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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.28 no.56 Salvador set./dez 2019  Epub 14-Out-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2019.v28.n56.p44-55 

Educação e Antropologia: questões de método e epistemologia

“NÃO SOMOS OBJETOS DE PESQUISA”: EM BUSCA DE UMA ANTROPOLOGIA EM COLABORAÇÃO

“WE ARE NOT RESEARCH OBJECTS”: IN SEARCH OF A COLLABORATIVE ANTHROPOLOGY

“NO SOMOS OBJETOS DE INVESTIGACIÓN”: EN BUSCA DE UNA ANTROPOLOGÍA EN COLABORACIÓN

Tadeu Lopes Machado*  UNIFAP

* Doutorando em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor Assistente da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: tlopesm@hotmail.com


RESUMO

Este artigo busca desenvolver uma reflexão crítica a respeito da forma com que a antropologia desenvolve seu conhecimento e estabelece sua base metodológica, mas também busca apontar alguns mecanismos para superar o modelo metodológico que herdamos da tradição antropológica. Portanto, é travado um diálogo com estratégias etnográficas que se colocam como vozes dissonantes da concepção metodológica e epistemológica convencionais. Ao longo do trabalho será feita a descrição de uma experiência pessoal observada recentemente com os povos indígenas de Oiapoque (AP), que, durante um movimento de reivindicação por melhorias e oferta de vagas específicas e entrada diferenciada no vestibular da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), apontaram a necessidade de romper com o olhar colonizador dos pesquisadores brancos, que segundo os indígenas “veem esses grupos étnicos ainda como simples objetos de suas pesquisas”. Ao final apontamos a necessidade de construção de uma pesquisa antropológica em colaboração, intersubjetiva e voltada para atender aos anseios dos povos com os quais executamos nosso trabalho.

Palavras-chave: Antropologia; Metodologia; Descolonização do saber; Epistemologia

ABSTRACT

This article seeks to develop a critical reflection on the way anthropology develops its knowledge and establishes its methodological basis, but it also seeks to point out some mechanisms for overcoming the methodological model we inherited from the anthropological tradition. Therefore, a dialogue is held with ethnographic strategies that stand as dissonant voices of the conventional methodological and epistemological conception. The work will describe a personal experience recently observed with the indigenous peoples of Oiapoque (AP), that during a movement of demand for improvements and offer of specific places and different entry in the entrance exam of the Federal University of Amapá (UNIFAP), pointed to the need to break with the colonizing gaze of white researchers who, according to the indigenous people, “see these ethnic groups as mere objects of their research”. At the end we point out the need to build a collaborative, intersubjective anthropological research aimed at meeting the desires of the people with whom we perform our work.

Keywords: Anthropology; Methodology; Decolonization of knowledge; Epistemology

RESUMEN

Este artículo busca desarrollar una reflexión crítica sobre cómo la antropología desarrolla su conocimiento y establece su base metodológica, pero también busca señalar algunos mecanismos para superar el modelo metodológico que heredamos de la tradición antropológica. Por lo tanto, se mantiene un diálogo con estrategias etnográficas que se erigen como voces disonantes de la concepción metodológica y epistemológica convencionales. El trabajo describirá una experiencia personal observada recientemente con los pueblos indígenas de Oiapoque (AP), que durante un movimiento de demanda de mejoras y oferta de lugares específicos y diferentes entradas en el examen de ingreso de la Universidad Federal de Amapá (UNIFAP), Señalaron la necesidad de romper con la mirada colonizadora de los investigadores blancos, quienes según los nativos, “ven a estos grupos étnicos como simples objetos de su investigación”. Al final, señalamos la necesidad de construir una investigación antropológica intersubjetiva y de colaboración dirigida a satisfacer los deseos de las personas con las que realizamos nuestro trabajo.

Palabras clave: Antropología; Metodología; Descolonización del conocimiento; Epistemología

Introdução

A antropologia nasce como um ramo das ciências sociais, instrumentalizada a partir da tradição da ciência moderna, que prevê uma série de mecanismos e posições criteriosas perante a pesquisa que busca lançar. Dentre as prescrições mais aclamadas por tal tendência científica, a neutralidade e a objetividade tomam destaque como posturas insubstituíveis para a construção de conhecimento de uma “ciência séria”. Dessa forma, a antropologia é guiada para a construção de conhecimento a partir dos estatutos que legitimam o saber científico, desenvolvido por uma ciência que reivindica o distanciamento do seu “objeto” e que requer “tratar os fatos sociais como coisa” (DURKHEIM, 2007, p. 148).

Vejamos, pois, que a influência que a antropologia teve/tem do positivismo trouxe para dentro da disciplina um ordenamento metodológico que estabeleceu por muito tempo os critérios para a construção de seu objeto de conhecimento, bem como o posicionamento do pesquisador perante os fatos colhidos em “campo”. Tais critérios tinham por função demarcar nos locais periféricos do conhecimento a ciência produzida nos “centros do saber”, entenda-se, portanto, um saber eurocentrado, que entendia o outro (não ocidental) como um objeto moldável, que necessitava de assessoramento para “aprimorar racionalmente seu conhecimento” e assim alcançar graus mais elevados de desenvolvimento.

