Introdução
Um tom objetivo atravessa o relatório escrito por Laura Jacobina Lacombe para o Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação (ABE) quando regressa do IV Congrès International d’ Education Nouvelle1 - que se realizara em Locarno, Suíça, em 1927 -, no qual detalhava em minúcias a organização do evento, a composição de países representados, os temas tratados, sua própria apresentação e os contatos estabelecidos. Justificava, assim, sua sugestão de aprofundamento das relações da ABE com a instituição promotora. Vez por outra deixava escapar certo deslumbramento com a possibilidade de ter conhecido e convivido com educadores respeitados internacionalmente, muitos deles com os quais tivera até então contato apenas por intermédio de livros e revistas.
Suas palavras iniciais são de agradecimento pela confiança nela depositada para representar a entidade no evento. Mais do que uma simples prestação de contas, o relatório continha sua avaliação da dimensão do debate educacional que se travava no mundo, alimentado por ideais pacifistas e cientificistas:
Tendo sido confiada a mim a honrosa missão de representar a Associação Brasileira de Educação no ‘Congresso Internacional de Educação Moderna’ realizado em Locarno, procurei desempenhar bem o meu encargo para corresponder à confiança que em mim depositaram os diretores desta Associação. Como disse no Congresso, não sou eu a pessoa mais competente para representar o professorado brasileiro, porém sou uma d’aquelas que mais desejo tem de acertar e que acredita ser aquele núcleo de saber o detentor da verdade, no que diz respeito à ‘educação’. Aquele é o foco luminoso que esclarece nas cinco partes do mundo os que dedicam a sua vida à causa mais nobre que existe. (LACOMBE, 1927a).
Aliás, seguir a educadora Laura Jacobina Lacombe em suas andanças pelo mundo2 permite compreender sua trajetória profissional, mudanças de rumos e diferentes inserções em entidades nacionais e internacionais, pois deixou pistas em álbum de viagens, cartas, fotografias, discursos e relatórios que sinalizam para sua militância na Associação Brasileira de Educação, na Associação de Educação Católica e na Organização Mundial de Educação Pré-Escolar. Em várias oportunidades, ao recordar suas inúmeras travessias, evocaria instituições visitadas, contatos estabelecidos, impressões deixadas, registrando, assim, a importância das viagens em sua vida e deixando entrever que não bastava partir, conhecer e regressar. Era necessário dar visibilidade à experiência, relatar, comprovar, legitimar e se legitimar como alguém que conhecia de perto muitos outros países e realizações educacionais inovadoras, como se pode ver também no depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som:
Tive muitas vezes ocasião de voltar à Europa, já lá estive 19 vezes. Em quase todas tomei parte em um, dois e até três congressos. Paralelamente tive três vezes ocasião de levar um grupo de alunas em 1950, 56 e 60. Em uma das vezes, em 56, ficamos três semanas em Paris, onde fizemos um curso de francês na Sorbonne, digo fizemos porque eu também me matriculei lá nas aulas. [...] Minhas viagens tornaram-se mais frequentes quando fundamos, em 1953, no Brasil, o Comitê Nacional Brasileiro da OMEP. A OMEP é uma organização mundial para a educação pré-escolar, fundada por um grupo de idealistas, chefiados, posso dizer, por que a mais interessada e mais vibrante em tudo é Madame Erbinier Leber, em Viena e nós tomamos conhecimento disso e eu fui encarregada. Eu era a secretária da Associação de Educação Católica e me encarregaram de fundar o Comitê. Depois me fizeram presidente e eu estou mais que Getúlio porque eu já passei de 20 anos (risos) na presidência. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DO RIO DE JANEIRO, 1974). 3
O relatório que apresentou ao Conselho Diretor da ABE, ao retornar de Locarno, como em tantos outros registros deixados, funciona como um testemunho do visto e do vivido, permitindo interpretar a importância de sua participação no diálogo que se instituía entre educadores brasileiros e estrangeiros que gravitavam em torno do Institut Jean-Jacques Rousseau. Tomado como fio condutor, ele permite compreender a educadora que viaja, o contexto da travessia, o destino escolhido, as redes estabelecidas e as repercussões da viagem na sua escola e no debate educacional travado no interior da entidade que representara.
