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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.27 no.53 Salvador set./dez 2018  Epub 04-Jul-2019

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2018.v27.n53.p237-250 

Artigos

NO “FIO DA NAVALHA”: PROJETOS DE FUTURO DE JOVENS EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

ON THE “RAZOR´S EDGE”: YOUNG PEOPLE DEPRIVED OF FREEDOM’S PROJECTS FOR THE FUTURE

AL “FILO DE LA NAVAJA”: PROYECTOS DE FUTURO DE JÓVENES EN PRIVACIÓN DE LIBERTAD

Jorddana Rocha de Almeida*  UFMG

Geraldo Leão**  UFMG

*Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pedagoga do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) - Campus Sabará. E-mail: jorddana.rocha@gmail.com

**Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: gleao2001@gmail.com


RESUMO

O artigo discute os projetos de futuro de jovens em conflito com lei baseando-se nos resultados de uma pesquisa com adolescentes que cumpriam medida de semiliberdade em um município do interior de Minas Gerais. Os dados foram coletados por meio da análise de documentos, observação participante e entrevistas semiestruturadas com 16 jovens com idades entre 13 e 18 anos. As experiências juvenis, em suas múltiplas dimensões, se constituíram em um contexto sociocultural de vulnerabilidade e de relações sociais marcadas por violações de direitos sociais e de processos de desumanização. As experiências da medida socioeducativa de semiliberdade foram vivenciadas como desafiadoras, demarcadas por conflitos com os adultos e os colegas, vistas pelos participantes como situações de provações constantes. A relação com o projeto de futuro se revelou como uma dimensão distante, prevalecendo uma adesão ao tempo presente.

Palavras-chave: Educação; Juventude; Privação de liberdade; Medidas socioeducativas; Projetos de futuro

ABSTRACT

This article discusses the projects for the future of young people in conflict with the law, based on the results of a survey of teenagers who served a semi-detention sentence in a small town in the state of Minas Gerais. Data were collected by means of document reviews, participant observation and semi-structured interviews with 16 teenagers, ages 13 to 18. In their multiple dimensions, the experiences constituted a sociocultural context of vulnerability and social relations marked by violations of social rights and the process of dehumanization. The experiences of the socio-educational semi-detention measure were perceived as challenging, marked by conflicts with adults and peers, and seen by participants as constant trials. The relation with the project for the future has revealed itself as a distant dimension, being overcome by the adherence to the present time.

Keywords: Education; Youth; Deprivation of freedom; Socio-educational measures; Projects for the future

RESUMEN

El artículo discute los proyectos de futuro de jóvenes infractores de ley a partir de los resultados de una encuesta con adolescentes que cumplían la medida de semilibertad en un municipio del interior de Minas Gerais. Los datos fueron recolectados por medio del análisis de documentos, observación participante y entrevistas semiestructuradas aplicadas a 16 jóvenes en edades entre los 13 y los 18 años. Las experiencias juveniles, en sus múltiples vivencias, se constituyeron en un contexto sociocultural de vulnerabilidad y de relaciones sociales marcadas por violaciones de derechos sociales y de procesos de deshumanización. Las experiencias asociadas a la medida socioeducativa de semilibertad fueron vivenciadas como desafiantes, marcadas por conflictos con los adultos, así como con otros jóvenes, vistas por los participantes como situaciones de constantes pruebas. La relación con el proyecto de futuro se reveló como una dimensión distante, prevaleciendo un apego al tiempo presente.

Palabras claves: Educación; Juventud; Privación de libertad; Medidas socioeducativas; Proyectos de futuro

Introdução

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada com jovens que cumpriam medida socioeducativa (MSE) de semiliberdade em uma instituição situada em um município de médio porte no interior de Minas Gerais.1 A investigação buscou compreender os sentidos atribuídos por eles às suas experiências na semiliberdade e seus projetos de futuro.

Uma consideração inicial deve ser feita em relação ao uso da expressão “fio da navalha” no título. A escolha por ela se deve ao fato de que a imagem mais forte que nos ficou sobre as trajetórias dos participantes da pesquisa remetia a um sentimento de que viviam cotidianamente situações paradoxais, sendo obrigados a fazer escolhas em um campo limitado de possibilidades. Essas “escolhas” diziam respeito a situações cruciais da vida, que eles administravam de forma que se submetiam à medida socioeducativa, ao mesmo tempo em que se mantinham vinculados às situações que os levaram ao cumprimento da pena.2

A Casa de Semiliberdade era responsável pela execução da MSE no município e foi iniciada pela prefeitura municipal em 2001 de forma experimental até ser instituída como um equipamento público permanente com o amparo do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE).3 Administrada através de convênio com uma ONG, ela atendia apenas a adolescentes do sexo masculino. A partir de alguns dados sobre o contexto pesquisado, o perfil dos jovens e suas experiências, o artigo centra-se na análise dos projetos de futuro elaborados por eles.

Jovens em cumprimento de medida socioeducativa em cena

A presença da temática juventude no debate acerca das políticas públicas sociais não é fato recente. Conhecidos como vítimas ou protagonistas de vários problemas sociais, entre eles a violência, a criminalização e o desemprego, os jovens pobres, vistos como “problemas”, se tornam pauta das políticas sociais desde o início da década de 1980 como um grupo específico que demanda políticas sociais e ações articuladas no campo da educação e dos direitos humanos (CORREA, 2008).

Um levantamento realizado pela Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (BRASIL, 2013) mostrou que a população juvenil em atendimento socioeducativo chegava ao total de 23,1 mil jovens. Desses, 64% (15,2 mil) se encontravam em medida de internação, 23,5% (5,5 mil) em internação provisória e 9,6% (2,3 mil) em medida de semiliberdade. Além destes, 2,8% (659) dos jovens estavam cumprindo outras medidas socioeducativas. Em 2012, a maior concentração de jovens em conflito com a lei estava na região Sudeste (56%), seguida da região Nordeste (21%). Minas Gerais ocupava o segundo lugar entre os estados com maior número de jovens em atendimento socioeducativo de privação de liberdade (BRASIL, 2013).

Mesmo tendo relevância como problema social, um balanço da produção da pós-graduação brasileira concluiu que “os jovens presos e os adolescentes em conflito com a lei ainda são pouco investigados” (SPOSITO, 2009, p. 160). Além disso, são poucos os estudos que abordam esses sujeitos de uma perspectiva mais ampliada da juventude, prevalecendo abordagens naturalizadas ancoradas apenas em marcos legais.