Tal posicionamento na pesquisa antropológica na atualidade ainda é um fato, mas reconhecemos que há movimentos de “subversão” (FALS BORDA, 1979) que atestam um verdadeiro enfrentamento na forma como as pesquisas na antropologia vêm se manifestando ao longo de sua história. Esses movimentos que contestam a metodologia colonialista de nossa disciplina são impulsionados principalmente pelos próprios sujeitos da pesquisa, que por muito tempo foram emudecidos, silenciados, tratados como objetos e caracterizados nas etnografias como sobreviventes de um tempo anterior (e, portanto, atrasado) ao do pesquisador e da sociedade ocidental como um todo (FABIAN, 2013).

Este artigo busca desenvolver uma reflexão crítica a respeito da forma com que a antropologia desenvolve seu conhecimento e estabelece sua base metodológica, mas também busca apontar alguns mecanismos para superar o modelo metodológico que herdamos da tradição antropológica, buscando romper com a “colonização cognitiva” (SANTOS, 2019), ultrapassando as barreiras das descrições exotizantes e construindo uma antropologia mais plural, “intersubjetiva”, “ecumênica” (RAMOS, 2016).

Utilizarei uma experiência pessoal observada recentemente com os povos indígenas de Oiapoque (AP), que durante um movimento de reivindicação por melhorias e oferta de vagas específicas e entrada diferenciada no vestibular da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), apontaram a necessidade de romper com o olhar colonizador dos pesquisadores brancos, que, segundo os indígenas, “veem esses grupos étnicos ainda como simples objetos de suas pesquisas”. Proponho neste artigo um olhar mais atento ao posicionamento político que os indígenas demarcaram durante essa reivindicação, que consecutivamente recai na necessidade de uma compreensão mais ampla e plural da epistemologia que construímos dentro dos muros da Academia.

Portanto, o caminho metodológico utilizado para a construção deste artigo foi traçado a partir de minha observação e acompanhamento atento aos desdobramentos da crise que se instalou entre a UNIFAP e os povos indígenas de Oiapoque a partir desse momento em que os indígenas decidiram se insurgir a respeito do posicionamento da universidade. Como aporte teórico, aproximei-me de leituras críticas sobre o papel da Academia e as estratégias metodológicas que a ciência utiliza para construir seu conhecimento; o diálogo com autores e autoras que traçam uma proposta crítica ao fazer etnográfico, dentro ou fora dos espaços geográficos colonizados, e que propõem elementos para um refazer antropológico diferenciado, pautado na colaboração, no desprendimento (RAMOS, 2007); bem como na proposta de um intervenção de pesquisa baseada em epistemologias do sul como estratégia de luta para ultrapassar o colonialismo, o capitalismo e o patriarcado (SANTOS, 2019), na construção de uma pesquisa autônoma, e que se construa a partir das perspectivas locais dos espaços colonizados (FALS BORDA, 1979), na elaboração de uma pesquisa a partir da interculturalidade (WALSH, 2005, 2008), entre outros e outras.

Desde já é importante afirmar que não estamos propondo o fim da Universidade. Entendemos que a universidade pública é um importante espaço de formação e aprimoramento dos saberes, e que deve aglutinar todas as forças de nossa sociedade, principalmente aquelas que historicamente foram afastadas desses espaços. Em tempos de sérios ataques e ofensas ao saber científico e principalmente à diversidade de pensamentos, saberes e conhecimentos, uma reflexão que aponte as riquezas que são aglutinadas em torno de novas possibilidades de pensar a ciência para além do congelamento que o espírito racional/ positivista impôs, se torna uma necessidade, pois, como Orlando Fals Borda (2009) assume, os tempos de crise requerem que haja habilidade por parte do pesquisador e liberdade para construção de uma “ciência rebelde”, capaz de se desfazer das condutas metodológicas difundidas e sustentadas até então.

Do exotismo negativo à desobediência epistêmica

Assim como todos os fenômenos sociais, a ciência também é fruto da construção dos indivíduos humanos. Dessa forma, ela é histórica e construída por homens e mulheres ligados ao seu tempo, que buscam dar respostas para os problemas que enfrentam no dia a dia. É nesse sentido que Karl Marx (2006) aponta que os seres humanos são autores de sua própria história, contudo eles não a constroem segundo suas escolhas, mas conforme as condições dadas.

Nesse sentido, a razão científica não pode ser entendida abstrata e impessoal (ZAMBIASI, 2006), mas como um instrumento que viabiliza a mediação entre o pensar e o agir, construída por pessoas que estão inseridas em determinada classe, que têm gênero, que pertencem a um grupo étnico, que têm suas crenças, seus valores, seus costumes. A ciência, portanto, é um posicionamento contextualizado e conjuntural, que se edifica a partir do olhar subjetivo do pesquisador e suas experiências do cotidiano.

