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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versión impresa ISSN 0104-7043versión On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.58 Salvador abr./june 2020  Epub 15-Dic-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n58.p91-104 

DOSSIÊ TEMÁTICO

ESCOLA SEM PARTIDO E A DESTITUIÇÃO DA RESPONSABILIDADE E AUTORIDADE DO PROFESSOR: CRÍTICA A PARTIR DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT

SCHOOL WITHOUT PARTY AND THE DEPRIVATION OF THE EDUCATOR’S RESPONSIBILITY AND AUTHORITY: A CRITIQUE BASED ON HANNAH ARENDT’S THINKING

ESCUELA SIN PARTIDO Y LA ELIMINACIÓN DE LA RESPONSABILIDAD Y LA AUTORIDAD DEL MAESTRO: CRÍTICA DEL PENSAMIENTO DE HANNAH ARENDT

Sandra Soares Della Fonte1 
http://orcid.org/0000-0002-9514-7202

Cilésia Lemos2 
http://orcid.org/0000-0001-7812-2639

* Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: sdellafonte@uol.com.br

** Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista CAPES/DS. E-mail: cilesialemos@ yahoo.com.br


RESUMO

Busca-se compreender e criticar, a partir das contribuições do pensamento de Hannah Arendt sobre a educação, o movimento Escola sem Partido. Destaca-se, em especial, o impacto das suas proposições na descaracterização da função docente. A partir de um estudo teórico bibliográfico de cunho qualitativo, identificou-se que por meio de investidas na elaboração de projetos de leis e pressões sociais diversas, esse movimento confere um clima policialesco sobre a atuação do professor, destituindo-lhe da responsabilidade e da autoridade na condução do trabalho educativo.

Palavras-chave: Educação; Escola sem Partido; Hannah Arendt

ABSTRACT

This paper aims to understand and criticize the “School without Party” movement, in the light of Hannah Arendts ideias on education. It highlights the mischaracterization of the goals of teaching. Based on bibliographical qualitative theoretical study it identifies that through the elaboration of law project’s and social pressure, this movement creates an environment of surveillance over the teacher, who is deprived of the responsibility and authority of education.

Keywords: Education; “School without Party”; Hannah Arendt

RESUMEN

Busca comprender y criticar, a partir de los aportes del pensamiento de Hannah Arendt sobre educación, el movimiento “Escuela Sin Partido”. En particular, se destaca el impacto de sus propuestas en la desfiguración de la función docente. A partir de un estudio bibliográfico teórico de carácter cualitativo, se identificó que, a través de inversiones en la elaboración de proyectos de ley y de diversas presiones sociales, este movimiento genera un clima policial al desempeño del profesor, privándolo de responsabilidad y autoridad en la conducción de la labor educativa.

Palabras clave: Educación; “Escuela sin Partido”; Hannah Arendt

Introdução

Nascido em 2004 com a bandeira de combate à doutrinação político-ideológica nas escolas, o Escola sem Partido (ESP) anunciou a suspensão de suas atividades em agosto de 2019. Em entrevista ao jornal O Globo, em 18 de julho de 2019 (FERREIRA, 2019), o idealizador e coordenador do movimento, Miguel Nagib, se ressente da falta de recursos financeiros para bancar o projeto e de apoio político do governo eleito: “Sentimos falta de apoio. Não temos recursos. Não esperávamos um suporte do governo, mas um apoio político”.

Tal anúncio de interrupção de suas atividades não se confirmou. Macedo (2018) observa que, se, em sua primeira década, o movimento contou com pouca repercussão nacional, essa situação se alterou nos últimos anos com a proeminência de suas reivindicações a ponto de ter uma intervenção bem-sucedida, em articulação com outros agentes políticos, na aprovação da Base Nacional Curricular Comum para a Educação Infantil e Educação Fundamental em 2017.

Esse poder de impacto do ESP sobre as políticas educacionais tem ocorrido a partir de uma articulação que envolve grupos religiosos católicos carismáticos e neopentecostais e suas correspondentes frentes de representação parlamentar, assim como projetos semelhantes em todo mundo, com apoio de redes de conglomerados financeiros que articulam o discurso religioso moralista e a ideologia liberal clássica. Mais precisamente, a organização ESP participa de uma rede global de viés conservador - por meio da Atlas Network - que conecta várias organizações no mundo inteiro em torno do avanço do mercado livre, da liberdade e contra a regulação do Estado.

Nesse contexto, afirma Macedo (2018, p. 8), “[...] as demandas conservadoras do ESP ganham visibilidade por sua articulação com amplas e poderosas redes internacionais, redes essas que vêm atuando diretamente em diferentes frentes nas políticas latino-americanas”.3 Sob discursos moralizantes e conservadores, tem-se patrulhado e criminalizado a educação escolar, em negação a uma educação crítica e plural.

Por essa razão, colocar sob análise o que o ESP defende constitui-se tarefa relevante para a crítica das tendências ultraconservadoras que assumiram proeminência na condução do país após o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Entretanto, em vez de recorrer a uma fundamentação teórica de viés declaradamente crítico, sugerimos um percurso diferente. Indagamos como uma reflexão filosófica de alinhamento liberal mais progressista se comporta diante desse fenômeno. Por isso, recorremos ao pensamento de Hannah Arendt, em especial quanto ao papel da educação escolar. Por certo, essa pensadora teceu várias críticas à democracia liberal, mas não abandonou esse horizonte por completo (GASPAR, 2011; MAGALHÃES, 2008).

