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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.29 no.58 Salvador abr./jun 2020  Epub 15-Dez-2020

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v29.n58.p105-118 

DOSSIÊ TEMÁTICO

O MOVIMENTO ESCOLA SEM PARTIDO E O POSITIVISMO: A PRETENSA "NEUTRALIDADE" EM QUESTÃO

THE SCHOOL WITHOUT PARTY MOVEMENT AND POSITIVISM: THE ALLEGED "NEUTRALITY" IN QUESTION

EL MOVIMIENTO ESCUELA SIN PARTIDO Y EL POSITIVISMO: LA SUPUESTA "NEUTRALIDAD" EN CUESTIÓN

Carina Alves da Silva Darcoleto (UEPG)1 
http://orcid.org/0000-0003-0520-0637

Geovani Roberto Kreling (SENAI)2 
http://orcid.org/0000-0003-4103-0698

*Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professora do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: carinaasd@gmail.com

**Mestrando em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professor do SENAI-Ponta Grossa. E-mail: geovani_rk@hotmail.com


RESUMO

Este texto tem como objetivo discutir as possíveis relações entre as ideias do Positivismo e do Movimento Escola sem Partido. A perspectiva teórico-metodológica adotada na análise é o materialismo histórico e dialético. Tanto o ideário Positivista como o Movimento Escola sem Partido possuem pretensões de atribuir um caráter de neutralidade às atividades humanas, afirmando que seus preceitos seriam isentos de qualquer ideologia, valor ou interesse de classe social. No entanto, um breve olhar para a História revela que a defesa da neutralidade tem como pano de fundo o objetivo de negar o caráter histórico da luta de classes e dos próprios sujeitos, na busca por estabelecer a hegemonia da classe dominante.

Palavras-chave: Educação; Positivismo; Escola sem Partido; Materialismo histórico e dialético

ABSTRACT

This text aims to discuss the possible relations between the ideas of Positivism and the School without Party Movement. The theoretical-methodological perspective adopted in the analysis is the historical and dialectical materialism. Both the Positivist principals and the School without Party Movement claim to ascribe a neutral character to human activities, affirming that its precepts would be exempt from any ideology, value or interest of social class. However, a brief look at the history reveals that the defense of neutrality is set against the background of denying the historical character of the class struggle and of the subjects themselves in the quest to establish the hegemony of the ruling class.

Keywords: Education; Positivism; School without party; Historical and dialectical materialism

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo discutir las posibles relaciones entre las ideas del Positivismo y el Movimiento Escuela sin Partido. La perspectiva teórico-metodológica adoptada en el análisis es el materialismo histórico y dialéctico. Tanto las ideas Positivistas como el Movimiento Escuela sin Partido poseen pretensiones de atribuir un carácter de neutralidad a las actividades humanas, afirmando que sus preceptos estarían exentos de cualquier ideología, valor o interés de la clase social. Sin embargo, una breve mirada a la historia revela que la defensa de la neutralidad tiene como base el objetivo de negar el carácter histórico de la lucha de clases y de los propios sujetos, en la búsqueda por establecer la hegemonía de la clase dominante.

Palabras clave: Educación; Positivismo; Escuela sin Partido; Materialismo histórico y dialéctico

Introdução 3

Este texto tem como objetivo discutir a relação entre as ideias do Positivismo e do Movimento Escola sem Partido, a partir de suas pretensões de atribuir um caráter de neutralidade às atividades humanas. Ao considerarmos a educação como a atividade com o papel de transmitir o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, temos em vista que, dependendo da forma como se organiza e se articula com determinados conhecimentos e práticas, essa atividade acaba tendo seu aspecto político ressaltado, tornando-se arena de disputas e de conflitos, pois, quando se trata da formação dos sujeitos de uma determinada sociedade, em um determinado momento histórico, a educação pode contribuir para a manutenção ou transformação da forma de organização social vigente.

Ao longo da história é possível perceber que as concepções teóricas que visam compreender e explicar a realidade em cada momento histórico se articulam a determinados interesses, e estes, no mais das vezes, estão atrelados às classes dominantes. Diante disso, e considerando a educação como uma atividade de mediação que contribui para a reprodução da vida social,4 procuramos discutir, neste texto, que há aproximações significativas entre o Positivismo, como corrente filosófica, e a “proposta pedagógica” do Movimento Escola sem Partido, de modo a evidenciar que, embora se digam neutros, seus pressupostos estão fundamentalmente articulados aos interesses políticos e ideológicos e a um determinado projeto de educação e de sociedade.

A perspectiva teórico-metodológica adotada é o materialismo histórico e dialético, que tem, no trabalho, a atividade que funda ontologicamente o ser social. Essa questão é, a partir dessa perspectiva, essencial para compreendermos como as relações sociais vão, historicamente, adquirindo determinadas características que influenciam diretamente na vida dos homens, as quais sempre mantêm relação fundamental com a forma com que eles se organizam para produzir as condições necessárias para sua sobrevivência, a partir do trabalho. Nesse contexto, o materialismo histórico e dialético, na busca pela compreensão da realidade, coloca em evidência a perspectiva da luta de classe, tendo em vista a produção de conhecimento que está fundamentalmente articulado às demandas da classe trabalhadora, com a possibilidade de transformação radical da sociedade capitalista e com a construção de uma sociedade em que toda forma de opressão, exploração e dominação do homem pelo homem seja superada.

Este texto está organizado em três seções: na primeira serão tratados os principais pressupostos do Positivismo e sua relação com a Educação; na segunda seção abordaremos as ideias principais e as estratégias adotadas pelo Movimento Escola sem Partido, em sua tentativa de normatizar seus princípios por meio da força da lei; e a última seção é dedicada à discussão em torno das contradições existentes no ideário Positivista e no Movimento Escola sem Partido com base em suas aspirações a conferir neutralidade às atividades humanas.