A antropologia, por sua vez, assegurou para si uma proposta de investigação que desse conta de cumprir com os requisitos de descrição do outro, do diferente, do exótico, para apresentá-lo ao “ocidente civilizado”. Contudo, o tom teórico/metodológico utilizado pela antropologia foi sustentado pelo discurso da ciência moderna que se consolidava em todos os ramos do saber científico. Nesse sentido, os povos “primitivos” significariam um retrato fidedigno da sociedade que todos fomos, e a antropologia serviria para entender o passado daqueles que já tinham se tornado civilizados. As viagens científicas, as expedições em que os primeiros antropólogos cumpriram do “centro do saber para o nada”, significariam, portanto, um retorno ao primitivismo para compreender a parte da história que faltava no grande quebra-cabeça (FABIAN, 2013, p. 44).

Tendo como principal objetivo construir etnografias a respeito do outro, o antropólogo direciona seus apontamentos a partir da seleção de fatos que ele mesmo elege como importantes sobre a cultura que observa. Essa seleção de dados, sem a participação do nativo na escolha dos fatos importantes a serem destacados, resultou no que Alcida Rita Ramos (2007, p. 14) denomina de “exotismo negativo”, que são descrições elaboradas pelo antropólogo com a pretensão de “salvar” os nativos da “penúria compreensiva” a que estão confinados.

Destaca-se, dessa forma, que a antropologia surge com o objetivo de testar as teorias gestadas no interior do ocidente e que seu interesse estava muito mais voltado para explorar os povos considerados “primitivos”, e assim submetê-los ao interesse da razão construída de acordo com o estatuto da ciência positivista, passando por cima dos saberes acumulados por esses povos milenarmente. Aníbal Quijano (2005) compreende que o conhecimento produzido pelos conquistadores coloniais estava associado à ideia de raça, que passou a estabelecer uma hierarquização nas relações. Portanto, a ciência que se pretendia construir a partir do encontro do colonizador com o colonizado já tinha seu programa, seu estatuto, suas regras, e todas suas prescrições dialogavam unilateralmente com o que já tinha sido pensado na metrópole, de acordo com os cânones estabelecidos longe da colônia.

Atrelada ao seu tempo, conduzida fortemente por uma concepção hierarquizada da sociedade, as ciências sociais deram sua contribuição para o fortalecimento do saber eurocentrado, explorando os espaços desconhecidos, enveredando sua investigação de acordo com o método canônico de fazer ciência. As descrições etnográficas foram fundamentais para o conhecimento do “primitivismo social”, que passou a ser categoricamente combatido pelo “ocidente civilizado”.

Contudo, no que tange às ciências sociais produzidas na América Latina, há algumas décadas vemos um processo de acumulação de força teórica que busca dialogar mais com a prática, a vivência e os saberes dos povos autóctones. Orlando Fals Borda (2009) fala de um movimento intelectual na América Latina que buscou romper com a sociologia metropolitana, construindo uma resistência e ao mesmo tempo outra possibilidade de fazer sociologia de forma independente e autônoma. Esse movimento o autor chama de “crise”, entendendo que a contestação dos modelos teóricos metropolitanos traz novas perspectivas e novos desafios para a sociologia local. Do mesmo modo, o autor aponta que tal crise reflexiva estendeu-se para outras ciências sociais na América Latina, tais como a antropologia, história e ciência política.

Nesse contexto surge um questionamento elementar dentro da disciplina: antropologia, para que serve? Qual sua utilidade? Tim Ingold (2019, p. 13), em uma breve e rica reflexão sobre esses questionamentos, oferece a possibilidade de pensar a antropologia com o objetivo de “levar os outros a sério”. Para esse autor, isso significa muito mais do que apenas observar com atenção o que os outros dizem ou fazem. Significa “encarar o desafio que eles (os Outros) colocam às nossas concepções sobre como as coisas são, o tipo de mundo em que vivemos e como nos relacionamos com ele” (INGOLD, 2019, p. 14). Para Ingold (2019), os sujeitos com os quais trabalhamos são como nossos professores, e o antropólogo tem o direito de discordar de suas posições, mas devemos colocar o desafio de levar a sério o que eles nos apontam, sem pretensão de imediatamente considerá-los como sujeitos incapazes de pensamento lógico.

O propósito de se fazer uma antropologia mais engajada e, portanto, comprometida com os povos nativos, buscando emanciparse enquanto ciência construída a partir de outras bases epistêmicas, significou um salto para novas possibilidades de construção do conhecimento. Ao mesmo tempo trouxe para dentro da disciplina o indicativo de repensar o percurso metodológico até então estabelecido. Walter Mignolo (2008) denomina “desobediência epistêmica” o movimento de contestação construído no ambiente colonizado, que reivindica autonomia para superar as tendências teóricas criadas estritamente sob a égide do pensamento eurocentrado.