Uma educadora viajante
Se, em 1927, esta não foi a primeira viagem de Laura ao exterior, também já não era apenas a jovem professora que fora, dois anos antes à Suíça, para estudar no Institut Jean-Jacques Rousseau - que se constituíra em importante centro de referência para os educadores de todo o mundo -, como se lembra em depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (1974):
Nunca tinha passado pela minha cabeça ir à Europa, eu via todo mundo fazer viagens à Europa, não pensava ser possível ir à Europa um dia e mamãe estava pensando em mandar buscar uma professora na Europa. Dr. Carneiro Leão, que era Secretário de Educação naquela ocasião e se dava muito conosco perguntou à mamãe: ‘Mas por que em vez de mandar buscar uma professora a senhora não manda dona Laura à Europa’. Aquilo foi pra mim a abertura de uma vida nova. Dr. Carneiro Leão tinha relações por cartas com os professores de Genebra e me deu uma apresentação e aí se abriu um horizonte novo ao tomar contato, em Genebra, com o Instituto Jean Jacques Rousseau. Muita gente ficou escandalizada porque era Rousseau, mas a gente de tudo pode encontrar coisas boas e foram os grandes professores Bovet, Claparède, Piaget e Ferrière e outros que me fizeram entrar nesse mundo novo e eu fui guiada por esses grandes idealistas, esses mestres que se tornaram meus amigos.
A educadora devia, certamente, a Antonio Carneiro Leão4 aquela primeira viagem, que para ela significou um divisor de águas em sua vida. Seus conselhos foram levados em conta porque desde 1922 tinha sido nomeado Diretor-Geral da Instrução Pública, onde permaneceria até 1926, procurando “transformar a educação do Distrito Federal em modelo para o país”, fundamentada em “uma diretriz científica” (SILVA; MACHADO, 2004, p. 8), voltada para a
[...] melhor preparação para o professor. Para isso organizou, pioneiramente, cursos de aperfeiçoamento para o magistério e atividade docente ligada à realidade; utilizou laboratórios e oficinas; preocupou-se com a higiene, a assistência social, a saúde e a educação física. (SILVA; MACHADO, 2004, p. 8).
A sugestão feita por ele sobre o país de destino que a jovem deveria seguir, provavelmente se devia aos laços estabelecidos por meio de correspondência com Adolphe Ferrière, que prosseguiu, como se pode ver na carta que este lhe dirigiu, meses antes do congresso, prometendo que daria divulgação ao trabalho do antigo Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, manifestando interesse na reforma que liderara especialmente no que se referia à formação de professores e pedindo para interferir na publicação de seus livros no Brasil:
Caro senhor,
Sua correspondência de 24 de março e seus vários anexos muito interessaram-me.
O senhor Bovet já havia ido para o congresso de Praga, mas quando ele voltar, eu pedirei as fotos que o senhor disse ter enviado a ele. É com muito prazer que darei na minha revista ‘Pour l’Ere Nouvelle’ uma breve nota referente ao belo trabalho em que o senhor foi o anfitrião em seu país. Interessava-me muito saber o que o senhor fez pela reforma das escolas normais, em particular, pelo preparo dos futuros mestres na aplicação dos métodos de educação científica, tal como entende a nossa Ligue International pour l’Education Nouvelle. De fato, enquanto os novos professores aprendessem métodos didáticos obsoletos, ou seja, resistentes que ignoravam a psicologia infantil, não se poderia esperar grandes progressos. O senhor tem ciência, sem dúvida nenhuma, que vários dos meus livros foram ou vão ser traduzidos em língua espanhola. Havia a possibilidade de serem traduzidos em português, graças ao apoio de um comitê brasileiro. Infelizmente, me escreveram de Lisboa dizendo que esse comitê tinha intenções utilitaristas, que, desconhecendo o valor da psicologia, não consentiu no financiamento da tradução dos meus livros. Se o senhor acredita que pode intervir, o senhor que conhece o valor incomparável da teoria e da prática da Education Nouvelle, me diga e eu fornecerei os detalhes úteis referente ao assunto.
Aguardando boas notícias, peço que receba, caro senhor, minha mais alta estima,
Para a Associação Brasileira de Educação, ter uma representante no IV Congrès International d’ Education Nouvelle fazia parte de um projeto maior da entidade de se articular ao movimento internacional de renovação educacional, o que se expressava na publicação da seção Associação Brasileira de Educação no Estrangeiro, em seu Boletim, como lembra Mariana Mello Burlamaqui (2013), que chama atenção para a divulgação constante de eventos, publicações, intercâmbios e viagens. Nele o Bureau International d’Education tinha um constante e especial espaço no periódico, visto que representava um importante centro de disseminação do conhecimento sobre a infância e sobre a educação, com constantes referências a publicações, cursos e congressos. Tal empenho em divulgar as atividades do Institut Jean Jacques Rousseau e do próprio Bureau International d’Education, de certo modo, se devia à estratégia maior dos educadores europeus, especialmente suíços, que, no entreguerras - “sob o impacto humano, social, moral e geopolítico” - se articularam com autoridades, associações do magistério e organizações sindicais de vários países da Europa e das Américas, de modo a construir “um entendimento internacional e promover os interesses da paz no mundo” (LÁZARO LORENZE, 2016, p. 38), o que passava também, necessariamente, pelas escolas e universidades, para atingir o objetivo maior da educação das novas gerações.