A nosso ver, o ESP expressa um fenômeno social extremo, passível de problematização dentro de setores do próprio campo político liberal, por mais que essa problematização não ocorra sem tensões, polêmicas e limites.

Em um primeiro momento, abordam-se as bases gerais do ESP. Em seguida, problematizamos, a partir de Hannah Arendt, o esvaziamento da função e da autoridade docente presente na argumentação desse movimento em decorrência da sua defesa de sobreposição da esfera privada sobre a instituição escolar.

Escola sem partido

O Escola sem Partido ora se identifica enquanto movimento, ora se autodescreve (em seu site e redes sociais) como Programa, como nos modelos de projetos de lei. Seu surgimento em 2004 se deu por iniciativa do advogado e procurador do Estado de São Paulo Miguel Nagib. Essa ideia foi motivada por um evento que ilustra bem o sentido geral dessa organização.

Nagib relata que sua iniciativa ocorreu a partir de um acontecimento que sua filha vivenciou na escola em 2003, quando seu professor de História comparou a trajetória de São Francisco de Assis com a de Che Guevara, pois, para o professor, ambos abdicaram de seus bem materiais pelo que acreditavam. Nagib conta que ficou indignado com a comparação e, como católico, escreveu uma carta aberta ao professor, acusando-o de doutrinação. Imprimiu 300 cópias e distribuiu no estacionamento da escola onde a filha estudava. Afirma que sofreu repreensão pela direção da escola e manifestações de alunos em apoio ao professor (O PROFESSOR..., 2016).

Um ano após esse episódio, Nagib criou o site do ESP, inspirado no NoIndoctrination, associação informal liderada por Luann Wright. Em protesto contra o artigo sobre o racismo racial que seu filho deveria escrever, a estadunidense criou um site que funcionava como um fórum de denúncias de casos de suposta contaminação político-ideológica de professores e escolas. O NoIndoctrination foi tomado por Nagib como uma experiência bem-sucedida de “preocupação com o nível de doutrinação nas escolas”.

Segundo informações presentes no site do ESP, o movimento se divide em duas vertentes:

[...] uma, que trabalha à luz do Projeto Escola Sem Partido (que elabora projetos de leis e materiais de apoio), outra, uma associação informal de pais, alunos e conselheiros preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019a).

O Programa representa as ideias e preceitos do movimento, expresso em modelos de projetos de leis e decretos, disponibilizados em seu portal para que sejam encaminhados a representantes políticos “que se identifiquem com as causas da família” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019a). Os modelos apresentam um conjunto de “medidas previsto num anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido, que tem por objetivo inibir a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019b).

O site do Movimento possui variadas sessões nas quais constam informações sobre o ESP, relatos, recebimento de denúncias contra docentes, vídeos com “flagras de doutrinação” e links para blogs e canais do YouTube que apoiam e difundem suas ideias. Interessante destacar que, em sua abertura inicial, há um link de redirecionamento para o site do Programa, sendo este com menos informações e conteúdos em relação ao do movimento. Todavia, é neste portal que estão os modelos de projetos de leis e decretos a serem apresentados. Encontra-se também no site do ESP uma biblioteca denominada “Politicamente Incorreta”, na qual é possível acessar textos de opinião de apoiadores e/ou colaboradores. Muitos desses materiais apresentam-se contrários à pedagogia Freireana e à sua proposta de educação crítica. Sobre a “educação sem doutrinação ideológica”, bandeira do movimento, não encontramos no site literatura ou referenciais teóricos que explicitassem o que o movimento entende por ideologia e doutrinação. O que fica perceptível é que doutrinação ideológica se resume a um amplo leque de concepções críticas na educação ou contrárias às concepções individuais dos apoiadores acerca de alguns temas.

O Escola sem Partido identifica-se como um movimento apartidário, neutro em questões políticas e ideológicas. Busca a união de membros da comunidade escolar para convocar a sociedade brasileira a fiscalizar a conduta de professores que tratam de temas tidos de esquerda, como realidade e diversidade social, questões de gênero, religiões diversas, principalmente as de matrizes africanas.

Na carta de apresentação do movimento assinada por seu coordenador, assinala-se que o site foi criado com o intuito de “dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a imensa maioria das escolas e universidades brasileiras: a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários” (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019a).

Adotando discursos de liberdades de crenças e de posicionamentos políticos, o ESP expõe queixas sobre doutrinação realizada por professores no ensino público brasileiro, e propõe, nas diversas casas legislativas do país, projetos de leis educacionais coadunadas com as teses do movimento. Convoca os adeptos a apresentarem os modelos disponibilizados - como é possível identificar na sessão “faça sua parte” -, indicando que se identifique “um deputado ou vereador comprometido com causas relacionadas à liberdade, educação e família”. Sugere, ainda, que um encontro seja realizado com o representante político para apresentação das ideias do programa e dos modelos de anteprojeto (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019b).