Esse movimento de insurgência intelectual que ocorre na América Latina nos anos recentes tem-se chamado de decolonialidade, o qual Mignolo (2008) entende como uma opção epistêmica que busca romper com as bases teóricas que são fundamentais para a formulação de conceitos que historicamente construímos como se fossem nossos. Com isso esse autor afirma que não pretende se desfazer por completo das tramas teóricas do ocidente, mas a pretensão é separar o entendimento geográfico e político que ocorreu nos últimos cinco séculos na história imperial do que ocorreu e ocorre nas sociedades que foram racializadas a partir da colonização europeia. Portanto, o primeiro movimento decolonial é “aprender a desaprender”.

Essa perspectiva que olha criticamente para a ciência eurocentrada percebe o conhecimento científico para além de um saber que se consuma em si mesmo. A decolonialidade, de acordo com a percepção de Catherine Walsh (2008), é principalmente um instrumento de luta e ferramenta de análise. É uma proposta de refundar uma nova maneira de perceber a construção do Estado. Ao mesmo tempo em que a descolonização se pauta no princípio da ciência, ou seja, serve para derrubar as estruturas por dentro da ciência, também é um instrumento de politização, de luta e reivindicação da construção de uma nova sociedade.

Segundo Walsh (2008), há necessidade de consolidar um pensamento científico próprio na América Latina para derrubar as estruturas herdadas pela colonização. A autora aponta, baseada nas reflexões de Aníbal Quijano (2005), quatro áreas em que a colonialidade se fundamenta em nossos dias: a) Colonialidade do poder; b) Colonialidade do saber; c) Colonialidade do ser; d) Colonialidade da mãe natureza. Essas quatro áreas em que a colonialidade se instalou são estratégicas para a dominação e subordinação dos indivíduos e da sociedade como um todo, pois se utilizam do mecanismo de classificação social baseado na hierarquização racial e sexual, impõem o saber eurocêntrico como o único capaz de estabelecer os critérios da verdade, inferiorizam, subalternizam e desumanizam todos os que não cumprem com as regras da racionalidade moderna e, por fim, estabelecem o entendimento da divisão das coisas entre cultura/natureza, o que desautoriza a levar a sério o não humano, o espiritual, a magia, a cosmologia dos povos originários.

Ciência para quem e para quê? - a reivindicação dos indígenas em Oiapoque

Uma nova abordagem da antropologia torna-se imprescindível, não somente pela necessidade da ciência se renovar e buscar caminhos para novas reflexões, mas principalmente porque os próprios sujeitos que estão envolvidos na pesquisa exigem que haja mudança na postura do pesquisador e da condução da ciência que é construída a partir da experiência do encontro com os povos com quem desenvolve seu trabalho.

Nessa perspectiva, a reivindicação de uma antropologia mais voltada para os anseios das pessoas com as quais trabalha, envolvida com os problemas e a prática cotidiana dos indivíduos e mergulhada na possibilidade de ser um instrumento político dos próprios envolvidos na pesquisa é uma atitude que adentra a disciplina, mas que é retrato de um movimento de contestação daqueles que por muito tempo foram acostumados a serem vistos como “objeto” da pesquisa antropológica, como meros coadjuvantes/informantes da pesquisa.

A politização dos sujeitos da pesquisa antropológica é fundamental para que reconheçam que o trabalho que o antropólogo faz em campo é importante e tem resultados que podem impactar positiva ou negativamente sua comunidade, sua aldeia, seu povo. E um dos primeiros passos para uma politização fundamentada, além da profunda vivência necessária dentro da cultura de seu povo, é a formação que privilegie um olhar crítico e acentue um posicionamento de defesa de sua autonomia intelectual.

No início de 2018 eclode um movimento dos povos indígenas de Oiapoque reivindicando entrada diferenciada para as pessoas pertencentes às quatro etnias indígenas que compõem aquela região (Karipuna, Galibi-Marworno, Galibi Kalinã e Palikur) no vestibular que a Universidade Federal do Amapá estava anunciando para o campus Binacional de Oiapoque. Essa é uma pauta já antiga do movimento indígena, mas que nunca havia sido atendida.

A reivindicação dos indígenas se sustentava no fato de que a universidade, como espaço que trabalha com a construção de conhecimento, não pode apenas explorar os saberes dos povos tradicionais da região, mas deve estar a serviço desses povos e, portanto, deve garantir que as pessoas com as quais desenvolve suas pesquisas estejam dentro da universidade para efetivar sua autonomia intelectual e romper com o colonialismo que se instalou nas relações dos brancos com os indígenas no Brasil.

A situação se agrava pelo fato de que no município de Oiapoque quase 1/3 da população é formada por pessoas indígenas.1 No entanto, dos oito cursos de graduação que há no campus instalado na sede do município, apenas um (01) oferece entrada diferenciada para esses grupos étnicos. Trata-se do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena, que é voltado especificamente para a formação de professores indígenas para atuação no magistério em suas aldeias.