A indicação de Laura, pelo Conselho Diretor, era um reconhecimento de suas relações estabelecidas com os educadores suíços e, em particular, ao seu papel de correspondente do Bureau International d’Education, convite este que lhe fora formulado por carta assinada por Marie Butts, secretária da associação internacional, e devidamente divulgada no último Boletim de 1926:
É com grande prazer que registrei duas associações que lhe indicam como membros do Bureau Internacional d’Education. Como não temos correspondentes no Brasil, você nos prestaria um serviço muito bom se nos permitisse falar com você quando nos pedissem para sermos informados sobre este país. Qualquer coisa que você pudesse me contar sobre educação no Brasil seria de grande interesse para mim. [...] Para poder prestar os serviços esperados, o B.I.E. precisa de um correspondente que possa fornecer informações sobre a educação pública e privada em seus países, em projetos de pesquisa no campo da psicologia infantil e da psicologia dos adolescentes.
Nós nos permitimos vir perguntar-lhe se existe em seu país um escritório geral de informação educacional e pedir-lhe, no caso contrário, para nos indicar as pessoas ou as instituições que lhe parecem ser as mais capazes de fornecer-lhe informação. Ao mesmo tempo, nós concordamos em fornecer a você documentação e, em particular, se você nos autorizar a considerá-lo como correspondente do B.I.E. nas áreas que você gentilmente nos designou. Qualquer sugestão que você possa nos dar sobre a melhor maneira de organizar o trabalho em seu país será bem-vinda. (BUTTS, 1926, p. 4-5).
No depoimento feito ao Museu da Imagem e do Som (MIS), Laura Jacobina Lacombe destaca que em sua viagem à Suíça para participar deste congresso contou com apoio de recursos públicos:
Dois anos mais tarde eu fui representante oficial do Brasil no grande Congresso da Ligue International Pour l’Education Nouvelle, eu soube que ia haver esse congresso, eu sabia que meus professores iam tomar parte e outros professores do mundo todo, movi céu e terra, fui ao Washington Luis, fui ao Mangabeira, fui ao Dr. Melo Franco que se dava com Viana do Castelo, eu sei que consegui uma nomeação e fui auxiliada com uma verba que só davam às pessoas que tinham muita influência. Eu recebi 10 contos e com esses 10 contos eu fui à Europa, fui ao congresso e depois fui à Bélgica e estagiei na Escola Decroly, porque lá em Locarno eu conheci o professor Decroly e ele ficou muito interessado pelo colégio, porque o dele também tinha começado em casa com a família, então ele conversava muito comigo e foi muito amável e eu estive não só em casa dele como também estagiei uma semana inteira na escola de l’Ermitage de manhã à noite. (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM DO RIO DE JANEIRO, 1974).
Em meio ao movimento de expansão de iniciativas de renovação educacional
A presença de Laura Jacobina Lacombe no IV Congrès International d’Education Nouvelle, estava respaldada pela Associação Brasileira de Educação (ABE) - entidade que buscou interferir nos destinos da educação nacional, desde sua criação em 1924 -, na medida em que fora escolhida para representá-la na quarta edição do evento organizado pela New Education Fellowship, que, segundo a educadora, tinha diversas revistas publicadas em vários países como Alemanha, Áustria, Inglaterra, Bélgica, França, Suíça, Bulgária, Chile, Espanha, Hungria, Itália, Argentina etc., e que tinha por finalidade propagar princípios da educação moderna,6 constituindo-se, assim, no seu entendimento, em “um programa de um ideal muito nobre e as pessoas que a ele se têm dedicado, são verdadeiros apóstolos, pois não só pregam essas ideias como são exemplos vivos pela abnegação de suas vidas, pondo em prática esse ideal” (LACOMBE, 1927a). Para Laura Jacobina Lacombe, a importância do congresso podia ser, em suas palavras, também medida pelo aumento crescente de participação de educadores:
O primeiro teve lugar em Calais, constando de 100 membros; o segundo em Montreux, com 200; o terceiro em Heidelberg, com 600 e o quarto em Locarno, com perto de 1200 membros! Esta progressão crescente prova a felicidade com que se estão propagando as ideias de educação moderna por todo o mundo. Quarenta países, de todos os continentes, estavam representados. (LACOMBE, 1927).