A análise dos trabalhos do período de 2007 a 2014,4 a partir do levantamento bibliográfico para essa pesquisa, possibilitou perceber um esforço maior na ampliação do olhar sobre os jovens em conflito com a lei, mesmo que ainda de forma tímida. A pesquisa realizada por Nilda Stecanela (2012) concluiu que, ainda que o ECA contemple artigos que regulamentam o caráter educativo das medidas destinadas aos jovens em conflito com a lei, prevalecem representações sociais voltadas para o paradigma de repressão e punição direcionado a essa população juvenil entre instituições e seus profissionais responsáveis pelo cumprimento jurídico e funcionamento das MSE. Segundo a autora, “ser privado de liberdade é muito mais um castigo para reparar um erro, do que uma possibilidade de ressocialização” (STECANELA, 2012, p. 78).

Na contramão de perspectivas estereotipadas sobre jovens nessa condição, o olhar da pesquisa buscou pautar-se pelo reconhecimento dos jovens como sujeitos de direitos, a fim de afirmar a sua existência, os seus modos de viver e sobreviver. Buscou-se reconhecê-los como sujeitos ativos que vivenciavam processos de desumanização, que agem no mundo e constroem um lugar nesse mundo baseados em vivências de desumanização na qual estavam inseridos (ARROYO, 2012), buscando compreender suas existências e seus modos de ser jovens. Trata-se de um olhar que busca não estigmatizar e não ver os jovens como meros usuários das políticas públicas, mas como sujeitos violados em seus direitos.

Percursos metodológicos, sujeitos e contexto da pesquisa

A pesquisa guiou-se por um enfoque qualitativo, buscando apreender os diferentes olhares dos sujeitos sobre suas trajetórias e experiências. Os dados foram coletados por meio de observações participantes e entrevistas com os jovens. Em um primeiro momento, foram realizadas observações exploratórias para aprofundar as informações prévias acerca do funcionamento da Casa e assim preparar a entrada definitiva no campo. Inicialmente, foi produzido um breve levantamento de documentos relacionados à política de atendimento específica para a medida de semiliberdade e sobre a instituição onde se realizou a pesquisa. Nesse primeiro momento, foi possível reunir informações sobre a concepção e fundamentação teórica e legal, a proposta teórico-metodológica, a organização do trabalho e as ações desenvolvidas. A análise de tais documentos possibilitou uma compreensão inicial acerca de como se dava o atendimento socioeducativo aos jovens na medida de semiliberdade.

Nesse sentido, percebemos que havia uma intencionalidade em contemplar na proposta de trabalho da Casa os princípios preconizados pelo SINASE5 como eixos articuladores da medida socioeducativa. O primeiro passo era o acolhimento e a construção da rotina institucional junto aos jovens, de acordo com o que estabelece o cotidiano na instituição. Esses dois procedimentos eram considerados fundamentais, não só para o cumprimento dos eixos estratégicos, mas também para a regulação da convivência entre eles. No que se refere à acolhida, cabia à equipe de segurança (agentes de segurança socioeducativa) a revista do jovem e de seus pertences, o preenchimento do formulário de admissão, a apresentação do regimento e das normas de convivência da unidade e o contato imediato com o responsável legal informando sobre sua chegada à Casa. Já a equipe técnica (psicóloga, pedagoga, assistente social e advogada) se encarregava de proceder a uma entrevista com eles, tendo como objetivo conhecê-los e aproximá-los da instituição, além de dar alguns esclarecimentos sobre a medida de semiliberdade, seus eixos, objetivos, funcionamento e rotinas.

Essa primeira fase de observação caracterizou-se por uma entrada menos formal no campo de pesquisa, para alcançar o objetivo de construir um processo de aproximação dos sujeitos desta pesquisa. Esse processo inicial de observação exploratória durou três meses, por meio de uma rotina de trabalho de campo de visitas diárias à Casa de Semiliberdade durante uma semana, a cada mês. Esses momentos de encontros, conversas informais e aproximações foram fundamentais, pois possibilitaram a construção de laços de confiança entre a pesquisadora e os jovens. Uma das atividades, denominada pelos jovens de “Oficina da Lili”, era um momento de oficina de artesanato que se tornou um espaço privilegiado de observação, na segunda fase da pesquisa.

Após esse momento inicial, no qual pudemos conhecer o cotidiano dos jovens, foi possível estabelecer um planejamento de trabalho de campo que contemplasse as atividades internas e externas, coordenadas pela equipe de profissionais da medida de semiliberdade. Mais adiante, foram incluídos nesse percurso outros documentos relacionados às trajetórias dos jovens na medida, como os Planos Individuais de Atendimento (PIA), prontuários6 e relatórios dos estudos de caso, com o objetivo de complementar dados sobre o perfil dos jovens e seus familiares.

Na segunda fase da pesquisa, durante sete meses, desenvolveu-se o trabalho de campo propriamente dito, com observação da rotina e interações dos jovens em atividades internas e externas. Durante esse período, 20 adolescentes foram admitidos na instituição. No entanto, foram reunidos dados de apenas 16 deles, por motivos de evasão, transferência de unidade ou desligamento da medida.

A terceira fase da pesquisa se constituiu na realização de entrevistas semiestruturadas em dois momentos. Entre os jovens que compuseram o universo desta investigação, nove foram selecionados para essa etapa, obedecendo aos critérios de diversidade de idades, às diferenças em relação ao tempo de permanência na instituição e às diferentes trajetórias na MSE. Vale ressaltar que dos nove entrevistados, quatro participaram de apenas um momento de entrevista, por diferentes motivos.

Um breve perfil dos jovens

Participaram da pesquisa 16 adolescentes dos que cumpriam a medida. Eles tinham entre 13 e 18 anos, tendo a maior parte deles entre 17 e 18 anos. Todos eram solteiros, apesar de um deles viver com sua companheira havia mais de um ano. Esse jovem e mais um já vivenciavam a condição de pais.

