma longa trajetória de elaboração teórica proclamando, em seu artigo VI, que todo ser humano tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa. Posteriormente, foi referendada na Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, e reafirmada na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. No Brasil, esta compreensão se confirma na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

No entanto, há uma distância considerável entre os direitos proclamados no ordenamento legal e os contextos concretos de vida das crianças. Isso porque, de modo geral, as crianças ainda não são devidamente consideradas em suas especificidades uma vez que a sociedade não consegue reconhecer nelas a humanidade que não é respeitada nas relações humanas mais amplas. Assim, a criança só possui status de sujeito de direitos no âmbito do discurso, mas não em sua condição humana. Esse paradoxo se expressa concretamente, por exemplo, quando se busca soluções para a situação das crianças no interior do sistema prisional.

Uma das justificativas para a permanência da criança com sua mãe no cárcere está relacionada à possibilidade de propiciar ao bebê o direito à amamentação e, com este direito, possibilitar a criação de vínculos. Contudo, o fato de assegurar esse direito não garante, por exemplo, que esses momentos estejam cercados da tranquilidade e do afeto que merecem; ou que a mãe terá alimentação, higiene e estrutura física que lhe permita a qualidade necessária a este ato. Winnicott (1999, p. 21) afirma que,

O ‘seio bom’ é um jargão que, de modo geral, significa uma maternidade e uma paternidade satisfatórias. Enquanto evidência dos cuidados prestados ao bebê, podemos dizer, por exemplo, que o ato de segurá-lo e manipulá-lo é mais importante, em termos vitais, do que a experiência concreta da amamentação.

Além da amamentação, outro fator considerado positivo, está na garantia de uma estrutura básica de atendimento à criança que possibilite os cuidados iniciais para mãe e filho. No entanto, dados do Infopen Mulheres 2014 (2016b, p. 20) informam que “a prevalência de certos perfis de mulheres (baixa escolaridade, negras) no sistema prisional revela a discrepância das tendências de encarceramento de mulheres no país e reforça o já conhecido perfil da população prisional geral”. Ou seja, a mulher presa, majoritariamente, advém das camadas mais empobrecidas da sociedade. A situação de vulnerabilidade que experimentariam fora deste ambiente leva a considerar que, de certa forma, no cárcere as crianças estão protegidas e tendo garantidas as necessidades básicas de segurança, alimentação, saúde e moradia.

Possibilitar a presença da criança no ambiente prisional traz, também, como ponto positivo o fato de amenizar o sentimento de abandono e solidão vivenciado pelas mulheres. Mello e Gauer (2011) afirmam que ter o filho minimiza a pena e torna o tempo na prisão mais suportável, bem como afasta a mulher das situações de uso de drogas e de violência que estaria exposta em seu contexto cotidiano. Isso é expresso, também, pelas mulheres entrevistadas: “Acho ruim o fato de ficar sem o seu filho, lógico, que é uma companhia, né? Um acalento pra você. Você tem uma estrutura aqui, tendo sua filha do seu lado você tem alguma coisa pra te manter firme, né?” (Simone - Mãe).

No entanto, por estar com a mãe no ambiente prisional, é retirado da criança o acesso ao convívio familiar, ao sentimento de pertença a um grupo social e a sua cultura, às interações mais amplas com a sociedade e com a natureza, para citar algumas das privações a que está submetida. Soma-se a isso que a estrutura oferecida está aquém do mínimo exigido para o pleno desenvolvimento. Por exemplo, a possibilidade de um acompanhamento médico adequado da gestação e o cuidado com a criança após o parto é apontada como uma das dificuldades enfrentadas pelas mulheres e um forte contraponto com a vida no exterior desse ambiente.

Outro fator a ser considerado nesses paradoxos é o fato de o sistema prisional também ser um espaço de violência. Se no ambiente materno-infantil não se presenciam ações práticas de violência por parte das mulheres e agentes penitenciárias, vive-se uma violência simbólica, expressa nos limites de tempo, espaço e movimento e na perda de autoridade da mãe perante os filhos diante das guardas. Algumas práticas de interação com prejuízo aos vínculos estão diretamente relacionadas às regras impostas pelo sistema por meio das agentes que, a todo momento, lembram as mães de que as crianças não podem ficar manhosas, como registrado:

Os bebês costumam ficar em uma mesma posição por horas, seja no carrinho, no tatame ou na grama. Raramente as mulheres acolhem no colo, pois precisam preparar a criança para a separação. Elas não podem colocar ‘manha’ nas crianças, pois dificulta para a pessoa que cuida delas no contraturno e para a agente que cuida à noite. (OBSERVAÇÃO PFP 2 - 11.02.15).