Eveline Algebaile (2017, p. 64, grifo do autor) analisa o uso do site pelo movimento e explica que o portal

[...] funciona como um meio de veiculação sistemática de ideias, de instrumentalização de denúncias e de disseminação de práticas e procedimentos de vigilância, controle e criminalização relativos ao que seus organizadores entendem como ‘práticas de doutrinação’, que seriam identificáveis em aulas, livros didáticos, programas formativos ou outras atividades e materiais escolares e acadêmicos.

O movimento tem inspirado e elaborado alguns projetos de lei como o PL n° 867/2015, que tinha como proposta a inclusão das teses do ESP na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Contudo, foi considerado inconstitucional por nota técnica do MPF.4

Mesmo após esse parecer, muitos projetos de lei ainda se inspiram em suas propostas.5 Alguns já foram aprovados, como a Lei Estadual n° 7.800/2016 em Alagoas, que instituía o “Escola Livre”, baseado no ESP. Contudo, em 2017, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar para suspender a integralidade dessa lei no estado alagoano (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017). Sua última derrota no campo judicial relacionou-se à sua principal bandeira de luta: a chamada ideologia de gênero. Foi considerada inconstitucional, por unanimidade dos membros do STF em sessão virtual,6 a Lei n° 1516/2015, do município de Novo Gama (GO), que impedia o debate e veiculação de temática de gênero e diversidade sexual nas escolas do município (SALDAÑA, 2020). Segundo Denise Carreira, pesquisadora e atuante contra leis inspiradas no ESP, em reportagem da Folha de São Paulo, destaca que a derrota imposta a estes projetos de leis antigênero, ganha uma “[...] jurisprudência qualificada e poderosa contra qualquer legislação que crie barreiras para os debates de gênero na educação” (SALDAÑA, 2020).

Segundo Penna (2017, p. 35), os discursos de integrantes do ESP, os seus materiais de divulgação e projetos de lei usam “[...] de uma linguagem próxima a do senso comum, recorrendo a dicotomias simplistas que reduzem questões complexas a falsas alternativas e valendo-se de polarizações já existentes no campo político para introduzi-las e reforçá-las no campo educacional”. Instaura-se um clima de vigia e denúncia.

Nos modelos de projeto de lei elaborados, são expostos mecanismos de monitoramento de atividades escolares, de materiais didáticos e principalmente no que diz respeito às atividades docentes que não estejam de acordo com as concepções do aluno e seus responsáveis. Segundo as propostas do ESP, o que diz respeito à educação sexual, moral e religiosa, “[...] os valores de ordem familiar teriam precedência sobre a educação escolar -, bem como de recepção e encaminhamento de denúncias das supostas práticas de doutrinação ao Ministério Público” (ALGEBAILE, 2017, p. 65).

Dessa forma, o Movimento tem atuado em conjunto com grupos da sociedade civil e políticos que convergem com tais preceitos, encontrando um terreno fértil com a crise institucional instaurada pelo golpe político-/u-rídico-midiático de 2016, expresso no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Gaudêncio Frigotto (2018) aponta que o golpe foi mais uma interrupção através do estado de exceção das lentas conquistas democráticas. Para esse autor, o retrocesso é grave, pois o ódio é endereçado a quem defende os direitos universais. Adotando traços fascistas, o retrocesso atinge todos os âmbitos, principalmente os mais pobres (FRIGOTTO, 2018).

As teses do ESP têm ganhado cada vez mais força em setores e grupos sociais que participaram ativamente do golpe de 2016 e estão atualmente à frente do Estado Brasileiro. Para Frigotto (2018), seus efeitos práticos têm aparecido nas escolas e na sociedade, sob a forma de violência, perseguição e medo, principalmente em relação à prática docente.

Tais efeitos não destituem somente a função docente, quando definem e reduzem apenas ao que deve ou não ser ensinado. O ato de ensinar contém de maneira implícita o ato de educar, expressa também o “epílogo de um processo que quer estatuir uma lei que define o que é ciência e conhecimentos válidos, e que os professores só podem seguir a cartilha das conclusões e interpretações da ciência oficial, uma ciência supostamente não neutra” (FRIGOTTO, 2018, p. 29).

O esvaziamento da responsabilidade e da autoridade do professor sob a perspectiva do ESP

O Escola sem Partido tenta impor sua concepção de educação escolar e de prática docente através de projetos de lei e intimidações a professores que tratam de conteúdos que não agradam a perspectiva política ou religiosa da família.

Seus discursos inflamados contra a suposta doutrinação têm, de certa forma, influenciado a discussão e elaboração de políticas e documentos educacionais. O que temos visto é a união desse movimento com o que Keila Deslandes (2015) chama de “revide” de grupos fundamentalistas religiosos atuantes no Poder Legislativo ao conjunto de conquistas em políticas de promoção de igualdade e diversidade implementadas em diversos âmbitos da sociedade brasileira nos últimos anos.