Outro fato importante de destacar é que o campus da UNIFAP, ao se instalar no município, em 2007, ofertava apenas a Licenciatura Intercultural Indígena, e em 2013 outros sete cursos passaram a ser ofertados pela universidade. Assim sendo, por seis anos o campus desenvolveu atividades específicas para a formação da população indígena local. Contudo, ao se instalarem os demais cursos, os estudantes indígenas não tiveram possibilidade de entrada diferenciada para acessar outras formações. Ou seja, ficaram segregados ao “seu” único curso.

O posicionamento da universidade, por parte de sua direção, perante essa pauta do movimento que se construía era de endurecimento e de inflexibilidade. Os indígenas ocuparam as reuniões do conselho do campus para que fosse pautado e deliberado o vestibular que atendesse às suas especificidades. Entretanto, mesmo com o acirramento na disputa por posição, a universidade não cedeu. Como resposta o movimento indígena suspendeu a continuação ou o início de qualquer pesquisa por parte dos professores da UNIFAP em seu território. E uma das justificativas para tal atitude, de acordo com o ofício nº 120, de 14 de maio de 2018, expedido pelo Conselho de Caciques do Povos Indígenas de Oiapoque (CCPIO), endereçada à reitora da universidade e a o diretor do Campus, foi a seguinte:

A reunião ocorrida no dia 8 de maio de 2018 no Campus Binacional do Oiapoque, entre Direção do Campus, Conselho do Campus, professores, acadêmicos, lideranças indígenas e quilombolas, serviu para, mais uma vez, constatarmos o preconceito e a discriminação destinados aos povos indígenas e tradicionais. A insensibilidade, a ausência de apoio, o distanciamento evidente e os ataques que sofremos durante essa reunião por parte dos Conselheiros e dos professores do Campus Binacional, serviram para desvelar a falta de respeito destes com os povos indígenas e a resistência que estes têm quanto a entrada de indígenas e quilombolas na Universidade. Além disso, a posição adotada pelos professores nos mostrou que, para eles, continuamos a ser ‘objetos’ de pesquisa, mas não somos ‘adequados’ e nem teríamos ‘capacidade’ para ingressar nos cursos destinados aos não-indígenas. (CONSELHO DE CACIQUES DO POVOS INDÍGENAS DE OIAPOQUE, 2018, grifo do autor).

A suspensão das atividades de pesquisa da universidade no território indígena indicou o ápice de uma crise entre a instituição e os povos indígenas da região, que há muito tempo vinha se desenrolando. Todavia, para além da crise institucional, tal movimento demarcou o distanciamento de posições sobre o entendimento da função social da universidade, como também do método para a realização da pesquisa acadêmica. Ou seja, além da entrada diferenciada nos demais cursos de graduação, os indígenas sustentavam que era necessária uma nova postura dos pesquisadores perante seus povos, reivindicavam outra forma de relacionamento acadêmico, e também emitiam a necessidade de formação de quadros intelectuais indígenas para derrubar a subordinação acadêmica que os condiciona e os limita.

Entre as lideranças indígenas se dizia que “se nós não servimos para entrar na universidade, os não indígenas também não servem para entrar em nossas aldeias”. Desse modo, se instaurava a divergência de posições demarcada pela negação da universidade em acolher os estudantes indígenas nos demais cursos da instituição, pois o posicionamento adotado pela UNIFAP traduzia o sentimento que a ciência ainda tem com relação aos povos indígenas, um sentimento da manutenção de sua invisibilidade, de tratá-los como povo primitivo e atrasado, que sua forma de colaborarem para a ciência é se deixando descrever e serem estudados pela Academia.

Luis Guilhermo Vasco (2007), ao acentuar uma severa crítica ao modelo ocidental do fazer etnográfico, pontua que as teorias antropológicas que temos aí, conduzidas pela linha demarcatória da ciência ocidental, servem para dominar os povos colonizados, mas não servem para que esses povos reivindiquem independência e autonomia, e garantam o rompimento da dominação. Contudo, para uma coisa as teorias desenvolvidas pelo ocidente já servem: como critério para saber por onde não caminhar (VASCO, 2007). Portanto, assegurar uma antropologia de braços dados com os povos originários é permitir e reconhecer que eles têm agência perante a construção de conhecimento que propomos. Mais do que isso, é reconhecer que o conhecimento é deles e que eles devem ser os autores de sua própria história.

Entretanto, para que isso ocorra é necessário trilhar outros caminhos, às vezes duros e pedregosos, porém mais seguros porque são caminhos construídos em colaboração.

Uma outra antropologia é possível, mas por onde caminhar?