Todos residiam em bairros considerados periféricos, favelas e vilas da região. Treze jovens residiam no próprio município, sendo apenas um deles residia da zona rural. Os outros três adolescentes moravam em outros municípios distantes da região, o que demandava longas viagens para visitar seus familiares. O local de moradia pode ser considerado como mais uma marca que esses jovens carregam consigo, a partir do qual são (re)produzidos estigmas com base em representações negativas dos jovens e suas famílias (NOVAES, 2006).

Outro aspecto que constitui o perfil desses jovens se refere à trajetória escolar. Apenas um deles não abandonou a escolarização, o que não o impediu de acumular retenções em razão de reprovações e infrequências. Dos 15 jovens que abandonaram a escola, nove estavam no ensino fundamental e seis tinham iniciado o ensino médio. Todos vivenciaram uma trajetória escolar marcada por defasagem idade-série, interrupções e abandonos.

Suas trajetórias no mundo do trabalho eram caracterizadas por ocupações informais e precárias, consideradas de baixo prestígio social. Treze deles tinham alguma experiência de trabalho, porém apenas um jovem exerceu por dois meses uma atividade com contrato de trabalho assinado, ocupando a função de office boy.

Esses jovens apresentavam um perfil mais afetado pelas desigualdades sociais. A maioria era negra, provinha de famílias de baixa renda e residia em regiões empobrecidas das cidades. Vivendo barreiras no acesso a oportunidades de trabalho, educação e lazer, estavam mais expostos à violência e a serem cooptados pelo crime organizado.

A renda aproximada das suas famílias variava entre menos da metade de um salário mínimo até próximo de quatro salários mínimos,7 havendo apenas uma família nesse último caso. Outro ponto que impacta esse indicador social refere-se ao tamanho do grupo familiar. A maioria das famílias tinha de quatro a nove pessoas, com média de seis pessoas.

Os jovens reproduziam a história dos pais em relação à escolarização e inserção no trabalho. Em relação ao nível de instrução, a maioria dos pais e/ou responsáveis legais dos jovens possuíam apenas o ensino fundamental incompleto (11 ocorrências). Outros três possuíam o ensino médio incompleto e apenas dois deles haviam concluído o ensino médio. No que se refere ao trabalho, repetia-se o cenário da precarização, subalternização e desvalorização comum aos jovens das camadas populares - empregos de baixo prestígio social, com baixos salários, informais e em tempo parcial. Muitas vezes, jovens com tal origem social enfrentam o desemprego, vivendo dos benefícios do governo via programas de assistência e das aposentadorias e pensões dos pais e/ou avós.

Além dos indicadores de classe social, outro indicador que constituía a experiência desses jovens era a dimensão racial. Dos jovens participantes desta pesquisa, apenas um se autodeclarou branco. Os outros se consideraram pardos (9) ou pretos (6). Esse elemento reafirma resultados das pesquisas que tratam da condição juvenil brasileira (SPOSITO, 2009), que indicam que os jovens mais diretamente afetados pelas desigualdades sociais são os pobres, negros e moradores das periferias urbanas.

Outro aspecto relevante do contexto sociocultural desses jovens diz respeito ao acesso e uso de drogas lícitas e ilícitas. Todos os jovens relataram usar diariamente drogas lícitas (álcool, cigarro) e drogas ilícitas (maconha, cocaína e solventes). A idade com que os jovens relataram terem iniciado o uso dessas substâncias varia entre 9 e 18 anos, mas a idade mais expressiva era especialmente entre 13 e 15 anos. Relacionada a esse aspecto, outra marca era o contato muito próximo com situações de violência e riscos de homicídios, uma experiência comum para um grande número de jovens brasileiros (WAISELFISZ, 2014).

Podemos dizer que há uma juventude específica que se tece a partir de múltiplos pertencimentos socioculturais - de classe, território, gênero e raça, neste contexto social - que delimitam os contornos dos seus modos de vida, dos seus processos identitários e das suas possibilidades de viver a juventude.

As relações familiares

As famílias de todos os jovens eram constituídas de pais separados. Em muitos casos o pai tinha falecido ou era desconhecido. Em geral as mães eram as provedoras da família, sempre na condição de mãe trabalhadora, com no mínimo três filhos. Havia também a presença de padrastos e, em alguns casos, de madrastas. As famílias contavam com o apoio de outros membros, especialmente dos avós, mas também de tios e tias, que compartilhavam tanto a renda familiar e a residência, quanto o apoio e/ou responsabilização com o cuidado do jovem. Esse cenário nos indica as diferentes formas com as quais as famílias, especialmente das camadas populares, se organizam.

As relações familiares vivenciadas por eles foram constituídas em meio a um contexto movediço, de laços desfeitos e refeitos, vínculos tão fortes e, ao mesmo tempo, extremamente frágeis. Assim, a construção de referenciais de vida para esses jovens parece mais complexa, num contexto de condições de vida precárias. Suas vivências e seus processos de socialização familiar foram constituindo-se de muitas marcas, que se refletem no modo como dão sentido às suas experiências e constroem suas visões de mundo e perspectivas de futuro.

O abandono, especialmente pelo pai biológico, era uma dessas marcas comuns muito presente em suas trajetórias de vida desde muito cedo. Na maioria das experiências, o pai deixou o núcleo familiar após o rompimento do relacionamento com a mãe, quebrando o convívio com os filhos e se eximindo de assumir responsabilidades financeiras e afetivas com o cuidado e a formação deles. Sempre que perguntados sobre o pai, os jovens se esquivavam do assunto ou diziam que não consideravam o pai biológico como “pai de verdade”.

Em contraposição à figura do pai, outra marca nas relações familiares era o forte vínculo com a mãe (ou com a avó), figura essencial na vida desses jovens, mesmo daqueles que relataram vínculos mais distantes. Independentemente do que a mãe tenha sido ou feito, ela continuava sendo um elemento importante para a vida deles, elemento central do núcleo familiar, a pessoa em que depositavam confiança, um suporte e uma referência na constituição de valores e perspectivas de vida.