Positivismo, neutralidade e educação

O Positivismo é uma corrente filosófica que surgiu no século XVIII, derivando-se do Iluminismo e sendo fortemente influenciada pelas transformações sociais desse momento histórico, mas que alcançou grande expressão na França, a partir do início do século XIX, na figura de Augusto Comte, considerado o fundador do Positivismo e das Ciências Sociais. De acordo com Lowy (1985), as ideias positivistas podem ser categorizadas em três pressupostos principais. O primeiro e fundamental é de que a sociedade humana é fundada e regulada por leis que são naturais, invariáveis e que independem da vontade e da ação humana. Dessa forma, para o Positivismo, as “[...] leis que regulam o funcionamento da vida social, econômica e política, são do mesmo tipo que as leis naturais e, portanto, o que reina na sociedade é uma harmonia semelhante à da natureza, uma espécie de harmonia natural” (LOWY, 1985, p. 36). O segundo pressuposto, que decorre do primeiro e possui caráter epistemológico, é de que os métodos e os procedimentos para se compreender a realidade social devem ser os mesmos usados nas ciências naturais, pois, segundo a lógica positivista, “[...] se a sociedade é regida por leis de tipo natural, a ciência que estuda essas leis naturais da sociedade é do mesmo tipo que a ciência que estuda as leis da astronomia, da biologia etc.” (LOWY, 1985, p. 36).

O terceiro pressuposto - que se constitui como fundamental na discussão que nos propomos a fazer neste texto - é de que as ciências sociais devem se comportar segundo um modelo de objetividade científica, que deve ser neutra e livre de qualquer juízo de valor, ideologia etc., limitando-se apenas a enunciar os fatos observados pelo cientista. Na perspectiva Positivista, a ciência só pode ser considerada objetiva e verdadeira quando não se deixa influenciar por qualquer tipo de preconceito ou prenoção. Nas palavras do precursor do Positivismo Moderno, reconhece-se, “[...] de agora em diante, como regra fundamental, que toda proposição que não seja estritamente redutível ao simples enunciado de um fato, particular ou geral, não pode oferecer nenhum sentido real e inteligível” (COMTE, 1983 apud ANDERY, 1988, p. 386), e, ainda: “Nossas pesquisas positivas devem essencialmente reduzir-se, em todos os gêneros, à apreciação sistemática daquilo que é, renunciando a descobrir sua primeira origem e seu destino final.” (COMTE, 1983 apud ANDERY, 1988, p. 387).

Outro aspecto fortemente difundido pelo Positivismo é o de que a sociedade deve se organizar e funcionar com o objetivo de manter a ordem e o progresso. Durkheim, um dos principais sociólogos - e que elabora sua teoria funcionalista a partir dos ideais positivistas -, afirma que a vida social, econômica, política é composta por elementos que devem ser tratados como fatos sociais, que obedecem a leis invariáveis e são exteriores aos indivíduos, exercem influência sobre eles e estão presentes de forma generalizada. Para esse autor, há um primado da sociedade sobre o indivíduo, sendo as regras e as convenções sociais instituídas nos indivíduos pela sociedade. Segundo Durkheim (2011, p. 59), “[...] foi a sociedade que instituiu nas nossas consciências todo o sistema de representação que alimenta em nós a ideia e o sentimento da regra e da disciplina, tanto internas quanto externas”.

Durkheim (2011) também lançou seu olhar sobre a educação, afirmando que ela é o germe da vida social e compreendendo a escola como uma instituição social responsável por desenvolver as capacidades intelectuais, físicas e morais dos indivíduos para torná-los capazes de viver e contribuir para o funcionamento harmônico da sociedade. De acordo com o sociólogo:

A sociedade só pode viver se existir uma homogeneidade suficiente entre seus membros. A educação perpetua e reforça esta homogeneidade ao fixar de antemão na alma da criança as semelhanças essenciais que a vida coletiva supõe. Porém, ao mesmo tempo, qualquer cooperação seria impossível sem uma certa diversidade. A educação garante a continuidade dessa necessária diversidade diversificando-se e especializando-se a si mesmo. Portanto, ela consiste, em um ou outro destes aspetos, em uma socialização metódica das novas gerações. (DURKHEIM, 2011, p. 109).

Em outras palavras, a educação é a atividade responsável pelo desenvolvimento do caráter social do indivíduo a partir de valores éticos e morais, e deve responder às necessidades impostas pela sociedade. Nessa perspectiva, cabe ao Estado ser o mediador dos fins da Educação, principalmente quando se trata dos conhecimentos e dos princípios que a escola deve ensinar, pois “[...] uma vez que a educação é uma função essencialmente social, o Estado não pode se desinteressar dela” (DURKHEIM, 2011, p. 63).

Defendendo a divisão entre trabalho manual e intelectual, Durkheim (2011, p. 44) afirmará que esse fato é uma necessidade social e que

[...] não podemos nem devemos nos devotar ao mesmo gênero de vida; dependendo de nossas aptidões, temos funções diferentes a desempenhar, e é preciso estar em harmonia com aquela que nos incumbe. Nem todos nós fomos feitos para refletir; são precisos homens de sensação e ação. Ao contrário, são precisos outros cujo trabalho seja pensar.

E, nesse contexto, naturalmente caberia à educação a atribuição de formar os trabalhadores especializados de que a sociedade precisa, pois

É a sociedade que, para se manter, exige que o trabalho se divida entre os seus membros e de tal maneira em vez de outra. É por isso que ela prepara com as suas próprias mãos, através da educação, os trabalhadores especializados dos quais precisa. Portanto, foi para e por ela que a educação se diversificou assim. (DURKHEIM, 2011, p. 102).