O movimento dos indígenas em Oiapoque saiu vitorioso em sua pauta. A UNIFAP cedeu à pressão e houve a realização do tão sonhado vestibular específico e diferenciado para os indígenas. Contudo, não podemos deixar de entender esse momento pedagógico para o fazer ciência, momento de rico aprendizado com a luta indígena e a organização de suas frentes de ação conforme aquilo que eles veem, como necessário para seus povos. Deixar esse momento passar sem registro e sem uma séria reflexão sobre o enfrentamento ao modelo tradicional de fazer ciência seria um desperdício epistêmico.

Fals Borda (2009) entende que em tempos de crise na ciência é comum e natural o pesquisador tentar ater-se a instituições e condutas que possam transparecer segurança para sua pesquisa, porque essas atitudes já têm suas regras claras e estabelecidas. Ou seja, elas já têm as soluções para o problema da pesquisa. Contudo, esse autor aponta que essa é uma tendência “escapista”, que além de acomodada é também preguiçosa, porque nos momentos de crise é necessário que haja um desdobramento da pesquisa que requer habilidade e liberdade (FALS BORDA, 2009). Portanto, reafirmar um modelo metodológico de fazer ciência em um momento em que ele está sendo questionado pelos próprios sujeitos da pesquisa, por não os atender e não interessar a eles, é aprofundar o entendimento nocivo de construir conhecimento pelo conhecimento, sem compromisso e interesse com os envolvidos na pesquisa.

Portanto, o que os indígenas questionam e reivindicam é a possibilidade de eles também manipularem o conhecimento acadêmico. Todavia não é a manipulação de qualquer forma, ou do modo como vem sendo construída pela ciência eurocêntrica, que é excludente e que coloca a propositura de seu método acima de qualquer suspeita para o estabelecimento da verdade.

Luis Guilhermo Vasco (2007) sugere que a etnografia deve deixar de ser manipulada exclusivamente pelo dominador e passe a ser instrumento dos dominados, servindo aos seus interesses como uma possibilidade de mudança radical de sua construção social. Teoria, método e técnica estão à serviço da etnografia - continua o pensamento de Vasco -, mas o trabalho em si deve nortear-se pela possibilidade de entender para quem se quer fazer o trabalho etnográfico. Ou seja, existe uma relação de “para quem e para quê” se fazem etnografias (VASCO, 2007, p. 21).

Nesse sentido é que Fals Borda (2009, p. 245) acentua que “a ciência do trópico e do subtrópico ainda está por fazer-se”. Como proposta metodológica para essa ciência autônoma e independente, esse autor propõe uma condução da pesquisa pela investigação-ação-participativa, que seria a inserção do pesquisador com as causas concretas do povo com o qual pesquisa, utilizando seu discurso como ferramenta política para a transformação da realidade social.

A fim de construir outros caminhos para o fazer etnográfico, a antropologia deve estar disposta a se desprender de suas matrizes de pensamento como fontes inesgotáveis e inquestionáveis de conhecimento, sem, contudo, cair no que Fals Borda (2009) chama de “xenofobia teórica”. O desprendimento epistemológico aqui proposto está de acordo com o entendimento de Alcida Rita Ramos (2007), que seria ativado com a atitude do antropólogo em renunciar ao papel de autoridade etnográfica e também renunciar às décadas de feridas abertas de submissão dos povos indígenas, que muitas vezes as etnografias só fizeram aumentá-las e expô-las cada vez mais (RAMOS, 2007).

Fazer etnografia hoje não está mais tão “confortável” como era antes, quando o pesquisador chegava em campo, negociava sua estadia e informações em troca de algum punhado de tabaco, anotava tudo o que queria e voltava para a metrópole para produzir seus trabalhos. O entendimento e a orientação que se tinha era que as etnografias eram sempre escritas “pelos ombros dos nativos” (GEERTZ, 1997), mas na verdade eram escritas “pelas suas costas” (TROUILLOT, 2011), pois dificilmente estes teriam acesso ao que fora produzido longe de seu ambiente.

Nesse sentido, vemos cada mais aumentar o número de indígenas que acessam o ensino superior, que buscam avançar na qualificação acadêmica cursando mestrado e doutorado, e que questionam a legitimidade de “verdades” descritas sobre seus povos. Os antropólogos indígenas, ingressando na carreira acadêmica, não irão desfazer a grande contribuição que os antropólogos clássicos deram ao desenvolvimento da disciplina, mas sim criar um diálogo interessante e necessário para que a antropologia continue se reinventando. Reconhecer que a antropologia via os indígenas apenas como fonte de dados brutos para serem analisados fora do ambiente indígena, longe dos olhos e da participação crítica dos próprios indígenas, pode ser uma atitude que leve a antropologia a alcançar outro patamar científico (RAMOS, 2016).

Contudo, um questionamento é necessário: Está a antropologia preparada para fazer um “recuo” estratégico e reconhecer a grandeza epistêmica que esse quadro representa para a disciplina?

Tal recuo representa, na verdade, um avanço significativo na forma de fazer ciência, significa um verdadeiro giro no objetivo e no método da antropologia, que seguirá seu curso com autonomia e condições de fomentar um debate que dialogue e dê respostas muito mais para as comunidades com quem se pesquisa do que para os apelos da Academia.