Para Laura, participar da quarta edição desse evento significava uma possibilidade de se sentir parte de um grupo de educadores que tinha como finalidade definir princípios, políticas, práticas e métodos de ensino capazes de interferir nos rumos da educação para além das fronteiras geográficas. Este horizonte de intervenção irmanava aqueles que compartilhavam da compreensão de que era imprescindível investir na educação das futuras gerações. Muitos eram os mesmos que estiveram reunidos em 1919, em Calais, quando definiram, segundo Lourenço Filho, “os caracteres gerais da ‘escola nova no campo’, ou seja, da ‘escola nova’ em seu sentido original” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 162), no que se referia à organização geral, formação intelectual e formação moral. Aos mesmos princípios, posteriormente, lembra o autor, foi acrescentado, ainda outro princípio: “A Escola Nova, em cada criança, deve preparar não só o futuro cidadão capaz de preencher seus deveres para com a pátria, mas também com a humanidade” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 165).
Se os 30 pontos estabelecidos não foram seguidos integralmente por todas as escolas, visto que só a de “Odenwald, criada por Paul Geeb, atendeu à totalidade” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 165) serviram de horizonte para a intervenção nas escolas e nos sistemas públicos de ensino, o que de certa forma justifica a participação de autoridades de diversos países no evento de Locarno, como acentuou Laura Jacobina em seu relatório:
Achava-se o diretor da instrução publica de New South Wales (Austrália), o da Sibéria, o da África do Sul, representantes da China, Japão, Índia, de quase todos os países da Europa, grande número de membros dos Estados Unidos da América do Norte; além do Brasil, os países da America do Sul que estiveram representados foram o Peru e o Uruguai. A Liga das Nações também estava representada. (LACOMBE, 1927a).
Aliás, Lourenço Filho (1978), ao se referir à expansão do ideário renovador no ensino público, destacou seu impacto nas reformas feitas nos Estados Unidos e Europa, especialmente no pós-guerra. Ao se referir à Europa, deu destaque à reforma da Alemanha, iniciada em Munique, por Jorge Kerschesteiner, em 1910, que propôs transformar a “escola do livro” na “escola do trabalho”, fundada em sentido social do trabalho em comunidade e elevação moral do caráter profissional, que repercutiu em Leipzig, Berlim, Dresden, Neukoln, Bremen, Hamburgo e, posteriormente, em Iena; à reforma da Áustria, que depois da primeira guerra reorganizou o ensino oficial graças à nomeação, em 1919, de Otto Gloeckel para o Ministério da Educação, que favoreceu a expansão das ideias inspiradas na “liberdade democrática, como objetivo central, e nas de adaptação do trabalho às necessidades e interesses dos educandos, como recurso prático” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 168); à reforma da Itália, cujas ideias de Maria Montessori, que se multiplicaram por vários países, se juntavam às de A. Marchetti e Giuseppe Lombardo Radice sobre a Escola Serena - “escola que espera pacientemente o lento e puro despertar dos tesouros anímicos da criança, sem que se tenha que recorrer a manobras forçadas, que deformam as energias infantis” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 168); à reforma da França, graças ao trabalho de Roger Cousinet, inspetor escolar, que em 1919 liderou a associação La Nouvelle Éducation - destinada a congregar educadores e pais para a discussão sobre a atividade das crianças na escola e no lar - e que “procurou transformar o trabalho das escolas públicas de modo a harmonizar as exigências oficiais com o interesse natural dos discípulos” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 169); à reforma da Bélgica, inspirada nas ideias de Ovide Decroly, que criou os centros de interesse como uma estratégia para estabelecer a “transição entre a situação existente nas escolas públicas e a que se desejava mais tarde fosse implantada” (LOURENÇO FILHO, 1978, p. 170); e à reforma da Suíça, que a partir das ideias de Adolphe Ferrière, Edouard Claparède e Pierre Bovet, em 1923, conseguiu adotar oficialmente, em Genebra, as práticas de escola ativa.