A questão da objetividade e da neutralidade, características peculiares do método positivista, também está presente na concepção de educação de Durkheim, que afirma que “[...] a escola não deve ser a coisa de um partido, e o professor faltará ao seu dever se usar a autoridade da qual dispõe para embarcar os seus alunos a bordo de suas parciais visões pessoais, por mais bem fundadas que elas lhe possam parecer” (DURKHEIM, 2011, p. 64). As práticas de ensino devem focar na preparação do aluno para atender às demandas sociais, e o professor deve transmitir as ideias e os conhecimentos de acordo com as concepções e os valores concebidos pela sociedade, organizadas e mediadas pelo Estado, com autoridade, e sem deixar transparecer suas visões políticas e pessoais. É importante salientar que essas concepções e esses valores que Durkheim defende são os da burguesia, que utiliza a atividade educativa como uma importante ferramenta na pretensão de maquiar as contradições que brotam da exploração da classe trabalhadora, buscando a formação de uma homogeneidade social, ar-ticulada à sua visão de mundo e às exigências do capital.

A proposta do movimento escola sem partido

O Movimento Escola sem Partido (MESP) foi criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, inspirado em uma iniciativa norte-americana chamada No Indoctrination, 5 pelo Código de Defesa do Consumidor, tendo como pauta lutar contra uma suposta ideologização dos conteúdos escolares e combater uma também suposta doutrinação ideológica por parte de professores de Escolas e Universidades Públicas do Brasil. De acordo com Nagib (2018, p. 1), o MESP surgiu

[...] como reação a duas práticas ilegais que se disseminaram por todo o sistema educacional: de um lado, a doutrinação e a propaganda ideológica política e partidária nas escolas e universidades; de outro, a usurpação - pelas escolas e pelos professores - do direto dos pais e dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos.

Consoante a defesa de Nagib, professores agiriam como militantes em sala de aula e, assim, aproveitar-se-iam da “audiência cativa” de seus alunos para tentar difundir suas visões ideológicas, políticas e partidárias, ferindo a própria Constituição Federal Brasileira, dentre outras leis, e lesando: a) os próprios estudantes, pois “[...] o tempo precioso do aprendizado é desperdiçado com a pregação ideológica e a propaganda político-partidária mais ou menos disfarçada” (NAGIB, 2018, p. 1); b) a família, já que “[...] muitos jovens passam a questionar e rejeitar o direcionamento estabelecido por seus pais no campo da religião, da moral e dos costumes, ensejando o surgimento de graves conflitos no seio das famílias” (NAGIB, 2018, p. 2); e c) a sociedade em geral, que “[...] custeia o projeto de poder dos partidos que aparelharam o sistema de ensino” (NAGIB, 2018, p. 2). É nesse contexto que Nagib (2018) irá justificar a insurgência do Movimento Escola sem Partido e defender que o exercício da liberdade de ensinar do professor seja “[...] limitada, de um lado, pelos direitos dos estudantes e seus pais; e de outro, pelo direito de todos os brasileiros a que a máquina do Estado não seja colocada a serviço desse ou daquele governo, partido, ideologia ou religião” (NAGIB, 2018, p. 3).

O Movimento Escola sem Partido tem se articulado na busca por normatizar seus princípios por meio da força de leis que, entre outras medidas, obrigaria a fixação de um cartaz nas salas de aula, contemplando o que seriam os “deveres do professor”, de forma a garantir sua “neutralidade” na abordagem dos conteúdos. Nesse sentido, caberia ao professor apenas transmitir o conhecimento (técnico) em sala de aula, ficando a cargo da família a questão do educar, que não poderia ser contraposta por nenhum tipo de valor moral, ético, político, religioso etc. Conforme afirma Nagib (2018, p. 3), a fixação desse cartaz tem apenas o objetivo de “[...] informar estudantes e professores sobre direitos e deveres que já existem”. Os deveres destacados por ele são:

  1. O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

  2. O Professor não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

  3. O Professor não fará propaganda político -partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

  4. Ao tratar de questões políticas, sócio-cultu-rais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa - isto é, com a mesma pro-fundidade e seriedade -, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria.

  5. O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

  6. O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula. (NAGIB, 2018, p. 5).

Em 2014, Nagib criou a primeira proposta do “Projeto Escola sem Partido” e, desde então, foram disponibilizados, em um site mantido pelo MESP, Anteprojetos de Leis para serem apresentados em Estados e Municípios, “[...] bastando a deputados e vereadores de qualquer lugar do Brasil acessar o site, copiar a proposta e apresentá-la como sua nas câmaras municipais e estaduais” (MATTOS et al., 2017, p. 88). No site também está disponível um parecer em que Nagib propõe uma série de argumentos a fim de defender os fundamentos e a constitucionalidade do Projeto, além de responder às críticas que o Movimento tem sofrido. Pretendendo contrapor-se à imagem de que o Projeto Escola sem Partido tenta censurar os professores, o Parecer afirma que, de acordo com a Constituição Federal, o professor não possui liberdade de expressão em sala de aula, mas apenas liberdade de ensinar ou de cátedra, e um dos argumentos utilizados para a defesa dessa ideia está em uma passagem de Max Weber, reproduzida por Nagib:

Em uma sala de aula - ensinava Max Weber -‘a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silêncio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira, e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para busca em incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência científica’. (NAGIB, 2018, p. 26).6 7

Apoiado por políticos e líderes de grupos conservadores, religiosos e de extrema direita, a iniciativa tomou corpo, e projetos de lei que tentam estabelecer ou que se inspiram no Escola sem Partido tramitam em diversos estados e municípios pelo Brasil, tendo sido aprovados em alguns deles.8 Em âmbito nacional, o Projeto Escola sem Partido já foi proposto tanto no Senado (PL n° 193/2016) quanto na Câmara dos Deputados, em que se destaca

[...] a tramitação do Projeto de Lei 7180/2014, ao qual estão apensados os seguintes Projetos com mesmo teor, ou questões semelhantes: PL 7181/2014, PL 867/2015, PL 246/2019PL 1859/2015, PL 5487/2016, PL 10577/2018, PL 10659/2018, PL 8933/2017, PL 9957/2018, PL 10997/2018; PL 258/2019; PL 375/2019. (FLACH; SILVA, 2019, p. 81).