No entanto, é importante destacar que existem muitos antropólogos bem-intencionados, que se comprometem em construir outras antropologias a partir de novas bases epistêmicas. Portanto, não estamos propondo aqui uma etnologia indígena construída sem a presença do não indígena. Dessa forma, entendo importante a orientação de Alcida Rita Ramos (2016, p. 13), de construir um trabalho em “colaboração”, “ecumênico”, que seria uma nova forma de construir nossas etnografias. Trata-se de compor uma etnografia a várias mãos, dialeticamente e de forma colaborativa (RAMOS, 2016), colocando o antropólogo na posição de coadjuvante, de colaborador, dando destaque aos saberes tradicionais e aos povos com quem trabalhamos, que são os protagonistas de sua história, não cabendo ao antropólogo determinar se concede ou não a voz a eles, pois eles devem falar por si só, com autonomia, determinação e de acordo com os códigos próprios do meio em que vivem.

De acordo com Rita Ramos (2016, p. 12), uma antropologia ecumênica produziria um novo olhar dentro da própria disciplina, pois abriria espaço para a “intercomunicabilidade epistêmica”, que requer a ampliação do horizonte limitado pelo foco epistemológico eurocêntrico.

O termo proposto por Alcida Rita Ramos (2016) se relaciona diretamente com a proposta de interculturalidade descrita por Catherine Walsh (2005). Para esta autora, a interculturalidade se dá a partir do respeito entre as culturas que se encontram. Um de seus principais objetivos é romper com uma cultura hegemônica, respeitando o diálogo e fazendo com que apareçam as demais culturas que historicamente foram esquecidas e abandonadas em detrimento da hegemonia colonizadora (WALSH, 2005).

Nesse sentido, a interculturalidade é pensada como um processo fundamental que garante o diálogo e o intercâmbio de saberes e práticas, a partir do encontro entre agentes que durante seu processo histórico de vida acumularam, individualmente ou em conjunto, modos de ser, fazer, conhecer e entender. Catherine Walsh (2005) aponta que a dimensão intercultural se caracteriza como um campo de mediação simétrica, são complexas relações, negociações e intercâmbios culturais. Busca a interação de pessoas, conhecimentos e práticas culturalmente diferentes. Se trata de um processo por alcançar, ou seja, não existe na prática, é um processo em construção a partir de práticas sociais concretas e conscientes (WALSH, 2005).

Nesses termos, propomos uma antropologia renovada, consciente das possibilidades que se avolumam a partir de uma abertura para o outro, entendendo que o outro não está numa posição de passividade perante a pesquisa, mas é o sujeito elementar para o fazer etnográfico. E, nesses termos, uma antropologia que olhe mais atentamente para os povos com quem trabalha, que esteja mais a serviço de um envolvimento epistêmico, que busque colaborar para a superação do racismo e da subalternização sofridos pelos povos originários, que seja um mecanismo político de defesa da autodeterminação dos povos, tornando-se essencial para a superação de uma ciência que se preocupa somente consigo mesma.

Tendo como horizonte a construção de uma pesquisa a partir de uma perspectiva em colaboração com os povos indígenas, um ano depois do desfecho do episódio entre a UNIFAP e o Movimento Indígena de Oiapoque, fiz uma viagem à aldeia Kumenê2 com o propósito de construir um projeto de pesquisa junto com o povo Palikur. Minha proposta de trabalho envolvia a participação direta dos indígenas em todas as etapas da pesquisa, desde a escolha do tema até a consumação dos produtos finais, que necessariamente não serão consolidados somente nos registros e documentos escritos.

Na primeira reunião da comunidade em que apresentei a proposta de trabalho, os Palikur foram enfáticos em dizer que precisavam muito de uma atuação significativa sobre a educação escolar indígena na aldeia. Avaliaram que essa temática era muito importante para eles no momento, porque estavam enfrentando muitas dificuldades no campo das políticas educacionais para a oferta de melhores condições de trabalho e de ensino nas aldeias Palikur. Segundo eles, já haviam feito vários movimentos internos para articular uma pressão junto ao Governo do Estado e à Secretaria de Educação, mas ainda não tinham alcançado o retorno esperado.

A partir dessa reunião fechamos então a temática da pesquisa, e também formamos um grupo de trabalho de nove pessoas, oito da aldeia e eu. Esse grupo ficou responsável por elaborar o projeto, fazer os levantamentos, os estudos, entrevistas com os representantes do Governo, ou seja, tocar em frente o que a comunidade solicitou na reunião; e depois de concluído o trabalho, o compromisso era apresentar os resultados em outra reunião da comunidade, para que em conjunto fossem dados os encaminhamentos necessários.