Exemplo dessa ofensiva é a supressão do termo “gênero” do Plano Nacional de Educação (PNE, 2014-2024), como resultado das investidas destes grupos - ESP, Bancada Evangélica - durante as discussões realizadas previamente à aprovação do documento (DESLANDES, 2015). A supressão do termo gênero do PNE reverberou. A temática de gênero e diversidade sexual também não foi incluída na Base Nacional Comum Curricular, em 2017, e em alguns Planos estaduais e municipais de educação. Essa pressão também foi sentida no cotidiano escolar, principalmente no que diz respeito às práticas docentes em disciplinas, notadamente da área de humanas, que atuam em prol de abordar temas que dialogam com as demandas e emergências da sociedade.

Sob a suposta defesa de neutralidade, a ESP deseja prolongar o mundo privado na escola. Com isso, gera-se o que Gregorio Duvivier (2019, grifo do autor) chama de “[...] um novo conceito de ‘colégio à la carte’, onde os pais escolhem o que o filho vai ouvir lá dentro”.

Ao sobrepor os interesses privados, quando tenta impor o que diz respeito ao âmbito familiar a interesses comuns, destitui-se, assim, tanto a função da escola de preparação para o mundo comum e para o espaço público, quanto a autoridade docente. Parece-nos que as reflexões de Hannah Arendt contribuem para evidenciar esse fato. Para detalhar essas considerações, torna-se necessário esclarecer alguns pontos do arcabouço teórico dessa autora.

Como categoria política, o espaço público diz respeito, segundo Arendt, aos locais de ação e discurso, não existindo possibilidade de participação política se interesses individuais se sobrepõem aos coletivos (TELLES, 1990).

A família opera como abrigo para o humano. Constitui, assim, a esfera da manutenção da sua vida biológica e da produção material. É o espaço íntimo da nascença natural. A convivência que promove se rege pela necessidade de sobrevivência. Para Arendt (2002), em contraste, a política diz respeito aos seres humanos no plural. Nas suas palavras, “A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças” (ARENDT, 2002, p. 22). A política organiza e regula o convívio da pluralidade humana.

Há um distanciamento de Arendt em relação à perspectiva política de Aristóteles. Ela reage à noção do ser humano como zoon politikon, isto é, de que a política compõe a essência humana. Por si só, o ser humano é apolítico, pois ‘A política surge no entre-os-homens; portanto totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substância política original. A política surge no intraespaço e se estabelece como relação” (ARENDT, 2002, p. 23, grifo do autor).

Ao extrair a política da interioridade essencial humana e remetê-la para esse intraespaço relacional, Arendt (2007) fala da instauração do espaço de expressão das unicidades humanas e da sua coexistência. Nesse sentido, para essa autora, o espaço público é tanto o locus de aparição dos seres singulares e de seu reconhecimento, como o mundo comum (ARENDT, 2007). De modo mais preciso, ‘A esfera pública, como mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer” (ARENDT, 2007, p. 62).

Enquanto no mundo doméstico-familiar impera a necessidade, o sentido da política, em Arendt (2007), é a liberdade. Logo, o espaço público ganha relevância na expressão da liberdade política dos indivíduos.

Participar da política implica ter se apropriado do mundo antes, prerrogativa que as crianças não atendem. Nas palavras de Arendt (2016, p. 172), “[...] na política se lida sempre com pessoas já educadas”. A política é, assim, reservada aos adultos. Por terem se apropriado do mundo e já serem educados, esses sujeitos encontram-se na condição de igualdade de participação dos rumos da polis. Por isso, para essa pensadora, “a política pertence ao mundo dos adultos agindo como iguais” (ARENDT, 2016, p. 172).

Disso decorre a responsabilidade que Arendt (2016) confere ao adulto na apresentação e condução da criança ao mundo. Em outros termos, cabe ao adulto educar a nova geração e conduzir, inclusive, processos formais de educação na sua forma escolar.

Ao nascer, as crianças são cuidadas em um contexto privado-familiar. Partindo da perspectiva arendtiana, a escola tem o papel de apresentação do mundo aos recém-chegados, iniciá-los na vida pública, compartilhar com eles as heranças culturais e simbólicas desse mundo ao qual acabam de chegar. É o momento em que a criança se encontra com a diversidade de vida existente no mundo que vai além das opções, crenças, hábitos que marcam a vida da sua família particular.

Na perspectiva arendtiana, a escola é local de mediação entre as gerações e entre o mundo privado e o mundo comum: “A escola é antes a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tomar possível a transição da família para o mundo” (ARENDT, 2007, p. 238). Nesse sentido, para Arendt (2016), a educação escolar não é propriamente uma esfera pública, mas um local intermediário, entre o “domínio privado do lar” e o mundo público; como tal, inicia os mais jovens na vida pública.

Constitui papel inerente à escola, na visão arendtiana, descolar a criança da referência única de seu grupo familiar a fim de apresentá-la ao mundo compartilhado, espaço propriamente humano que aglutina as diferenças no horizonte do bem-comum. A política diz respeito a essa forma de existência comum que rompe “[...] com as práticas de dominação fundadas na desigualdade e representa a rejeição da violência em favor do predomínio da palavra, da persuasão e da ação em concerto como fonte de poder” (CARVALHO, 2014, p. 820).

Assim, por mais que se possa adotar a herança familiar in totum, a pessoa não tem, nessa perspectiva, o direito de impô-la à totalidade do mundo. Firma-se o preceito liberal de liberdade, tolerância e respeito à diversidade.