A oferta do colo constitui-se como um meio importante na criação de vínculo entre a mãe e o bebê e no estabelecimento de uma relação de afeto. A ausência dessa forma de contato e do toque que ele proporciona pode estar relacionada com o receio que as crianças têm de se aproximar de outras pessoas, estabelecendo relações cujos vínculos costumam ser frágeis. Este impacto foi observado pelas professoras do CMEI: “É, eu vejo muito neles esse medo do contato com as pessoas. Essa é a maior dificuldade de inserir eles no grupo, né, porque ali nós trabalhamos, eu, a auxiliar, volta e meia tem outras pessoas entrando na sala, temos professoras de área [...]” (Maria - Professora).

A contradição entre estar o tempo todo com o filho mas não poder acompanhá-lo em todas as suas atividades prejudica a relação entre mãe e criança, fazendo essas mulheres se sentirem mães pela metade. Elas estabelecem comparações a respeito da experiência que têm na educação dos filhos dentro e fora do presídio. Muitas apontam que a diferença entre a educação dos filhos dentro e fora da PFP está relacionada à oportunidade de ficar com as crianças por mais tempo no ambiente do cárcere, o que as desperta para sentimentos e atitudes que não tinham no ambiente externo, como afirmam em seus relatos:

Eu acho que, lá fora, eu acho que é mais fácil, a gente tem mais liberdade, mas lá fora, parece que eu dava menos valor pros meus filhos. E aqui dentro a gente aprende a dar mais valor [ela começa a chorar], mais atenção. Eu mesmo, aqui estou sendo mãe, mãe de verdade. (ÂNGELA - MÃE).

As relações evidenciadas na pesquisa apontam para um desmerecimento das experiências anteriores das mulheres em relação à maternidade e educação dos filhos, criando a sensação de que no cárcere as mulheres têm a oportunidade de aprender a ser mães, tendo como parâmetro os valores propostos pelas agentes penitenciárias. Isso influencia sobremaneira na conformação das mulheres ao controle do sistema e, portanto, em muitos casos, na destituição de sua autoridade perante as crianças.

Partindo desse campo de contradições pode-se compreender como é complexo pensar a permanência da criança com a mãe no ambiente materno, mas, ao mesmo tempo, os efeitos desta separação. Em toda essa análise, contudo, o que não muda é o entendimento de que o processo educativo das crianças é permeado por uma série de questões, dilemas, contradições, mas que antes de tudo sugere a necessidade de construir propostas que possam contribuir para a garantia de seu pleno desenvolvimento.

Considerações finais

O estudo aqui apresentado toma como ponto de partida a compreensão de que as crianças que nascem no ambiente prisional situam-se em um contexto de vulnerabilidade, visto que não têm igualdade de acesso aos recursos materiais e simbólicos, compartilhados socialmente. Ainda que estejam imersas em uma realidade que possui uma cultura própria e nela interaja com outras crianças, mulheres e recursos simbólicos, existem mecanismos que limitam seu desenvolvimento em vários aspectos, tais como a fala, os movimentos, as interações, os vínculos, entre outros, uma vez que o fato de não conhecer o ambiente externo, as formas como se organiza a sociedade, criam-se obstáculos nas relações com os pares.

Nessa perspectiva, ao pensar a criança é preciso considerar os traços de suas origens como marcas importantes de sua constituição. O lugar que ela assume na vida da mãe - mulher que também ocupa um lugar social -, na organização da família ou na instituição que a acolhe, na comunidade e na sociedade, antes mesmo de nascer, são elementos constitutivos de sua subjetividade. O lugar que passa a ocupar no interior do sistema prisional e nas relações com outras mulheres, que nem sempre oferecem o afeto, a atenção e os cuidados necessários. O lugar que ocupa na sociedade mais ampla devido ao fato de ter nascido no ambiente prisional, com uma marca cultural, em uma classe social, um grupo étnico, entre outros.