Atualmente nosso trabalho encontra-se em andamento. Já estruturamos o projeto e estamos na fase de coleta de dados, reunindo materiais e estudando documentos e aportes teóricos que nos ajudem na elucidação do nosso objetivo. Dividimos algumas tarefas entre nós, e nos comprometemos em não construir nossa relação de forma hierarquizada, mantendo sempre um diálogo fraterno na condução do trabalho.

Essa é minha primeira experiência de um trabalho em colaboração efetiva com os sujeitos da pesquisa, onde eles têm agência e podem manifestar suas opiniões e críticas porque estão diretamente envolvidos no processo de investigação. A proposta surgiu do anseio da comunidade em buscar resolução para um problema que afeta a todos, e, sendo assim, nossa investigação buscará apontar também os caminhos que podem ser percorridos para que a educação escolar indígena na aldeia Kumenê corresponda às expectativas reais dos Palikur. Dessa forma, pelo fato de o trabalho em colaboração estar em andamento, não temos elementos suficientes para afirmar que deu certo, no entanto, o caminho até aqui percorrido já está sendo um precioso momento de aprendizagem e está se consolidando como uma autorreorganização da forma de fazer meu trabalho etnográfico com os povos indígenas.

Conclusão

Entre tantas possibilidades de construção do conhecimento, a antropologia tem em suas mãos a tarefa de aprender com povos que em muitos casos são silenciados, tidos como ignorantes e rejeitados por organizarem seu pensamento de acordo com outra lógica, distante daquela que se acostumou a tratar convencional. Contudo, em muitos casos o método científico adotado privilegiou o distanciamento em detrimento da aproximação e do envolvimento íntimo do pesquisador com os pesquisados (INGOLD, 2019). Isso acarretou na condução de uma antropologia colonialista, metropolitana, comprometida em sustentar os princípios da ciência moderna.

Para se desfazer do pensamento eurocêntrico e produzir um mecanismo que avance para o rompimento com o racionalismo ocidental, muitos movimentos de descolonização surgem para erigir e propagar uma epistemologia do sul e para o sul. Sabemos que os movimentos de contestação epistemológicos sempre acompanharam o pensamento dominante (embora não nomeados como “descolonização”), e sempre foram considerados como linhas subalternas ou marginais (SANTOS, 2019) dentro do pensamento hegemônico, ficando subjugados ao esquecimento e, portanto, à invalidação.

Contudo, o movimento decolonial como proposta epistêmica e política dentro da antropologia, que vem se desenvolvendo principalmente na América Latina, embora não podendo ser considerado como a única voz que aponta outro caminho metodológico dentro da disciplina, tem sua legitimação garantida. Os desdobramentos de uma pesquisa que se coloca como instrumento para os povos com quem pesquisa, e que é conduzida de forma partilhada, tem sua legitimação assegurada pelos próprios sujeitos da pesquisa, que assinam junto com o antropólogo sua etnografia.

Esse movimento assegura a possibilidade de construção de uma nova moralidade para a antropologia, pois, como indica Trouillot (2011), leva a entender a etnografia não como lugar de textualização, de produção exagerada de compêndios e tratados intelectualizados, comprometidos com o cientificismo, mas como interação solidária de vidas e seres, como entendimento intersubjetivo. Portanto, conhecer deixa de ser uma prescrição metodológica e passa a ser fruto de uma relação que cerca mundos distintos.

O movimento que os indígenas de Oiapoque construíram em 2018 é um exemplo da reação do pensamento subalterno que ousa levantar a voz para construir sua própria história, que reivindica seus saberes e que tenta impor-se ao discurso hegemônico que diminui, sufoca e silencia os que pensam o contrário. O posicionamento desses indígenas faz com que tenhamos a compreensão de que teremos uma antropologia renovada, plural e com várias vozes. Entretanto, para termos uma ciência com essa estrutura, é necessário que compreendamos a importância dos subalternizados nesse processo.

Este artigo buscou apontar a necessidade de experimentarmos novas formas de construção de nossas pesquisas com povos indígenas. Em todo momento os sujeitos de nossas pesquisas estão nos ensinando, mas é necessário que o antropólogo se coloque na posição de aprendiz, para que junto com o povo com quem pesquisa possa produzir algo que afete positivamente a vida da comunidade onde propomos realizar nossas investigações. Dessa forma, a pesquisa em colaboração pretende ser um campo metodológico ainda a ser explorado, mas que se coloca como uma possibilidade de compromisso político e ético com os povos indígenas.

REFERÊNCIAS

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1Segundo o Censo do IBGE de 2010, a proporção de indígenas no município de Oiapoque pelo total da população é 27,15% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010).

2Essa é a maior aldeia do povo indígena Palikur. Fica localizada às margens esquerda do rio Urucauá, na Terra Indígena Uaçá. Desenvolvo minhas pesquisas com os Palikur desde 2016 e atualmente estou propondo com eles a construção de minha tese de doutorado em sociologia e antropologia.

Recebido: 10 de Setembro de 2019; Aceito: 01 de Dezembro de 2019

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