Nesse contexto de multiplicação de iniciativas de renovação educacional fabricadas no pós-guerra, Laura Jacobina Lacombe partiu em busca de inovações. Ali se encontraria com os principais expoentes, muitos deles cujas obras só conhecia de nome, através de livros e artigos que circulavam entre os educadores brasileiros, pois a associação promotora do IV Congrès International d’Education Nouvelle - a New Education Fellowship - tinha por finalidade propagar as ideias novas de educação “sustentada por grandes autoridades científicas”, tais como:
[William Paulsen], professor da Universidade de Berlim; Paul [Dengler] professor de [...] e pedagogia do [Institut Austrio-Americano de Educação de Viena]; Pierre Bovet diretor do Instituto Jean Jacques Rousseau, de Genebra; Edouard Claparère, professor da Universidade de Genebra; Adolphe Ferrière [...] da Escola Activa, editor da revista Pour L’Ere Nouvelle; Ovide Decroly, professor da Universidade de Bruxellas e fundador e director da ‘Ecole de l’Ermitage’ modelo de escola cujo lema é ‘pour la vie, par la vie’. (LACOMBE, 1927a).7
Mais do que uma mera prestação de contas
Em seu relatório do IV Congrès International d’ Education Nouvelle, como já assinalado, Laura Jacobina Lacombe mescla a objetividade que julgava necessário imprimir com diversas passagens que expressam impressões pessoais sobre a organização do evento, a temática tratada, as conclusões do evento e os desdobramentos que julgava importantes para a Associação Brasileira de Educação, além de considerações sobre sua própria participação. O esforço de objetividade e concisão é por ela assinalado quando informa que trouxe informações e material para as Secções de Cooperação da Família, Secção de Divertimentos Infantis e Secção de Ensino Secundário, mas que não detalharia neste momento “para não tornar por demais longo esse meu relatório” (LACOMBE, 1927a).
No seu entendimento, a organização dos trabalhos, dividida em conferências e grupos divididos por assuntos - Psicologia, métodos individuais, escolas experimentais, coeducação e educação sexual, ensino moderno da historia, novos métodos de ensino artístico, Geologia local para excursões e questões gerais -, apesar de não ser rígida, visando facilitar a participação em diversos grupos de acordo com o interesse dos congressistas, impedia a participação em tudo que provocava curiosidade, o que lhe exigiu um grande esforço para
[...] escolher os assuntos que interessavam à Associação e assim como aos trabalhos do Curso Jacobina, não só nas conferências, como em conversas particulares que pude ter com os grandes mestres e também na minha viagem a Paris, onde estive em contato com o Institut International de Coopération Intellectuelle, da Liga das Nações. (LACOMBE, 1927a).
A concisão do relato se constituiu em convite para buscar na revista Pour l’Ere Nouvelle (LACOMBE, 1927b) - que se apresentava como “a revista dos pioneiros da educação” -, dedicada ao Congresso de Locarno, publicada em 1927, pistas para compreender a estruturação das conferências que estavam todas, conforme narrado por Laura Jacobina Lacombe, em torno da temática central do evento: a liberdade em educação. O conjunto de intervenções, como se pode ver no Quadro 1,8 permite melhor compreender as impressões dela acerca das conclusões do evento: “o novo sistema exige um grande aperfeiçoamento moral e intelectual do professor. Não é só o que ele diz, mas principalmente o que ele realmente é que tem influência na formação do aluno” (LACOMBE, 1927a). Além disso, “a liberdade não é um fim, porém um meio” (LACOMBE, 1927a). Por isso, o aluno deveria ser colocado, em suas palavras, “em um ambiente tal que ele tenha a liberdade de agir” (LACOMBE, 1927a). Entendera, enfim, que era “em liberdade, no seu natural que a criança pode ser estudada e eficazmente dirigida. A criança que foi habituada a decidir por si, mais facilmente saberá se dirigir na vida” (LACOMBE, 1927a). Para a educadora a escola ativa defendida por Adolphe Ferrière era o “remédio contra a educação livresca” (LACOMBE, 1927a), que negava suas qualidades que permitiriam vencer na vida.
Quadro 1 Conferências do Congresso.
Conferencista | Inserção profissional | Título |
---|---|---|
Arthur Sweetser | Membre du Conseil de l’Ecole Internationale de Genève | La signification et la portée du Congrés d’Éducation Nouvelle |
Sir Jagadis Chunder Bose, F. R. S. | Fondateur et directeur de l’Institut de recherches Bose, à Calcutta /Membre du Comité International de Coopération Intellectuelle de la Société des Nations | L’unité de la vie |
Sir Jagadis Chunder Bose, F. R. S. | idem | Une vie consacrée à la recherche de la vérité |
Pierre Bovet | Président du Congrès | Le problème de la liberté en education |
Beatrice Ensor | Fondateur de la New Education Fellowship | La relativité de la liberté |
Elisabeth Rotten | Président de Deutsche Liga für Völkerbund | Liberté et limitation |
M. G. Lombardo-Radice | Professeur à l’Institut Royal Supérieur du Magistère, à Rome / Directeur de « L’Educazione Nazionale » | La liberté véritable et la fausse liberté en éducation |
O. Decroly | Professeur à l’Université de Bruxelles | La liberté et l’education |
Lorenzo Luzuriaga | Directeur de la « Revista de Pedagogia », Madrid | La pédagogie de l’equipe |
Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Pour l’Ere Nouvelle (1927).