Na relação estabelecida com as crianças, suas mães e as profissionais na PFP foi possível observar as oportunidades e limitações que o ambiente materno-infantil proporcionava. Uma realidade imersa em contradições, que ora revelava sua face positiva, expressa no empenho das mulheres - mães, agentes e profissionais - em dar às crianças as melhores condições de desenvolvimento, ora se apresentava tão fria, violenta, indiferente às especificidades das crianças. Nestes entremeios, encontram-se as crianças, sujeito de direitos que se veem aquém do acesso a uma vida comum às demais crianças que vivem a infância fora dos muros do cárcere.

A trajetória de construção do estudo foi permeada por desafios e contradições, mas também por indignação e esperança. Os desafios se fizeram sentir nas dificuldades encontradas para obter autorização para realizar a pesquisa e na busca por dados referentes à situação de crianças e mulheres nos presídios brasileiros. As contradições perpassaram cada reflexão, cada análise, cada posicionamento expresso no decorrer do estudo. A indignação e a esperança se fizeram faces da mesma moeda, ao comportarem em si uma dinâmica que permitiu, por um lado, fazer uma leitura crítica da realidade das crianças e, por outro, dar visibilidade à situação dessas crianças com vistas à transformação de seu contexto.

Sendo assim, defende-se o princípio de que, mesmo que as crianças estejam submetidas às condições impostas pelo sistema prisional, invisibilizadas nas políticas públicas para a infância e que a inevitável contradição na relação entre a experiência no cárcere e os princípios da dignidade humana demonstrem um cenário pouco promissor, é possível buscar mecanismos que garantam um processo educativo que considere as peculiaridades de seu desenvolvimento e os princípios da dignidade humana. Para tanto, reafirma-se a necessidade de cumprir a Lei de Medidas Cautelares (BRASIL, 2011), que prevê o cumprimento de penas alternativas, não restritivas de liberdade, para as mulheres mães grávidas e/ou que tenham filhos pequenos sob sua responsabilidade.

As indagações que permanecem após a finalização do estudo apontam para a necessidade de se realizarem mais pesquisas neste contexto, como uma maneira de chamar a atenção de outros atores sociais para uma situação que, para ser amenizada, precisa que pelo menos se cumpram as determinações legais.

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1 Projeto de Pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa (CEP-PUCPR), por meio do Parecer CEP nº 707.662, de 11/06/2014. Todas as participantes da pesquisa foram informadas e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) autorizando sua participação e a de seus filhos no estudo.

2A Lei de Execução Penal, em vigor desde 1984, obteve nova redação por meio da Lei nº 11.942 (BRASIL, 2009), de 28 de maio de 2009, para atender de maneira específica a condição de mulheres e de seus filhos.

3O aqui denominado “espaço materno-infantil” era conhecido como creche pelas agentes penitenciárias e pelas mulheres. Contudo, não se caracterizava como tal devido à ausência de profissionais capacitados e às especificidades de sua organização e funcionamento, que obedeciam às orientações estritamente de segurança.

4Divulgado em 08 de dezembro de 2017, traz dados referentes ao ano de 2015 e primeiro semestre de 2016, período que antecedeu as rebeliões que marcaram discussões referentes à condição do aprisionamento no país e revelaram a ausência de dados precisos sobre a população carcerária.

5O número é impreciso devido à dinâmica de movimentação de mulheres em razão do julgamento e da progressão de pena.

6Os nomes dos sujeitos da pesquisa foram omitidos, atribuindo-lhes outras denominações como forma de manter sigilo sobre a identidade dos participantes.

7O termo “subir creche” refere-se ao momento em que as crianças deixam as celas das mães e vão para o espaço materno-infantil, caracterizando o fim da amamentação e a separação dos cuidados exclusivos da mãe. Isso ocorria com as crianças por volta dos seis meses de idade.

8Essas legislações têm avançado no que se refere ao reconhecimento das especificidades da mulher grávida ou que tem criança pequena sob sua responsabilidade. Contudo, na prática, essas possibilidades ainda não são integralmente atendidas, criando inúmeras situações de violação de direitos para mulheres e crianças.

9Instituição total é um termo cunhado por Goffman para nomear as instituições sociais que apartam os indivíduos da sociedade inserindo-os por determinado tempo em uma vida fechada, sob uma administração formal e rigorosa. Ele considera como instituições totais, por exemplo, os manicômios, as prisões e os conventos.

Recebido: 11 de Maio de 2018; Aceito: 26 de Junho de 2018

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