Por outro lado, a família também era compreendida pelos jovens como fonte de inseguranças, desconfianças e conflitos, incluindo situações violentas protagonizadas por padrastos, madrastas, irmãos mais velhos, tios e tias. As relações com os padrastos e madrastas eram mais distantes e frágeis, com mais significações negativas do que positivas. As interferências nos modos de criação e o lugar do padrasto dentro do núcleo familiar, que não preenchia a lacuna deixada pela ausência do pai biológico, geravam tensões e rupturas. Nas relações com as madrastas, além das relações distantes apontadas pelos jovens, havia relatos de situações de maus tratos. Como disse um jovem:

A minha madrasta judiava de mim demais. Me batia isso, aquilo, praticamente ela me torturava. Já cresci já ... já vim de Portugal com aquela revolta dela já, sabe, aquele ódio e a primeira oportunidade que eu tive de entrar no crime eu entrei. Já caí de cabeça, já! (DON JUAN, 18).

Outro aspecto chamou atenção no relato desse jovem. A sua infância foi marcada pela dificuldade em criar relações mais duradouras com os adultos responsáveis pelo seu cuidado. Assim ele relatou essa fase da vida: “Quando eu era mais novo, eu morava com minha mãe. Aí meu avô me tomou dela. Aí eu morei com meu avô e meu pai me tomou do meu avô. Aí eu fui morar em Portugal com meu pai e minha madrasta. Aí acabou a minha vida lá” (DON JUAN, 18 anos). Essas idas e vindas, comuns para vários deles, além de repercutir negativamente nas suas trajetórias de vida, especialmente na escolarização, fragilizavam as referências familiares.

Apesar disso, com todas as suas peculiaridades e inconstâncias, a família ainda era uma instituição importante na vida deles, corroborando com os estudos sobre a condição juvenil no Brasil em que essa instituição aparece como lugar de apoio e orientação no enfrentamento de situações difíceis, como referência nas relações afetivas, éticas e comportamentais e como base para o próprio processo de amadurecimento (ABRAMO, 2005).

A casa: experiências de provação

O último aspecto nessa tessitura diz respeito ao que podemos chamar de dimensão da prova. Ela dizia respeito à vivência da experiência da semiliberdade como uma prova pela qual tinham que passar e, assim, demonstrar que “mudaram de vida”. Ao mesmo tempo, precisavam lidar com o sentimento da distância entre o desejo de mudanças e o sentimento de sua quase impossibilidade.

De acordo com Melucci (2004, p. 59), o cenário da complexidade do sistema global na modernidade deixou-nos como legado o imperativo de “existir como indivíduo”. Isso significa que, nas sociedades modernas, pesa sobre as pessoas a tarefa de serem indivíduos de ação e de se responsabilizarem cada vez mais pelos seus sucessos e/ou fracassos. Sendo assim, a vivência desse legado supõe que o indivíduo enfrente cotidianamente, em seus contextos sociais, um conjunto de desafios.

Segundo Araújo e Martuccelli (2010), as sociedades contemporâneas supõem um tipo de indivíduo que deve enfrentar inúmeras experiências às quais são postos à prova.8 Para os autores, a vida social está cada vez mais marcada por uma série de desafios dessa espécie: escolares, laborais, relacionais etc. Nos processos de avaliação, os indivíduos passam por uma espécie de sistema de seleção. Tais provas seletivas são de naturezas distintas, podendo ser mais formais (escola, trabalho etc.), menos formais (urbanas e familiares), intersubjetivas (as relações cotidianas, afetivas etc.) ou, ainda, existenciais. Todavia, em todas elas, os atores podem ser aprovados ou reprovados, ter sucesso ou fracassar. Nesse sentido, lidar com essas provas supõe contar com determinados suportes pelos quais os indivíduos poderão dar diferentes respostas frente aos desafios, bem como mobilizar de maneiras específicas os recursos que possuem. Desse modo, embora as provas sejam comuns a todos os atores sociais, elas se diferenciam em razão dos diferentes contextos de vida e dos diferentes suportes dos quais as pessoas dispõem.

Durante a pesquisa, ficaram cada vez mais latentes alguns aspectos, sentimentos e cenas que retratavam diferentes provações vividas durante a experiência da medida. Usando a metáfora “testar a fé”, os jovens narraram as situações constantes de provação advindas da relação cotidiana entre eles e com os agentes socioeducativos, principalmente os agentes homens. Nas falas dos jovens, quase sempre emergiam situações de disputas e dominação na Casa, por parte deles mesmos, mas também nas relações de poder existente entre os jovens e os agentes. Viam-se em constantes situações de testes, um querendo “testar a fé” do outro, um querendo “enfumaçar a cadeia” do outro e deixar a “caminhada lombrada”, reproduzindo-se assim a mesma lógica de dominação e de guerra vivida no mundão.9 De tal modo, os jovens também expressavam os sentimentos de revolta e raiva que sentiam ao lidar com essas situações, bem como deixavam nítida a dimensão da tensão, da insegurança e da desconfiança com as quais as relações eram estabelecidas no interior da medida. Esse aspecto também se entrecruzava com os sentidos da privação atribuídos pelos jovens com base em um referencial de masculinidade que dominava suas práticas e discursos (BARKER, 2008; ZALUAR, 1994).

Essas situações da prova estavam presentes também fora da Casa, por meio das diferentes situações de “guerra” nos contextos do “mundão” e das novas situações de “guerras” que emergiram nas experiências da privação de liberdade. Essas circunstâncias, nas quais os jovens pesquisados estavam inseridos, geravam também diferentes e constantes situações de risco. O simples fato de estarem sob o abrigo da MSE não os protegia dos riscos à vida e à integridade física. Isso significava que os conflitos e disputas, ou os “problemas” e as “guerras”, nos quais estavam envolvidos antes da medida permaneceriam os mesmos. De acordo com alguns jovens:10

Os outros te ameaça ali, se você pensar em sair do crime, deixar pra lá, suas guerras não vão morrer, você não vai esquecer suas guerras rápido, eles não vão te esquecer. Se você sair e abandonar o crime aqui, para a mente deles não negoçou nada, não. Na hora que eles trombam com você é pedra! Você pode tá na igreja, no que for... (EDSON, 18 anos).

Tudo é por causa de tráfico esses trem, por causa de droga, e a gente não anda tranquilo no meio da rua... Igual, onde eu tô na Semi, se guerra quiser pegar, pega, ué… (HEITOR, 13 anos).

Além disso, outras “guerras” se iniciavam agora no território da Casa, onde haviam guerras “declaradas” e “não declaradas”. Estas últimas se referiam à relação de tensão e desconfiança constante. Mesmo sem um conflito demarcado, a qualquer momento elas poderiam surgir. Já na “guerra declarada”, a disputa era anunciada, sendo o confronto somente uma questão de tempo e estratégia dentro do código de ética que existia entre eles.