Além do combate à doutrinação em sala de aula, outro alvo que vem sendo “combatido” com bastante energia pelo Escola sem Partido e seus defensores é o que eles mesmos denominam “ideologia de gênero”. Para o MESP, temas como diversidade sexual, desigualdade de gênero, combate ao preconceito, entre outros, não devem ser tratados pela escola, muito menos ser abordados em livros didáticos, devendo ficar a cargo apenas da família. Segundo Mattos e outros (2017, p. 94), os partidários do MESP “[...] vêm afirmando que esse tipo de material e discussão ‘doutrinam’ estudantes, forçando-os a aceitar a ‘ideologia de gênero’”.

O Movimento Escola sem Partido também veicula vídeos, notícias, artigos científicos, relatos, entrevistas, documentos de caráter jurídico (como, por exemplo: modelos de notificações extrajudiciais, para os pais notificarem professores quando identificarem a suposta doutrinação ideológica; modelos de petição que garantam ao aluno o “direito” de gravar a aula), publicados no próprio site do movimento e em redes sociais diversas. O MESP ainda incita pais e alunos a denunciarem professores, gravando e divulgando vídeos que testemunhem contra a suposta doutrinação que estariam os alunos sofrendo em sala de aula.

As contradições do positivismo e do escola sem partido

Para a discussão que nos propomos a fazer acerca das contradições presentes nos discursos Positivista e do Movimento Escola sem Partido, é necessário retomar alguns dos pressupostos do método desenvolvido por Marx e Engels. O primeiro deles é o de que “[...] não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2009, p. 32). De acordo com esses autores:

A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui ainda como direta exsudação do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, ideias etc., mas os homens reais, os homens que realizam, tal como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e pelas relações que a estas correspondem até as suas formações mais avançadas. (MARX; ENGELS, 2009, p. 31).

Na perspectiva de Marx e Engels (2009), a compreensão da realidade deve partir dos indivíduos reais e ativos e de suas condições materiais de existência. É a realidade concreta que determina como os sujeitos de uma determinada época irão pensar e agir sobre essa própria realidade, criando e desenvolvendo as condições necessárias para sua sobrevivência, por meio do trabalho, e condicionando as relações sociais e todas as demais instâncias da vida humana em sociedade. Vale enfatizar que “[...] a consciência é, pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto existirem homens” (MARX; ENGELS, 2009, p. 44).

Desse pressuposto deriva uma constatação de Marx e Engels (1998, p. 40) que foi por eles resumida na célebre frase: ‘A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”. As formas como os homens se organizam historicamente em sociedade para produzir os meios necessários à sua sobrevivência, a partir do trabalho, mantêm, quase sempre, uma característica em comum: a exploração do homem pelo próprio homem. Esse fato está diretamente ligado ao desenvolvimento histórico dos meios de produção de trabalho e é a partir disso que passam a existir, na sociedade, duas classes sociais antagônicas: os dominados e os dominantes. Segundo Lessa e Tonet (2012, p. 13):

O surgimento do trabalho excedente fez com que, pela exploração do trabalho alheio, se obtivesse muito mais do que pelo próprio trabalho. Passou a ser lucrativa a atividade de opressão e controle dos trabalhadores para deles tirar o trabalho excedente. O trabalho de coleta foi substituído pelo trabalho escravo, depois pelo trabalho do servo medieval e, nos nossos dias, pelo trabalho proletário.

A exploração do homem pelo homem, a existência de classes dominantes e dominadas fez surgir novas necessidades: a classe dominante precisou criar mecanismos que pudessem con-trolar a classe que produzia a riqueza material. É nesse contexto e a partir dessas necessidades que surgem instituições como o Estado, por exemplo. Surge também a separação do trabalho em suas dimensões intelectual e material, que leva à aparência de que alguns indivíduos seriam naturalmente responsáveis por desenvolver as ideias que explicarão e orientarão a organização da sociedade e outros seriam naturalmente aptos a produzir a riqueza material, mantendo “[...] uma atitude mais passiva e receptiva em relação a essas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros ativos dessa classe, e tem menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios” (MARX; ENGELS, 2009, p. 68).

É nesse contexto que as classes dominantes tentam estabelecer sua hegemonia de classe a partir da imposição de determinadas formas de pensar. Não à toa que Marx e Engels (2009, p. 67, grifo do autor) afirmam que “[...] as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante”. Eles explicam que

[...] cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela é obrigada, precisamente para realizar seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse universal de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal: a dar às suas ideias a forma de universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. (MARX; ENGELS, 2009, p. 69).

Posto isso, passemos à discussão em torno das contradições do discurso presentes no ideário Positivista e no Movimento Escola sem Partido. A Sociologia Positivista de Comte e Durkheim9 surge a partir das grandes transformações sociais e da consolidação da sociedade capitalista no século XIX. Para compreender de forma mais profunda as formulações teóri-cas e as contradições impregnadas no ideário Positivista é importante abordar, também, o desenvolvimento histórico que culminou com a produção de conhecimento chamado moderno.