Porque, na política, agem os adultos já educados, isto é, que foram apresentados à pluralidade do mundo; a escola se apresenta como âmbito “[...] que embora de grande relevância e profundo significado para a ação política, com ela não se confunde [...]” (CARVALHO, 2017, p. 815, grifo do autor).

Dessa maneira, a relação pedagógica possui peculiaridades. Como representantes do mundo existente, do universo cultural, os professores têm a responsabilidade de apresentá-lo a essa nova geração:

A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. Face à criança, é como se ele fosse um representante de todos os habitantes adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: -Isso é o nosso mundo. (ARENDT, 2016, p. 183).

Para garantir que esse mundo seja atravessado pela mudança, a educação necessita, segundo Arendt (2016), garantir a transmissão da tradição existente enquanto memória do esforço compartilhado de construir a vida. Compete ao educador “[...] estabelecer a mediação entre o antigo e o novo, razão pela qual a sua profissão exige de si um extraordinário respeito pelo passado” (ARENDT, 2016, p. 186).

Essa concepção impacta na atividade do docente: o professor imbuído de autoridade assume a responsabilidade de preservar o mundo: “cabe a esse agente institucional responsável simultaneamente pela preservação de certos saberes, valores e práticas que uma sociedade estima e pela inserção social dos novos nessa parcela da cultura humana” (CARVALHO, 2013, p. 96).

A autoridade do professor vincula-se à sua responsabilidade política. Contudo, a relação professor e aluno não é, para Arendt, propriamente política:

Ora, enquanto a marca do caráter político de uma relação é seu compromisso com a igualdade entre os que nela estão envolvidos, a de uma relação pedagógica é o mútuo reconhecimento da assimetria de lugares como fator constitutivo de sua natureza e, no limite, como sua razão de ser. Uma assimetria cujo destino é o progressivo e inexorável desaparecimento, mas cuja manutenção temporária é a própria condição de proteção daqueles que são recém-chegados à vida e ao mundo. (CARVALHO, 2014, p. 821, grifo do autor).

Como se percebe, Arendt (2016) defende uma perspectiva de educação conservadora no sentido de preservar os elementos da tradição (conhecimentos, exemplos, saberes comuns) e as condições e as possiblidades dos recém-chegados ao mundo, preparando-os para assumir com responsabilidade a herança do mundo que os antecedeu. Também considera que a educação escolar deve afastar-se do modus operandi da política. Desse afastamento, a autoridade aparece como elemento capaz de conduzir os mais jovens e, a partir da educação, iniciá-los em conhecimentos e experiências que ainda não possuem. Esse processo de introdução ao mundo é composto não apenas de aprendizado escolar, mas também do intuito de preservação do mundo comum, mediado pela autoridade e responsabilidade do professor em apresentar o mundo e suas heranças culturais.

Na concepção do movimento/programa ESP, o professor tem dever apenas de reportar aos alunos os conteúdos curriculares, de forma neutra e imparcial. Ora, sendo mediadora do mundo particular do lar e o mundo da vida comum, mundo político dos adultos, Arendt (2016) considera que a escola funciona como espaço pré-político. Essa caracterização arendtiana corroboraria um argumento a favor da ESP?

Em seu artigo jornalístico A escola catalã -e a nossa, Demétrio Magnoli (2017) utiliza os argumentos de Arendt para criticar o vínculo da escola a utopias políticas e doutrinárias, como considera acontecer na Catalunha (Espanha). Magnoli reescreve as palavras de Arendt de que a escola não pode ter relação com a política, porque isso implica a sua destruição. A lição arendtiana para a Catalunha valeria, segundo ele, para o Brasil, onde “[...] desde o ensino básico, aulas e materiais escolares estão perpassados por discursos multiculturalistas, racialistas, terceiro-mundistas e, no limite, implicitamente antissemitas” (MAGNOLI, 2017). Como grand finale, afirma: “Sugiro que o MEC distribua cópias do texto de Arendt aos professores” (MAGNOLI, 2017).

Esse exemplo de apropriação teórica de Hannah Arendt está longe de sugerir uma relação direta entre suas posições filosóficas e movimento conservadores, como o ESP. Para Penna (2017, p. 36), o entendimento da função da escola, expresso nos discursos e materiais do movimento, demonstram

Uma dissociação entre o ato de educar e o ato de instruir. O ato de educar seria responsabilidade da família e da religião; então o professor teria que se limitar a instruir, o que no discurso do Escola sem Partido equivale a transmitir conhecimento neutro, sem mobilizar valores e sem discutir a realidade do aluno.

Deste modo, o ESP descaracteriza a escola de sua função social. Para Arendt (2016, p. 191), “não é possível educar sem ao mesmo tempo ensinar: uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica e moral”.

Portanto, o processo de ensino-aprendizagem de conteúdos nunca é neutro, pois implica o desenvolvimento da capacidade de discernimento, o que, segundo Carvalho (2013), nos capacita a melhor escolher e aplicar. Para Arendt (2016), seria a capacidade que os recém-chegados ainda estão em desenvolvimento, em formação, pois não tiveram experiências suficientes para formar sua capacidade de julgar e de discernir o bem do mal. Tal capacidade pode ser adquirida e desenvolvida através da educação, do contato com as heranças do mundo comum que os precederam. Desse modo,

O discernimento resulta, portanto, em independência e capacidade de ajuizamento daquele que aprende - características que estão entre os principais objetivos da escolarização. A informação que poderia ser um peso morto do passado, o discernimento confere o caráter de uma herança viva em que o aluno é iniciado. (CARVALHO, 2013, p. 110).