Assim, essas situações de prova compunham parte significativa da experiência desses jovens. Os momentos fora da Casa, como o trajeto para a escola, uma atividade externa, e/ou a saída para a casa nos finais de semana poderiam tornar-se momentos incertos, nos quais os jovens estavam correndo variados riscos. Segundo um jovem:

Vai que você tá indo pra escola, uma pessoa que você nem conhece confunde você e dá tiro em você. Esse trem aqui tá perigoso! É semiliberdade está cemitério, ué!... Semi-cemitério... Não tá nem semiliberdade mais não. Esse trem aqui, qualquer hora tem mais um pra morrer aqui. Esse trem aqui tá perigoso demais! (MARCOS HENRIQUE, 17 anos).

Os jovens se referiam à metáfora “semi-cemitério” como uma expressão que designava essa constante situação de risco, teste e prova. Havia sempre a possibilidade de uma atividade ser cancelada de acordo com o grau de ameaça e insegurança que poderiam causar aos jovens e equipe técnica da medida. Contudo, a própria condição de semiliberdade era colocada em prova, pois as atividades que deveriam contribuir para os processos de socialização, bem como possibilitar novos processos de inserção e pertencimento social, se transformaram, em determinados momentos da experiência, em mais um risco e uma ameaça à liberdade e à vida.

Diante disso, foi possível afirmar que, não diferentemente dos contextos socioculturais e econômicos vividos pelos jovens fora da privação, a experiência na Casa era também permeada pelos riscos de sofrerem e reproduzirem violências, de continuarem sem acesso a direitos sociais básicos, de continuarem estabelecendo relações com o mundo ilícito, de não terem outras alternativas de futuro, enfim, pelo risco de perder a própria vida.

Entre sonhos frágeis e fortes desejos, as perspectivas de futuro...

Tendo esse solo de trajetórias compartilhadas, com seus desafios e provações, os jovens elaboravam múltiplos sentidos para o tempo que permaneciam ali, que oscilavam de uma postura mais pragmática - cumprir as regras para ficar rapidamente livre do cumprimento da pena, sem ter como horizonte romper com os vínculos com o mundo do crime - até a adesão a um discurso moralizador, muitas vezes com fundo religioso, de uma conversão ou regeneração social. A partir desses diversos modos de se relacionarem com a experiência no socioeducativo, os jovens manifestavam diferentes expectativas em relação ao futuro.

A condição juvenil vista como uma experiência social de construção das identidades juvenis permite levar em conta que a vivência de tal momento do ciclo da vida se caracteriza por experimentações nas diversas dimensões da vida subjetiva e social e do exercício de sua inserção social. Nesse processo latente de descobertas e conflitos os jovens se questionam: “Quem eu sou?”, “Para onde vou?”, “Quais são os meus desejos e ideais?”, “Qual rumo devo dar a minha vida?” (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p. 1068). Desses questionamentos surge a necessidade de dar sentido à sua trajetória de vida e ao agir no presente e de se projetar em relação à vida futura. Nesta perspectiva, o “futuro é o espaço para a construção de um projeto de vida e, ao mesmo tempo, para a definição de si: projetando que coisa se fará no futuro, projeta-se também, paralelamente, o que se será” (LECCARDI, 2005, p. 36). Essa dimensão, tão presente na experiência juvenil, remete a “uma ação do indivíduo de escolher um, entre os futuros possíveis, transformando os desejos e as fantasias que lhe dão substância em objetivos passíveis de serem perseguidos, representando, assim, uma orientação, um rumo de vida” (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p. 1071).

Contudo, o projeto de futuro não deve ser entendido como resultado de um cálculo matemático, estrategicamente elaborado e preparado em um processo linear de construção. Aqui, trata-se de uma concepção de projeto de futuro ligada à dimensão do “sentido do agir”, remete a um horizonte de ação que o próprio indivíduo projeta, em alguma esfera de sua vida, a realizar no tempo futuro, em um arco temporal mais ou menos largo.

De acordo com Velho (2003), podemos afirmar que o projeto de futuro depende de um “campo de possibilidades”. Os projetos se configuram conforme o contexto socioeconômico e cultural em que o jovem se encontra inserido, o que limitará e/ou potencializará as suas experiências. Desse modo, embora compartilhado pelo grupo social de origem, o projeto de futuro possui dinâmicas singulares, se transformando de acordo com as trajetórias e experiências pessoais e com as mudanças no campo de possibilidades. Este, por sua vez, é constituído pelas alternativas possíveis de projeção de suas perspectivas de vida e dos seus sonhos, no qual têm peso decisivo as oportunidades que a sociedade e o Estado lhes oferecem. Ou seja, não é possível desconsiderar as estruturas sociais e os contextos políticos, econômicos e culturais a partir dos quais os jovens fazem suas “escolhas”.

Nesse sentido, é necessário atentar para as condições estruturais e conjunturais que configuram a vida dos jovens dessa investigação, bem como as suas dimensões subjetivas, para não cairmos na cilada de assumir uma postura dicotômica frente ao tema juventude e projeto de vida. Tal cilada se refere a, de um lado, admitir um discurso que torna o sujeito o único responsável pelo seu futuro. Por outro lado, há o risco de assumir uma postura determinista que considera o jovem como incapaz de romper com barreiras e construir percursos improváveis (ALVES; DAYRELL, 2015, p. 380).

Ao vivenciarem a experiência da medida socioeducativa, esses jovens, cotidianamente, eram levados a confrontar o presente com as imagens de si no futuro. Eles se viam diante do desafio de projetar seu futuro e projetar a si mesmos, em um contexto paradoxal de horizontes abertos de possibilidades e, ao mesmo tempo, de limites, riscos e incertezas. De acordo com Melucci (2004, p. 62), “vivemos uma quantidade crescente de incertezas, que, às vezes, nos sufocam. O que fazer em um contexto diferente? Como afrontar um novo problema? Ou, mais simples e genericamente, o que fazer, que possibilidade escolher?” Segundo o autor, a experiência social contemporânea é marcada pelo que chama de “paradoxo da escolha”. Pesa sobre os indivíduos a necessidade de fazerem escolhas em um contexto de incertezas e riscos em relação ao futuro. Ou seja, trata-se da impossibilidade de não escolher, que não era estranha à experiência dos jovens pesquisados, embora seja fundamental levar em conta os diferentes contextos de desigualdades sociais vividos por eles.