Durante o período conhecido como Baixa Idade Média (entre os séculos XIII e XV), a burguesia - classe formada por artesãos e comerciantes - articulou-se e constituiu uma identidade baseada em interesses comuns, que surgiram com as contradições da sociedade feudal, materializadas nos abusos e na exploração do povo pela realeza e pelo clero e com o desenvolvimento do comércio. A sociedade feudal - que se formou na Europa durante a Idade Média, entre os séculos V e XV - surgiu e se consolidou a partir da organização da sociedade em feudos, em que as terras eram de propriedade de um senhor, que ficava com a maior parte de tudo aquilo que era produzido e, em troca, oferecia proteção militar aos servos que trabalhavam nas terras, que eram responsáveis pela produção agrária dos feudos e ficavam com uma parte da produção. Havia ainda a figura da Igreja, que prestava auxílio espiritual aos servos e senhores em troca de parte da produção. Como ficavam com parte da produção, os servos passaram a se interessar pelo seu aumento e, com isso, “[...] começaram a desenvolver novas ferramentas, novas técnicas produtivas, novas formas de organização do trabalho coletivo, aprimoraram sementes, melhoraram as técnicas de preservação do solo” (LESSA; TONET, 2011, p. 62).

Em poucos séculos, a produção dos feudos aumentou significativamente, melhorando as condições de alimentação da população e contribuindo para o crescimento populacional, o que gerou uma crise no sistema feudal, já que a produção era maior do que o consumo e havia nos feudos mais servos do que o necessário. A crise do sistema feudal fez com que muitos servos tivessem que abandonar os feudos e alojarem-se nas cidades. Dessa forma, eles passaram a se desenvolver em praticamente toda a Europa. Ressurgiram também duas classes sociais, suprimidas pela crise do sistema es-cravista e pela ascensão e desenvolvimento da sociedade feudal: os artesãos e os comerciantes, que ficariam conhecidos como burguesia.

Os interesses comuns de artesãos e de comerciantes tornaram-se rapidamente condições de classe, da classe que até então sentia de forma mais efetiva as contradições sociais produzidas na sociedade feudal. A articulação entre comerciantes e artesãos, que deu origem à classe burguesa, permitiu-lhes ampliar sua capacidade de organização política e investimento no desenvolvimento das ciências e da filosofia, com o objetivo de produzir conhecimentos que pudessem desenvolver seus meios de produção e colocá-la como classe revolucionária, lutando contra as contradições da sociedade feudal, a ideia de monarquia absolutista e o poder da Igreja, propondo uma sociedade organizada a partir dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Todo esse movimento culminou nas Revoluções Industrial (1776-1830) e Francesa (1789), resultando na ascensão da burguesia ao poder e na organização da sociedade capitalista. Contudo, conforme afirma Engels (2009, p. 166): “Como a base da civilização é a exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, isto é, da imensa maioria.”

Ao contrário do que propunha o discurso que contribuiu para a chegada da burguesia ao poder, a sociedade capitalista funda uma nova forma de exploração do homem pelo próprio homem - o trabalho assalariado - e as contradições passam a emanar da divisão da sociedade em duas classes antagônicas: a burguesia e o proletariado. Mudaram, também, os interesses da agora classe dominante, e a burguesia passa de classe revolucionária - que buscou a transformação da organização social em que era explorada -, a classe conservadora - que busca mascarar as contradições da sociedade capitalista, para, assim, manter-se no poder. Para o ideário burguês, o caráter conservador dessa nova forma de pensar e agir possuía um fundamento positivo, uma vez que

[...] eles consideravam a nova ordem de acordo com a verdadeira natureza humana. Deste modo, se a revolução feita pela burguesia tinha se justificado, dado o caráter antinatural da ordem social feudal, não faria mais sentido buscar uma nova revolução. Trava-se, agora, de impulsionar o desenvolvimento nesse novo caminho que iria permitir o constante aperfeiçoamento tanto material quanto espiritual da humanidade. (TONET, 2013, p. 51).

Nesse contexto, a produção de conhecimento - que durante os séculos XVI e XIX foi caracterizado pela ascensão da burguesia e sua tentativa de afirmar a historicidade, a possibilidade da transformação da realidade social e a construção de uma nova forma de organização social - passa a ser caracterizada pela busca por compreender as novas contradições que emanam dessa nova forma de sociabilidade, para, dessa forma, buscar aprimorá-la e instituir-lhe determinada ordem. De acordo com Tonet (2013, p. 55), o surgimento das Ciências Sociais no século XIX, ancoradas na tradição positivista, partiu do pressuposto de que

[...] a forma atual da sociabilidade é a última e a mais adequada possível para o desenvolvimento da humanidade. Isso por duas razões. Em primeiro lugar, por ser ela julgada consentânea com a verdadeira natureza humana - presente igualmente em todos os indivíduos humanos [...], em segundo lugar, porque essa forma de sociabilidade, por ser democrática, estaria indefinidamente aberta ao aperfeiçoamento. Tratase, pois de conhecer a realidade social para não transformá-la radicalmente, mas para permitir a reprodução, certamente, com melhorias, dessa forma de sociabilidade.

Assim como no Positivismo, o ideário do Movimento Escola sem Partido - e sua intenção de atribuir à escola um papel de neutralidade política, religiosa e ideológica - tem como pano de fundo um discurso coberto de interesses políticos e ideológicos: os interesses da classe dominante. A proposta do MESP de normatizar seus princípios por meio da força de lei já é, por si só, contraditória, pois, para concretizar a ideia de uma “escola sem partido”, depende de partidos políticos.