A essência da educação para Hannah Arendt (2016) reside na natalidade, esse segundo nascimento a partir do qual os indivíduos podem ser e agir no mundo no sentido da constante renovação da herança comum que recebem. Atua, assim, na possibilidade de conservar as tradições, transmitir o sentido de pertencimento ao mundo que nos precedeu, criar vínculos com o passado dos que nos antecederam no mundo, possibilitando a criação novas experiências, conservando o mundo comum, construindo, assim, o legado de toda a sociedade.

Os objetivos da educação escolar ultrapassam a posse de informações assépticas: “educar implica agir sobre um sujeito que se constrói em continuidade com um mundo de heranças simbólicas cuja duração transcende tanto no passado quanto no futuro” (CARVALHO, 2017, p. 54).

A escola/educação como esse “entre” local da esfera privada e pública atua como espaço de iniciação; desconsiderar a dimensão política da educação quando compartilha o legado da humanidade através de organizações curriculares, de conteúdos, conhecimentos, valores é negar e impedir que a experiência pré-política no ambiente escolar se concretize.

A educação separada do domínio da política como Arendt (2016) compreende não significa o não tratamento do assunto no ambiente escolar; para essa filósofa, educação e política ocorrem em esferas distintas. A primeira cria laços de pertencimento com o mundo que nos antecedeu em seus aspectos históricos, simbólicos e culturais. É permeada pela autoridade concedida ao professor que conduz e prepara o jovem para atuar no mundo comum. A segunda dá-se em condições de igualdade, ocorre na esfera pública, no mundo comum e entre os iguais, atuando no que diz respeito ao interesse coletivo. Segundo José Sergio Carvalho (2014, p. 815, grifo do autor), no pensamento de Arendt o “[...] divórcio entre os domínios da educação e da política não deve ser tomado como a afirmação do caráter apolítico das instituições e práticas educacionais”. Há dimensões políticas variadas quando se levam em consideração decisões e diretrizes do sistema de ensino, escolhas curriculares e eleição de conteúdos, participação em conselhos escolares e grêmios estudantis, entre outras situações. No entanto, na visão arendtiana, afirmar a dimensão política da educação não implica identificá-la com a ação propriamente política, pois essas práticas, como visto, possuem peculiaridades.7

Nesse sentido, quando coíbem o que pode ser abordado na educação, as teses do ESP obstruem o compartilhamento de experiência por parte daqueles que nos precederam e contribuíram para criar o mundo. Privam, assim, toda uma geração de recém-chegados de conhecer e construir um mundo novo. Transforma o mundo comum apenas no espelho do mundo privado, na afirmação do homogêneo e do uniforme.

Segundo Carvalho (2013, p. 112), grande parte do trabalho do professor consiste em ou deveria mostrar que “certos caminhos não são bons para se chegar onde se quer”. Isto porque o jovem ainda em processo formativo não teve experiências ao ponto que criasse vínculos com as tradições. O docente enquanto agente institucional, assumindo um compromisso com o mundo para preservá-lo, assegura com a autoridade que lhe é concedida a preservação do legado que transcende o próprio tempo. Negar esta atuação do professor de trabalhar temáticas, ou fiscalizar sua postura enquanto docente, é impedir que a experiência educadora se realize em sua plenitude.

A responsabilidade do professor deve ser assumida com um compromisso ético e político, isto porque, enquanto agente institucional, “[...] o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade” (ARENDT, 2016, p. 183). Essa responsabilidade deve ser assumida de forma coletiva a fim de incitar um vínculo afetivo com o passado, pois “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (ARENDT, 2016, p.183).

Essa responsabilidade atribuída ao professor assume a forma de autoridade e não deve ser confundida com sua formação. Segundo Arendt (2016), a autoridade concedida ao educador e a qualificação que lhe pertence distinguem-se.

Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja nunca engendra por si só autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e serem capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. (ARENDT, 2016, p. 183).

Nesse sentido, a autoridade refere-se à categoria elaborada por Arendt (2016) que está ligada ao passado, e é instituída a alguém que detém o conhecimento do mundo que nos precede. Esta autoridade é conferida às escolas e aos professores com intuito de preservação das tradições, é o fio que faz ligação entre o passado e as futuras gerações, “que concebe este passado como modelo capaz de atribuir um significado inconteste a prática educativa e imprimir durabilidade e coesão a uma comunidade cultural” (CARVALHO, 2017, p. 53), ou seja, é reconhecida, pois não confia poder, muito menos se caracteriza autoritária.

Segundo Arendt (2016, p. 100), “[...] se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos”. A autoridade é não autoritária para Arendt (2016); ao professor, ela é concedida, não pessoal, institucional.