Os jovens pesquisados estabeleciam uma relação muito distante com a dimensão do projeto de futuro. Alguns deles chegaram a negar a possibilidade de ter ou pensar sobre o seu futuro, muito menos projetá-lo ou planejá-lo em um horizonte temporal maior. Para a maioria, não existia futuro:

Nem penso em nada. […] Essa vida, todo mundo já sabe qual é a saída... Ou é cadeia ou é caixão! Mas agora já está nela... O que pode fazer? (RONAN, 17 anos).

Futuro é amanhã, ué! Não existe esse trem de futuro, não! Vou continuar do jeito que eu tô aqui hoje, amanhã e pra sempre... Se Deus permitir, né? (KLEITON, 16 anos).

Em diálogo com Leccardi (2005), foi possível inferir que a noção de futuro expressa pelos jovens estava condicionada por suas trajetórias de vida e se ancoravam na vivência do presente. Partindo desse ponto de vista, os sentidos que os jovens davam às suas trajetórias de vida faziam com que os projetos de futuro se constituíssem de maneira muito distante da sua realidade, como se não fizessem parte de uma elaboração no tempo presente. Era quase uma impossibilidade, como se falar, pensar ou fazer planos para o futuro fosse algo sem sentido para esses jovens. Prevalecia para alguns uma negação do direito a sonhar. Para outros, os planos eram estabelecidos como algo distante e abstrato.

Assim, a noção de futuro comumente ligada à ideia de adiamento de recompensa praticamente não existia. Entre eles ecoava a convicção de que vivenciavam a condição de “sem-futuro. A vida era vista como um tempo muito curto e urgente para que nela coubessem sonhos. Diante desse encurtamento temporal e de horizontes estreitos, não fazia muito sentido projetar a vida a médio ou longo prazo, uma vez que a urgência estava posta no desafio de sobreviver aos riscos.

Desse modo, o futuro ficava cada vez mais distante, enquanto o presente adquiria mais relevância. Pode-se afirmar que os jovens desta pesquisa, a partir do contexto social em que estavam inseridos, depositavam no tempo presente os sentidos de existir e agir. A partir das reflexões de Leccardi (2005), o presente se configurava como presente estendido e o tempo futuro como futuro presentificado.

De acordo com essa autora, os jovens que possuem poucos recursos sociais e culturais estão mais propícios a sofrerem com a perda do futuro progressivo e da capacidade de proporem projetos controlados e planificados, mais voltados para a noção disseminada no início da modernidade industrial. Para esses jovens, o futuro, fora de controle, pode ser simplesmente anulado, para dar lugar a um presente sem deslumbramento. Segundo a autora,

A maior parte dos jovens, moços e moças, em resposta às condições sociais de grande insegurança e de risco, encontra refúgio sobretudo em projetos de curto ou curtíssimo prazo, que assumem o ‘presente estendido’ como área temporal de referência. (LECCARDI, 2005, p. 52).

No entanto, podemos dizer que a relação com o futuro, apresentada pelos jovens pesquisados, não se restringiu a uma negação. Podemos falar em um processo de transformação e ressignificação dos projetos de vida desses jovens que se reconstituiu em um arco temporal mais curto. Fazia mais sentido para eles depositarem suas apostas no presente que, embora prenhe de desafios, era muito mais concreto em relação à noção de futuro concebida como um vir-a-ser. O presente era uma dimensão na qual era possível definir algumas escolhas, de tal maneira que ainda pudessem exercer certo grau de certeza e segurança sobre seus objetivos, sobre os rumos que queriam dar às suas vidas, mesmo que de maneira bastante frágil. Assim, podemos dizer que o futuro não foi completamente anulado, mas se reconfigurou como um horizonte descontínuo, incerto, indeterminado e indeterminável.

Sonhos, desejos e planos para a liberdade em horizontes curtos

Ao narrarem seus sonhos, os jovens falaram sobre suas famílias, o desejo de melhorar de vida, ter condições materiais melhores, de ter uma formação e uma profissão ou um trabalho. Eles traduziam essas expectativas com o uso da expressão “viver de boa”.

Dentre esses aspectos, chamou atenção na análise a referência à família. Em seus relatos sobre os sonhos que tinham para suas vidas, os jovens falaram sobre suas famílias sempre a partir do desejo de poder viver bem com elas, tanto no sentido de terem uma relação mais tranquila, menos sofrida e tensionada, quanto de poderem ajudá-las. Desejavam poder dar uma condição de vida melhor para as mães especialmente. É importante destacar que a família fazia parte da perspectiva de vida que pensavam para eles mesmos, o que contradiz certas leituras apressadas sobre a crise de valores em torno da importância dessa instituição para jovens nessa condição.

Do mesmo modo, eles expressavam de forma enfática o desejo de “melhorar de vida”, no sentido de possuírem mais bens materiais como casa, carro, moto etc. Essas questões não diziam respeito apenas à esfera do consumo, mas também ao direito de viver com dignidade. Outras condições para “melhorar de vida” referiam-se a outros sonhos muito anunciados pelos jovens: “conseguir terminar os estudos” e “ter um trabalho”. Alguns deles mencionaram o desejo de concluir a formação escolar e, então, uma profissão. Acrescentavam também a dimensão da religiosidade como instância que fortalecia e, em certo ponto, impulsionava o sonho de uma vida melhor.

Durante a análise foi importante pensar sobre o lugar que esses três aspectos (educação, trabalho e religião) ocupavam no relato dos jovens acerca de suas perspectivas de vida. Os aspectos narrados compõem um ideário social que reproduz um determinado estilo de vida adaptado às sociedades de consumo em massa, na qual se evidencia um modelo de felicidade e status social vinculado ao usufruto de alguns bens e serviços capazes de produzir distinções sociais. Essas posturas não podem ser reduzidas apenas a uma forma de alienação ideológica, mas devem ser compreendidas como a expressão de experiências de privação socioeconômica a que estiveram submetidos em suas trajetórias de vida compartilhadas com familiares, amigos e vizinhos.