Para compreender o surgimento e a ascensão de movimentos conservadores e reacionários, como o Escola sem Partido, é preciso, também, considerar que esses movimentos são reflexos do acirramento da luta de classes neste momento histórico, fruto da crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2011a, 2011b), que teve início por volta de 1970 e vem afetando as estruturas e a lógica que organiza a sociedade capitalista. A crise estrutural do capital é, assim como a crise da sociedade feudal, resultado das contradições da sociedade capitalista e do longo processo de exploração da força de trabalho da classe trabalhadora pela burguesia, produzido por essa forma de sociabilidade. É importante destacar que, de acordo com Més-záros (2011b, p. 797, grifo do autor),

[...] uma crise estrutural afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas partes constituintes ou subcomplexos, como também a outros complexos aos quais é articulada. Diferentemente, uma crise não estrutural afeta apenas algumas partes do complexo em questão, e assim, não importa o grau de severidade em relação às partes afetadas, não pode pôr em risco a sobrevivência contínua da estrutura global.

Nesse sentido, a crise estrutural coloca em xeque a lógica da acumulação capitalista, a partir do colapso de suas três dimensões fundamentais: a produção, o consumo e a circulação de mercadorias. Sobre essa questão, Mészáros (2011b, p. 798) aponta que, no desenvolvimento histórico real, essas três dimensões “[...] tendem a se fortalecer e a se ampliar por um longo tempo, provendo a motivação interna necessária para a sua reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez mais ampliada”. Quando uma das dimensões entra em crise, a relação entre elas permite a superação dessa crise e a continuidade da expansão do capital, por exemplo: uma crise na produção pode ser superada a partir da ampliação do consumo e assim por diante. É da natureza do próprio capital superar as barreiras impostas ao seu desenvolvimento. Mais do que isso: as crises cíclicas são vitais para a continuidade e a expansão do capital. Conforme afirma Mészáros (2011b, p. 795, grifo do autor),

[...] crises de intensidade e duração variadas são o modo natural de existência do capital: são maneiras de progredir para além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo cruel sua esfera de operação e dominação. Nesse sentido, a última coisa que o capital poderia desejar seria uma superação permanente de todas as crises, mesmo que seus ideólogos e propagandistas frequentemente sonhem com (ou ainda, reivindiquem a realização de) exatamente isso.

No entanto, a superação dessas crises que ocorreram (ciclicamente) na história do capitalismo não acontecem sem que sua estrutura seja afetada. As perturbações geradas a cada crise vão ganhando dimensões cada vez maiores, tendendo a tornarem-se cumulativas e, por consequência, estruturais, uma vez que vão inviabilizando a superação das contradições por ela gerada. Assim, “[...] aquilo com o que nos confrontamos não é mais simplesmente ‘disfuncional’, mas potencialmente muito explosivo. Isto porque o capital nunca, jamais, resolveu sequer a menor de suas contradições” (MÉSZÁROS, 2011b, p. 800).

A diferença histórica da crise atual das demais já enfrentadas pelo capital é caracterizada por Mészáros (2011b, p. 795, grifo do autor) a partir de quatro aspectos principais:

  • (1) seu caráter é universal, em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de trabalho, com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade etc.);

  • (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises no passado);

  • (3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital;

  • (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na ‘administração da crise’ e no ‘deslocamento’ mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua energia.

As crises cíclicas pelas quais historicamente passa o sistema capitalista são resultado de um processo material, ligado essencialmente à forma como os homens se organizam para produzir os meios necessários à sua sobrevivência a partir do trabalho e das relações sociais que surgem dessa organização, e nada têm a ver com a ideia fortemente difundida por esses movimentos conservadores, “[...] de que o mundo está em crise por causa da perda dos ‘verdadeiros’ valores tradicionais” (TONET, 2009, p. 1, grifo do autor). Além disso, a crise estrutural do capital não produz consequências apenas na esfera socioeconômica, mas afeta todas as demais instâncias sociais. Segundo Mészáros (2011b, p. 800, grifo do autor):

Desnecessário dizer que esta crise estrutural não está confinada à esfera socioeconómica. Dadas as determinações inevitáveis do ‘círculo mágico’ do capital referidas anteriormente, a profunda crise da ‘sociedade civil’ reverbera ruidosamente em todo o espectro das instituições políticas. Nas condições socioeconômicas crescentemente instáveis, são necessárias novas ‘garantias políticas’, muito mais poderosas, garantias que não podem ser oferecidas pelo Estado capitalista tal como se apresenta hoje. Assim, o desaparecimento ignominioso do Estado do bem-estar social expressa claramente a aceitação do fato de que a crise estrutural de todas as instituições políticas já vem fermentando sob a crosta da ‘política de consenso’ há bem mais de duas décadas. O que precisa ser acentuado aqui é que as contradições subjacentes de modo algum se dissipam na crise das instituições políticas; ao contrário, afetam toda a sociedade de um modo nunca antes experimentado. Realmente, a crise estrutural do capital se revela como uma verdadeira crise de dominação em geral.

Como resultado disso, coube à burguesia articular-se e reagir à crise, intensificando a exploração da classe trabalhadora, a partir da reestruturação do modo de produção capitalista, com o objetivo de garantir a retomada e o aumento da acumulação do capital. O que se nota, a partir de então, é a busca pela reorganização do Estado Capitalista no sentido de controlar a classe trabalhadora e garantir cada vez mais o atendimento das necessidades do capital. Nesse contexto, deparamo-nos com um cenário de:

Privatização de empresas estatais, privatização de serviços públicos, aumento do desemprego e do subemprego, precarização do trabalho, intensificação da exploração dos que ainda permaneciam empregados, supressão de direitos duramente conquistados, corte dos gastos públicos e com isso, agravamento dos problemas sociais de toda ordem: saúde, educação, transporte, alimentação, moradia, saneamento, segurança, urbanização, cultura e lazer, devastação da natureza. Tudo deveria ser organizado no sentido de garantir os lucros dos capitalistas nem que, para isso, fosse preciso destruir a humanidade. (TONET, 2014, p. 1).