A ideia dessa autoridade está atrelada a um reconhecimento e respeito por parte de uma pessoa para outra. Identificamos as investidas de descrédito e o encorajamento do enfrentamento de alunos a seus professores, por parte de integrantes e apoiadores do ESP, como aspectos de perda desta autoridade do professor, como resultado da crise da modernidade na educação, que acometeu os diversos âmbitos da sociedade, como a família e a escola.

Enunciamos que a autoridade e a responsabilidade são elementos caros ao processo educacional, e essenciais à prática docente se esta é assumida com “amor mundi” no intuito de preservar fragmentos do mundo comum.

Compreendendo esses dois elementos em conjunto com a perspectiva de uma educação conservadora para Arendt, podemos relacionar criticamente com os deveres expressos nos cartazes que o Programa apresenta como anteprojeto para a fixação em salas de aulas de toda escola brasileira.

Através dos projetos de leis e decretos municipais e estaduais apresentados nas diversas casas legislativa pelo ESP, tenta-se instituir, por exemplo, a fixação de cartazes em todas as escolas do país estipulando como o docente deve se portar em aula, deixando explícito o que acreditam que venham a ser os deveres e obrigações do professor ao ensinar.

Numa análise arendtiana, o ESP destitui a responsabilidade e descaracteriza a autoridade do professor diante das novas gerações, pois adota traços totalitários ao rejeitar a pluralidade de concepções e negar o caráter pré-político da ação educadora. O movimento Escola sem Partido, segundo Guilherme e Picoli (2018), assume traços do totalitarismo quando faz rejeição do plural, persegue professores, coíbe abordagens em sala de aula de temas como gênero, pluralidade de concepções políticas e religiosas; mais ainda, priva a liberdade de educar pelos docentes e seu livre agir com o outro, impedindo sua atuação no mundo.

É totalitária, ou, na esteira de Arendt, um elemento totalitário na democracia. Excluir a política do ambiente escolar - além de ser uma postura política - tem como consequência a exclusão da ação e da liberdade. Em outras palavras, educa-se no sentido do inculcamento que no mundo a mudança não advém da ação livre, individual ou coletiva, mas ocorre como fruto de um processo incontrolável, irresistível e independente da vontade (que move a ação). Além disso, inculca que algumas coisas nunca mudam. (GUILHERME; PICOLI, 2018, p. 13).

Para Arendt, se não nos reconhecemos em nossa pluralidade, o sentido político da educação é esvaziado, perde-se o “compromisso político adotado com a conservação e a renovação do mundo comum” (CARVALHO, 2017, p. 2).

O ESP descaracteriza a função escolar quando impede a abordagem crítica de conteúdos, vigia e patrulha debates e a postura do professor, e ainda coloca a família em uma posição que atribui decisões que a ela não competem. Deste modo, ao tentar impor a determinação para a fixação de cartazes em salas de aulas, o ESP descaracteriza o espaço de convivência política, marcado pela coexistência do diferente e do plural, ferindo a liberdade de cátedra com os seguintes deveres que atribuem ao professor:

DEVERES DO PROFESSOR

  1. O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

  2. O Professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

  3. O Professor não fará propaganda político -partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

  4. Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma profundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.

  5. O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

  6. O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula. (ESCOLA SEM PARTIDO, 2019c).

Apesar de construir um discurso de suposto respeito às várias opiniões e versões do mundo, o ESP defende a completa submissão do professor às imposições privadas familiares. Em outros termos, o mundo privado se agiganta a ponto de engolir qualquer possibilidade de construção de um mundo comum de encontro diversos. Na visão arendtiana, torna-se problemático submeter a escola à esfera privada, pois a natureza dessa instituição reside, de fato, em contrariar os valores e princípios da família do estudante, ao apresentar um mundo cuja marca é a pluralidade em sua coexistência. Ao arriscar estabelecer o que vem a ser de responsabilidade e dever do professor em sala de aula, o Movimento e seus integrantes se contradizem quando se autodefinem como não partidários. Afinal, tornam-se partidários da afirmação, por meio da escola, de alguns valores e modos de existir em detrimento de outros.

Além disso, o ESP assume atitudes inquisitoriais ao perseguir professores, incentivar a fiscalização com filmagens e denúncias. Sobrepondo os interesses da esfera privada sobre a pública, agem desconsiderando o que vem a ser danoso para a educação como um todo, como mantedora do legado.

Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que é particular e aquilo que é público, entre o que somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público, ou seja, quanto mais ela introduz entre o privado e o público uma esfera social na qual o privado é transformado em público e vice-versa, mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamente para que não haja distúrbios em seu amadurecimento. (ARENDT, 2016, p. 182).

Dessa forma, esses aspectos do movimento ESP podem ser indícios da crise da sociedade moderna na educação. Para Arendt (2016), ao se diluírem as fronteiras entre o público e o privado - com imposições pessoais à comunidade escolar - incide-se na quebra da autoridade do professor, perda da sua referência como agente institucional autorizado a apresentar o mundo aos mais jovens - e na falta de interesse pela tradição.

Considerações finais

As teses do ESP e as investidas conservadoras em nosso contexto hodierno soam ásperas demais mesmo dentro do campo liberal. Por mais que se considere a existência de reagru-pamento e convergências de segmentos liberais em meio a ameaças a seus interesses, isso não se faz sem arranhões em alguns de seus princípios, em especial de suas alas progressistas.