Ao lado desses estavam outros palestrantes: Carson Ryan, Harold O. Rugg, Carleton W. Washburne, Lucy L. W. Wilson e Marietta Johnson,9 que discutiram experiências dos Estados Unidos focalizando em seus trabalhos “Les méthodes individuelles dans les ecoles primaires”, “Comment libérer les programmes”, “La liberté par la maîtrise de soi”, “La veritable signification de la liberté dans les écoles secondaires américaines d’instruction publique” e “La conservation de l’enfance et la coéducation”, respectivamente; bem como da Alemanha e da Áustria: Alfred Adler, Wilhelm Paulsen, Paul L. Dengler, Gustave Wyneken e M. B. T. Thaker, cujas palestras tiveram por títulos “Le courage son importance dans l’éducation de l’enfant”, “La liberté de l’educateur”, “Soumission passive ou self-government”, “La liberté et ses limites” e “Une voix de l’Indie”, também na mesma ordem. Consideradas como participação dos países latinos - Bélgica, França, Itália, Portugal, Espanha, Suíça, Argentina e Brasil - estavam, dentre outros, Ovide Decroly (Universidade de Bruxelas), Alvaro V. Lemos (Escola Normal de Coimbra), Clotilde Guillen de Rezzano (da Argentina), além de professores da Universidade de Genebra como Edouard Claparède e Paul Meyhoffer que abordaram aspectos da Escola Nova em experiências específicas e no ensino público de seus países.
No último grupo de trabalho agrupado pelo editor da Pour l’Ere Nouvelle estava Laura Jacobina Lacombe, a representante brasileira, que assim registrou a exposição que realizara no evento:
Quanto à sessão que organizei consagrada ao Brasil direi apenas que foi graças ao prestigio [...] do Dr. Carneiro Leão que conseguiu uma hora para realizá-la. Foi no Kursaal com uma grande e simpática assistência que em breves palavras falei sobre o Curso Jacobina e sobre os trabalhos da Associação Brasileira de Educação, principalmente sobre os da Cooperação da Família e os da Secção de Divertimentos Infantis cuja Presidente me confiou esse relatório. Este apresentei em Genebra ao Bureau International d’Education, que muito se interessou. Foi organizado durante o Congresso um ‘comité’ internacional de propagação dos novos métodos de [ensino] pelo [mundo]. Faço parte desse ‘comité’ como representante do Brasil. Já foi aprovado um projeto para um filme, apresentado pelo Professor Adolphe Ferrière. Na exposição de material escolar foram muito apreciados os métodos de Física do Dr. Heitor Lyra da Silva e o de Química do Dr. A. Barbosa de Oliveira. (LACOMBE, 1927a).
Da sessão por ela organizada, no entanto, suas palavras sobre o Colégio Jacobina, os trabalhos da Associação Brasileira de Educação e os métodos de ensino de Heytor Lyra da Silva e Barbosa de Oliveira, que enfatiza no relatório, não tiveram visibilidade. Apesar de vários participantes não terem suas palestras publicadas na íntegra, como se pode ver no número da revista Pour l’Ere Nouvelle editada por Adoplphe Ferrière, dedicado ao Congresso de Locarno, a de Laura, “L’enseignement public à Rio de Janeiro”, foi publicada merecendo registro do filme da gestão de Carneiro Leão sobre a educação pública carioca. Sua fala foi precedida de uma chamada sobre a temática tratada na película:
O filme apresentado por Lacombe representa o resultado dos esforços e da dedicação do Diretor da Instrução Pública, o Dr. A. Carneiro Leão, auxiliado pelo órgão de educação do Rio de Janeiro, sem qualquer subsídio do Governo. Ele consistia em três partes intituladas respectivamente: Saúde na escola, ensino na escola, a ação social na escola. (LACOMBE, 1927b, p. 218).