Para além dessas expectativas, destacava-se primeiramente nas falas dos jovens o desejo de permanecerem vivos. Desejavam não morrer antes de ver os seus sonhos um dia se tornarem realidade. O ato de viver não era visto como algo certo e tão natural como ocorre ao cidadão e à cidadã comum. Ao contrário, sobreviver era um anseio e uma conquista diária, algo que ocupava o centro de suas reflexões e que demandava uma vigilância constante. Pode-se dizer que não viver com o medo da morte, sob o risco dela, com a incerteza sobre se estará vivo no dia de amanhã, era uma das principais aspirações.

Os jovens narravam as suas expectativas acreditando que, de alguma maneira, seria possível romper com o próprio cenário no qual se encontravam no presente. No entanto, tal ruptura exigiria deles um grande esforço subjetivo, bem como intervenções externas (suportes) que possibilitassem novas formas de se perceberem no mundo e construir outros rumos para suas vidas.

As expectativas juvenis se dividiam em duas possibilidades ou em dois caminhos possíveis. Uma era continuar da mesma forma que estava, isto é, continuar na vida do crime, e desse modo se fazia presente uma postura de negação do futuro. Outro caminho possível era “abandonar essa vida” ou “mudar de rumo”. Para os jovens que expressavam a primeira possibilidade, o futuro era algo sobre o qual não se pensava. O futuro para boa parte desses jovens já estava posto. A expectativa para a liberdade estava clara: voltar para a vida ilícita, resolver seus problemas, suas “guerras”. A possibilidade de saírem dessa vida estava condicionada a resolverem seus problemas com traficantes ou grupos rivais. Assim, era muito difícil imaginar o tempo de liberdade sem continuar na condição de “envolvido”. Dependendo do nível de engajamento com situações de criminalidade, se constituíam diferentes relações com o futuro, considerando toda a complexidade existente nessa situação. Dito de outro modo, quanto mais “envolvido” o jovem estivesse, mais a dimensão de futuro era frágil, fazendo pouco sentido pensar em projetos de futuro.

Assim, quanto mais baixo fosse o nível de envolvimento com o mundo do crime, mais facilmente era possível mobilizar intervenções a fim de reconstruir, juntamente com eles, uma noção de futuro mais estendida, bem como possibilidades para ampliar referenciais para suas perspectivas de vida e constituir projetos de futuro. Isso não significa que tais possibilidades de intervenção seriam inviáveis ou infrutíferas para os jovens com níveis mais elevados de envolvimento, mas apenas evidencia que, com o passar do tempo, as possibilidades de intervenções socioeducativas tornam-se cada vez mais complexas e, portanto, mais difíceis de serem efetivadas.

Alguns aspectos abordados pelos jovens, que diziam respeito ao desejo de “abandonarem a vida do crime”, mereceram um pouco mais de atenção. Um primeiro aspecto se referia à necessidade apontada na expressão “ocupar a mente”, utilizada pelos jovens também no contexto dos planos para a liberdade. “Ocupar a mente”, no contexto das narrativas sobre o que estavam planejando para o futuro, após cumprimento da medida, expressava também uma visão moral sobre as possibilidades que os jovens visualizavam para abandonarem a vida ilícita, uma vez que não era de qualquer maneira, com qualquer atividade que essa mente seria ocupada.

Outros depoimentos faziam referência à metáfora do jovem “regenerado”, que designava o modo como eles construíam suas perspectivas de vida, fortemente impactadas pela perspectiva moral. Essa expressão traduzia os discursos reproduzidos pelos jovens com objetivos de correção moral - ressocialização, resgate, renovação etc. - e que dizem de uma perspectiva compensatória (de recuperação do tempo perdido), que enxerga os jovens como produtos de uma socialização inadequada ou incompleta, para além de sua condição de sujeitos de direitos.

Embora tenha sido possível reconhecer como perspectivas de futuro as expectativas de continuarem na vida ilícita ou a abandonarem, não foi possível afirmar e reconhecer tais perspectivas como projetos concretos, uma vez que elas estavam mais no campo do desejo do que no plano da ação. Da mesma maneira, as possibilidades de passarem do plano do desejo para o plano da efetividade eram limitadas pela situação trágica de viver no limite, entre continuar e sair da vida do crime, entre viver e morrer, ser regenerado e criminoso, entre o futuro e os horizontes encurtados.

Diante da situação trágica de constantemente “viver no fio da navalha”, na qual os horizontes eram tão curtos e os jovens, juntamente com suas perspectivas, eram fortemente colados ao imediato, o futuro se traduzia em “cumprir a pena” e sair da condição de privação de liberdade o mais rapidamente possível.11

Como o bricoleur,12 os jovens lidavam com os meios e as condições dadas para constituírem uma noção de projeto de futuro. Nesse sentido, os jovens se aproximavam mais da figura dos “nômades” de que nos fala Mellucci (2004), pois não perseguiam metas predeterminadas e elaboradas a partir de referenciais incorporados em processos de construção de identidade pessoal e coletiva, mas sim prosseguiam envoltos pelo provisório.

As intervenções educativas e as próprias dinâmicas do cumprimento da pena, com a possibilidade de se encerrar em um tempo relativamente curto, apresentavam aos jovens a necessidade de fazer escolhas em um contexto de incertezas. Definir seu projeto de futuro implicava para eles fazer escolhas diante de um campo de possibilidades restrito. A MSE trazia o ingrediente de apresentar aos jovens seus desafios futuros, mas oferecia pouca ajuda e suporte sobre as opções que poderiam ser selecionadas por eles.

Considerações finais

Algumas dimensões que se fizeram mais latentes nas experiências analisadas - família, escola, trabalho, sociabilidade e território - retrataram com força os contextos socioculturais precários vividos por esses jovens, marcados por relações de exclusão e violência. Ao final da pesquisa, foi possível reafirmar que esses jovens, desde que nasceram, vivenciaram processos de desumanização, que estruturavam a sua posição social e de suas famílias e ditavam os limites de uma possível mobilidade social. Assim, foi possível compreender que eles são produzidos socialmente como “marginalizados”, o que exige pesquisas que desvelem esses processos que atingem parcela considerável das crianças e jovens adolescentes das famílias populares no Brasil.