Sob a visão de Arendt, pode-se compreender a onda ultraconservadora que se materializa em movimentos como o ESP como indícios da crise de perdas de referências que acometeu nossa sociedade e, consequentemente, a educação. Os aspectos que o Movimento demonstra podem ser relacionados como elementos da crise da modernidade na educação que, para Arendt (2016), são caracterizados pela quebra de autoridade, responsabilidade, e consequentemente pela falta de interesse pela tradição.

A sociedade e a educação brasileiras passam por essa experiência de perda de referencial de autoridade e de responsabilidade, que acomete a sociedade ocidental moderna desde o início do século XX. Hannah Arendt (2016) aponta que as fronteiras entre as esferas públicas e privadas se desfizeram. Dessa forma, as atuações do ESP nos últimos anos em nossa sociedade podem ser compreendidas como expressões dessa dissolução de fronteiras entre o público e o privado. Nesse contexto, as crenças individuais ultrapassaram as barreiras do que diz ao âmbito familiar para ocupar e fazer frente no campo político e da educação. Isso implica o esvaziamento do próprio lugar do público como debate da experiência comum e coletiva.

As investidas do ESP polemizam, descredibilizam a função da escola em geral e o papel docente em particular, desprezando a autoridade institucional que o educador possui em educar e instruir. Com a perda do “fio” condutor que nos mantinha atrelados à tradição e a um “sentido comum e compartilhado” ao legado de heranças culturais, públicas e simbólicas, ideários comuns da sociedade, “somos impelidos a fazer julgamentos, apresentar escolhas e confrontá-las com outras possibilidades” (CARVALHO, 2014, p. 817).

Indo de encontro a essa corrente, devemos vislumbrar um horizonte a ser construído a partir desse momento de crise que caracteriza nossa conjuntura atual, no que diz respeito à educação e a todo o desmantelamento do Estado. Deve-se, com o intuito de superar esse momento, adotar posturas para sobrepujar tais perseguições, criando oportunidades para pensar e refletir sobre um novo caminho diante a essas adversidades. Para Arendt (2010), aproveitar o momento de crise para “pensar sem corrimão” é repensar toda nossa experiência escolar de forma a garantir a pluralidade, e a consolidar o espaço escolar como espaço de experiências significativas (CARVALHO, 2013, p. 116).

Pensar a educação sem considerar a escola inserida em um contexto sociopolítico, composta por diferentes e plurais indivíduos, provenientes de diferentes locais sociais e do papel social que ela exerce, é limitar-se a um projeto social de adestramento. No essencial, significa uma educação desvinculada da ideia de assumir a responsabilidade com o mundo e de compartilhar com os mais jovens que ainda não tiveram a oportunidade de ter experiências.

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Recebido: 05 de Março de 2020; Aceito: 12 de Junho de 2020

1

Em consulta no dia 18 de setembro de 2019 ao seu site, a Atlas Network conta com 93 parcerias na América Latina e Caribe. No Brasil, seus parceiros são: Instituto Atlantos, Instituto de Estudos Empresariais, Instituto de Formação de Líderes de Belo Horizonte, Instituto de Formação de Líderes de São Paulo, Instituto de Formação de Líderes de Santa Catarina, Instituto Liberal (RJ), Instituto Liberal de São Paulo, Instituto Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, Instituto Millenium, Instituto Líderes do Amanhã, Livres, Liberdade Econômica - Mackenzie Center for Economic Freedom, Students for Liberty Brasil (ATLAS NETWORK, 2019).

2

Em matéria do jornal El País, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, responsável pela nota sobre o PL n° 867/2015, aponta que o ESP “nasce marcado pela inconstitucionalidade” (CRISTALDO, 2016). O documento aborda que, sob o pretexto de defender princípios como a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado, assim como o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico, o Programa ESP coloca o professor em uma constante vigilância, principalmente para evitar que contrarie as convicções morais dos pais: “O projeto subverte a atual ordem constitucional por inúmeras razões: confunde a educação escolar com aquela fornecida pelos pais e, com isso, os espaços públicos e privados impedem o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem e contraria o princípio da laicidade do Estado - todos esses direitos previstos na Constituição de 88” (CRISTALDO, 2016).

3

A tabela elaborada por Fernanda Moura contém a situação de projetos de leis que versam sobre o ESP em todo o país, disponibilizada no site “Professores contra o Escola sem Partido”. Essa tabela faz parte da pesquisa desenvolvida em sua dissertação Escola sem partido: relações entre estado, educação e religião e os impactos no Ensino de História, em 2016 (PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM PARTIDO, 2019).

4

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, no dia 24 de abril de 2020, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 457, que questiona a Lei n° 1.516, aprovada pela Câmara Municipal de Novo Gama (GO) em 2015 (SALDAÑA, 2020).

5

Por um caminho argumentativo bem distante de Arendt, algumas tendências pedagógicas críticas no Brasil afirmam que, embora inseparáveis, educação e política são práticas distintas, com especificidades próprias. Sobre esse ponto, consultar a clássica discussão feita por Saviani (1999) no início da década de 1980, intitulada Onze teses sobre educação e política.

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