Se Carneiro Leão ajudou Laura Jacobina Lacombe indicando caminhos, estimulando estudos, abrindo possibilidades de intercâmbio, nesta viagem, seria ela a ajudá-lo, ao divulgar suas iniciativas em favor do ensino público. Adolphe Ferrière, ao eleger o filme, cumpriria sua promessa feita na carta de 24 de março de 1927, quando lhe dizia que era com “muito prazer que darei na minha revista ‘Pour l’Ere Nouvelle’ uma breve nota referente ao belo trabalho em que o senhor foi o anfitrião em seu país, dando visibilidade às realizações educacionais no Rio de Janeiro” (FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, 1927). Em carta escrita ainda no calor do congresso, no mesmo mês de sua realização, dirigida ao antigo Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, devidamente publicada pelo destinatário, na imprensa, enaltece a participação da representante brasileira no evento:
24 de agosto de 1927
Caro Dr. Antonio Carneiro Leão
Foi para nós um grande prazer receber em Locarno uma emissária do Brasil. Mlle Lacombe representou o vosso país com distinção e inteligência. O filme - Ensino no Distrito Federal - que ela fez projetar no teatro diante de uma sala inteiramente cheia, encantou a todos e não é apenas em meu nome, mas dos congressistas em geral, que vos envio felicitações pela soberba preparação da infância, feita aí, de acordo com a vossa direção esclarecida e competente. [...] Seria bom que este filme pudesse ser conhecido em todas as nações que estão ainda retardadas na reforma escolar. Mlle Lacombe fez também uma exposição pela qual percebemos, com alegria, a existência, hoje, na Capital do Brasil, de um corpo e de uma alma devotados à educação nova. Essa alma é a vossa, graças à vossa competência e ao vosso apoio esclarecido. Quanto ao corpo, aliado a todos os professores e mestres que vos seguiram e vos compreenderam. (FERRIÈRE, 1927, p. 7).
Convencida de que era necessário experimentar as inovações, mas que elas deveriam ser adaptadas às diferentes realidades, preocupada com a possibilidade de que o discurso em favor da liberdade da criança resultasse em algo “pior do que a antiga disciplina”, Laura volta da Europa encantada com a experiência de Ovide Decroly,10 na Bélgica, como se pode ver nas palavras que encerram seu relatório:
Tive a felicidade de ver a escola que considero o verdadeiro modelo em educação moderna, que é a do professor Decroly. Seria de grande vantagem para nós, si pudéssemos sê-lo aqui por algum tempo, orientando-nos nesse ideal que a todos nós entusiasma: a educação! [...] (LACOMBE, 1927a).
Ao regressar
A viagem para o congresso não se limitou a Locarno e Bruxelas. Pelo relatório se depreende que durante a viagem estivera também em Genebra e Paris. Como já pontuado, apresentara o relatório da Secção de Cooperação de Divertimentos Infantis no Bureau International d’Education e visitara o Institut International de Coopération Intellectuelle, da Liga das Nações. Antes de regressar já prosseguia na tessitura de uma rede de sociabilidade com educadores estrangeiros que se aprofundaria em outros contatos pessoais, mas sobretudo por cartas trocadas ao longo dos anos, cartas estas que vinham com o timbre de vários organismos internacionais: Bureau International d’Education, Université de Genéve/Institut des Sciences de l’Education, Ligue Internationale pour l’Education Nouvelle, Pour l’Ere Nouvelle, Ecole des Roches, Departement de l’Instrution Publique de Genève, Ligue des Sociétés de la Croix-Rouge, Société des Nations/Institut International de Cooperation Intellectuelle, École Primaire Súperieure de Jeunes Filles, École Normale Primaire d’Instrutices de la Charente-Inférieure, École de l’Ermitage, École Decroly, The Austro-American Institute of Education, Department of Education of Sidney e Commitee of Russian Towns Union.
Prosseguiu em atividades realizadas em outros eventos. A correspondente do Bureau International d’Education assumiria a responsabilidade de dar a conhecer aos educadores brasileiros o ideário que unificava aqueles que considerava serem “verdadeiros apóstolos”. Isto é o que se pode depreender de suas duas intervenções no Congresso Brasileiro de Educação, promovido pela Associação Brasileira de Educação, em Curitiba, em dezembro de 1927. Sobre o organismo internacional, deu ciência de sua existência, ressaltando ter sido fundado por Pierre Bovet, diretor do Institut Jean Jacques Rousseau, com a finalidade de “multiplicar os pontos de contato entre os povos, o que é de grande importância para favorecer a cultura pública” e informando que este era “um cérebro de documentação e informações para tudo o que diz respeito à educação” o que permitiria que se encontrasse “solução de um problema de educação ou instrução pelo conhecimento de trabalho idêntico resolvido em outro país” (LACOMBE, 1997a, p. 99).