A crise estrutural do capital também produziu e vem produzindo consequências no Brasil. A conjuntura política, econômica e social brasileira, de caráter reacionário, é evidenciada em inúmeros episódios que aconteceram recentemente, como o processo de impeachment ilegítimo da presidente Dilma Rousseff (PT), eleita democraticamente em 2014 e impedida de prosseguir seu mandato em 2016;10 as diversas medidas tomadas por seu sucessor, Michel Temer (PMDB11), que desmontaram políticas sociais, congelaram gastos públicos, precarizaram ainda mais as relações de trabalho no Brasil etc., desconsiderando as reais necessidades da maioria da população; a chegada ao poder, em 2019, de Jair Messias Bolsonaro (PSL), que, tendo sido durante as eleições e sendo agora apoiado por grupos religiosos conservadores e de extrema direita, tem implementado um “projeto de governo”, se é possível chamar assim, articulado aos interesses do mercado financeiro e das elites econômicas do país, além de possuir caráter fascista, fundamentalista, racista, intolerante, homofóbico etc., representando uma verdadeira ameaça à democracia e aos direitos da classe trabalhadora.

Se consideramos o atual contexto político, econômico e social brasileiro, a articulação do MESP com grupos religiosos e conservadores evidencia que a concepção de educação defendida pelo Movimento está comprometida com uma determinada visão de mundo e, consequentemente, com um determinado projeto de sociedade, que busca a manutenção de um sistema pautado pelo crescimento da exploração da classe trabalhadora, o que resulta no aumento das desigualdades sociais em favor da apropriação privada da riqueza de uma estrita minoria.

Um ponto importante a ser considerado é que o Movimento Escola sem Partido é apenas uma das manifestações dos movimentos conservadores e reacionários que vem se propagando pelo Brasil atualmente e que têm como uma de suas principais bandeiras a luta contra todo e qualquer tipo de ideologia. Para esses movimentos, “[...] ideologia é identificada como tudo aquilo que é ruim, tudo aquilo que teria de ser eliminado para que o país prosperasse” (LESSA, 2019, p. 16). A própria compreensão desses movimentos em relação ao que seria ideologia é carregada de preceitos valorativos, pois, para eles, o oposto à ideologia seriam os “verdadeiros valores” da tradição cristã e da sociedade tradicional, a saber: “[...] a família monogâmica, patriarcal; a moral conservadora nos costumes, a disciplina na vida cotidiana, a propriedade privada burguesa como núcleo da liberdade; o Estado como ordenador da sociedade” (LESSA, 2019, p. 16). Assim, não é necessário muito esforço para perceber que os ideais promovidos pelos movimentos conservadores e reacionários no Brasil são tão ideológicos quanto aquilo que dizem combater. A esse respeito, Lessa (2019, p. 17, grifo do autor) afirma que:

Contra a ‘ideologia de gênero’, a ideologia de que os homens devem comandar, e as mulheres, obedecer; contra as ‘ideologias socialistas e comunistas’, a ideologia liberal segundo a qual não há nada mais justo do que o mercado e que o capital é o que nos faz humanos; contra a ‘ideologia de liberdade de expressão’, a ideologia de que apenas os valores conservadores são os verdadeiros. E assim por diante.

Nessa perspectiva, o caráter conservador e reacionário da burguesia na defesa de seus interesses - diga-se: da manutenção de uma sociedade excludente e desigual em prol do enriquecimento individual - “[...] só pode sustentar-se pela manipulação ideológica das massas pelo monopólio da mídia empresarial e pela pedagogia do medo e da violência” (FRI-GOTTO, 2017, p. 24). A proposta de educação defendida pelo MESP quer negar o caráter histórico da luta de classes, buscando impor à educação pública brasileira uma visão acrítica e distanciada da realidade social, o que afeta a população brasileira em geral, principalmente a classe trabalhadora, que acaba sendo, muitas vezes, condenada ao conformismo disseminado por Igrejas e por outros movimentos conservadores no Brasil. Nesse sentido, Frigotto (2017, p. 29) afirma que:

O Escola sem Partido expressa o epílogo de um processo que quer estatuir uma lei que define o que é ciência e conhecimentos válidos, e que os professores só podem seguir a cartilha das conclusões e interpretações da ciência oficial, uma ciência supostamente não neutra. Para isso, manipula até mesmo o sentido liberal de política, induzindo a ideia de que a escola no Brasil estaria comandada por um partido político e seus profissionais e os alunos seres idiotas manipulados.

Somado à crescente onda conservadora que assola o Brasil, o Movimento Escola sem Partido constitui-se como uma expressão de valores que brotam de relações sociais determinantes e acabam sendo interiorizadas pelos indivíduos por meio do discurso ideológico, que manipula a consciência imediata e submete os sujeitos a determinadas formas de agir e pensar. Assim, conforme afirma Flach (2017, p. 41):

A pretensão de neutralidade proposta, além de se pautar na crença de que existe uma verdade absoluta, escamoteia e oculta os reais interesses de uma pedagogia que se submete aos interesses do capital, reafirmando seus pressupostos, não oferecendo alternativa para um enfrentamento aberto com vistas à superação da desigualdade gerada pelo modo de produção capitalista.

Lowy (1985) brilhantemente compara o pensamento Positivista a uma das histórias do Barão de Münchhausen, personagem famoso em histórias infantis alemãs e conhecido por sua fanfarronice e por sempre contar vantagem nas incríveis aventuras que vivia. A história conta que, certa vez, o barão passeava com seu cavalo quando afundou em um pântano. Münchhausen e seu cavalo foram afundando mais e mais no pântano, de forma que a lama já cobria a altura da barriga do animal e a situação ficava cada vez mais desesperadora, com o barão sem saber o que fazer e temendo morrer ali, junto ao seu cavalo. Nesse momento, o barão teve uma simples mas genial ideia: agarrou seus próprios cabelos e foi puxando e arrastando a si mesmo e depois ao seu cavalo até tirar ambos do pântano.