Ao nos debruçarmos sobre os olhares juvenis acerca da experiência investigada, nos perguntamos qual lugar a instituição ocupava na vida desses adolescentes. A experiência foi capaz de abrir novos horizontes e perspectivas de vida para esses adolescentes? Pelo que indicam os dados, o tempo de permanência na MSE em geral contribuiu para constituir um espaço-tempo de reflexão sobre suas trajetórias, relações e “escolhas” para o futuro, mas isso se deu de uma forma frágil e limitada, especialmente quando se consideram as possibilidades desses jovens contarem com suportes que os orientem e sustentem nos seus percursos pós-instituição, especialmente em relação à escolarização e ao trabalho.

Compreender os diferentes projetos de futuro dos jovens exigiria um mergulho maior nas trajetórias e experiências de cada um em suas várias dimensões, tendo em vista que os projetos de futuro são elaborados a partir de uma determinada configuração social. Mesmo assim, foi possível perceber que a relação com a dimensão do projeto de futuro era estabelecida pelos jovens de maneira muito distante, prevalecendo uma adesão ao tempo presente diante da situação trágica que eles vivenciavam. Uma vez que os horizontes eram tão curtos, as suas perspectivas eram fortemente colocadas no horizonte imediato.

A investigação reforçou a relevância de desenvolver novos estudos voltados para a reflexão acerca da relação entre as medidas socioeducativas e os projetos de futuro juvenis. Outro aspecto importante se refere à complexa e potente dimensão da relação familiar vivida por esses jovens, o que demanda mais investimentos teórico-metodológicos que possibilitem aprofundar e compreender com mais amplitude a vivência da condição juvenil de jovens apenados nas suas relações familiares.

Reforça-se ainda a dimensão da produção social da marginalidade como um processo social e histórico complexo e que (re)produz os olhares, as representações, as concepções e as relações com uma parcela da população, especialmente no seu recorte juvenil. Tal processo nos permite afirmar que as produções e reproduções não se referem a qualquer parcela da sociedade, mas sim a um grupo específico que abarca uma grande parte da juventude brasileira. São jovens pobres, negros, “meninos das quebradas”, “os outros”, invisíveis para a sociedade e, ao mesmo tempo, presentes no ciclo contínuo da exclusão, da inclusão precária e da marginalização. Esses sujeitos agem no e sobre o mundo, a partir de suas experiências marcadas intensamente por ambiguidades. Experimentam a condição trágica de viver sempre no limite, “no fio da navalha”. E, mesmo assim, eles se fazem humanos em seus sonhos e desejos de um futuro diferente, em meio aos duros processos sociais que insistem em desumanizá-los.

REFERÊNCIAS

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1A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (COEP/UFMG). Os dados foram utilizados apenas para fins da pesquisa e foram coletados mediante a prévia autorização dos sujeitos envolvidos e seus responsáveis legais, por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As transcrições das entrevistas foram entregues aos participantes para conferência antes de analisadas. Foram utilizados nomes fictícios na exposição dos dados para resguardar a privacidade e segurança dos entrevistados. Para entrada em campo, foi obtida a autorização formal da instituição e da Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE), vinculada à Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) do Governo de Minas Gerais.

2Segundo Bernardo Nante (2016), “es una expresión que utilizamos cuando vivimos una situación de peligro o debemos enfrentar alternativas acuciantes. También solemos decir que alguien vive ‘al filo de la navaja’, ya sea para destacar la elección de un estilo de vida audaz, o bien una conducta inconsciente o temeraria”.

3As medidas socioeducativas são definidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 1990) e regulamentadas pela Lei nº 12.594, de 2012, que criou o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE (BRASIL, 2012). São medidas socioeducativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional. A medida de semiliberdade implica na privação parcial de liberdade. Os jovens permanecem na instituição durante a semana realizando atividades internas e externas planejadas, podendo visitar suas famílias nos finais de semana e feriados.

4Foi realizado um levantamento da literatura registrada entre 2007 e 2014 utilizando como principais fontes de busca a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), o portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o da Scientific Electronic Library Online (Scielo).

5A Política prevê, entre outros princípios e parâmetros socioeducativos norteadores, eixos estratégicos do cumprimento da medida. São eles “a família, as relações sociocomunitárias, a escolarização, a profissionalização, a cultura, o esporte, o lazer e a saúde” (MINAS GERAIS, 2012, p. 38).

6O Plano Individual de Atendimento é um instrumento unificado para as unidades de semiliberdade que objetiva o registro do acompanhamento e das intervenções realizadas com o jovem durante o cumprimento da medida socioeducativa. Os prontuários reúnem os documentos pessoais e judiciais do jovem adolescente em cumprimento de medida socioeducativa.

7Valor do salário mínimo referente ao ano de 2016: R$ 880,00.

8Para os autores, “las pruebas son desafíos históricos y estructurales, socialmente producidos, culturalmente representados, desigualmente distribuidos, que los individuos - todos y cada uno de ellos - están obligados a enfrentar en el seno de una sociedad” (ARAÚJO; MARTUCCELLI, 2012, p. 16).

9Os termos destacados referem-se a expressões nativas utilizadas pelos jovens: “testar a fé”: testar e/ou duvidar da coragem, paciência, capacidade do outro de se manter fiel às regras; “enfumaçar a cadeia”: causar problemas entre os próprios jovens, deles com agentes e técnicas; “caminhada lombrada”: tornar a experiência do outro ruim, contribuir para atrapalhar os planos de alguém, incomodar.

10Conforme nota de rodapé 1, os nomes originais dos participantes foram mantidos em sigilo. Durante as entrevistas, foi explicado aos jovens essa questão e pedido a cada um deles que escolhesse um nome para serem identificados na pesquisa.

11Fazia parte do funcionamento da MSE a realização das avaliações dos jovens pelas técnicas e agentes socioeducativos, registradas a cada seis meses de cumprimento de medida. Este registro era utilizado como fundamento para a decisão do juiz e poderia interferir diretamente no curso de vida dos jovens.

12O bricoleur é aquele que desenvolve o trabalho com as próprias mãos, utilizando instrumentos diferentes dos que seriam usados por um profissional. “Nenhum elemento do conjunto sobre o qual o bricoleur atua está vinculado a um emprego predeterminado; o resultado do trabalho liga-se às condições e aos meios com os quais o sujeito se confronta a cada instante” (LECCARDI, 2005, p. 46).

Recebido: 07 de Novembro de 2018; Aceito: 10 de Outubro de 2018

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