De certo modo, a tese que apresentara nesse evento estava articulada ao espírito que presidia as preocupações dos educadores reunidos em Locarno e que estavam aglutinados em diversos organismos sediados em Genebra, na medida em que no pós-guerra a preocupação com os ideais pacifistas estimulara intelectuais, educadores e cientistas, em torno da educação por um mundo melhor. A temática da tese defendida por Laura Jacobina Lacombe estava afinada com as preocupações defendidas, por exemplo, pela Ligue International de Cooperation Intellectuelle, cujo diretor - Julien Luchane - reivindicava o fim dos ódios entre os povos e uma educação para a paz, capaz de favorecer a cooperação internacional e contribuir para o desarmamento moral e desarmamento armamentício das nações como forma eficaz de evitar novos conflitos (LÁZARO LORENZE, 2016). Em A Educação e a Paz (LACOMBE, 1997a), a educadora defendia uma educação que escapasse de estreitos nacionalismos em busca de um entendimento entre os homens numa perspectiva em favor do internacionalismo que não abrisse mão de cultivar os traços da nacionalidade. Isto implicava na obrigação moral do magistério de cultivar nas novas gerações o sentimento de cooperação, o amor e o respeito entre os homens. Hibridizando sua visão religiosa com as abordagens pacifistas, Laura Jacobina Lacombe (1997b, p. 133-134) defendeu:
O nosso século que está realizando alguns grandes ideais, trabalha para pôr em prática as palavras d’Aquele que disse ‘Amai-vos uns aos outros’. E a quem compete, mais do que qualquer outro, a divulgação deste ideal tão nobre? Cada um de nós, professores, tem a obrigação moral de lançar a semente no vasto campo da infância, para que outras gerações venham colher a messe benfazeja. Plantemos, como diz Rui Barbosa, não a couve, porém o carvalho. Grandiosa é a obra daquele que faz o bem tendo em vista a felicidade alheia. [...] Procuremos não alimentar na criança os instintos guerreiros; trabalhemos pela extinção dos brinquedos que os alimentam. Procuremos distrair as crianças sublimando o seu instinto combativo, incutindo-lhes o horror daqueles que lembram o sangue derramado. Façamo-lhe compreender que só tem direito de tirar a vida Aquele que a dá. Se é o crime a morte de um por que em massa será permitido?
O empenho de Laura Jacobina Lacombe com a divulgação das atividades do Bureau International d’Education alimentava matérias sobre o Institut Jean Jacques Rousseau nas notícias do exterior da Revista Schola, da Associação Brasileira de Educação, em especial o número de 1930 que publicava ser este o instituto que mais atraía a atenção de pedagogos e psicólogos do mundo:
Como se sabe, este Instituto esteve prestes a desaparecer diante do desequilíbrio financeiro que se seguiu à guerra. Foi salvo por antigos alunos e principalmente pelos professores primários da Suíça que se cotizaram para auxiliá-lo e que começaram a participar da direção administrativa. Desde então, foi sempre crescendo de importância. O cantão de Genebra que tinha sido forçado pelas circunstâncias a fechar sua escola normal, confia-lhe desde 1918 o preparo de seus futuros mestres de classes primárias. Por outro lado, o Instituto acaba de ser anexado à Faculdade de Letras da Universidade de Genebra como Instituto de Ciências Educacionais. Genebra começa assim o preparo universitário do seu corpo docente primário, nas bases do que tem sido objeto de tantas discussões recentes. Os alunos do instituto têm a possibilidade de fazer exames universitários e de chegar mesmo ao doutorado. O número de alunos do Instituto aumentou consideravelmente nestes dois últimos anos: sobem a mais de 100, representando cerca de 20 países diversos. Instalado em novos edifícios, estão-lhe anexos dois centros de estudo que têm com ele íntima relação: o Laboratório de Psicologia da Universidade e o ‘Bureau International d’Education’. Além do ensino regular, o Instituto realiza todos os anos cursos de férias de assuntos especializados. (INSTITUT..., 1930, p. 199).
A viagem de Laura Jacobina Lacombe para o IV Congrès International d’ Education Nouvelle, em Locarno, não se encerrou ao regressar. Permaneceu nas tarefas que assumiu de conhecer e se fazer reconhecida no debate educacional, quando dava notícias das inovações que se davam mundo afora. Manteve-se na escrita do Relatório e nas tarefas que visavam conferir visibilidade ao movimento internacional de renovação das práticas pedagógicas. Perdurou nas novas experiências desenvolvidas em sua escola. Prosseguiu também quando cultivava, por intermédio da escrita de cartas, os laços profissionais estabelecidos, mesmo quando se afastou da associação que representara, em meio ao forte debate que separou irremediavelmente os educadores católicos e os pioneiros. Sobreviveu, sobretudo, na Associação de Professores Católicos do Distrito Federal, em 1931, quando contribuiu para a finalidade maior da associação que visava “[...] adotar a Escola Nova, naquilo que não se contrapõe aos dogmas católicos e às leis eclesiásticas [...]” (STANG, 2008, p. 73). Ali seu esforço parece ter se concentrado na “triagem da má pedagogia” que visava “estabelecer os limites de aceitabilidade das propostas escolanovistas” (CARVALHO, 1998 apud STANG, 2008, p. 86), o que instiga a matizar uma certa versão consagrada na historiografia da educação que tem minimizado a importância de educadores católicos na permanência do ideário propagado pela Escola Nova ao longo do tempo.