Usando da analogia feita por Lowy (1985), podemos afirmar que tanto a neutralidade cientifica, proposta pelo Positivismo, quanto a tentativa de impor aos professores a neutralidade no trato dos conteúdos escolares, idealizada pelo Movimento Escola sem Partido, possuem o mesmo sentido: ambas estão atoladas até a cintura (ou porque não até o pescoço) no pântano de sua própria ideologia, de seus valores e de seus interesses de classe; ambas tentam sair desse pantanal puxando a si mesmas pelos próprios cabelos, na busca por se colocarem em um terreno neutro, limpo e isento de qualquer “sujeira moral” e/ou “qualquer tipo de interesse”.

Considerações finais

Mesmo que pretendam negar o caráter político e ideológico de suas propostas, um breve olhar para a história permite-nos observar que a neutralidade do enunciado positivista e do Movimento Escola sem Partido mora apenas no plano do discurso. Seja no Positivismo ou no Escola sem Partido, a defesa da neutralidade tem como principal objetivo negar o caráter histórico da luta de classes e dos sujeitos, em busca de estabelecer a hegemonia de uma determinada classe social: a classe que já está no poder. Além disso, os preceitos propagados pelo MESP ferem a pluralidade e a liberdade de ensino, criminalizam a atividade docente e comprometem, além da formação política, diversos aspectos extremamente importantes para a formação humana, representando um enorme retrocesso, tanto no âmbito educacional quanto no político e no social.

O Escola sem Partido, e sua pretensa neutralidade, representa um verdadeiro retrocesso para a formação crítica de crianças e de jovens, pois tenta impedir a tomada de consciência em relação às verdadeiras raízes das desigualdades da sociedade capitalista. Essa tomada de consciência estremece, entre outros, os princípios sociais, políticos, econômicos, familiares, religiosos, que tentam camuflar o antagonismo e a luta de classes e se contrapor a qualquer perspectiva de superação radical da forma de organização social vigente. Assim, o que no fundo o Movimento Escola sem Partido quer é transformar o pensamento dos sujeitos em uma massa de modelar que se adequará, sem oferecer resistência, aos interesses da classe dominante.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 18 de Dezembro de 2019; Aceito: 04 de Abril de 2020

1

A pesquisa realizada, que resultou no presente artigo, deu-se em conformidade com os procedimentos éticos em pesquisa na área das Ciências Humanas.

2

A reprodução social constitui-se, na perspectiva adotada neste estudo, em um “[...] processo de acumulação - que, por sua essência, só pode se desdobrar pela mediação de um órgão como a consciência - no qual as experiências passadas não são apenas acumuladas, mas também confrontadas com as exigências e desafios colocados pelo passado e pelo presente, pelas novas demandas e tarefas que a vida, sem cessar, coloca aos homens.” (LESSA, 1994, p. 65).

3

No Indoctrination é um site criado pela norte americana Luann Wright depois de descobrir que seu filho teria escrito textos sobre o racismo de brancos contra negros, influenciado, segundo ela, por atitudes “tendenciosas” de seu professor de literatura. Por meio do site, as famílias podem questionar e denunciar o posicionamento dos professores em sala de aula, sob o argumento de que eles deveriam apenas ensinar e não utilizar sua posição para abordar crenças pessoais.

4

Embora Nagib não destaque as palavras de Max Weber

5

entre aspas, optamos por colocar aspas simples na parte dessa citação que traz os próprios termos do sociólogo alemão, no seu texto “Ciência e Política: duas vocações”. Na edição por nós utilizada, essa passagem encontra-se nas páginas 39-40 (WEBER, 2000).

6

Os sites Professores Contra o Escola sem Partido (2018) e Pesquisando o Escola sem Partido (2018) são iniciativas de estudantes e professores que buscam se contrapor ao Movimento Escola sem Partido, produzindo análises e reflexões sobre o Movimento com o objetivo de desconstruir seu discurso. Ambos as iniciativas disponibilizam, em suas páginas, levantamentos de projetos que tramitam em estados e municípios pelo Brasil. O levantamento dá continuidade à pesquisa realizada por Fernanda Pereira de Moura (2016), que mapeou os projetos do Escola sem Partido pelo país, e que resultou na dissertação intitulada “‘Escola sem Partido’: relações entre estado, educação e religião e os impactos no ensino de História”, defendida em 2016. De acordo com esse levantamento, atualizado até 8 de janeiro de 2018, tramitaram ou tramitam 25 projetos em âmbito estadual e 121 em âmbito municipal, podendo ou não terem sido aprovados. O levantamento considera também projetos ligados a questões de gênero e outros que tenham propostas semelhantes ao do Escola sem Partido, mas são apresentados com outros nomes (PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).

7

A partir de Lowy (1985), consideramos Durkheim como um sociólogo fundamentalmente positivista. Segundo Lowy (1985, p. 41), Durkheim “[...] é a referência metodológica de boa parte da literatura positivista no campo das ciências sociais”.

8

Não é nosso objetivo discutir, neste texto, o que tem sido chamado por diversos autores, ao se referir ao processo de impeachment ilegítimo de Dilma Rousseff, de “Golpe”. Dentre esses autores, Jessé Souza tem contribuído de forma significativa para a compreensão de que esse processo foi liderado por elites econômicas, respaldado por setores políticos e jurídicos e reafirmado pela grande mídia brasileira. Para aprofundar essa discussão ver, especialmente, SOUZA (2016).

9

Em 2016, Michel Temer integrava Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que, no final de 2017, retorna à sigla de MDB - Movimento Democrático Brasileiro.

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